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Certo dia, um menino que ouvia estrelas e queria ser canoeiro, leu uns escritos de um outro menino que queria ser passarinho, onde ele dizia:
“Hoje sou um caçador de achadouros da infância. E vou, meio dementado e enxadas às costas, cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos.”
A princípio achou um despropósito cavar lembranças no quintal. Mas quando? Já. Coisas de poeta, pensou. O caso é que aquelas palavras ficaram ali, martelando, brincando de pira na sua imaginação. Não custava nada experimentar. Então tomou emprestada a enxada imaginária do outro, fechou os olhos, viajou no tempo e no espaço e foi garimpar no quintal de sua infância, junto à casinha de pau e palha debruçada às margens de um grande rio entre tantos outros que banham um país mágico chamado Marajó.
Começou a cavar próximo à cozinha, devagar, cauteloso como um arqueólogo à caça de um tesouro histórico, receoso de a qualquer momento, a enxada ferir de morte lembranças tão frágeis e caras de um tempo em que dividira aquele quintal com outros meninos e meninas.
Olhos fechados para o mundo exterior mas bem abertos para dentro de si mesmo, foi cavando, cavando, cavando até que de repente começou a ouvir longe, muito longe, como num sonho, uma voz de mulher. Atrelada à voz, cada vez mais nítida, surgiu a imagem da avó cabocla acocorada à ilharga do fogão à lenha, saia entre as pernas, cachimbo de barro e taquari pendurado no canto da boca, contando histórias pra ele e seus irmãos e irmãs no justo momento em que João, já rapaz, metido em apuros por arte da irmã Maria, chamava por seus cães fiéis:
– Ouve-longe!... – Quebra-ferro!... – Rompe-mato!...
Com a alma remoçada pela emoção, passou a cavar na direção da varanda da casa. Desta vez nem precisou cavar muito para trazer à tona a imagem e a voz do avô nordestino se embalando na rede e cantando histórias de cangaceiros do sertão, perdidos na teia do tempo foi:
– “Rio negro foi cativo
escravo de sujeição.
Só ganhou a liberdade
quando deu pra valentão
em troca do bacamarte,
da cartucheira e o facão.
(...)”
Ao passo em que a enxada imaginária revolvia os entulhos da memória, mais lembranças afloravam. Junto da sala surgiram sons de algo caindo e rolando pelo soalho de madeiras para em seguida surgir imagens misturadas às vozes de seus primos e irmãos numa acirrada partida de bole-bole:
– Boliu!
– Não boli!
– Boliu sim, eu vi!
Cada vez mais emocionado pelo reencontro consigo mesmo, passou a cavar ao pé do trapiche, local de tantas idas e vindas...
Assim que a enxada adentrou no tijuco do tempo, começou a escutar barulho de água, de canoa, de remo...
Ouvidos e olhos atentos vislumbrou, no meio do rio, um menino tangendo seu barquinho de mututi com vela de papel como se fosse um capitão combatendo piratas de olhos de vidro e pernas de pau... E de repente, não mais que de repente, eis que surge no trapiche a mãe do menino, gritando em bom caboclês:
– Piqueno, passa pra riba dé casa! Sai dixe sor!
E o menino, tuíra de sor – assim mesmo, com “R” que é muito mais quente que o sol com “L”, – fazia ouvidos de mercador até o momento da mãe reaparecer munida do temido galho de cuieira, último e definitivo argumento que o menino acatou sem apelação. Viu, ainda, pelo rabo do olho da memória, o menino subindo a escada com o barquinho na mão, choramingando e o flap!, flap!, flap! do galho de cuia, só nas pernas pra não estragar o corpo.
E foi assim que ao abrir os olhos para o exterior ele pode vislumbrar um mundo mais bonito, mais rico e mais humano. E você, o que descobriu no quintal da sua infância?
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ANTÔNIO JURACI ALMEIDA SIQUEIRA, nasceu em Afuá, no Pará, em 1948. Escreveu diversas obras literárias, entre elas merecem destaque, O Chapéu do Boto (2003), Paca, Tatu; Cutia não! (2008), e Aumentei, Mas Não Menti (2016). Seus poemas, contos e trovas são principalmente inspirados no folclore, nas crenças e saberes populares e pela natureza amazônica. Popularmente ele é conhecido como "o boto" ou o poeta "filho do boto". Em 1978, e foi morar em Belém. cursou Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal do Pará, atua como instrutor de oficinas literárias, artista performista, contador de histórias, e leciona filosofia na rede pública de educação paraense. É considerado um dos poetas mais prolíferos da região Norte do Brasil. Seus trabalhos variam entre publicações de livros de literatura infantojuvenil, literatura de cordel, livros de poesias, contos, crônicas e textos humorísticos. Todo esse trabalho rendeu-lhe cerca de 200 premiações em concursos literários de diversos gêneros, tanto no âmbito nacional, quanto no estadual.
Fontes:
Antonio Juraci Siqueira. Facebook do autor. 17.05.2025
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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