domingo, 27 de junho de 2021

Adega de Versos 32: Vanda Fagundes Queiroz

 

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 31 e 32


ENTRE FLORES


As flores estavam inquietas porque o arquiteto-paisagista havia projetado uma flor diferente de todas as existentes. O projeto fora encaminhado à comissão de notáveis, que deu parecer sugerindo a adoção da nova flor como a primeira do país e seu símbolo oficial.

“Com uma flor diferente de nós todas e erigida em marca nacional — murmuravam a um só tempo os crisântemos, as dálias, os cravos e muitas outras espécies, inclusive a flor de fedegoso, que pelo nome não era muito apreciada — institui-se discriminação no reino vegetal. Além do que, flor sintética não é flor que se cheire.”

A rosa não quis opinar, porque ainda conserva ilusões de rainha.

Uma deputação (comissão) de flores procurou o arquiteto-paisagista, que se recusou a recebê-la, mandando dizer que estava muito ocupado. Seguiu-se a greve floral durante 45 dias, em que ninguém mandava flores ou tinha condições de colhê-las, pois todas passaram a ter espinhos, e algumas, cheiro de enxofre.

Mesmo assim, a flor de proveta foi institucionalizada, e muitas variedades, como a cinerária, o lírio-amarelo e o jacinto, que antes formavam no coro das reclamantes, levaram-lhe cumprimentos no dia de sua glorificação. Os espinhos e o mau odor desapareceram, e até a rosa lhe mandou telegrama de parabéns e votos de eterno florescimento.
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EPISÓDIO VENEZIANO

A duquesa de Arrivabene apaixonou-se por um gondoleiro de Veneza e, para não deixá-lo um só momento, acompanhava-o no trabalho.

Frequentemente manejava o remo, deixando a cabeça do namorado repousar em seu colo alabastrino.

Era ciumenta a duquesa, e Paolo tinha de recusar passageiras cujo sorriso parecia demasiado promissor. Com o tempo, nem mais os homens eram admitidos na gôndola, que vogava ao sabor do capricho feminino, entre beijos que se diria capazes de inflamar a água do canal.

Paolo, exausto, quis fugir, mas sua amante ameaçou afundar com ele e com a embarcação, em derradeiro enlace amoroso.

A gôndola envelheceu, os dois também. Se já não se amavam como antigamente, é porque tinham chegado a formar uma só individualidade, meio carne meio madeira. Um dia o barco afundou, levando consigo os dois amantes, não se sabe se ainda vivos ou mumificados. Desde então os gondoleiros temem o amor das duquesas e preferem não transportá-las, pretextando que a gôndola está com defeito.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

Sousândrade (Poemas Escolhidos)

ALABASTRO


Eis um vaso de puro alabastro
Que é a imagem de quem longe está,
Que ao noivado meu dera-me um astro
E que encerra um mistério. Sinhá,

Tenho-o sempre florido na mesa
Do trabalho, ou de amor a canção,
Ou rapsódias cantando do Guesa –
Enche-o hoje tua flor-da-paixão;

Ontem era a do luar, tão amada,
Que fenece do dia ante o albor;
Amanhã – diz tua carta encantada,
Porque vens, que não ponha outra flor.
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EM MEU PODER

Estás em meu poder. Sou vigilante;
Qual o cão velador guardo a muralha
Do meu rico tesouro:
Venturoso às manhãs do alvo semblante,
Quem das nuvens não teme que aura espalha
Ante o seu astro de ouro?

Quero embeber-me, eu só, no olhar de sombras,
Na solidão da mágica brancura
Me atordoar de amor;
Recostada dos luares nas alfombras
Toda sonora, o seio teu fulgura
Risonho, abrasador.

Estás em meu poder. Irradiante
Dessa vida de luzes e d'estrelas
Quer-te o tirano teu,
D'açucenas maviosas, exuberante
De alvor e força – que nas formas belas
Exista o gênio seu.
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SOMBRAS DAS ÁRVORES

– Que divindade! sinto
Uma aura tão gentil
Me acariciando a fronte,
Céus, mares, terra abril!

Ao seio azul profundo
As palmas reluzindo
Auro verdor; urúbis
À imensidão subindo:

Meus bosques luminosos
Às calmas de meio-dia,
Um Deus por toda parte
E n'alma esta harmonia

Do amor! o amor de tudo
Quanto respira e sente,
Das minhas selvas puras
do meu sol candente!

– Que divindade! uma aura
Tão leve, tão gentil
Me acariciando a fronte,
Céus, mares, terra abril!

E as borboletas ouros,
em flor o roseiral,
Longe o mugir dos touros;
este rubi-cristal.

Sempre no coração!
Esta saudade-serva!
Esta humildade-relva
De amor e exaltação!

Lázaros do sepulcro
A levantei! a cruz –
Quebrei-lha! Um riso pulcro
Resta... Apagou-se a luz!
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ZELOS DE LALÁ

Abençoada a hora em que odiei-te
Tão vulgar! abençoada seja a hora
Em que, mais digna de ti mesma, amei-te,
E açoito-te ainda, pois – que linda agora!

Porém... aonde vai-se ela às noites, quando
Ao serão todos brincam reunidos?
Sua mãe enferma, a olhar, petrificando,
Olhos na escuridão e os lábios lívidos.

Olhava, olhava: sombras esgueiraram
Na treva que aos abismos assemelha.
Silenciou-se; entristeceu-se. Uivaram
Os bosques ao trovoar por noite velha.

Só, deserta na sala e sem vir nunca
Quem ajudava a triste a recolher,
Amanheceu qual fosse uma defunta
Que não pôde na campa adormecer.

Fonte:
Sousândrade: inéditos. São Luís/MA: 
Departamento de Cultura do Estado, 1970.

Marcelo Henrique Marques de Souza (O trem)

Há um bom tempo procura um botão, ou outro dispositivo qualquer. Queria fazer sinal, descer do trem. Não achou. Insiste, mas sem sucesso.

Cola o rosto no vidro de uma das janelas. A noite corre estranha, distante. Soberana demais. Não consegue distinguir o pescoço dos postes de luz, devido à densa neblina.

Passa por uma senhora bem vestida, cujo rosto parece familiar. Sabe aonde é a saída? Quero descer... A velha olha-o de cima a baixo, condescendente. Como se já conhecesse a pergunta. Não é assim que as coisas funcionam, meu filho... Devia ser louca, só pode.

Decide questionar o maquinista. Certamente saberia o destino final e o tempo até a próxima estação. Ultrapassa os vagões, um por um, sem parar. Ninguém parece incomodado. Todos agem como quem sabe onde está indo.

De repente, esbarra num vagão diferente. Há pinturas nas paredes e nos assentos, a maioria num estilo renascentista. Excesso de tons claros e temas religiosos impregnam o ambiente. A maioria das pessoas permanece sentada, todas com as mãos no rosto, na posição típica das orações.

Pergunta, então, baixinho, a um dos presentes – o primeiro que levantou os olhos –, aonde poderia encontrar o maquinista.

Recebe de volta um olhar desconfiado, que diz Aqui é o último vagão. Se quiser mesmo falar com o maquinista, é preciso ter fé e orar bastante...

Começa a entrar em desespero. O absurdo da situação o leva a questionar-se acerca da própria sanidade. Teria a sentinela da normalidade caído num sono profundo, desses que sucedem as longas caminhadas?

Fazia o caminho de volta, quando de repente sentiu um leve incômodo nos olhos. Estranhamente, fortes raios de sol invadem o trem, como dia mais alto a substituir a noite mais densa, de uma hora para outra.

Resolve sentar um pouco. Há bancos vazios neste vagão.

Respira fundo e julga apropriado pensar um pouco, sem pressa.

Que trem é esse? Não há trem nessa cidade. Qual seria a estação inicial? E para onde ele vai?

Nesse momento, outro homem senta-se ao seu lado. Tem um aspecto professoral, óculos típicos, barba imponente. Arrisca a pergunta: – Desculpe incomodá-lo, mas sabe para onde estamos indo? O homem massageia a barba por alguns instantes, enquanto formula alguma coisa: – Meu caro, não sei exatamente para onde estamos indo. Mas de uma coisa eu tenho certeza: estamos indo depressa demais...

Como assim? Então, além de tudo, estamos infringindo as leis de velocidade?

Não que as leis de velocidade sejam padrões inatacáveis...

Mas o fato de não haver um padrão deveria significar uma variação da velocidade. E não é isto que estamos vendo. O velocímetro só aumenta o ritmo...

Apesar do crescente contrassenso da situação, a postura moderada do outro homem acomoda-lhe um pouco o espírito. Talvez seja a sensação da dúvida compartilhada. Sabemos das fobias da natureza humana e sobre como qualquer devaneio dividido por duas ou mais almas acaba sempre recebendo as benesses alucinógenas da mimesis.

Tenta olhar novamente pela janela, mas os raios de sol impedem. O máximo que consegue perceber, muito fosco, é que, de fato, a paisagem parece mesmo cruzar os ares rápido demais. Uma velocidade que realmente preocupa.

Volta os olhos para o banco ao lado. O homem sumiu. O frio dos cumes do desespero retorna a apertar-lhe os ossos. E nota, chocado, que a sua angústia não parece merecer a atenção de ninguém. Nenhum dos outros passageiros sofre o seu sofrimento, que se mostra único, solitário, intransferível.

Apoia os cotovelos nas coxas e abaixa a cabeça. Mãos na testa, esconde o rosto como se buscasse ocultar-se em algum porão inabitado.

E então se lembra do filho. Estão brigados há mais de uma semana. Coisa boba, último pingo de um pequeno copo, incompatibilidade de gerações. Objetivismos não faltam para explicar o que é sempre muito mais amplo do que eles. Mais do que tudo, sente uma repentina e incurável saudade do menino. Dessa saudade, escorre uma lágrima, que vai parar na porta dos olhos. Que não conseguem impedi-la, em sua fome de liberdade.

Enquanto sofre a lágrima a descer pelo rosto, de lá do escuro porão de seus olhos fechados, sente, de repente, um forte solavanco, como se o trem a passar por cima de alguma pedra grande, ou outro tipo de obstáculo.

Abre os olhos assustado, enquanto limpa o rosto. E constata, perplexo, que o trem sumiu. Sumiu! O que antes era o banco do trem, agora é um banco de praça. Algumas nuvens brandas cercam o sol, mas ele resiste, bravo e solene.

O olhar continua pasmo. Como se a buscar, em vão, um corrimão, para apoiar a descida íngreme numa estreita escada. Como viera parar aqui? De onde veio essa praça? E o trem, para onde foi?

De repente, avista o mesmo homem do trem. Passa num andar calmo, a mesma calma no semblante. Mas veste roupas diferentes. Não faz sentido...

Levanta-se rápido, ainda atordoado. E resume suas angústias numa pergunta que escapa distante, apoiada pelos braços, que apontam em todas as direções ao mesmo tempo: – O que é isso??...

O homem retarda o passo, até parar. Olha para cima e inspira fundo, como a alimentar o fundo da alma com todas as células do dia. E responde, saciado, de dentro de seu olhar sereno:

– É a vida, meu amigo. É a vida…
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Marcelo Henrique Marques de Souza, escritor, ensaísta, poeta, pesquisador e professor. Autor de sete livros, sendo dois ensaios, dois de poemas, um de contos, um de artigos científicos e um de aforismos. Graduado em Comunicação Social e integrante do Grupo de Formação da NovaMente – Colégio Freudiano do Rio de Janeiro. Articulista do programa de rádio Debates Culturais, antes na Bandeirantes AM, hoje na internet.

Fonte:
Editora da Universidade Federal do Espírito Santo (org.). Coletânea de contos & crônicas [recurso eletrônico]. Vitória/ES: EDUFES, 2015. (Coleção II Prêmio Ufes de Literatura)

sábado, 26 de junho de 2021

Varal de Trovas 511

 


Lima Barreto (A Cartomante)

Não havia dúvida que naqueles atrasos e atrapalhações de sua vida, alguma influência misteriosa preponderava. Era ele tentar qualquer coisa, logo tudo mudava. Esteve quase para arranjar-se na Saúde Pública; mas, assim que obteve um bom "pistolão", toda a política mudou. Se jogava no bicho, era sempre o grupo seguinte ou o anterior que dava. Tudo parecia mostrar-lhe que ele não devia ir para adiante. Se não fossem as costuras da mulher, não sabia bem como poderia Ter vivido até ali. Há cinco anos que não recebia vintém de seu trabalho. Uma nota de dois mil réis, se alcançava ter na algibeira por vezes, era obtida com auxílio de não sabia quantas humilhações, apelando para a generosidade dos amigos.

Queria fugir, fugir para bem longe, onde a sua miséria atual não tivesse o realce da prosperidade passada; mas, como fugir?

Onde havia de buscar dinheiro que o transportasse, a ele, a mulher e aos filhos? Viver assim era terrível! Preso à sua vergonha como a uma calceta, sem que nenhum código e juiz tivessem condenado, que martírio!

A certeza, porém, de que todas as suas infelicidades vinham de uma influência misteriosa, deu-lhe mais alento. Se era "coisa feita", havia de haver por força quem a desfizesse. Acordou mais alegre e se não falou à mulher alegremente era porque ela já havia saído. Pobre de sua mulher! Avelhantada precocemente, trabalhando que nem uma moura, doente, entretanto a sua fragilidade transformava-se em energia para manter o casal.

Ela saía, virava a cidade, trazia costuras, recebia dinheiro, e aquele angustioso lar ia se arrastando, graças aos esforços da esposa. Bem! As coisas iam mudar! Ele iria a uma cartomante e havia de descobrir o que e quem atrasavam a sua vida.

Saiu, foi à venda e consultou o jornal. Havia muitos videntes, espíritas, teósofos anunciados; mas simpatizou com uma cartomante, cujo anúncio dizia assim: “Madame Dadá, sonâmbula, extralúcida, deita as cartas e desfaz toda espécie de feitiçaria, principalmente a africana. Rua etc.".

Não quis procurar outra; era aquela, pois já adquirira a convicção de que aquela sua vida vinha sendo trabalhada pela mandinga de algum preto mina, a soldo do seu cunhado Castrioto, que jamais vira com bons olhos o seu casamento com a irmã.

Arranjou, com o primeiro conhecido que encontrou, o dinheiro necessário, e correu depressa para a casa de Madame Dadá.

O mistério ia desfazer-se e o malefício ser cortado. A abastança voltaria à casa; compraria um terno para o Zezé, umas botinas para Alice, a filha mais moça; e aquela cruciante vida de cinco anos havia de lhe ficar na memória como passageiro pesadelo.

Pelo caminho tudo lhe sorria. Era o sol muito claro e doce, um sol de junho; eram as fisionomias risonhas dos transeuntes; e o mundo, que até ali lhe aparecia mau e turvo, repentinamente lhe surgia claro e doce.

Entrou, esperou um pouco, com o coração a lhe saltar do peito.

O consulente saiu e ele foi afinal à presença da pitonisa. Era sua mulher.

Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: 
Unama. Publicado originalmente em 1920.

José Albano (Poemas Avulsos)

SONETO II


Ditoso quem foi sempre desamado
Nem nunca na alma viu pintar-se o gozo
Que lhe promete estado venturoso
Para depois deixá-lo em triste estado.

Já me de todo agora persuado
De que não pôde haver brando repouso
E do afeto mais doce e deleitoso
Se gera às vezes o maior cuidado.

Não quero boa sorte nem sonhá-la,
Pois logo passa, apenas se revela,
Com uma dor que outra nenhuma iguala.

Mas quem desconheceu benigna estrela,
Se não teve a alegria de alcança-la,
Nunca teve o desgosto de perdê-la.
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SONETO III

Amar é desejar o sofrimento
E contentar-se só de ter sofrido
Sem um suspiro vão, sem um gemido
No mal mais doloroso e mais cruento.

É vagar desta vida tão isento
É deste mundo enfim tão esquecido,
É pôr o seu cuidar num só sentido
E todo o seu sentir num só tormento.

É nascer qual humilde carpinteiro,
De rudes pescadores rodeado,
Caminhando ao suplício derradeiro.

É viver sem carinho nem agrado,
É ser enfim vendido por dinheiro
E entre ladrões morrer crucificado.
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SONETO IV

Mata-me, puro Amor, mais docemente,
Para que eu sinta as dores que sentiste
Naquele dia tenebroso e triste
De suplício implacável e inclemente.

Faze que a dura pena me atormente
E de todo me vença e me conquiste,
Que o peito saudoso não resiste
E o coração cansado já consente.

E como te amei sempre e sempre te amo,
Deixa-me agora padecer contigo
E depois alcançar o eterno ramo.

E, abrindo as asas para o etéreo abrigo,
Divino Amor, escuta que eu te chamo,
Divino Amor, espera que eu te sigo.
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ODE À LÍNGUA PORTUGUESA

Língua minha, se agora a voz levanto,
Pedindo à Musa que me inspire e ajude,
Somente soe em teu louvor o canto,
Inda que a lira seja fraca e rude;
E tudo quanto sinto na alma, e digo,
Já que na alma não cabe,
Contigo viva e acabe — só contigo.

Língua minha, dulcíssona e canora,
Em que mel com aroma se mistura,
Agora leda, lastimosa agora,
Mas não isenta nunca de brandura;
Língua em que o afeto santo influi e ensina
E derrama e prepara
A música mais rara – e mais divina.

Língua na qual eu suspirei primeiro,
Confessando que amava, às auras mansas
E agora choro, à sombra do salgueiro,
Os meus passados sonhos e esperanças;
Na qual me fez ditoso em tempo breve
Aquela doce fala
Que outra nenhuma iguala — nem descreve.

Língua em que o meu amor falou de amores,
Em que de amores sempre andei cantando,
Em que modulo os mais encantadores
E deleitosos sons de quando em quando;
E espalho acentos inda nunca ouvidos
De mágoas e de gozos,
Queixumes amorosos — e gemidos.

Sempre e sempre eu te veja meiga e pura
Naquela singeleza primitiva,
Naquela verdadeira formosura
Que farei que no verso meu reviva.
E, se apenas um pouco se revela
Desse encanto jucundo,
Há de mostrar ao mundo — quanto és bela.

Outros andam o teu sublime aspecto
De ornamentos estranhos encobrindo
Sem saber o que tens de mais secreto,
De mais maravilhoso e de mais lindo:
Em ti já não se nota o mesmo agrado
E eu não te reconheço,
Se o teu valor e preço — é rejeitado.

Quanta e tamanha dor me surge e nasce
De nunca ouvir aquele antigo estilo,
Mas eu fiz que ele aqui se renovasse,
Para que o mundo enfim pudesse ouvi-lo.
E com todo o poder de engenho e de arte
Foi sempre o meu desejo
Ver-te qual te ora vejo — e celebrar-te.

Ah! como assim me enlevas e me encantas,
Ora chorando e rindo, ora gemendo;
E, se outros te ofendem vezes tantas,
Embora solitário, eu te defendo:
Eu te defenderei sem ter descanso
E em luta não inglória
Tu verás que a vitória — e a palma alcanço.

E em pago disto peço que me imprimas
Maior ternura na alma e não ma agraves;
Dá-me versos dulcíssimos e rimas
Eternas, peregrinas e suaves:
Dá-me uma voz melodiosa e amena,
Para que noite e dia
Diga a minha alegria — e a minha pena.

E não quero um som alto e retumbante
Para cantar d'amor ao mundo atento,
Pois não há língua que d'amor não cante,
Mas, nenhuma traduz o meu tormento;
Nenhuma se conhece que translade,
Afora tu somente,
Do coração doente — a saudade.

Silmar Böhrer (Croniquinha) – 27

Leituras, leres, livros fazem parte da busca permanente de conhecimento e cultura. Também dileção, naturalmente.

Para sermos variegados de ideias, pensares, informações, precismos de leituras. E gostando ou não gostando das primeiras incursões no hábito de ler, logo um autor nos absorve (ou o absorvemos) pela narrativa, pelos conceitos, estilo, aproximação de pensamentos, interesse no texto.

Surge a empatia, o gosto, o prazer, a necessidade. Aguçamos o espírito, afiamos as ideias, clareamos o pensamento. Das leituras o lucro perene - conhecimento, saber, cultura.

Bem escreveu Bill Gates: " A leitura ainda é a principal maneira de aprender coisas novas e testar nossa compreensão ".

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

sexta-feira, 25 de junho de 2021

Jaqueline Machado (Tempo)

Tempo é vida. E se gostamos de viver, devemos saber multiplicar o nosso tempo. Muitos existem por longa data. Mas vivem pouco. Vivem nada. Não percebem que o tempo é o nosso bem mais precioso. E, podem crer, um minuto perdido, nos faz falta. Há dias em que a vida vale mais a pena. Há dias que parece ter valido por anos. Essa sensação acontece quando conseguimos, por algum motivo, multiplicar o tempo a nosso favor.

Porém, essa sensação gostosa de dever cumprido, de tempo bem aproveitado, deve e pode ser sentida todos os dias. Temos que ter em mente um planejamento bem definido das metas que desejamos. E lutar para alcançá-las. Mas muitos, com medo da felicidade, deixam para amanhã o que poderia ser feito hoje. E essa é a forma mais comum de desperdício de vida. Por medo de viver, a maioria dos homens morrem levando junto de si para a sepultura os mais belos sonhos. Não podemos ter receio de mudar.

Não podemos ter medo de existir, de nos entregarmos nos braços da alegria... E saibam que é possível viver dez anos em apenas um. Tudo depende da qualidade dos nossos objetivos e da coragem que temos para ousar independente do tempo de vida que possamos ter. Pensem:

Vale mais a pena viver um ano plenamente feliz, do que cem anos chorando.
 
Fonte:
Texto enviado pela autora.

Luiz Damo (As Faces da Trova) – 3 –

A amizade é joia rara,
nem sempre tem sido assim,
para quem nunca zelara
só resta chorar seu fim.
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À força que o vento tem
tudo agita, treme ou cai.
Ninguém sabe donde vem
tampouco para aonde vai.
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Antigamente, à partilha,
mais valor era agregado,
o amor que unia a família
hoje, está quase apagado.
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À paz, caminhas sorrindo,
sempre buscando a igualdade,
enquanto vais, Deus vem vindo,
pra abraçar a humanidade.
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Basta uma oportunidade
para o talento aflorar,
misto de audácia e vontade
faz o sonhador vibrar.
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Cada passo dado à frente
não tenha dois pra voltar,
melhor andar lentamente
que correr e não chegar.
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Com a noite não se iluda,
se nela a luz não permeia,
à noite a lua não muda
a não ser, de nova à cheia.
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Desce a noite e cobre a tarde
espalhando a nostalgia,
igual a um braseiro que arde
na última brasa do dia.
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Deus mantenha sempre unido
todo o grupo familiar,
filhos, esposa e marido,
num aconchegante lar.
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Do silêncio mais profundo
que alguém deseja provar,
seja o silencioso mundo
do seu ser a questionar.
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Dos projetos mais serenos
que acalentas em teu ser,
sejam grandes ou pequenos
são frutos do teu viver.
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Em constantes mutações
o mundo, hoje, se apresenta,
fruto das "revoluções",
ou das pedras que ele enfrenta.
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Frente à flor despetalada
o beija-flor nem lastima,
Diz: – Volto noutra florada,
pra buscar matéria prima.
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Lá, na torre, o sino toca,
pra oração da Ave Maria,
frente à noite nos coloca
no final de mais um dia.
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Mesmo que a morte cessasse
de o medo, no homem crescer,
fá-lo advir desde que nasce,
se estendendo até morrer.
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Não basta olhar-se de frente
movidos pela emoção,
olhe o casal, firmemente,
sempre à mesma direção.
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Não deixe as trevas crescerem
em tamanho e intensidade,
tampouco, a vida envolverem,
no lençol da obscuridade.
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No tilintar do badalo
o estrondo quase estremece,
cresce à medida que o estalo
retumba e depois fenece.
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Num campo todo florido
vejo mais que o seu fulgor,
sinto o mundo renascido
e um futuro promissor.
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Nunca falte o pão na mesa
nem a vontade de obtê-lo,
tendo a fonte à natureza
quem o obtém possa comê-lo.
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Nunca seja acomodado.
nem desafie o perigo,
pois, caminhando ao seu lado,
pode estar um inimigo.
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O elevador sobe e desce
sem a menor distinção.
Pede que ele te obedece
sem reclamar da missão.
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O filho nunca envelhece
face os seus diletos pais,
sempre um bebê lhes parece,
quando envelhece, jamais.
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Os mais sublimes valores
sempre deves cultivar,
para não colher horrores
nas lavouras do teu lar.
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O sol, com seus raios fartos,
brilhando de dia, atua,
o homem pra dormir, tem quartos,
diferentes dos da lua.
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Quem não come o que apetece
come mal ou passa fome,
não comendo o ser padece
e o corpo assim se consome.
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Saudade, fruta colhida,
nos pomares do passado,
seu sabor, espelha a vida,
refletida ao nosso lado.
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Saudade, se torna o fruto,
quase nunca adocicado,
guardado em estado bruto
no celeiro do passado.
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Se a dor se tornar aguda
difícil de suportar,
peça a Deus a Sua ajuda
para o dilema enfrentar.
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Teimosia e intransigência,
o embrião da petulância,
semelhantes pela essência,
berço eterno da arrogância.
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Verdes lençóis estendidos
na forma de parreirais,
fonte de vinhos, servidos,
em nobres cerimoniais.

Fonte:
Luiz Damo. As faces da trova. Caxias do Sul/RS: Ed. Do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 43) Terminal

A MORTE CHEGA para buscar mais um. Trata-se do número 2674238549582408128596848695086, ou melhor, desta senha. A pessoa, assim que for encontrada, deverá deixar imediatamente o mundo dos vivos. A Morte se disfarça numa linda mulher de arrepiar os cabelos, até de quem não os possui mais. O rosto é jovem, o sorriso impecável, a voz maviosa. Traz, na mão, o celular com uma agenda eletrônica conectada diretamente com o Homem Lá De Cima.

O sujeito a ser levado, pelo horário (seis horas da manhã), deve estar purgando os pecados num vagão de metrô em direção a estação Clínicas. Talvez não o que ela acabou de entrar. É preciso procurar minuciosamente. O futuro ‘de cujus’ está indo em direção ao trabalho. A Morte tem a ficha dele completa, porém, em face de ter havido um probleminha de transmissão, justamente na hora do ingresso dentro do vagão do metrô, a Internet deixou de estar conectada com o provedor do Rei do Universo. Por este motivo, o aparelho da Morte não está conseguindo visualizar, na telinha quem é o sujeito.

Neste passo, apesar da ausência momentânea da internet, a Morte sabe que a criatura pode andar por ali, em algum lugar, agrupada aos demais que viajam furdunceados numa algazarra só. É um jovem de trinta anos, 1.78 de altura, 75 quilos, olhos penetrantes e sedutores. Está indo para seu trabalho, no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo. Em face do rosto ter desaparecido da sua telinha, a Morte precisará usar de outro recurso mais rudimentar, qual seja, averiguar um por um o sujeito a ser pinçado. Como senhora e representante da vida e dos destinos de cada ser vivente, porá em prática um ensinamento aprendido com o Altíssimo.

“Se na hora agá houver alguma dúvida, ou interferência entre nosso servidor e os computadores aos cuidados da turma do anjo Gabriel, use seu charme. Murmure, ao passar pelos rapazes, de ouvido em ouvido, a senha desta pessoa que resolvi trazer aqui para cima. Ele é um excelente infectologista, apesar de muito jovem. Todavia, talentoso, criativo, tem garra. Me ajudará com as almas que chegaram e não param de ser enviadas aqui para cima, a todo instante, vitimadas pela Covid-19. Não o perca de vista, nem erre o alvo. Este menino nos será muito útil por aqui”.

Assim, pois, viaja a morte em direção à Terra. Aqui chegada, procura seguir à risca conforme lhe ordenou o Criador. Enquanto percorre vagão por vagão, cada jovem com as características físicas do futuro defunto, a princesa murmura, em seu ouvido a senha, de forma que só ele escute a sua voz adocicada e maviosa. Voz que se manifestará, unicamente para o escolhido do Pai Celestial, não sabendo ela, contudo, qual será a sua reação. Poderá ser de espanto, com a preciosidade aceitando o desfecho trágico do imediato ou, no pior dos mundos, tentando fugir.

A peregrinação começa. No primeiro trem, vagão por vagão, nada. No segundo, idem. Ninguém lhe dá sinais positivos. Delicada e sem pressa, segue a Morte, incansável, laboriosa e atenta. Muda novamente de trem. Desde que chegou, mil e quatrocentos rapazes (soprados nos ouvidos) não lhe deram atenção. Minutos depois, em outra composição, a conta dos ‘buscados’ sobe para três mil e novecentos. Nada do ‘escolhido’ responder positivamente. Final do comboio, mais um metrô se vê vasculhado. Exausta, a Morte se prepara para dar um tempo. Se materializará num restaurante para almoçar.

Pensando, pois, em sair daquele trem e pular em outro, resolve antes de definitivamente, pôr em prática o seu desejo, dar uma derradeira espiada. Está faminta. É justamente nesta hora, que avista um jovem quase perto de uma das portas de acesso. Aquele deus grego, olhos serenos cor de ‘perigo à vista’, que hipnotizariam, sem tirar nem destirar, uma jovem por mais fria que fosse, se assemelhava com as características ditadas pelo Senhor dos Exércitos. A internet, ainda sem sinal. A Morte não perde tempo. Se aproxima, passo a passo, pedindo licença a um e outro e, finalmente, ladeada diante daquele ser maravilhoso, sem mais delongas, lhe assopra a senha. O moço bonito e morigerado se vira, num ímpeto para ver quem ternamente lhe falou alguma coisa no pé do escutador de novelas.

Se depara com uma jovem encantadora. Figura adorável, esbelta, jamais vista em toda a sua vida. Rosto de maçãs salientes, pele de porcelana, corpo bem torneado e flexível. Em sua mão direita se aninha um belo aparelho celular revestido numa capa cor de rosa. Embasbacado, ‘o selecionado’ lhe dirige a palavra.

Ele
– Oi

Ela
– Olá, gato.

Ele
– Nos conhecemos?

Ela
– Acredito que sim...

Ele
– De onde?

Ela
– Acho que de algum lugar muito longe e especial...

Ele
– Tenho certeza que não. Uma coisa bonita e radiante como você eu jamais esqueceria. Este sorriso, então, é seu cartão de visitas...

Ela
– O seu também é esplendoroso.

Ele
– Obrigado.

Ela
– Está indo para onde?

Ele
– Na verdade, para meu trabalho. Por sinal, super atrasado. Sou médico. Estou empenhado numa fórmula nova, uma futura vacina que poderá colocar um ponto final na pandemia da Covid-19. Se você tiver alguma ideia, eu saio às vinte horas. Deixo meu telefone, endereço, WhatsApp, e seja lá o que for que decida, depois deste horário, estarei à sua espera e levarei você para onde quiser... ou me passe, igualmente, seus contatos...

Ela
– Acabou de me conhecer. Nem sabe quem sou. Posso ser uma pessoa má, um ser vindo de outra galáxia que pretenda ‘roubar’ você e arrastar a sua existência terrena para algum lugar de onde não tenha como voltar...

O airoso se abre num sorriso mais espetaculoso e travesso.

– Com você eu iria para qualquer lugar. Faria isto de olhos fechados...

Ela
– Vejo que você, além de bonito, é um cara sem medo.

Ele
– Com você a meu lado, acredite, meus medos e receios seriam capazes de criarem asas e voarem para bem longe...

Ela
– Prove que não tem medo de mim...

Ele
– Simples. Diga para onde gostaria de estar me levando depois que eu saísse do trabalho e...

Ela
–... O que diria se eu resolvesse levar você para conhecer o infinito?

Ele
– Infinito? Eu adoraria!

Ela
– Eu não teria tanta certeza...

Ele
– Então me permita, com todo respeito, escolher um lugar mais aconchegante. Pode ser?

Ela
– E onde seria?

Ele
– A um restaurante que costumo frequentar. Tomaremos um vinho, ou se você preferir, uma cerveja... em seguida, jantaremos... depois deixaremos que o momento seguinte nos conduza... como dizem por ai, ’a noite é uma criança...’.

Ela
– OK. E depois?

Ele
– Convidaria você para conhecer a minha casa, o meu reduto de descanso, o quarto, onde fiz uma extensão do laboratório...

Ela
– Uau...!

Ele
– E... então... o que diria à minha proposta?

Ela, esfuziante e solta.
– Tenho certeza que, em seguida, você me seduziria, manteria relações comigo e depois... dia seguinte, me daria um belo chute no traseiro...

Ele
– Estava olhando o seu porte físico... você é simplesmente uma mocinha encantadora... mulher de gestos harmoniosos. Eu não teria coragem de lhe dar um chute... jamais... uma doçura do seu porte, merece ser amada, acarinhada, beijada... eu... eu acho que... não deixaria mais você sair da minha vida...

Ela
– Pena que você, meu lindo, esteja em rota de colisão com uma passagem com viagem só de ida...

Ele
– Não entendi...

Ela
– Você é o 2674238549582408128596848695086... e está prestes a subir...

Ele se abre numa risada discreta de modo a fazer qualquer representante do belo sexo perder o tino.

– Com você eu subiria até onde o Maravilhoso Conselheiro  pudesse me ouvir. Então eu diria à Ele, de peito aberto: ‘Pai, eu sou o homem mais feliz deste universo’. A propósito: estamos aqui dentro deste vagão atulhado de estranhos proseando e você não me disse como se chama. Sopra de novo, em meu ouvido, bem baixinho, para que somente eu possa me deleitar com o som estonteante e melodioso que sai de sua linda boquinha... qual seu nome?

Ela, judiciosamente.
– Eu sou a Morte. Se prepare, gatinho charmoso: a sua hora chegou.

Ele se deixa ser levado, por ela, de mãos dadas, enquanto os freios do metrô parando, se misturam com a voz dos altos falantes indicando a próxima estação.

Fonte:
Do livro “Comédias da vida na privada” – de Aparecido Raimundo de Souza, pela Editora AMC-GUEDES - Rio de Janeiro.
Texto enviado pelo autor.

quarta-feira, 23 de junho de 2021

Arquivo Spina 36: Solange Colombara

Não foi encontrado o nome do pintor do quadro acima.

Carolina Ramos (Coisas da vida!)

O Seixas e o Souza eram amigos. Ou… Pensando melhor, será que tinham sido amigos mesmo algum dia na vida?!

Amizade frouxa, que não deixa vínculos, pode ser tudo, menos amizade! Não passa de mero encontro temporário de interesses. Um casual esbarro existencial... Fato sem relevância alguma, que se apaga sem deixar rastro, nessas tantas andanças pelos labirintos da vida.

Mas... vamos ao começo, sem maiores considerações. Digamos que eram "amigos" o Seixas e o Souza, muito embora, algum dia, deixassem de o ser.

Contudo, quem deixa de ser amigo é porque amigo não era! Mas... também, não é por causa disto que ambos tenham que se tornar inimigos! - Pior é que, justamente isto foi o que aconteceu entre o Seixas e o Souza!

Os dois figurões em foco, se algum dia ligados por algum fio afetivo, hoje eram antagonistas declarados e dos mais ferrenhos! E todo mundo sabia disso, sem cobrar pormenores, a resguardar o sacro direito de manter-se neutro.

Desde que soubera não andar boa a saúde do Seixas, todas as manhãs, a primeira notícia que o Souza buscava nos jornais era a coluna necrológica, a ver se o maior inimigo havia "batido as botas". Ano após ano, a rotina era mantida com precisão cronológica.

A vida, entretanto, (ou a morte?) tem caprichos insuspeitáveis! Apesar das mazelas, o Seixas, que a correnteza levara para margens opostas, parecia ter fôlego de gato: - espasmos, cateterismos, duas safenas... e nada! Tudo rebate falso!

- "De hoje não passa!", diziam os mais chegados. E, contrariando as previsões, o Seixas passava galhardo para o dia seguinte, igual ao sol que agoniza... e, após noite repousante, renasce, pronto para luzir por mais um dia... ainda que mortiçamente.

- "O ano que vem ele não emplaca!" - agouravam os pessimistas e a euforia do Souza ia num crescendo até o último dia do ano. Declinava no ocaso de cada 31 de dezembro para despencar no abismo da desesperança nos dias subsequentes.

Por isso... Quando recebeu por telefone aquela "auspiciosa" notícia, o Souza custou a acreditar:

- "Como é?! O Seixas morreu?! Não acredito! Pneumonia?! Quando? Agora?!!!"

- "O Seixas morreu....O Seixas morreu !? – repetia perplexo. A repetição compulsória fê-lo aceitar a verdade... mas a aceitação custou-lhe caro!

Quando, segundos depois, a ficha realmente caiu, o impacto foi fulminante! - O Souza desabou como se um raio o tivesse atingido em cheio! Nem o cutelo de um carrasco teria ação mais rápida do que aquela sentença chegada por telefone. O Seixas morreu!... O SEIXAS MORREU!!!

A pulsação acelerou-se... a pressão subiu... a dor aguda apunhalou-o! O Souza levou a mão ao peito para tentar segurar o coração que estrebuchava. Arrastado pelo dono que se estatelara, o telefone foi também ao chão.

Laudo Médico: - Enfarte do miocárdio. Agudo!... Fulminante!

No dia seguinte, o jornal local estampava, lado a lado, na Seção necrológica, as fotos dos dois velhos desafetos - o Seixas e o Souza- anunciando-lhes a passagem para o outro mundo.

Chegados às portas do inferno quase juntos, longe de se estranharem, os dois adversários trocam cumprimentos e cortesias:

- Entre! - apressou-se em dizer o Seixas, a ceder lugar, gentilmente.

- Não, por favor, você chegou primeiro - Entre! - agradece o Souza, elegante, com simpática reverência.

- Em absoluto, meu caro, faço questão, passe, por favor! - insiste o Seixas,

Antes porém que o Souza tivesse tempo de revidar, dois diabinhos, já irritados com a demora, puseram fim à troca de amabilidades.

Aos trancos e garfadas, dois novos hóspedes foram parar, desconfortavelmente, na mesma caldeira fumegante, já reservada para ambos com bastante antecedência!

- Coisas da vida?!... Talvez!... Ou... quem sabe, coisas da morte?!

- Afinal... não é ela quem resolve tudo, sem estrilos... sem apelações?!

Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: Mônica Petroni Mathias, 2021. Capítulo 5: Contos rústicos, telúricos e outros mais.
Livo enviado pela autora.

A Árvore em Versos – 3 –


Árvores são poemas que a terra escreve para o céu. Nós as derrubamos e as transformamos em papel para registrar todo nosso vazio.
Khalil Gibran(1883 - 1931)


ARISTHEU BULHÕES
(Maceió/AL, 1909 – 2000, Santos/SP)
CONTRASTE

No chão do meu quintal, que rústico era,
Eu, que de sonhos enfeitava a vida,
Numa linda manhã de primavera,
Plantei ramos de uma árvore caída...

E, cheio de ilusão e de quimera,
Abandonei a terra estremecida
Como o viajante que atingir espera
A rósea meta, a que o Ideal convida...

Anos depois voltei... Na alma cansada
Nem mais um sonho, uma ilusão trazia
Porque tudo eu perdera na jornada.

Mas, cada ramo que plantei a esmo,
Era uma árvore imensa que floria
Para arrimo e conforto de mim mesmo.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
(Itabira/MG, 1902 - 1987, Rio de Janeiro/RJ)
ERA UMA ÁRVORE

Era uma árvore no passeio
e fosse tempo claro ou feio,
havia uma paz de agasalho
dependurada em cada galho.

E foi vivendo. Viver gasta
músculo e flama de ginasta,
quanto mais uma arvorezinha
meio garota-de-sombrinha.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

FILEMON MARTINS
(Itanhaém/SP)
A ÁRVORE

Árvore amiga – símbolo sagrado,
– presente do bom Deus à criatura,
portadora de Paz ao que, cansado
vai procurar descanso da amargura.

Com sua sombra acolhe o desprezado
que passa pela estrada, sem ventura,
e o protege feliz, reconfortado,
para viver, lutar, sempre à procura

do seu destino – eterno caminheiro
em busca de um amor hospitaleiro,
onde a Felicidade fez guarida...

Pois desprezo a ganância do insensato
que põe abaixo as árvores e, ingrato,
– não percebe que mata a própria vida.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

JORGE SOUSA BRAGA
(Cervães/Portugal)
AS ÁRVORES E OS LIVROS

As árvores como os livros têm folhas
e margens lisas ou recortadas,
e capas (isto é copas) e capítulos
de flores e letras de ouro nas lombadas.

E são histórias de reis, histórias de fadas,
as mais fantásticas aventuras,
que se podem ler nas suas páginas
no pecíolo, no limbo, nas nervuras.

As florestas são imensas bibliotecas,
e até há florestas especializadas,
com faias, bétulas e um letreiro
a dizer: «Floresta das zonas temperadas».

É evidente que não podes plantar
no teu quarto, plátanos ou azinheiras.
Para começar a construir uma biblioteca,
basta um vaso de sardinheiras.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

JÚLIA LOPES DE ALMEIDA
(Rio de Janeiro/RJ, 1862 – 1934)
AFONSO LOPES DE ALMEIDA
(Rio de Janeiro/RJ, 1889 – 1953)

A LIÇÃO DA ÁRVORE

Vida, que a vida serves e alimentas,
Gramínea débil, melindroso arbusto,
Folhagens, franças, frondes opulentas,
Esguio caule, tronco alto e robusto;

Frutos e flores – pábulo e beleza;
Grão que dá vida e a vida perpétua,
Que enche de vida toda a Natureza
Se cai no sulco aberto da charrua;

Semente que germina, estala e engrossa,
Cresce e, tronco, frondeja e toma vulto,
- Árvore, amiga do homem, que ele possa
Fazer do teu amor um vasto culto;

Que aprenda, à luz do Sol que te redoura
A ramaria verde e o tronco bruto,
Que é Bondade – na sombra abrigadora,
E Generosidade, no teu fruto.

Árvore! Que o homem te ame sempre e veja,
Enternecido, em teu aspecto rude,
Que nada, amiga, fazes que não seja
Exemplo de moral e de virtude!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

LUÍS VAZ DE CAMÕES
(Coimbra/Portugal, 1524 – 1580, Lisboa/Portugal)
ÁRVORE, CUJO POMO, BELO E BRANDO

Árvore, cujo pomo, belo e brando,
natureza de leite e sangue pinta,
onde a pureza, de vergonha tinta,
está virgíneas faces imitando;

nunca da ira e do vento, que arrancando
os troncos vão, o teu injúria sinta;
nem por malícia de ar te seja extinta
a cor, que está teu fruto debuxando.

Que pois me emprestas doce e idôneo abrigo
a meu contentamento, e favoreces
com teu suave cheiro minha glória,

se não te celebrar como mereces,
cantando-te, sequer farei contigo
doce, nos casos tristes, a memória.

Fonte:
Sammis Reachers (org.). Árvore: uma antologia poética. 
São Gonçalo/RJ, 2018. E-book.

Contos e Lendas do Mundo (Irlanda: O homem que não sabia nenhuma história)

Há muito, muito tempo, os campos estavam cheios de pessoas, na sua maioria malabaristas, cantadores, violinistas e outros músicos. Chegou um momento em que os habitantes expulsavam da sua porta quem não soubesse tocar música ou executar qualquer outra diversão.

Mas houve uma vez um jovem caminhante chamado Paití Nábla Móire, que não sabia histórias, nem canções, e era tão triste que ninguém fazia caso dele, nem o queria receber em sua casa.

Uma noite, chegou a Teilionn e andou de porta em porta à procura de alojamento, mas ninguém o aceitava. Continuou, então, a caminhar e não se deteve até chegar a Glen, onde também não encontrou acolhimento. Por fim, bateu à porta de um homem que não era dali, cuja mulher disse:

— Como não tens qualquer diversão para oferecer, não te recebo com gosto, mas, em todo o caso, não acho acertado bater com a porta na cara de ninguém, sobretudo a uma hora tão avançada. Podes ficar até amanhã no palheiro que há aí fora.

— Agradeço-te de todo o coração.

Paití Nábla Móire encaminhou-se para lá e instalou-se o melhor possível entre a palha.

Havia algum tempo que estava deitado, quando entraram três homens que transportavam um cadáver, um dos quais lhe deu um pontapé.

— Levanta-te, Paiti Nábla Móire, e vela este homem até ao amanhecer — ordenou-lhe. — É o nosso pai, que morreu, e temos de ir procurar comida.

Acenderam uma fogueira junto do corpo sem vida.

— Aconteça o que acontecer, não deixes as chamas chegarem à mortalha.

O infortunado Paití ficou a guardar o cadáver o melhor que podia. Um pouco mais tarde, pareceu-lhe que o morto o olhava, pelo que se encolheu a um canto atrás da porta, fora do seu campo visual.

De repente, levantou-se uma forte rajada de vento que abriu a porta violentamente e espalhou o lume, pelo que a mortalha também ardeu, ante o profundo pavor de Paiti. Só Deus sabia a angústia terrível que o assolou!

Pouco depois, regressaram os três irmãos.

— Fizeste um bonito serviço, Paití Nábla Móire! A mortalha ardeu! Vais ter de pagar por isso. Lançar-te-emos ao lume, para que ardas também.

Dois deles seguraram-no pela cabeça e pelos pés, mas o terceiro disse:

— Larguem-no. Talvez nos possa ajudar a enterrá-lo.

Por conseguinte, levaram-no para fora do palheiro e começaram a abrir uma fossa com a pá. Ao mesmo tempo, puseram-se a discutir — um achava que era suficientemente grande e o outro pensava o contrário.

— Está bem — acabou por dizer um. — O Paití e o nosso pai são da mesma estatura. Atiremo-lo a ele para a cova. Se couber, também servirá para o pai.

Assim, pegaram no cada vez mais alarmado Paití, largaram-no na abertura e lançaram-lhe em cima algumas pasadas de terra. Quando tentava levantar-se, um dos irmãos atingiu-o com a pá na cabeça. Deste modo, permaneceu deitado até que ficou totalmente coberto, enquanto soltava uivos de medo tão intensos que quase poderiam comover as pedras.

Finalmente, o dono da casa ouviu os gritos e inteirou-se da loucura que se desenrolava no palheiro. Levantou-se da cama, correu para lá e, quando abriu a porta, o infortunado Paiti já perdera o juízo em virtude do pânico.

— Céus! — bradou. — Que aconteceu?

— Fiz mal em ficar na tua casa — lastimou-se Paiti. — Deus e a Virgem Maria sabem bem a noite que passei.

— Vem comigo — indicou o outro. — Dar-te-ei de comer antes que sigas o teu caminho.

— Não, obrigado.

— Tens de me acompanhar, para que te compense de certo modo dos aborrecimentos que sofreste.

— Passei a noite mais horrível de toda a minha vida.

Quando terminaram de tomar o café da manhã, o homem disse:

- Tiveste muita sorte em vir ontem a minha casa, depois de vagueares por aí sem que ninguém quisesse receber-te. Doravante, não haverá nenhuma em que queiras entrar sem que sejas bem recebido, pois já tens uma bela e longa história para contar!

Fonte:
Ulf Diederichs, Palácio dos Contos. 
Lisboa/Portugal: Círculo de Leitores, 1999.

Estante de Livros (Seis personagens à procura de um autor, de Luigi Pirandello)

Título original: Sei Personaggi in cerca d´Autore
Autor: Luigi Pirandello (1867-1936)


Sinopse:

Escrita em 1921, esta obra relata um ensaio de teatro. O ensaio é invadido por seis personagens que, rejeitadas por seu criador, tentam convencer o diretor da companhia a encenar suas vidas.

No início, o diretor fica perturbado por ter seu ensaio interrompido, mas aos poucos começa a interessar-se pela situação inusitada que se apresenta diante de seus olhos. As personagens o convidam a encenar suas vidas, mostrando que mereciam ter uma chance. Com isso, acabam convencendo-o a tornar-se autor e tentam mostrar ao diretor que suas vidas são reais.

Comentários (José Monir Nasser):

“Luigi Pirandello é o maior renovador do teatro italiano e uma das maiores influências sobre o teatro moderno. Há quem veja nele o precursor do teatro do absurdo de Beckett e Ionesco. Originário da Sicília, região de fraca herança cultural, cresceu sob o Risorgimento, o movimento de unificação da Itália. Otto Maria Carpeaux diz que Pirandello tem três fases: a siciliana, a italiana e a europeia, transcendendo sua origem provinciana e atingindo a universalidade. Correspondentemente, o eixo da obra madura de Pirandello é o drama da identidade humana, de que é o maior intérprete dramático.

Apresentada pela primeira vez em 1921 no Teatro Valle em Roma, “Seis Personagens à Procura de um Autor” foi recebida com hostilidade, aos gritos de “Manicômio”, “Manicômio”. A apresentação subsequente, em Milão, foi bem recebida. A peça aos poucos evoluiu para aceitação plena, até virar um clássico.

As discussões entre as personagens e o diretor compõem uma análise filosófica do teatro e da perda de consciência da existência humana, dentro da temática preferida de Pirandello que é a procura da identidade humana, ou seja: Quem somos nós? Assim, o peso da peça divide-se entre a narrativa em si, e os aspectos paratextuais, que ganham a cena.

Diretor e personagens discutindo constroem também uma querela de formas de fazer teatro. As personagens, tentando mostrar ao diretor que suas vidas são reais, em relação ao palco, e ele defendendo a relatividade do que está sobre o palco, toma como parâmetro a vida "real". A peça entra, assim, em um outro aspecto: torna-se um estudo metalinguístico do teatro, a arte discutindo a si mesma. A forma de representação proposta pelo diretor não é aceita pelas personagens. Não querem ser representadas pelos atores da companhia. Afinal, como alguém poderia representar melhor a vida de uma personagem do que ela própria?

Resumo da narrativa:

Pirandello nos apresenta a estória de uma família de personagens que invade o ensaio de uma companhia teatral. De acordo com o artifício da ficção, as personagens de uma peça teatral estão consubstanciadas, agindo e atuando no mundo real, mas sofrem de uma forte lacuna de sua própria constituição, que é o fato de sentirem a necessidade de encontrar um lugar ou uma estória em que possam viver seus “dramas internos”. Isto acontece, dentro do contexto da peça, por conta da negligência do dramaturgo, que os criou, dando um conflito e uma vida interna a cada um deles, mas que desistiu de inventar uma estória necessária para fazê-los viver.

A tensão do drama está contida no espanto e na dificuldade em que o diretor da companhia e os atores têm em compreender a “vida” extraordinária dessas personagens. Deste ponto, Pirandello explora diversas situações limites, que oscilam entre o trágico e o cômico, e, ao mesmo tempo, discute diversos aspectos da natureza da personagem de ficção. O principal ponto de partida do dramaturgo é evidenciar que a “verdade” da personagem de ficção pode, muitas vezes, ser mais forte do que a “verdade” do ser humano. A personagem de ficção assim figura, pois ela está fixada no texto em todos os seus traços e seus conflitos, enquanto o ser humano é uma entidade em constante transformação e variação. No decorrer desse confronto entre essas duas “verdades”, fica evidenciado também que o que garante a “vida da personagem” e a “noção de identidade” num indivíduo do mundo real é um mesmo elemento: uma ficção, uma construção artificial. Enquanto na personagem esta construção permanece pronta e acabada, no ser humano, por estar vivo, ela permanece sempre indefinida e inacabada.

Trechos do livro:

“Mas por que – disse para mim mesmo – não descrever um caso como este, realmente inédito, de um autor que se recusa a dar vida a algumas de suas personagens já nascidas vivas na fantasia dele, bem como o caso de como essas personagens, por possuírem definitivamente, em si próprias, a vida, não aceitam ficar fora do mundo da arte? Afinal elas não estão separadas de mim, já vivem por sua conta, adquiriram voz e movimento, portanto, já se tornaram, por si mesmas, personagens dramáticas, mediante a luta pela vida que tiveram de travar comigo; personagens que podem mexer-se a falar por si sós; vêem a si próprias como personagens; aprenderam a se defender de mim e saberão defender-se igualmente dos outros. Então, vamos deixá-las ir para onde costumam se dirigir, a fim de poderem viver como personagens dramáticas: para o palco. E vamos ver o que acontece.”

“Dessas seis personagens, portanto, aceitei o ‘ser’ e recusei a razão de ser. Delas peguei o organismo, do qual tirei a função existente, emprestando-lhe outra mais complexa, onde a delas entra apenas como um dado de fato.”

“Tudo o que tem vida, justamente pelo fato de viver, possui forma e, por isso, está sujeito a morrer. Com a obra de arte, porém, acontece o contrário: ela se perpetua viva, justamente porque é a forma.”

“Uma personagem, senhor, pode sempre perguntar a um homem quem ele é. Porque uma personagem tem, verdadeiramente, uma vida sua, assinalada por caracteres próprios, em virtude dos quais é sempre ‘alguém’. Enquanto que um homem – não me refiro ao senhor agora – um homem, assim, genericamente, pode não ser ninguém.”

Interpretação da obra:

1. As personagens são imortais e eternas.
2. Os atores são farsantes e volúveis.
3. A personagem tem existência fixa.
4. As personagens são mais duráveis que seus autores e atores.
5. A personagem não existe sem um ator.
6. As personagens precisam ser criadas por um autor. É o autor que faz a personagem existir.
7. As personagens são esquemas abstratos e só existem na boca dos atores.
8. A personagem é perpétua; para ela o tempo não existe!
9. A personagem vive sempre o momento eterno.
10. A personagem é alguma coisa: o homem pode não ser.
11. A personagem só existe no contexto para a qual ela foi criada.

Entendendo a Obra:

1. Vida real e vida teatral.
2. Arte é imitação da vida. Arte não pode ter vida, a vida é mais complexa que a arte.
3. A arte não pode ser idêntica à realidade, mas ela tem que ser verossímil.
4. A arte não consegue substituir a realidade.
5. As personagens da obra foram rejeitadas pelo autor.
6. As personagens não parecem mais humanas que os atores? Por quê? Porque elas representam a humanidade propriamente dita.
7. O que se pode compreender da futilidade dos atores?
8. As personagens estão a busca do seu criador.
9. O que o criador representa? A saudade do Paraíso perdido pelo pecado.
10. O que as personagens querem recuperar? O sentido da vida.
11. Os atores representam o projeto da vida humana.
12. As personagens são rebeladas contra o destino.
13. O homem está infeliz com aquilo que ele é.
14. Esta é uma história da perda da consciência da existência humana.
(José Monir Nasser)

terça-feira, 22 de junho de 2021

Adega de Versos 31: Professor Garcia

 

Sammis Reachers (A insanidade de Marival)

Finais da década de 90, eu havia acabado de entrar na função de cobrador, na empresa Ingá. Certo dia, em meio aos trabalhos, chegou a notícia de um feito quase inacreditável, de tão louco. Vamos aos fatos.

A linha era a 49-1 (mas naquela época as duas linhas 49 eram designadas, e não me pergunte o porquê, por 49-3 e 49-4). O cobrador era o Marival, mulato invocado e conhecido por seus arroubos de fúria. O dia de verão estava especialmente quente; eram por volta das três da tarde, os ônibus da linha ainda não possuíam ar condicionado. Para completar, o carro estava rodando 'no buraco', a muita distância do carro da frente, e já lotado.

O furioso Marival estava transtornado. As roletas ficavam na parte de trás do veículo, no meio do salão, e a lotação era tanta que nem uma brisa conseguia entrar pelas janelas e alcançar Marival. O bruto suava em bicas, o sol batia diabólicos 43 graus, e chegando à praia de Icaraí, pra fechar o caixão, um engarrafamento fora de hora...

O amigo Marival já estava sentindo tonteiras, e cheio, excepcionalmente transbordante. De repente, ele se levanta da cadeira e dá um berro lá pra frente:

– Chicão, abre aí! Abre essa droga de porta e espera que eu vou ali…

O motorista Chicão não entendeu nada, mas abriu a porta e viu Marival pular e correr para a praia.

– Vai pegar troco no quiosque – pensou o velho Chicão. Qual não foi sua surpresa quando, alguns segundos depois, um dos passageiros gritou:

– Motorista, o Cobrador mergulhou na água!

Ao se levantar para olhar para a praia, Chicão viu o maluco do Marival, com o uniforme encharcado, já correndo de volta pro ônibus. Subiu pela porta traseira, pulou a roleta, sentou-se no banco e, sob o olhar espantado dos mais de oitenta passageiros que lotavam o ônibus, gritou, tranquilo:

– Bora Chicão, agora pode tocar.

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes 
do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Eduardo Cerqueira (Poemas Avulsos)

CREPÚSCULOS

Sumiram, por encanto, as pálidas estrelas.
A lua se escondeu entre as ondas do mar.
O pescador largou, içando as brancas velas,
grandes lenços que vão, muito longe, a acenar.

Os montes, na amplidão, quais negras sentinelas,
despiram, pouco a pouco, os encantos do luar.
No diáfano esplendor de inimitáveis telas,
a estrela da manhã começa a desmaiar.

Aves recruzam no alto, em álacre revoada.
Tudo canta e sorri, num mágico fulgor.
O sol brilha no Oriente, a fronte alevantada,

como um rei sem rival, feliz, dominador;
e a exsurgir do arrebol de esplêndida alvorada,
enche a terra de luz, num êxtase de amor.
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HOMO HOMINIS LUPUS

Tigres, leões, leopardos e panteras,
elefantes, pesados mastodontes,
ictiossauros, mamutes de outras eras,
pelas brenhas vagando e pelos montes;

os que viveram nas furnas e taperas;
corvos, revoando em turvos horizontes,
hienas, répteis terríveis, brutas feras,
monstros do mar, negros rinocerontes;

ursos bravos, bisões, touros ferozes,
lobos, chacais, em pelotões atrozes,
as selvas rebolcando em luta insana...

Todas as feras juntas deste mundo
são preferíveis ao horror profundo
da ingratidão e da maldade humana.
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O IPÊ


Árvore nativa dos campos e florestas do Brasil, cuja copa frondosa toda se cobre de flores de ouro, É o símbolo do Brasil no "Jardim da Paz" da cidade de La Plata, República Argentina.

Sobre a encosta do monte escarpado e sombrio,
onde o mato nativo esbraceja e descora
batido pelo sol, ergue-se, azul em fora,
lindo e frondoso Ipê, quase à beira do rio.

A linfa de cristal corre em leito vazio
e, sentindo-se pobre, envergonhada chora.
O Ipê, colmado de ouro, os espaços enflora,
dominando altaneiro esse sertão bravio.

À tarde vêm pousar os alados cantores
em sua copa erguida, encantada e tamanha
que de longe deslumbra em flavos esplendores,

E ele avulta, a atitude engalanada e estranha,
como a sugar da terra e a transformar em flores
o áureo veio, profundo, ignoto, da montanha.
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O UIRAPURU

Nas florestas imensas escondido,
bem alto, sobre as copas verdejantes,
donde não se ouve o mínimo estalido
das folhas secas dos oitis gigantes,

o pequeno cantor, despercebido,
em seus trilos agudos e vibrantes,
aprimora e traduz todo o sentido
com que desperta os corações amantes.

Assim o Uirapuru, álacre, canta.
des'que o sol da Amazônia se alevanta,
e o passaredo o imita na espessura.

Corre a lenda que o pássaro encantado
para quem o ouve é um símbolo sagrado,
o talismã do amor e da ventura.
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POETA

(Escrito aos 17 anos de idade)

Alma, feita de luz, para as trevas nascida
como os astros da noite e os faróis sobre os mares,
não mais sonhes, vagando ao palor dos luares,
alma feita de luz para as trevas da vida.

Tu, que foste à matéria e à ilusão sempre unida,
és senhora da terra e dominas os ares.
E, se podes galgar os cimos estelares,
por que vives assim, para a terra pendida?

Por que sangras assim tuas asas de neve,
nesse rastro de dor que teu voo descreve?
Por que trazes da noite esse aspecto tristonho?

E, no entanto, aí vais, entre o abismo e a ventura,
a arrastar, cruelmente, em eterna tortura,
o madeiro da vida ao calvário de um sonho.
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Eduardo Reis da Gama Cerqueira, advogado, jornalista e poeta. Nasceu em Cataguases,MG, em 1884  e faleceu em 1950, no Rio de Janeiro.

Filho de Eduardo Ernesto da Gama Cerqueira e Mathilã da Silva Reis Cerqueira. Formado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito de Belo Horizonte, em 1907. Foi funcionário efetivo da Fazenda por concurso realizado na Delegacia Fiscal de Minas Gerais, em 1905. Em 1908, em concurso realizado no Tesouro Nacional, no Rio de Janeiro, obteve o 1. lugar. Em 1910 foi designado para exercer, em comissão, o cargo de Secretário do Ministro da Agricultura, com as funções de Chefe do Gabinete do Ministro. Exerceu vários cargos de responsabilidade: foi Delegado Fiscal do Tesouro, Conferente da Alfândega do Rio de Janeiro, e finalmente Oficial Administrativo do Tribunal de Contas. Fiel cumpridor de seus deveres, elogiado e querido por seus chefes e colegas, estimado por todos, Gama Cerqueira deixou um marco brilhante em sua trajetória de trabalho.

Desde os 17 anos, compôs e publicou versos, sonetos e artigos, colaborando em diversos jornais não só do Rio de Janeiro, como nos de São Paulo, Belo Horizonte, Juiz de Fora e outros. Foi principalmente colaborador incansável do Correio da Manhã e do Jornal do Brasil. Publicou o poema "Portugal" em 1923 e "Luz e Sombras" em 1947. Deixou prontos para o prelo "Vinte e Duas Estrelas", e "Terra da Promissão" (este composto de poemas e sonetos históricos, descritivos e patrióticos, de exaltação do Brasil); e "Livro íntimo", transbordante de emoções diversas.

Tendo-se casado em 1908, ficou viúvo de D. Carmelita Barcellos Cerqueira, em 1941. Seus filhos: Célia Cerqueira Cavalcanti, Edgard Barcellos Cerqueira, Maria José Barcellos Cerqueira, Wilson Barcellos da Gama Cerqueira e Luiz Gonzaga de Barcellos Cerqueira, que lhe herdaram a sensibilidade poética.


Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Anuário de Poetas do Brasil – Volume 4. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1979.

Nilto Maciel (Maneco, Futebol e Cerveja)

Morreu ontem Maneco, ou Manoel dos Santos Pereira. Há anos fora dos gramados e da mídia, desde a fratura de uma perna, poucas pessoas devem se lembrar do atacante. Aliás, há raríssimos registros de sua passagem pelos clubes cearenses e muitos dirigentes e cronistas chegam a negar a sua existência como jogador de futebol. No entanto, parentes e amigos são testemunhas de sua vida dedicada ao esporte. A viúva, Maria do Socorro Pereira, afirma ter ele vestido a camisa do Ferroviário em 1963, não sendo certo haver jogado no campeonato estadual. Nelson Silva, amigo de Maneco desde o ano anterior, nega as informações prestadas por dona Maria: “Nunca chegou a um time profissional. Jogava em times de bairros, principalmente do Benfica, das Damas, do Jardim América. Apesar disso, dominava a bola como poucos, driblava a torto e a direito, chutava com os dois pés, fazia gols de primeira”. Outro amigo do craque, Jonas Craveiro, mais velho três anos, lembra do dia da apresentação de Maneco ao Fortaleza, por indicação de um veterano do time. Infelizmente não foi aproveitado, motivo de desgosto para o craque. “Chegou a se embriagar durante vários dias, tão decepcionado ficou”. O historiador Rafael Macedo não nega as informações prestadas pelos amigos de Maneco. Pelo contrário, dá notícia da apresentação do jovem ao Ceará (talvez para se vingar da humilhação sofrida no time rival) e de nova decepção, pois nem sequer teria sido recebido pelo treinador. Jair Pereira, um dos filhos de Maneco, sabe de todas essas histórias e de outras. Segundo ele, o pai procurou todos os clubes da capital e por nenhum foi aproveitado. E é esta a razão de seu desgosto pelo esporte. O que fizeram ao seu pai não foi pouco. Segundo Perilo Duarte, outro amigo do falecido, a causa do fracasso do atacante só pode ter sido a bebida. “Desde muito novo o Maneco vivia na boemia. Eu, ele e outros amigos. Muita cerveja e futebol”.

Para Everaldo Silveira, amigo de infância do falecido, desde menino Maneco queria ser goleiro. Aos domingos, após as missas, realizavam-se jogos na Praça da Matriz de Palma. Pois Maneco não nasceu em Fortaleza, como muitos supunham, mas na pequena Palma. O “campo” lhe parecia enorme. No entanto, talvez não passasse de cinquenta metros de comprimento. Apenas uma parte da praça. Os rapazes vestiam uniformes coloridos, calçavam chuteiras. Os goleiros se paramentavam de joelheiras e camisas de mangas compridas. Muita gente saía à rua para ver o espetáculo. O garoto achava tudo maravilhoso. Vem desse tempo sua paixão pelo futebol. Da noite para o dia, porém, os jogadores sumiram. Não havia mais jogos na praça. O prefeito ou o vigário devem ter proibido tais jogos diante da Prefeitura e da Matriz.

Maria do Socorro lembra detalhes da infância de Maneco, apesar de se terem conhecido quando jovens, em Fortaleza. O menino morou em três casas em Palma. Casas enormes, de tetos muito altos e chão de tijolo. Quando chovia ou o sol esquentava demais, jogava bola, com os irmãos, na sala ou nos quartos. Os chutes desajeitados levavam a bola para o forro de pano da sala. E nem adiantava cutucá-lo com vara. Nunca mais a veriam. A não ser quando algum pedreiro ou pintor fosse trabalhar, levasse escada e atendesse seus rogos. Ou quando o pai resolvesse trocar o forro. Mesmo assim, as bolas estariam endurecidas, mofadas, rasgadas.

A mãe tinha horror a bolas. Menos aquelas das cartilhas. Mesmo quando os filhos confundiam bola com bala. Então vinham castigos físicos ou de proibição.  Três dias sem bola e sem bila. Ou três dias lendo bulas. Mas como viver sempre estudando? No quintal não havia lugar para jogos e brincadeiras. Somente árvores, plantas e animais domésticos. O gato caçava borboletas, a correr e saltar entre as bananeiras. As galinhas iam e vinham, a cacarejar, enquanto o galo passeava galante. Os porcos roncavam no meio da lama. As lagartas infestavam a horta.

Everaldo passa horas a falar do passado. Naquele tempo poucos garotos conheciam bolas de couro. Em compensação, todos tinham “bolas-de-meia” ou “bolas-de-pano”. A primeira denominação seria a do gênero; a segunda, a da espécie. De meia, porque o envoltório da bola era essa peça. Meia usada, furada, imprestável para o uso apropriado. O recheio podia ser de algodão, pano ou papel. Essas bolas não serviam para jogos em chão de terra. E menos ainda em dias de chuva. Os meninos jogavam nas calçadas. Quando não o jogo, os simples chutes de um lado para outro da rua. As paredes serviam de anteparo e, ao mesmo tempo, de linhas de gol. Às vezes dois garotos de cada lado. Um chute para cada “time”. Vencia quem fizesse primeiro de­terminado número de gols. Ao vencedor cabia, como “prêmio” (não seria “castigo”?), jogar, em seguida, com outro “time” ou jogador. Maneco se dedicava de corpo e alma ao futebol. Dedicou-se ao esporte como poucos. Apesar disso, há anos fora dos gramados e da mídia, desde a fratura de uma perna, poucas pessoas devem se lembrar do atacante.

Na calçada, o pequeno goleiro quase voava, em busca da bola-de-meia. Os outros garotos o elogiavam. E ele se enchia de amor-próprio. Sim, quando se tornasse rapaz, iria jogar no Fortaleza. Por muito tempo sonhou tornar-se goleiro profissional. Não conhecia ainda estádio. Não sabia o significado de um espetáculo esportivo. O sonho, no entanto, cedo se desfez, e de forma melancólica. Convidado a treinar num time de futebol-de-salão, engoliu numa tarde mais de sete gols. Um fracasso! Maneco não passou do primeiro treino. Chamaram-no de frangueiro, e nunca mais o convidaram a entrar na quadra. Não o convidaram, é certo, porém voltou muitas vezes a ele, para ver a seleção municipal ser derrotada por times de outras cidades. Nelson Silva desconhece o primeiro fracasso do amigo. No entanto, conheceu muito o atacante: “Nunca chegou a um time profissional. Jogava em times de bairros, principalmente do Benfica, das Damas, do Jardim América. Apesar disso, dominava a bola como poucos, driblava a torto e a direito, chutava com os dois pés, fazia gols de primeira”.

Lembra-se Everaldo daquele tempo como se hoje fosse. Às vezes ia à casa do amigo, para tirar dúvidas de português ou matemática. Porém, Maneco não estudava muito. Na hora do estudo, recortava fotos de jogadores e times dos jornais e das revistas e as colava num caderno velho. Passou a gostar de outras fotografias: atrizes de cinema, animais, carros, cidades. Adorava fotos de cidades grandes. Os arranha-céus o fascinavam. Passava horas a catar restos de revistas no lixo. Num terreno ao lado das salas de aula do colégio dos Salesianos. Deviam ter pertencido aos alunos internos.  

Havia um “muro” a separar os alunos internos dos externos. Aqueles vinham de outras cidades, sobretudo de Fortaleza. De famílias ricas. Os da cidade, eram quase todos pobres, filhos de comerciantes, funcionários públicos. Nunca os dois lados se misturavam. Brincavam em pátios separados. Até na igreja, construção contígua ao colégio, a separação se manifestava. Os bancos destinados aos internos se situavam na parte mais próxima do altar. Apesar disso, por algum tempo os alunos externos foram convidados a participar das brincadeiras e jogos de fim-de-semana no colégio. Entravam por um portão pequeno, que ia dar numa escolinha para crianças carentes, moradoras da periferia. Havia muitas mangueiras e o rio corria bem próximo a uma cerca. Os internos jogavam num campo grande, com traves, rede, uniformes, chuteiras, bola de couro. Os da cidade ficavam ao largo, chutando uma bolinha ou outra, junto aos meninos mais pobres. Para Maneco, a bola parecia excessivamente pesada. Nunca havia chutado uma bola de couro. Os pés só conheciam as bolinhas de meia. O capim molhado e alto feria os dedos.

Todo garoto de Palma jogava bola. E torcia por um time de Fortaleza. Essa torcida se manifestava também no jogo de botões. Futebol de botões. Cada menino possuía dois ou mais times. Os de Maneco chamavam-se Calouros do Ar e Gentilândia. Os irmãos se dividiam entre Ceará, América, Fortaleza, Ferroviário e Usina Ceará. A viúva do craque, Maria do Socorro Pereira, afirma ter ele vestido a camisa do Ferroviário em 1963, não sendo certo que tenha jogado no campeonato estadual. Não importa se vestiu ou não vestiu. Pois os irmãos de Maneco também não se tornaram jogadores profissionais. Quando os times de um deviam se enfrentar, convocavam um dos irmãos para manejar os botões da equipe secundária. Os campeonatos duravam poucos dias. Aconteciam diversos jogos por dia. A mãe gritava: “Vão tomar banho”; “Venham almoçar”. Os garotos perdiam a noção do tempo, entretidos com os botões, quase todos de paletó. De onde vinham, como os adquiriam? Talvez nos armarinhos. Raspavam as bordas a gilete. E cada botão recebia um nome de jogador. Maneco sabia de cor os nomes de todos eles. Servia de campo uma mala de madeira, antiga, de mais de meio metro de altura. E a bola? Ah, a bola não rolava, porque nada tinha de redonda. Deslizava, atingida pelo botão. Ou voava para o gol, levantada pelo toque sutil ou violento do “jogador”. A bola parecia uma miniatura de panela – uma tampinha de creme dental. A meta, a baliza, o gol, a trave media cerca de dez centímetros de largura, cinco ou seis de altura. Feita de madeira, trazia ao fundo um pedaço de véu ou tecido mais resistente, como se fosse a rede. O goleiro equivalia a uma caixa de fósforos, recheada de pedras.

Desde Palma, Maneco acompanhava transmissões de jogos pelo rádio. Ao se mudar para a capital, não perdeu o hábito. Parava diante das lojas, para ouvir as locuções radiofônicas de jogos, quando voltava para casa, à noite, vindo do Liceu. Caminhava até o ponto do ônibus de Joaquim Távora. Às vezes ia e voltava a pé, com os dois irmãos. Quando perdiam o horário do ônibus ou quando os estudantes saíam às ruas em protestos. Arrancavam os paralelepípedos das ruas Liberato Barroso e Guilherme Rocha, para impedir a circulação dos veículos. Com medo, os motoristas recolhiam os ônibus às garagens. Ou por ordem dos patrões. Quase ninguém nas ruas. As luzes dos postes mal iluminavam as vias públicas. Cachorros ladravam.

Em Monte Castelo, onde a família de Maneco morou pela primeira vez em Fortaleza, havia sempre quermesses, festas populares, religiosas ou simplesmente um alto-falante todas as noites a irradiar canções em voga. Nelson Gonçalves, com “A volta do boêmio”, não parava de cantar.

Jonas Craveiro chora quando lembra do dia da apresentação de Maneco ao Fortaleza, por indicação de um veterano do time. Infelizmente não foi aproveitado, motivo de desgosto para o craque. “Chegou a se embriagar durante vários dias, tão decepcionado ficou”.

Maneco foi sepultado no Cemitério Parque da Paz. Ao velório compareceram apenas os parentes mais próximos e dois ou três amigos e vizinhos.

Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte. Porto Alegre: Bestiário, 2006.
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