domingo, 27 de junho de 2021

Marcelo Henrique Marques de Souza (O trem)

Há um bom tempo procura um botão, ou outro dispositivo qualquer. Queria fazer sinal, descer do trem. Não achou. Insiste, mas sem sucesso.

Cola o rosto no vidro de uma das janelas. A noite corre estranha, distante. Soberana demais. Não consegue distinguir o pescoço dos postes de luz, devido à densa neblina.

Passa por uma senhora bem vestida, cujo rosto parece familiar. Sabe aonde é a saída? Quero descer... A velha olha-o de cima a baixo, condescendente. Como se já conhecesse a pergunta. Não é assim que as coisas funcionam, meu filho... Devia ser louca, só pode.

Decide questionar o maquinista. Certamente saberia o destino final e o tempo até a próxima estação. Ultrapassa os vagões, um por um, sem parar. Ninguém parece incomodado. Todos agem como quem sabe onde está indo.

De repente, esbarra num vagão diferente. Há pinturas nas paredes e nos assentos, a maioria num estilo renascentista. Excesso de tons claros e temas religiosos impregnam o ambiente. A maioria das pessoas permanece sentada, todas com as mãos no rosto, na posição típica das orações.

Pergunta, então, baixinho, a um dos presentes – o primeiro que levantou os olhos –, aonde poderia encontrar o maquinista.

Recebe de volta um olhar desconfiado, que diz Aqui é o último vagão. Se quiser mesmo falar com o maquinista, é preciso ter fé e orar bastante...

Começa a entrar em desespero. O absurdo da situação o leva a questionar-se acerca da própria sanidade. Teria a sentinela da normalidade caído num sono profundo, desses que sucedem as longas caminhadas?

Fazia o caminho de volta, quando de repente sentiu um leve incômodo nos olhos. Estranhamente, fortes raios de sol invadem o trem, como dia mais alto a substituir a noite mais densa, de uma hora para outra.

Resolve sentar um pouco. Há bancos vazios neste vagão.

Respira fundo e julga apropriado pensar um pouco, sem pressa.

Que trem é esse? Não há trem nessa cidade. Qual seria a estação inicial? E para onde ele vai?

Nesse momento, outro homem senta-se ao seu lado. Tem um aspecto professoral, óculos típicos, barba imponente. Arrisca a pergunta: – Desculpe incomodá-lo, mas sabe para onde estamos indo? O homem massageia a barba por alguns instantes, enquanto formula alguma coisa: – Meu caro, não sei exatamente para onde estamos indo. Mas de uma coisa eu tenho certeza: estamos indo depressa demais...

Como assim? Então, além de tudo, estamos infringindo as leis de velocidade?

Não que as leis de velocidade sejam padrões inatacáveis...

Mas o fato de não haver um padrão deveria significar uma variação da velocidade. E não é isto que estamos vendo. O velocímetro só aumenta o ritmo...

Apesar do crescente contrassenso da situação, a postura moderada do outro homem acomoda-lhe um pouco o espírito. Talvez seja a sensação da dúvida compartilhada. Sabemos das fobias da natureza humana e sobre como qualquer devaneio dividido por duas ou mais almas acaba sempre recebendo as benesses alucinógenas da mimesis.

Tenta olhar novamente pela janela, mas os raios de sol impedem. O máximo que consegue perceber, muito fosco, é que, de fato, a paisagem parece mesmo cruzar os ares rápido demais. Uma velocidade que realmente preocupa.

Volta os olhos para o banco ao lado. O homem sumiu. O frio dos cumes do desespero retorna a apertar-lhe os ossos. E nota, chocado, que a sua angústia não parece merecer a atenção de ninguém. Nenhum dos outros passageiros sofre o seu sofrimento, que se mostra único, solitário, intransferível.

Apoia os cotovelos nas coxas e abaixa a cabeça. Mãos na testa, esconde o rosto como se buscasse ocultar-se em algum porão inabitado.

E então se lembra do filho. Estão brigados há mais de uma semana. Coisa boba, último pingo de um pequeno copo, incompatibilidade de gerações. Objetivismos não faltam para explicar o que é sempre muito mais amplo do que eles. Mais do que tudo, sente uma repentina e incurável saudade do menino. Dessa saudade, escorre uma lágrima, que vai parar na porta dos olhos. Que não conseguem impedi-la, em sua fome de liberdade.

Enquanto sofre a lágrima a descer pelo rosto, de lá do escuro porão de seus olhos fechados, sente, de repente, um forte solavanco, como se o trem a passar por cima de alguma pedra grande, ou outro tipo de obstáculo.

Abre os olhos assustado, enquanto limpa o rosto. E constata, perplexo, que o trem sumiu. Sumiu! O que antes era o banco do trem, agora é um banco de praça. Algumas nuvens brandas cercam o sol, mas ele resiste, bravo e solene.

O olhar continua pasmo. Como se a buscar, em vão, um corrimão, para apoiar a descida íngreme numa estreita escada. Como viera parar aqui? De onde veio essa praça? E o trem, para onde foi?

De repente, avista o mesmo homem do trem. Passa num andar calmo, a mesma calma no semblante. Mas veste roupas diferentes. Não faz sentido...

Levanta-se rápido, ainda atordoado. E resume suas angústias numa pergunta que escapa distante, apoiada pelos braços, que apontam em todas as direções ao mesmo tempo: – O que é isso??...

O homem retarda o passo, até parar. Olha para cima e inspira fundo, como a alimentar o fundo da alma com todas as células do dia. E responde, saciado, de dentro de seu olhar sereno:

– É a vida, meu amigo. É a vida…
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Marcelo Henrique Marques de Souza, escritor, ensaísta, poeta, pesquisador e professor. Autor de sete livros, sendo dois ensaios, dois de poemas, um de contos, um de artigos científicos e um de aforismos. Graduado em Comunicação Social e integrante do Grupo de Formação da NovaMente – Colégio Freudiano do Rio de Janeiro. Articulista do programa de rádio Debates Culturais, antes na Bandeirantes AM, hoje na internet.

Fonte:
Editora da Universidade Federal do Espírito Santo (org.). Coletânea de contos & crônicas [recurso eletrônico]. Vitória/ES: EDUFES, 2015. (Coleção II Prêmio Ufes de Literatura)

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