segunda-feira, 7 de junho de 2021

Lima Barreto (A indústria da caridade)

Era dia de moda. A confeitaria regurgitava. Aqueles móveis de falsa laca, muito pechisbeques (ouro falso) e pernósticos, davam a tudo um ar de fatuidade e presunção. A frequência especial de cavadores, gigolôs, "melindrosas", "guitarristas", bobos-alegres, etc., enchiam o salão, sentados ao redor das mesinhas, olhando, de quando em quando, de soslaio os espelhos que o circundavam.

A um canto, abancados a uma mesa, tendo uma garrafa de Canadian em frente, dois amigos conversavam. Eram sibaritas desses lugares. Gozam em contar um ao outro o que sabem da vida faustosa dessa gente que, rica de uma hora para outra, se empavesa de repente com coisas caras, tal e qual um régulo africano que, nos salvados de um naufrágio, achando um fardão de oficial de marinha, o veste, põe o chapéu armado e fica de pés no chão. Os dois amigos tinham esse prazer, esse “gozo" de andar pelas reuniões públicas, tidas como da moda, para "biografar" os frequentadores.

Já tinham passado em revista a toda a sala e, com desgosto, viram que todo o pessoal era "conhecido". Afinal, deram com uma família "desconhecida" que procurava esconder as suas maneiras de Catumbi, com uma morgue procurada e sob trajes caros no rigor da moda.

O mais velho, o Chichorro, perguntou ao mais moço, o Veiga:

— Quem é aquela gente? Tu conheces?

— Sim; conheço, Chichorro; aquela gente é típica, é a mais pura representação da época. É a família do major Almério que é aquele de cinzento.

— Major! então não é dos "novos"?

— Qual! É da Guarda Nacional, filho!

— Quem é aquele que tem uma pasta, no último mês de gravidez, e está ao lado do tal Almério?

— Aquilo não é uma pasta; é uma “guitarra". Aquele sujeito é um advogado que anda metido com contrabandistas e gente que tal.

— Compreendo... Ele, o tal Almério, é "guitarrista" também?

— Não. É homem honesto; exerce legalmente a Indústria da Caridade.

— Indústria da Caridade! Tens cada uma - livra!

— Lembras-te dos da Renée Mauperin?

— Lembro-me; e como não me havia de lembrar desse livro que me causou tanta emoção?

— Pois bem. Há lá um personagem, cujo nome não me recorda agora, que diz: o furto é a maior indústria do nosso tempo. Os autores do Renée dizem que estudam, nesse livro, a burguesia ou um povo burguês de 64; há, portanto, quase sessenta anos que isso era corrente. Hoje ainda continua a ser; mas uma indústria nova apareceu ultimamente.

— Qual é?

— A da Caridade.

— Meu Deus! Isto é uma blasfêmia!

— Mas é uma verdade.

— Vou te mostrar como o é. Este Almério, há menos dez anos passados, morava em Bonsucesso, numa casinha, pela qual pagava trinta ou quarenta mil-réis. Vivia sabe Deus como. O aluguel da casa era pago com o produto das costuras da mulher e da filha mais velha, que tinha, por esse tempo, dezesseis anos; e o resto os vizinhos e amigos forneciam. Ele vinha todo dia à cidade, a ver se arranjava alguma coisa, qualquer lugar, mesmo de servente em qualquer repartição pública. Era, porém, caipora, nada obtinha; mas não desanimava. Veio uma agitação política, por ocasião de uma sucessão presidencial, e ele viu bem que o "caminho do burro" era ser do partido do candidato popular. Recordas-te da anedota de Diderot com Rousseau?

— Qual?

— Aquela da resposta a dar à Academia de Dijon: — "se o progresso das ciências e artes tinha contribuído para a felicidade do gênero humano?"

— Sim; lembro-me, pois não. Rousseau queria responder afirmativamente; mas Diderot disse-lhe que seria burrice: devia responder negativamente.

— Foi o que fez o nosso major. No negócio presidencial, respondeu — não; foi contra a opinião geral e acertou. Entrou para uma junta a favor do candidato execrado; fizeram-no major da Guarda Nacional e recebia uma diária pelo serviço de meetings, etc. Começou a jantar e a almoçar diariamente, e a família também. Os seus horizontes se alargaram. Não quis mais emprego, fosse qual fosse. Pensou coisa melhor.

— Que fez?

— Planejou um hospital de crianças. Interessou jornalistas e repórteres do partido da coisa. Recebeu donativos, o governo federal cedeu-lhe o velho edifício do hospital da brigada e casas adjacentes, restauradas, deu-lhe uma subvenção; o governo municipal, outra. Ele se instalou num palacete, mobiliado com remanescentes das subvenções, que lhe dão também para comer e vestir-se luxuosamente, ele, mulher e filhas.

— Como se mantém nessa “mamata"?

— À custa de manifestações a tudo quanto é impopular, portanto, do agrado
do "poder".

— Talvez tenha razão, porque nem tudo o que é popular é justo.

— Não há dúvida, caro Chichorro. Noto um fato social e mais nada.

— O papai Basílio fez pior, com o seu Asilo de Santa Rita de Cássia — caso que muito contribuiu para a fama do nosso atual desembargador Ataulfo... Como o tempo corre, hein?

— É verdade. Valha-nos isto: Almério não repetiu o papai Basílio.

Sorveram um trago de uísque e, com o pensamento longe, puseram-se a olhar a sala sem nada ver ao centro e sem trocarem palavra.

A família do major levantou-se e todo o rancho passou por perto dos amigos que sonhavam, mergulhados naquele burburinho de vaidade.

O homem da “guitarra” disse bem alto e cheio de suficiência:

— Consinto em ir jantar com "vocês"; mas com uma condição: eu pago o automóvel.

Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama. Publicado originalmente em 1920.

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