sábado, 12 de junho de 2021

Carolina Ramos (Ódio que mata)

Como esta história chegou aqui é fácil de entender. Quem a relata é meu filho, ligado ao ramo, que explica:

- Minhas auditorias, no campo rural, levaram-me a conhecer André, que geria com mãos firmes a fazenda Monte Belo. Bom papo, André desvelou-me a Monte Belo, de ponta a ponta, a trote de cavalo, queixo apontado para além das colinas que delimitavam no horizonte os confins da propriedade. Nas pausas, nossa prosa corria solta, à sombra dos jacarandás floridos, animada pela frescura do farfalhar das folhas. Esta história aflorou a partir da premissa disparada por André, logo que chegamos ao portal da Monte Belo:

– Fazenda de gado tem os seus encantos. Mas tem também algumas coisas que a gente não entende e ninguém consegue explicar.

– Como assim?! - perguntei. - André apertou os olhos, estendendo o olhar pela campina verde.

– É o caso do Atlas.

André calou-se, enigmático, a dar tempo para que aflorasse a pergunta seguinte:

- E quem é esse Atlas? – a resposta irônica saltou pronta:

- Esse Atlas... é um cara bravo, forte, que pretende carregar o mundo nas costas!

- Bem... até aí, você está de acordo com a mitologia. Mas... eu continuo na mesma!

– Este Atlas é outro, meu caro! - emendou André, com ênfase – Este Atlas é um touro Jersey, desaforado, dono do pedaço... E que pensa ser dono da fazenda inteira!...

Ante a minha passividade, André continuou:

-E o pior... é que ele, absolutamente, não gosta de mim! E não gosta mesmo!! Não me suporta! - Você ri... não é? Mas é porque ainda não viu nada! Dizer que aquele touro não gosta de mim... é até bem pouco! Ele me odeia!! Me odeia, sim!!! O maldito me odeia tanto, já tentou me matar por várias vezes! Juro!... Não é brincadeira, não! Pode crer!

- Claro que alguma coisa você deve ter feito a ele! – argumentei, disfarçando o riso: - Ódio não é coisa gratuita! É... toma lá, dá cá!...

- Isso é o que você pensa, meu caro!!! Neste caso... tudo é questão de química! O Atlas sequer pode me ver!... Seus instintos assassinos assomam, tão logo apareço!! Tenho a impressão de que, entre este seu amigo e aquele touro, a vida abriu um abismo sem fundo!

- É como se ele visse, na minha pessoa, um arqui-inimigo que precisasse destruir a qualquer custo!... E é isto mesmo o que ele tenta fazer a cada oportunidade! - Mas, deixe... vou ficar calado! É só chegarmos lá e você vai ver, com os próprios olhos, quem é essa fera! Juro que nem vou precisar dizer nada!...

A casa sede apontava, lá embaixo. Estimulados, os cavalos aceleraram a marcha parando ao pé da porteira gemedora, que uma vez mais gemeu ao nos dar passagem.

André encaminhou-se para o curral. Segui-o, tão logo entreguei o cavalo ao peão para que o livrasse dos arreios.

- Ei-lo! — apontou André de braço esticado. - Lá está ele... Sua Majestade, o Atlas!

Apresentação sarcástica e desnecessária. De costas para nós, o touro impunha-se pelo porte. Uma apoteose de músculos! Ao ouvir vozes, voltou-se devagarinho, pregando os olhos no desafeto.

André baixou a voz: - Tá vendo só ?! Ele já me pressentiu! - O bicho tem faro de cão perdigueiro!

O animal moveu com lentidão as arrobas de carne. Aproximou-se devagar... Trem possante a resfolegar ódio!... E... sem nunca tirar os olhos de cima do André!

- Viu só? Eu não disse?! Tenho ou não tenho razão?!... Esse cara me odeia! Olha só como bufa!... Eia...bicho ruim! - Já chega! Vamos embora! Essa raiva gratuita me faz mal! Fico até doente... picado por cobra!

Não fora difícil concordar:

- Realmente... É muito estranho... parece que o bicho não vai mesmo com a tua cara, André! - Não vai, não!

- Sei lá o que anda na cabeça dele... sei lá!

Sem resposta, demos as costas ao touro, voltando para a casa matriz.

O dia seguinte amanheceu radiante. O Sol... baita holofote a iluminar o bucolismo da Monte Belo! Antes do café, encaminhei-me para os lados do curral, onde o gado filosofava à espera de ser liberto rumo ao pasto... Atlas já estava lá. Olhou-me displicente... a ruminar a indiferença como se eu não existisse... Chicoteava-se com a cauda... a espantar alguma varejeira impertinente.

Perdia-me, tentando decifrar os sentimentos daquela montanha de ossos e músculos, quando notei uma súbita fixação dos olhos do animal em mim. Havia neles um brilho estranho, diferente... Brilho que, pouco antes, não estava ali!

Sem demora, Atlas começou a escavar o chão com os cascos, sem tirar os olhos da minha direção. Inquietei-me! Estaria o animal transferindo sua ira para aquele que sabia ser amigo... do seu maior inimigo?!

O touro tomou posição. Aproximava-se, devagar, cabeça baixa... resfolegante como fole velho! Por sorte, era mocho! Mesmo assim, de um salto o instinto me afastou do cercado. Foi quando André, chegado sem aviso por detrás de mim, bateu-me no ombro, triunfante:

- Viu só?!... Lá está o cara preparando o bote! Logo que me captou ao longe, começou a escavar o chão com a pata. Antes que alguém me visse, ele já me vira! - Juro que, nem por todo o ouro do mundo, eu pularia esta cerca!... Loucura!!!

A fúria do touro crescia... Tufos de capim eram arrojados para longe pelas patas possantes que sapateavam nervosas.

- Então, meu caro, convenceu-se agora? Ele me odeia! Eu te disse! Se me pega, me fura, mesmo sem ter chifres... Me pisoteia e me mata!... Pode crer, meu amigo! - Mas... - E aí, André fez uma pausa, mastigando um sorriso enigmático... No olhar, um brilho maquiavélico acendeu-se, enquanto murmurava entre dentes:

- Mas... o que esse brutamontes não sabe é que, neste jogo de vida ou morte, eu tenho um trunfo guardado na manga!... Ele ignora... ou finge que ignora, que sou eu quem administra esta fazenda!

Ontem, mesmo, comprei outro touro... Mais jovem e mais poderoso do que ele... e que irá reinar neste pedaço!

O Atlas, coitado... já era! Seu nome abre a lista do gado que, na semana que vem, vai para corte. Logo, logo... vai ser bife no prato de muita gente! E tomara que um desses pratos seja o meu!!

André gargalhava... a antegozar a vingança! - E, então, meu filho finalizou a narrativa;

- Coisa estranha, mãe! Embora ouvinte interessado... ao final daquele relato, eu não senti a menor vontade de rir! Cheguei mesmo a ter dó daquele potentado que bufava... e que, muito em breve, seria vítima do seu próprio ódio! Ódio gratuito, não fundamentado... ódio tolamente alimentado... A envenenar uma vida inteira!!

- Foi justamente aí que aquele vivido e tão cansado coração de mãe, que atento aguardava o arremate daquela instigante história, não conseguiu calar... Sabiamente ponderando num suspiro:

- Bem igual ao que, vez por outra, acontece por aí entre os homens!... Igualzinho!... Igualzinho!... Sem tirar nem por!!!

Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: Mônica Petroni Mathias, 2021. Capítulo 5: Contos rústicos, telúricos e outros mais.
Livro enviado pela autora.

Nenhum comentário: