quarta-feira, 9 de junho de 2021

O. Henry (Mamon e o arqueiro)


Nota do blog: Mamon é um termo derivado da Bíblia, usado no que se refere à riqueza material ou cobiça. A palavra é uma transliteração do hebraico “Mamom”, que significa dinheiro.

= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

O velho Antony Rockwall, fabricante e proprietário da Rockwall's Eureka Soap olhou pela janela do escritório de sua mansão na Quinta Avenida e sorriu. O vizinho da direita, o aristocrático clubman G. Van Schuylight Suffolk-Jones aproximou-se do automóvel que o esperava no portão, franzindo o altivo nariz, como de costume, à escultura estilo Renascimento italiano que ornava a fachada do palácio.

— Velho presumido! Retrato mesmo da inércia! — comentou o ex-rei do sabão consigo próprio. — Se não se cuida em breve as musas do Éden acolherão esse gélido Nesselrode. No próximo verão mandarei pintar a casa de vermelho branco e azul e veremos se aquele nariz holandês não se levantará mais ainda!

Antony Rockwall, que jamais se importava com as campainhas, encaminhou-se para a porta da biblioteca e, no mesmo tom de voz que fizera cair pedaços de céu nas pradarias do Kansas, gritou:

— Mike!

À voz doméstica que lhe contestou, berrou:

— Diga a meu filho que passe por aqui antes de sair.

Quando o jovem Rockwall penetrou no escritório, o ancião largou o jornal, mirou-o com sorriso bondoso, refletido no seu rosto grande, suave e avermelhado, alisou, com uma das mãos, uma mecha de cabelo branco e com outra fez tilintar as chaves no bolso.

— Richard, quanto pagas pelo sabonete que usas?

Richard, que saíra do colégio há apenas 6 meses, surpreendeu-se. O rapaz ainda não havia captado as esquisitices do progenitor e era tão inexperiente como uma rapariga que vai pela primeira vez ao baile.

— Penso que 6 dólares a dúzia, papai.

— E pelas roupas?

— Cerca de 80, mais ou menos.

— És um cavalheiro — afirmou convicto Antony. — Ouvi dizer que esses jovens de estirpe pagam vinte e quatro dólares por uma dúzia de sabonetes e gastam mais de cem com roupas. Dispuseste de tanto dinheiro quanto eles e no entanto te mantiveste dentro de um nível moderado e decente. Eu uso atualmente o velho Eureka, não só por sentimentalismo, senão também porque é o mais puro que se fabrica. Se pagas dez centavos por uma pedra de sabão, compras maus rótulos e perfumes. Porém cinquenta está bem para um rapaz de tua posição, classe e geração. Afirmam serem necessárias três gerações para se formar um cavalheiro. Estão enganados. O dinheiro enverniza tanto o indivíduo quanto suaviza a graxa do sabão. Contigo, consegui-o. homem! Comigo não obteve grandes resultados. Sou quase tão incivil e desagradável e possuo maneiras tão rudes quanto esses dois velhos descendentes de uma das primeiras famílias holandesas estabelecidas em Nova Iorque, que vivem ao nosso lado e que não podem dormir tranquilos à noite, porque comprei uma propriedade entre os dois.

— Há certas coisas que o dinheiro não pode comprar — aparteou o jovem Rockwall, com tristeza.

— Ora, não digas isso! — respondeu surpreendido o velho Anthony. — já repassei a enciclopédia até a última letra, à procura de algo que não se possa adquirir com o dinheiro e creio que na próxima semana terei que rever o apêndice, pois verifiquei que com dinheiro tudo se consegue. Menciona alguma coisa que não se possa comprar.

— Antes de mais nada — contestou Richard, nervoso — não se compra entrada nos círculos mais exclusivos da sociedade.

— Ah! Não?! — trovejou o campeão da raiz do mal. — Diga-me onde estariam os círculos exclusivos se o primeiro Astor não tivesse dinheiro para pagar passagem de proa?

Richard suspirou.

— E era disso mesmo que queria te falar — acrescentou o velho. — Para isso pedi que viesses. Algo vai mal contigo, rapaz. Já o percebi há muito tempo. Fora com as tristezas! Poderei levantar mais de onze milhões em 24 horas, além dos bens de raiz. Se for pelo teu fígado, ali está o Rambler, na baía, carregado e pronto para zarpar para as Bahamas, dentro de dois dias.

— Não estás muito longe da verdade, papai.

— Ah! — exclamou Anthony — como se chama ela?

Richard pôs-se a caminhar no escritório, de um lado para outro. Existiam cordialidade e simpatia suficientes no velho e rude pai, de maneira a inspirar-lhe confiança.

— Por que não a pedes em casamento? — prosseguiu o velho. — Ela se jogará em teus braços. Possuis dinheiro, físico atraente e és um rapaz às direitas. Tuas mãos são limpas, nelas não existem resíduos de sabão Eureka. Frequentaste bons colégios, mas ela pouco se importará com isso.

— Ainda não se apresentou a oportunidade — comentou Richard.

— Cria a oportunidade! — ordenou o velho — Convida-a para um passeio ao parque, uma caminhada sem destino, ou acompanha-a a casa de volta da igreja. Oportunidade! Bah!

Tu não conheces o redemoinho social, papai. Ela é parte da corrente que o impulsiona. Cada hora e minuto de seu tempo são marcados com dias de antecedência. Se não possuir essa criatura, essa cidade, para mim, não terá graça alguma. E não posso escrever-lhe. Não me atrevo.

— Basta! — exclamou o ancião. — Queres dizer que com todo o dinheiro que possuo não és capaz de conseguir uma hora do dia dessa moça?

— Esperei muito. Depois de amanhã, ao meio-dia, ela embarcará para a Europa, onde ficará dois anos. Amanhã à noite a verei durante uns poucos minutos. Recebi permissão para esperá-la na Grand Central Station, às vinte e trinta. Devo conduzi-la a galope pela Broadway até Wallacks onde sua mãe e um grupo nos esperam à entrada do teatro. Por acaso parece que poderei declarar-me nesses 6 ou 8 minutos e em tal circunstância? Não. E que oportunidade terei no teatro, ou depois? Nenhuma. Não, papai, essa é uma encrenca que teu dinheiro não resolve.

— Muito bem, meu rapaz — comentou o velho, alegremente. — Podes ir ao teu clube. Estou satisfeito sabendo que teu fígado está em ordem. Porém não te esqueces de acender, de quando em quando,  umas velas ao grande deus Mazuma. Dizes que o dinheiro não compra tempo? Realmente, não se pode conseguir que te embrulhem a eternidade e a entreguem a domicílio, por determinado preço, mas já vi o Papai Tempo machucar os pés, quando caminhava pelos garimpos de ouro.

Nessa noite, tia Ellen, muito sentimental, suave, enrugada, suspirosa e oprimida pela riqueza, aproximou-se do irmão Anthony, que lia os jornais da tarde e pôs-se a discorrer sobre as angústias do amor.

— Já sei de tudo — bocejou Anthony — Afirmei-lhe que minha conta bancária está à sua disposição. Foi então que se pôs a menosprezar o valor do dinheiro. Disse-me que este não poderá ajudá-lo na emergência em que se encontra e que a etiqueta social não pode ser abalada sequer por 10 milionários.

— Ó, Anthony! — suspirou tia Ellen — gostaria que não pensasses tanto em dinheiro. O amor é todo poderoso. Quando se trata de carinho verdadeiro, o dinheiro não conta. Se ele tivesse falado antes! Essa jovem não poderia recusar o nosso Richard. Todo o ouro que possuis não fará feliz a teu filho.

No dia seguinte, às 20 horas, tia Ellen tomou de um belo anel de ouro, guardado numa caixa comida pelas traças, e o entregou a Richard.

— Usa-o esta noite, querido sobrinho — pediu-lhe. — Foi tua mãe quem me deu. Disse que traria boa sorte e que o entregasse a ti, quando encontrasses tua amada.

O jovem Richard recebeu o anel respeitosamente e provou-o no dedo mindinho. O rapaz arrancou-o do dedo e guardou-o no bolso do colete. Imediatamente telefonou pedindo o carro.

Na estação, descobriu Miss Lantry, às 20 e 30, em meio ao gentio.

— Não podemos fazer mamãe e os outros esperarem — comentou a mocinha.

— Para o teatro Wallack e o mais rápido possível! — ordenou Richard.

Fizeram a volta pela rua 42 até a Broadway e desceram a ruazinha iluminada pelas estrelas. Na Rua 34, Richard preparou sua armadilha e mandou que o condutor do coche se detivesse.

— Caiu meu anel — desculpou-se enquanto descia. — Era da minha mãe e sentiria muito perdê-lo. Não me demorarei muito, pois vi onde caiu.

Em menos de 1 minuto estava de volta com o anel.

Foi então que um carro enorme parou bem em frente ao deles. O cocheiro tentou passar pela esquerda, mas  foi trancado por outro veículo. Livrou-se então pela direita e quase foi de encontro a uma carroça de móveis, que nada tinha que fazer naquele lugar. Procurou avançar, mas as rédeas não obedeceram e ele maldisse entre dentes. Estava bloqueado num confuso torvelinho de veículos e cavalos.

— Por que não prossegue? — indagou Miss Lantry, impaciente. — Chegaremos atrasados.

Richard olhou em volta. Uma nutrida fila de carros, caminhões, coches, carroções de móveis e bondes atravancavam o vasto espaço em que cruzavam a Broadway, a 6a Avenida e a Rua 34. E ainda mias: das ruas perpendiculares marchavam com grande velocidade, convergindo para o mesmo ponto, outros carros, entrelaçando suas rodas e agregando mais imprecações ao clamor dos condutores. Tinha-se impressão de que todo o trânsito de Manhattan se congestionara ao redor deles. Os nova-iorquinos mais velhos jamais haviam presenciado bloqueio semelhante.

— Sinto muito — balbuciou Richard, quando tornou a sentar — mas estamos presos. Nem em uma hora poderão desembaraçar tamanho embrulho. Eu tive a culpa. Se não tivesse perdido o anel...

— Deixe-me ver a joia — disse Miss Lantry. — já que não tem remédio, não importa. De qualquer maneira, não tinha mesmo vontade de ir ao teatro.

Nessa noite, às 23 horas, alguém bateu levemente na porta de Anthony Rockwall.

— Pode entrar — gritou o velho, que se deliciava com um livro de aventuras de piratas.

Era tia Ellen, com todo o aspecto de um anjo encanecido, que tivesse ficado na terra por engano.

— Estão noivos, Anthony! — anunciou delicadamente. — Enquanto se dirigiam ao teatro, houve uma congestão de trânsito e 2 horas se passaram antes que pudessem continuar viagem. E, ó mano Anthony! Nunca mais te vanglories do poder do dinheiro. Richard encontrou a felicidade por meio de um pequeno emblema de verdadeiro amor: um anelzinho que simbolizava carinho infindo e desinteressado. Deixou-o cair na rua e desceu do coche para recolhê-lo. E antes que pudessem seguir, produziu-se a interrupção do trânsito. Confessou sua paixão à jovem e conquistou-a enquanto o carro se encontrava cercado. O dinheiro é lixo, quando se compara ao verdadeiro amor, Anthony.

— Muito bem — comentou o ancião. — Estou contente sabendo que o rapaz conseguiu o que desejava. Bem lhe disse que não pouparia esforço algum a esse respeito...

— Mas mano, que poderia ter feito o teu dinheiro?

— Mana, o meu pirata arrumou uma encrenca dos diabos. Seu barco foi avariado e ele conhece demasiado o valor do dinheiro para permitir que afunde. Muito te agradeceria se me deixasses terminar a leitura desse capítulo.

O conto deveria findar aqui. Eu o desejaria tão sinceramente quanto os que o lêem. Mas devemos chegar até o fundo do poço para encontrar a verdade.

No dia seguinte, uma criatura de mãos avermelhadas e gravata de algodão, chamada Kelly, bateu à porta da casa de Anthony Rockwall e foi imediatamente introduzida no escritório.

— Bem — disse o dono da casa, alcançando seu livro de cheques — foi uma bela soma de dinheiro. Vejamos, tu tinhas cinco mil dólares à disposição.

— E ainda gastei mais 300 do meu bolso — respondeu Kelly. — Foi mais caro do que eu esperava. A maioria dos carros e coches aluguei pelos cinco mil dólares, porém os caminhões e carroções me obrigaram a dobrar a quantia. Os condutores quiseram dez dólares, alguns vinte. Os guardas me exploraram. A dois, precisei dar cinquenta dólares e ao resto, vinte e cinco. Porém saiu maravilhosamente, não foi? E não houve ensaio algum! Os rapazes chegaram na hora exata. Foram necessárias mais de 2 horas antes que uma minhoca pudesse chegar aos pés da estátua de Greeley.

— Mil e trezentos. Aí tens, Kelly. — disse Anthony ao lhe entregar o cheque. — Os mil dólares são teus e mais os trezentos que pagaste do teu bolso. Não menosprezas o dinheiro, não é verdade, Kelly?

— Eu? — protestou o homem. — Gostaria de surrar o sujeito que inventou a pobreza.

Quando Kelly já se aproximava da porta, Anthony chamou-o.

— Não viste, por acaso — perguntou — em algum lugar, durante a interrupção do trânsito, um menino gordinho, nu a disparar flechas a esmo?

— Penso que não — respondeu Kelly, surpreso. — não, não vi. E se estava nu, como o senhor diz, por certo um guarda levou-o, antes que eu chegasse.

— Passou-me pela cabeça a ideia de que o malandro por lá estivesse — concluiu Anthony, sofreando o riso. — Adeus, Kelly.

Fonte:
Histórias de O. Henry. Ed. Cultrix, 1964.

Nenhum comentário: