Humberto ligou a televisão e se sentou no sofá. Locutor falava sem pestanejar. Presidente da República viajava mais uma vez. O homem olhou para o ventilador. Pela janela, nenhuma brisa invadia a sala. Levantou-se. Avião caiu nos confins do mundo, com 120 passageiros. Acionou botão para acelerar a rotação das hastes. Vento, vento, vento. Objeto ou inseto não identificado voou nas proximidades da lâmpada presa ao teto. Voltou ao assento. Agricultores invadiam fazenda no Pontal do Paranapanema. Bandeiras vermelhas, gritos, foices. Cruzou perna, coçou nariz. Televisão precisava de limpeza. Poeira até na cara do papa. Sujeira nos quatro cantos da casa, nos quatro pontos cardeais. Cisco intrometeu-se nos seus olhos. Assalto a loja no centro da cidade. Locutor franziu cenho. Cenas de barbárie gravadas pelo circuito interno de televisão. Bandidos entram armados no estabelecimento comercial. Alguns fregueses conseguem fugir. Homem encapuzado aponta arma para consumidor idoso. Por más artes, a arma se dispara na cabeça do freguês, que tomba inerte. Bandidos recolhem saco dinheiro da loja e fogem. Sombra de objeto ou inseto não identificado passeia aos pés de Humberto. Locutor reaparece para rematar a reportagem: o morto é Humberto Dias Tavares, aposentado, morador do bairro de Fátima, que havia ido ao centro comprar ventilador. Rosto do morto em close. Humberto se pasma. Morto? Como?, se via tudo: a televisão, a poeira acumulada nela, a sombra do objeto ou inseto não identificado, o ventilador, os próprios pés, o sofá, as paredes da sala. Põe-se a rir. Como a vida podia ser tão cheia de coincidências? Corre ao banheiro, mira-se no espelho. O telefone toca. Ajeita-se, alisa o nariz, penteia-se, volta à sala. O locutor falava sem pestanejar. Alô. Pai, você está bem? Muito bem, filha. A Sinfônica apresentará peças de Berlioz, Mendelssohn e Mussorgsky. O homem passa mãos na testa e nos cabelos. Deve ter enlouquecido. De novo a sirene do telefone, feito alarme de incêndio, tragédia. Da casa de Humberto? É ele mesmo. Você foi morto? O vento açoita as pernas do homem. A luz da televisão pisca. Soldados se matam no deserto. Presidente dos Estados Unidos fala de paz. Humberto desliga a televisão, se senta no sofá, alisa o queixo. Como pode ter morrido no assalto?, se via tudo com nitidez: o sofá, os próprios pés, a sombra do objeto ou inseto não identificado, o ventilador com as hastes em rotação acelerada. O que havia entre o teto e o piso? Entre o céu e a terra? Luz, insetos ou objetos não identificados? Sombras em movimento? Batem à porta. Humberto deixa o sofá, espanta a sombra do mosquito invisível e pergunta: quem é?
Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte. Porto Alegre: Bestiário, 2006.
Livro enviado pelo autor.
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