sexta-feira, 18 de junho de 2021

Carolina Ramos (Férias na roça)

Quanta saudade!… Saudades das minhas férias na roça!…

Das cavalgadas matinais, na fazenda do Pinhal, cedinho, quando o orvalho ainda brilhava nas folhas adormecidas, à espera de que o Sol as viesse despertar!

Saudade da algazarra dos pássaros madrugadores. Saudade do estalar da lenha sob a chapa do fogão que amparava o bule do café, enquanto o aroma familiar se espalhava pelos cômodos do velho casarão da fazenda, a esgueirar-se pelas janelas, a competir com o aroma adocicado das flores do jardim.

Saudades do velho Lucrécio - passos lentos, carapinha branca, voz pausada e mansa - que, nas noites embuçadas em mistério, eletrizava a criançada sentada à sua volta, de olhos arregalados a ouvir suas histórias, suspensa nos "causos" por ele contados, que envolviam sacis, lobisomens, assombrações e tanta coisa mais que acabava por perturbar a mansuetude do sono dos anjos.

Filho de escravos, Lucrécio era dessas pessoas que não podem faltar no cenário de uma fazenda que se preze. Alto, magro, pele negra, curtida de sol e alma de algodão... Se Lobato o tivesse conhecido, certamente haveria um Lucrécio no Sítio do Picapau Amarelo.

Ainda garotinha, mas já com veleidades de boa amazona, pedia-lhe que encilhasse o meu cavalo (nunca o mais manso) e Lucrécio recomendava sério, de dedo em riste:

- Cuidado, minina. Num pode galopeá... num pode memo, viu? I num si meta no mato, qui tem munta cobra por ali...daquelas perigosa... cheia de veneno!

E eu apenas assentia com a cabeça... sabendo que nem tudo seria cumprido.

Ah! o velho Lucrécio, que nos ensinava a valorizar a poesia dos aboios, o canto desafinado e dolente de um carro-de-boi... o ranger festivo das porteiras quando se abriam... e a pancada seca do adeus quando se fechavam atrás de nós.

Lucrécio juntava a criançada da vizinhança e nos levava, em bando, a catar ninhos de pinhão e de ovos... A colher laranjas e, também, aquelas jabuticabas brilhosas, como que envernizadas, a enverrugar troncos e os galhos das jabuticabeiras.

Ensinava-nos a ouvir, bem de perto, o pipilar dos passarinhos nos ninhos... mas... sem tocá-los, já que, sem esses cuidados, os ninhos poderiam ser abandonados e os filhotes expostos ao repúdio dos pais.

Quanta, quanta saudade da Fazenda do Pinhal, lá para os lados de Itapetininga, moldura preciosa da paisagem da minha infância! Seus proprietários - sr. Leonardo e a esposa, dona Nenê. Ela, prima de minha mãe.

Lembro-me da roça, viçosa, de onde vinham os verdes que enfeitavam a nossa mesa... Da fonte, gorgolejante, entre a ramagem do bosque, a oferecer linfa pura e fresca... Do balido das cabras e dos carneiros, pernas finas e acolchoados de lã... Das vaquinhas leiteiras que nos brindavam com bigodes de leite morno… lembro-me também do extenso algodoal, semelhante a imenso campo nevado que nem o Sol a pino conseguia derreter!

E lembro-me, ainda, com doida saudade, do meu cavalinho, o Expresso, que, ao ser transportado para a Hípica de São Vicente, seria o cobiçado presente dos meus quinze anos... "negro como a asa da graúna", lépido como um pé-de-vento... a correr pelos campos, onde o veneno de uma urutu-cruzeiro, cruelmente, o roubaria de mim!

E, afinal... que saudade... que saudade tão grande... daquelas noites forradas de estrelas (hoje engolidas pela poluição) quando era possível ouvir a brisa fresca sussurrar entre os pinheiros... Sempre a lembrar-nos que a vida passa depressa... tão depressa quanto a água do rio... que murmureja a seguir em frente para, com certeza... nunca mais voltar!

Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: Mônica Petroni Mathias, 2021. Capítulo 5: Contos rústicos, telúricos e outros mais.
Livro enviado pela autora.

Um comentário:

Jaqueline Machado - Escritora disse...

Recebi esta semana da amiga Carolina este maravilhoso livro. AMEI