Mukashi banashi. Expressão que, para muitos descendentes de japoneses, consiste em algo muito familiar, desde a mais tenra infância. Seu significado, “contos antigos” (se a traduzirmos literalmente: mukashi = antigo, hanashi = conto, narrativa), remete a algo simples mas, em termos literários, bastante amplo.
Pode-se dizer que os mukashi banashi japoneses consistem em uma forma literária que, comparada à literatura ocidental compreende, em âmbito geral, contos de caráter maravilhoso, bem como aqueles que se aproximam das fábulas, mitos e lendas. Considerando, assim, esses mukashi banashi como narrativas cuja origem se perde no tempo, é possível dizer que, de maneira semelhante à maioria dos povos, tais contos faziam parte de um acervo narrativo destinado a adultos; entretanto, com a tradição oral e o decorrer das gerações, sofreram modificações em sua estrutura, fato que veio acarretar, em diversos deles, um direcionamento para o campo infantil.
O surgimento dos mukashi banashi ocorreu em uma fase anterior aos registros escritos, em um período em que dominava uma cultura de caráter animista. O Xintoísmo, nome dado às crenças e práticas religiosas autóctones do Japão anterior ao Budismo (que foi introduzido no Japão no século VI d.C.), apresenta tal característica. A palavra shintô significa, literalmente, “o caminho do kami” e, até os dias de hoje, o Xintoísmo permanece intrinsecamente ligado ao sistema de valores japonês e aos modos de agir e pensar de seu povo.
Considerando-se os contos maravilhosos ocidentais, sua origem não foi muito diferente: tomemos como exemplo os Irmãos Grimm que, no século XIX, coletaram narrativas em meio às populações camponesas, frutos de uma tradição oral. Em sua origem, todas essas histórias faziam parte de um acervo narrativo oral adulto. Após a sua compilação, foram sendo transmitidos através das gerações, até chegarem ao campo literário infantil.
Normalmente os contos ocidentais encontram-se classificados segundo terminologias bastante difundidas, e cujas definições apresentam pontos de semelhança entre si:
Mito
O tema central dos mitos é a renovação da vida e o restabelecimento da ordem que triunfa sobre o caos – ou seja, a luta entre o Bem e o Mal. Trata-se de uma experiência religiosa, que acaba se configurando em uma experiência cultural, visto que todas as civilizações têm um mito de criação que justifica sua presença no mundo. No caso do Japão, temos o mito de Izanami e Izanagi, o casal primordial que gerou várias divindades; a deusa do sol, Amaterasu, genitora de todos os imperadores, nasceu através de Izanagi;
Lenda
Apresenta aspectos similares ao mito, contendo no entanto relatos de acontecimentos onde o maravilhoso e o imaginário superam o histórico. É transmitida e preservada pela tradição oral, e liga-se a certo espaço geográfico e a determinado tempo. Urashima Tarô é tido como o mukashi banashi mais antigo da tradição japonesa, sendo que sua primeira versão surgiu na coletânea Fudoki, do século VIII (Período Nara, 713 d.C.); é classificado como lenda, pois foi uma narrativa registrada na província de Tango (antigo nome da região de Kyoto);
Conto maravilhoso
Narrativas de acontecimentos ou aventuras que se passam no mundo mágico ou maravilhoso (espaço fora da realidade comum em que vivemos). “(…) a ação no conto localiza-se sempre num ‘país distante, longe, muito longe daqui’, passa-se ‘há muito, muito tempo’, ou então o lugar é em toda e nenhuma parte, a época sempre e nunca. Quando o conto adquire os traços de História, perde sua força – o mesmo ocorre com as personagens” (in: JOLLES, André. Formas Simples, p.202).
Temos ainda os contos de fadas, que são uma “(…) variedade do conto maravilhoso, permeado de acontecimentos sobrenaturais que, no entanto, não causam surpresa ao leitor como, por exemplo, o fato de atribuir aos animais a faculdade da fala e de ações estritamente humanas.” (in: TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica.). Nesse caso, cria-se uma verossimilhança interna: por mais irreais que pareçam os eventos, eles possuem uma lógica dentro do enredo.
Semelhanças entre os mukashi banashi e os contos ocidentais. Classificação dos mukashi banashi japoneses
A partir dos conceitos que foram apresentados, é possível estabelecer paralelos entre os gêneros ocidentais e os mukashi banashi, como podemos visualizar na tabela que segue. Normalmente, quando nos referimos aos mukashi banashi, a terminologia mais utilizada é a de conto maravilhoso, visto que no folclore japonês não existem fadas.
No Japão, o maior estudioso dos mukashi banashi foi Yanagita Kunio, antropólogo que realizou uma vasta pesquisa acerca das histórias e costumes do povo japonês, abrangendo desde aspectos tradicionais, como os festivais, até hábitos e elementos do cotidiano, como moradia e alimentação. Estendendo seus estudos à literatura popular, propôs uma categorização para os mukashi banashi que é considerada a mais difundida no Japão; segundo ele, tais narrativas encontram-se divididas em três categorias e, cada uma destas, em várias subcategorias:
1. Dôbutsu mukashi banashi (literalmente, “mukashi banashi sobre animais”)
1.1. narrativas sobre a origem e hábitos de animais
1.2. narrativas sobre conflitos entre animais
2. Honkaku mukashi banashi (literalmente, “mukashi banashi primitivos”)
2.1. narrativas sobre casamentos entre seres diferentes
2.2. narrativas sobre nascimentos / casamentos
2.3. narrativas sobre casamentos / lutas (competições)
2.3.1. histórias sobre madrastas: o antagonista é a madrasta
2.3.2. histórias sobre irmãos
2.4. narrativas que se referem à obtenção de alguma fortuna
2.4.1.contos dos velhos vizinhos
2.4.2. contos sobre a obtenção de alguma fortuna proveniente de forças maléficas
2.5. narrativas centradas em batalhas contra bakemono / fuga
2.6. narrativas sobre agradecimentos de animais: muitas delas são tidas como lendas (densetsu)
3. Waraibanashi (literalmente, “histórias para rir”)
3.1. narrativas que discorrem sobre alguma alegria inesperada
3.2. narrativas centradas em uma personagem astuta
3.3. narrativas que tratam de personagens cômicas
3.4. narrativas sobre competições de habilidades
3.5. narrativas sobre duelos de sabedoria
3.6. narrativas centradas em uma personagem estúpida
Consideremos, a título de exemplo, alguns mukashi banashi para elucidar a classificação apresentada.
Issunbôshi (“Issunbôshi”)
Seu protagonista assemelha-se aos dos contos “O Pequeno Polegar” e “Polegarzinho”, dos Irmãos Grimm. Sua classificação principal seria a de número 2, honkaku mukashi banashi (mukashi banashi primitivos), subcategoria 2.2. (narrativa sobre nascimentos). Isso porque Issunbôshi é uma criança de nascimento miraculoso, pois nasce a partir das preces de um casal de velhos que não podia ter filhos. Dependendo da variante do conto, o nascimento acontece de forma extraordinária: em uma versão, sua mãe passa por uma gestação de dez meses; em outra, a criança nasce de uma inflamação do dedo polegar da mãe. Cabe aqui afirmar que boa parte dos mukashi banashi japoneses apresenta uma versão em cada província do país, muitas delas diferindo-se entre si: às vezes em alguns detalhes em particular, outras em relação ao próprio desenvolvimento do enredo.
Diversas outras narrativas bastante conhecidas no Japão pertencem a essa classificação, como Momotarô (“O Menino Pêssego”, criança de força descomunal que nasce de dentro de um pêssego), Kaguya Hime (“A Princesa Kaguya”, menina que surge de dentro de um bambu) e Kintarô (“Kintarô”), dentre outros.
Kobutori Jiisan (“O Velhinho Com o Quisto”)
Trata-se de um honkaku mukashi banashi, de subcategoria 2.4.1. (contos dos velhos vizinhos). Há diversas outras narrativas no folclore japonês dentro dessa categorização, como Shitakiri Suzume (“O Pardalzinho Que Teve a Língua Cortada”) e Omusubi Kororin (“O Bolinho de Arroz Que Rolava”), entre outras, cuja temática gira em torno de um velhinho bondoso que consegue obter bens e é invejado por um velho mau, que sempre acaba castigado ao final da narrativa.
Às vezes um mesmo mukashi banashi pode pertencer a mais de uma classificação. Por exemplo, o conto Hanasaka Jiisan (“O Velhinho Que Fazia Florescer”) pode tanto ser classificado na subcategoria 2.4.1., como também na subcategoria 2.6. (narrativas sobre agradecimentos de animais), visto que todas as recompensas que o velhinho bondoso recebe vêm de seu cãozinho que havia sido morto pelo velho invejoso.
Saru Kani Kassen (“A Batalha Entre o Macaco e o Caranguejo”)
É um dôbutsu mukashi banashi (categoria 1) e, como sugere o próprio título, pertence à subcategoria 1.2., por retratar a contenda entre esses dois animais. Comparado às narrativas ocidentais, apresenta estrutura de fábula devido ao aspecto moralizante, com o macaco sendo castigado ao final.
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continua…
Fontes:
Dossiê Literário do Japan Foundation São Paulo
https://fjsp.org.br/dossie_mukashi_banashi_2_mukashibanashi_contosocidentais/
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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