quinta-feira, 5 de junho de 2025

Newton Sampaio (Noturno)


Nota prévia: Um amigo me fez o favor de não gostar, por escrito, das publicações esparsas que venho fazendo de meus pobres livros. Ele acha que isso me está estragando muito (está estragando o meu “nome”, como diz o amigo, com largo cavalheirismo, referindo-se a uma coisa que absolutamente não possuo ainda, nem no Paraná: um nome literário). A falta de continuidade — argumenta o colega — impede o leitor de compreender o sentido de minhas palavras. E o entrosamento da narração não pode ser percebido, palidamente sequer.

Ora, eu tenho um hábito muito feio. Gosto de fazer justamente aquilo que os outros acham que não devo fazer. Tenho prazer em contrariar os outros. Em ofender os outros. Em remar contra a corrente. Desde criança fui assim. Por isso — só porque me criticaram — atiro hoje, nestas colunas, mais um excerto. O qual, como os anteriores, não vai gozar o menor efeito. O leitor, aliás, pode fazer o juízo que quiser sobre estas “amostras” de minhas criações literárias. E quando, de futuro, vier a percorrer, por desfastio, as narrativas ordenadas em volume, reforce o juízo desfavorável ou modifique-o, da maneira que lhe aprouver. Pois, no mundo, há uma coisa com que absolutamente eu não me incomodo: a opinião alheia. Sobretudo em questões de literatura.

Aproveito a ocasião para explicar o seguinte: os erros de gramática que têm aparecido nos excertos anteriores correm, em sua maioria, por minha conta. E, em sua minoria, por conta do linotipista. Dos que correm por minha conta não me penitencio. Dona Gramática é uma senhora muito antipática e eu tenho prazer em destratá-la. Eu erro sem remorsos. Erro porque, muitas vezes, uma frase errada exprime, com precisão muito maior do que uma frase corretíssima, a emoção de tal ou qual personagem. Por exemplo:

Em uma das publicações anteriores, Damião ficou com vontade ser canalha. Ora, vontade ser, isso sim. Acontece, porém, que se eu dissesse que Damião estava com vontade de ser canalha, aquele de iria estragar tudo. Iria artificializar o desejo do rapaz. E eu, em minhas narrativas, quero mais é fixar emoções e não demonstrar conhecimentos de linguística. No romance, dizem todos os críticos, o fato é tudo, a palavra é nada. E quando esse fato não é objetivo, mas psicológico, muito mais razão tenho para desconhecer a gramática. Nunca ninguém consultou previamente as leis da sintaxe e etc. ao sentir qualquer emoção, banal ou chocante.

Outra observação: de vez em quando aparecem aqui expressão ditas de “imorais” pelos puritanos. Ora, eu adoto conceitos revolucionários nesse terreno. Isto é: não admito a existência da imoralidade. Acho que as coisas verdadeiras não são imorais. Aliás, é fácil concluir que a moralidade também não existe.

Existe Moral, com M grande, uma coisa abstrata, longínqua, grande demais para merecer nossas conjecturas. Mas moralidade não existe. Isso é ficção. É invenção daqueles que se sentem com coragem de violá-la. Mas isso não vem ao caso. Queria dizer, apenas, que tenho empregado termos crus em meus escritos. Esses termos, porém, são crus porque há, por aí, convenções muito estúpidas, muito cretinas, e há no mundo muita gente hipócrita. Além do mais, se eu pronuncio esses termos, se você os pronuncia, se todos os pronunciam — que mal há em escrevê-los, com todas as letras? Se eu não tenho escrúpulos de falar ou ouvir um termo feio, não devo ter escrúpulos de escrevê-lo. O papel não é mais digno do que os meus lábios ou os meus ouvidos. E, nos livros, as pessoas devem falar do jeito que falam na vida. Na vida, quase sempre, nós falamos coisas tão sujas, tão torpes, tão amargas...

Largado no banco do jardim, meio encoberto pela sombra da palmeirinha, Boito percebe o ruído que vem da sala. A confusão de palavras e risadas cresce e diminui alternadamente. Às vezes chega ao pianíssimo, quase fica imperceptível, depois ondula, e de repente explode, decidida. Sinal de que a anedota terminou, e o comentário resolve tomar corpo, em todos os lábios.

Boito escuta, e machuca com os dedos uma folha muito verde. A luz que sai da sala caminha no terraço, insinua-se pelo gradil, vai projetar-se, de mansinho, no primeiro canteiro. Ali morre, de supetão. Morre justamente onde começa o pequeno rastilho do luar. Do luar que cobre toda a cidade, como uma bênção.

Dona Amélia, sorridente, gorduchona, é a primeira que sai, metida numa roupa de lã.

— Irá à novena? — pensa Boito. — Não há mais tempo...

Será que dona Amélia adivinhou-lhe o pensamento? Ela explica incontinenti à Virgínia:

— Vou fazer uma visitinha à Candoca. Dizem que está passando mal, já sabia?

As banhas da mulher se movimentam e atravessam o portão.

Agora são os rapazes que surgem.

— Tá esfriando...

— Vamos dar uma volta, Mendoncinha?

— Por meia hora, vamos. Preciso me aprontar cedo.

— Por causa do bate-coxa brabo na casa do Crespo.

— Ahn!

— Nem queira saber.

E Mendoncinha faz um gesto canalha, bem na frente dos outros.

— Quero deixar um arco na cintura da irmã dele. A pequena há de satisfazer oito vezes nos meus braços.

— Oito vezes? Não dá pra tanto. A fisiologia sexual, meu amigo...

E Gilberto desenrola a sabedoria dos compêndios.

Raras vozes na sala. O empregado limpa as mesas, em silêncio. Cresce um som de talheres e pratos, na cozinha. Dona Emerenciana dá ordens. Janelas se iluminam. Outras escurecem. O tenente sai, mais a mulher. Vão ruminar o jantar na rua, apesar do tempo. O Neves, tremendo-tremendo, custa a acertar a cadeira de vime.

Boito se assusta.

— Será ela? É mesmo. Não pode ser outra.

Dulce atravessa o jardinzinho. Nem olha para os lados. Está tristinha.

— Dulce.

— Ah! Você! Não tinha visto...

— Eu sou o Homem Invisível.

(E a inflexão de Boito é forçada, cheia de intenções).

— Lembra-se da fita? A cabeça enrolada, o nariz escondido assim, as orelhas, o queixo, tudo. Tal e qual.

— Já vem você com as histórias de sempre.

— Histórias? São fatos, minha nega. Ando ou não ando parecido com o homem da fita?

Dulce não desanima.

— É impressão sua. Quando você tirar os panos, ficará o que era antes.

— O que era antes? Coitado de mim! Então eu não tenho espelho no quarto? Estou com a boca torta. Eu sei.

— Exagero...

E Dulce resolve cortar o assunto.

— Bem, vamos parar.

(Muda o tom de voz)

— Como vão as meninas?

— Mais ou menos. Quer entrar?

— Não. Fico mais um pouquinho.

— Aqui você se resfria.

Pausa.

— Por que a Dorita não veio?

— Por nada. A coitadinha está muito aborrecida. Ficou chorando...

— Chorando?

— Ela quer ir à festa na casa dos Crespos.

— E não vai?

— Por falta de companhia.

— E você?

— Eu?

— Sim. Por minha causa não se prenda. Nós ainda não somos noivos. Vá a festas, divirta-se, faça o que quiser.

— Não fica bem.

— Fica, sim senhora. Pra tristezas, bastam as minhas.

— Mas, Boito...

— É isso mesmo. Vá. Divirta-se. O que é que tem?

— Prefiro não ir.

— Bobagem. Por minha causa não se prenda.

(Custa dissimular o nervosismo).

— Que culpa tem a Dorita de minhas loucuras? Nenhuma. Você deve ir. Acompanhe a coitadinha.

Dulce não sabe o que dizer. Para falar a verdade, é bem grande o desejo de ir.

— Que diabo! — pensa. — Eu sou moça, preciso me divertir.

Pergunta ao Boito.

— Se eu for, você não zanga?

— Claro que não.

— Prometo me comportar, não namorar ninguém...

— Ora!

— E saio cedo. Só pra contentar Dorita. É tão bobinha!

O diálogo se prolonga. Por fim, Dulce entra, a cumprimentar dona Emerenciana. Demora-se pouco. Na saída ainda fala.

— Olhe lá, Boito. Não zangue, viu? Amanhã venho contar tudo.

— Está bem.

Dulce caminha, no andarzinho leve de sempre. Está cada vez mais bonita. E Boito sente uma opressão... Tem medo de perdê-la. Ou por outra. Tem quase certeza de que Dulce não será sua, nunca mais...

Sobe ao quarto. Pensa, pensa. Por que diabo fora ele cometer aquela asneira? Que coisa estúpida. Ele próprio não sabe explicar bem. Fizera tudo inconscientemente, empurrado por mãos escondidas.

Vem uma vontade de chorar. Uma vontade impertinente, sem fim.

Vai à janela. Espia vagamente. O cérebro trabalha sem descanso. Mergulha no passado. Aflora no presente. Planeja. E rememora outra vez. E considera. E imagina.

Nem sente passar o tempo. Quando vê, a casa inteira está silenciosa. O relógio bate onze vezes.

Deserta a rua. O silêncio. O luar desenhando coisas oblongas na calçada. Um guarda apita. O colega responde no outro quarteirão.

Um casal passa. Ele, de casaca. Ela, de vestido comprido. Discutem baixinho. E seguem.

Chegam de longe, vez ou outra, sons perdidos, indistintos. É a cidade que arqueja de sono. São bailes principiando. Grandes farras que começam. E a noite fria, fria, insinuando conchegos misteriosos.

A criança do vizinho se põe a chorar. A mãe intervém. A criança silencia.

Damião passeia no quarto de baixo, lentamente. Tosse duas vezes. E continua.

A mocinha triste do seu Valério está sozinha na sala. Ela é romântica. Olha a lua e sonha. Sonha com os amantes que nunca teve — príncipes loiros e esbeltos talvez.

A mocinha, de repente, apaga a luz. Toma o violino. As cordas vibram. O arco desliza. Os dedos caminham, mansos, dóceis.

É muito conhecida a melodia. Um noturno. A mana Guguti toca isso sempre. Mas não atinge nunca a emoção da mocinha triste do seu Valério. Não realiza, nunca, uma surdina assim. O noturno fica mais delicado, mais penetrante.

Lá embaixo, na calçada, passa um garoto de casaco esfarrapado. Segura a certinha. E grita, pra rua deserta:

— Mendoim torradinho... Quentinho, quentiiinho...

O violino não cessa. A música se torna mais angustiada. Parece um soluço feito harmonia.

O garoto já vai mais longe. Oferece outra vez, no esforço medonho de encontrar freguês.

E o pregão morre na noite quieta, longe, longe.

— Mendoim torradinho... Quentinho, quentiiinho...
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Newton Sampaio natural de Tomazina/PR, 1913 e falecido na Lapa, em 1938,  foi um médico, ensaísta, escritor e jornalista brasileiro. Newton é considerado um dos mais importantes contistas paranaenses sendo o precursor do conto urbano moderno. Em 1925, saindo da pequena Tomazina foi estudar no Ginásio Paranaense, em Curitiba, e precocemente, passou a lecionar nesta instituição, além de colaborar para alguns jornais da capital paranaense, principalmente o "O Dia". Ao ser admitido na Faculdade Fluminense de Medicina, transferiu-se para a cidade de Niterói. Após formado em Medicina, permanece na capital do país, porém, com a saúde bastante abalada, retornou a Curitiba e em seguida internou-se em um sanatório na cidade da Lapa onde faleceu no dia 12 de julho de 1938. Duas semanas após o seu falecimento, recebeu o Prêmio Contos e Fantasias concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo livro Irmandade. Newton Sampaio pertenceu ao Círculo de Estudos Bandeirantes de Curitiba e como homenagem ao jovem modernista, um dos principais prêmios de contos do Brasil leva o seu nome: Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio. Algumas obras:  Romance “Trapo”: trechos publicados em jornais e revistas; Novela “Remorso”, 1935; “Cria de alugado”, 1935; Contos: “Irmandade”, 1938, “Contos do Sertão Paranaense”, 1939; “Reportagem de Ideias”: contos incompletos, etc.

Fontes:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.
Imagem criada por Feldman com Microsoft Bing 

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