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domingo, 21 de abril de 2024

Monteiro Lobato (O jabuti e a caipora)

O jabuti entrou num oco de pau e começou a tocar a sua gaitinha. A caipora, lá longe, ouviu e disse: "Não pode ser outro senão o jabuti. Vou agarrá-lo." 

Veio vindo. Parou perto do oco, a escutar. 

Li, ri, li, ri...
Lé, ré, lé, ré... 

— Olá, jabuti! 

— Oi! — respondeu o tocador de gaita. 

— Saia do buraco, jabuti, para vermos qual de nós dois tem mais força. 

O jabuti saiu, enquanto a caipora cortava um cipó. 

— Eu puxo uma ponta e você outra — eu em terra e você n'água. 

— Pois vamos a isso, caipora! — respondeu o jabuti. 

O jabuti entrou na água e amarrou a ponta do cipó no rabo dum pirarucu, que é o peixe de rio maior que há. A caipora, lá em terra, puxou o cipó — mas o pirarucu a arrastou para a beira d'água; e como não tinha mais força, foi puxando-a para dentro do rio. O jabuti, que já estava em terra, bem escondidinho no mato, ria-se, ria-se. 

Não podendo mais de tão cansada, a caipora gritou: 

— Basta! Você venceu. 

O jabuti, sempre a rir-se, entrou n'água e foi desatar o cipó do rabo do pirarucu. Em seguida voltou para terra. 

— Está cansado, jabuti? — perguntou a caipora. 

— Cansado, eu? Nem um tiquinho! — e a caipora viu mesmo que nem suado estava. Não teve remédio senão confessar que o jabuti era mais valente do que ela — e lá se foi muito desapontada.

Fonte> Monteiro Lobato. Fábulas. 1922. Disponível em Domínio Público 

domingo, 14 de abril de 2024

Luís da Câmara Cascudo (O Príncipe Lagartão)

Uma rainha desesperava-se por não ter filhos. Uma vez, perdendo a paciência, pediu que Deus lhe desse um herdeiro mesmo que fosse com a forma de lagarto. Meses depois, deu à luz um lagartão.

Mesmo lagarto era filho do rei e tratado como príncipe, no berço macio e com o conforto do palácio. Sucedeu, porém, um fato: a primeira ama que entregou o seio para o lagarto mamar ficou sem o bico do peito porque o bicho torou, rente, com um apertão das gengivas. E assim a segunda, a terceira, a quarta, a quinta, a sexta, etc.

Ia ficando o palácio sem gente. O lagarto, que tinha a voz de menino, chorava com fome, bulindo com as patas como se fossem braços e pernas. O rei e a rainha, aflitos, vendo a hora do filho morrer de fome, ofereciam prêmios e ordenados altos a quem fosse capaz de alimentar o herdeiro do reinado.

Atraídas pelo dinheiro e pelos presentes, as amas compareciam mas todas ficavam sem o bico do peito, cortado pelo lagarto no momento de começar a mamada.

Perto do palácio real moravam umas moças órfãs, muito honestas e trabalhadeiras. A mais jovem era inteligente como uma fada e querida por quem a conhecia. Ouvindo contar a aflição da rainha, a mocinha, que se chamava Maria, foi oferecer-se para criar o príncipe Lagartão, como estava sendo apelidado.

A rainha, que simpatizava muito com ela, avisou-a dos perigos e perguntou se tinha leite. Maria explicou:

– Rainha, minha senhora! Mande fazer uma armação de ferro na forma de um seio. Enchemos essa forma com leite e o príncipe pode mamar sem ofender a ninguém.

Mandou-se fazer o seio de folha de ferro, cheio de leite, e Maria, amarrando-o ao busto, deu de mamar ao príncipe Lagartão, que ficou com as gengivas machucadas de tentar fazer o que fizera com as outras. Mamou, mamou, ficou satisfeito e adormeceu. O palácio sossegou e os anos foram passando sem alteração.

O príncipe Lagartão estava enorme, comendo tudo. Tinha os olhos e a voz humana. No mais, era um bichão de meter medo ao mais valente.

Quando ele ficou na idade do sacramento, disse para a rainha que precisava casar-se.

A rainha falou ao rei e ambos botaram anúncio no reinado para que as moças comparecessem ao palácio a fim de o príncipe Lagartão escolher sua esposa. Não apareceu ninguém. Não havia moça que quisesse casar com um lagarto, mesmo que o lagarto fosse príncipe.

O rei podia obrigar, mas ficou receoso de ser castigado por Deus pelo seu orgulho. Conversou com o príncipe Lagartão, contando o sucedido. O príncipe Lagartão disse:

– Não tem importância, Rei meu Pai. A noiva está achada e é Maria que me criou com o peito de ferro. Mande chamá-la e pergunte se quer fazer esse outro serviço por mim.

O rei disse à rainha e esta mandou chamar Maria e expôs todo passado. A moça pediu três dias para responder e foi rezar. Rezou, rezou, pedindo que Deus lhe mostrasse os caminhos certos. Voltou ao palácio e aceitou a proposta.

Fizeram o casamento no palácio. Maria ficou bonita como uma rosa e o noivo arrastava-se, todo vestido de seda verde, bordada de ouro e pedras preciosas. Houve banquete e lá para as tantas da noite o casal foi conduzido ao quarto.

Logo que entraram o príncipe Lagartão soprou a luz e ficou nas trevas. Maria mudou a roupa e deitou-se. Apesar do escurão a noiva reparou que o marido estava no meio do quarto, em pé, como um homem, e ia tirando uma por uma as sete capas, deitando-as ao chão. Quando arrancou a derradeira, estava um homem perfeito. Foi para o leito e Maria fingiu que nada vira.

Pela manhã, quando Maria acordou, já o esposo estava feito o grande lagartão esverdeado e feio. Foram para o café e os dias não trouxeram novidades.

A rainha, com a curiosidade de mãe, tanto perguntou, tanto perguntou, que a moça contou o que vira. A rainha lhe disse:

– Maria, vista sete camisas brancas, virgens de uso, molhadas n’água de laranjeira. Quando for para o quarto, fique na beira da cama, sentada, sem mudar a roupa. O príncipe há de perguntar por que você não troca a roupa. Você diga que só o fará ao mesmo tempo que ele. Cada camisa que você tirar, ele faz o mesmo com uma capa e você reza uma Ave-Maria. No fim, quando acabarem, você estira a mão para ele e espeta-lhe a ponta desse espinho, tirado da coroa de Jesus Cristo na Sexta-feira da Paixão. Faça o que lhe digo e seja feliz, minha filha.

Deu o espinho a Maria e esta, se melhor ouviu, melhor fez. De noite, na hora de dormir, sentou na cama, vestida dos pés à cabeça. O príncipe Lagartão, habituado com a mulher ir-se logo deitando para descansar, fez finca-pé e pôs-se como um homem, no meio do quarto, no escuro. Reparando que a mulher estava acordada e vestida perguntou-lhe se não ia trocar a roupa, como costumava. Maria respondeu que só mudava a roupa ao mesmo tempo que ele. O príncipe Lagartão, que usava sete capas verdes, achou graça, sabendo que ela não podia acompanhar, peça por peça, o número do traje dele. Disse que sim e tirou uma capa pondo-a em cima do tapete. Maria, mais do que depressa, tirou uma camisa e rezou uma Ave-Maria. E foram assim indo, camisa e capa, até as últimas. Maria então pôs a ponta do espinho entre os dedos e aproximando-se do marido, estendeu-lhe a mão. O príncipe Lagartão, sem maldar, apertou-lhe e soltou um grito. As sete capas ficaram transformadas em manto.

Imediatamente o quarto ficou claro como o dia e no meio estava um rapaz bonito, forte e benfeito, todo contente pelo fim do encanto. As sete capas ficaram transformadas em mantos lindos e as sete camisas em flores de laranjeira.

Maria e o marido acordaram o rei e a rainha, contando o caso e todo o reinado festejou muitos dias o fim da penitência, sendo o casal muito feliz.
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Nota sobre o Conto:

Aurélio M. Espinosa (Cuentos Populares Españoles, IIº, nº 131, 267) incluiu El Lagarto de Las Siete Camisas, ouvido em Cuenca. Difere o final. O lagarto despe as sete camisas e a mulher avisa a sogra. Esta queima as camisas e o príncipe fica mais encantado que nunca, desaparecendo para o Castillo de Irás y no Volverás. Se a esposa quiser vê-lo, deverá gastar, na caminhada, sete pares de sapatos de ferro e outros tantos gastará a criança que ia nascer. 

No conto espanhol a mulher é ajudada pela Mãe das Águias e recebeu nozes encantadas, presente da Virgem. Consegue ser reconhecida pelo marido comprando o direito de dormir no mesmo quarto, a troco de maravilhas que as nozes contêm. O príncipe está adormecido nas duas noites mas a vê na última e são muito felizes. 

É visivelmente, convergência de outros contos, comuns em Portugal e Brasil. A parte final do conto brasileiro parece-me mais pura. Acabar o encanto pela queima da pele encantada é o processo tradicional no fabulário europeu. No norte do Brasil assim termina o encantamento da Cobra Honorato, ou Cobra Norato, José Carvalho, O Matuto Cearense e o Caboclo do Pará (Belém, 1930, 21). 

Há os elementos C 750, D 621.1, D 700. Straparola (XIII Piacevoli Notte, noite-II, fábula-I) conta a “história” do Príncipe Porco, filho do rei d’Anglia. O Príncipe mata duas irmãs e casa com a terceira que o desencanta. A pele é rasgada, não podendo o moço, forte e bonito, voltar a usá-la.

Fonte> Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público.

domingo, 17 de março de 2024

Luís da Câmara Cascudo (O Veado de Plumas)

Era uma vez uma rainha que seria completamente feliz se tivesse filhos. Estava, numa ocasião, tão excitada que, não reparando que era justamente o pino do meio-dia, hora em que os anjos do Céu estão cantando, gritou:

– Meu Deus! Pelas horas que são! Dai-me um filho nem que seja com cara de bicho...

Nasceu-lhe um filho forte, bem feito, rosado, mas tendo em vez de rosto um focinho de veado.

Cresceu depressa, muito inteligente e agradável, possuindo uma sabedoria fora do comum e virtudes mágicas. O Rei e a Rainha traziam-no escondido para que ninguém soubesse que o herdeiro do trono tinha cara de veado.

Ao pôr-se rapaz, o príncipe pediu que o deixassem sair pelo mundo, procurando aventuras para esquecer seu físico. Os pais deram permissão e o príncipe viajou numa noite escura, para que não o vissem os súditos de seu pai.

Andou, andou, andou dias e dias, até que finalmente chegou a um reinado muito grande e bonito. Logo na entrada da cidade estava um letreiro convidando qualquer homem a construir uma ponte ligando as duas partes do reinado que eram divididas por um abismo sem fundo, obrigando aos moradores a uma volta de mais de cem léguas. Quem construísse a ponte seria pago com o seu peso em ouro e casaria com uma das três filhas do rei. Caso contrário sofreria a pena de morte.

Muita gente morrera tentando levantar a ponte. Quando o trabalho estava prestes a findar-se, erguia-se um pé de vento e desmanchava tudo.

O príncipe de cara de veado ofereceu-se e foi aceito. Ficou na beira do precipício, deitou-se e dormiu como se estivesse em casa. Passou quase todo o dia seguinte passeando e olhando para todos os lados como se não tivesse o que fazer. Da janela mais alta do palácio a princesa acompanhava os passos do Cara de Veado.

Ao anoitecer, o príncipe andou para lá e para cá, como se estivesse rezando. Parou, abriu os braços e apareceu uma nuvem de trabalhadores, em ambos os lados da barranca, iniciando imediatamente o serviço. Toda a noite houve o rumor de um formigueiro e ao romper do dia uma ponte de pedra ligava as duas margens do abismo, ponte larga, sólida, assombrando a todos.

O Rei ficou satisfeitíssimo. Cara de Veado recusou o ouro e esperou a noiva. As duas filhas do Rei nem admitiam a ideia de alguém sonhar em casá-las com uma criatura feia como o Cara de Veado. A mais moça declarou-se pronta a ser mulher do príncipe misterioso.

Foi um casamento feito depressa porque não tinha graça ver-se uma moça bonita casada com um camarada meio homem, meio bicho. Depois da cerimônia, o Rei perguntou ao genro onde ele queria morar.

– Na minha casa, real senhor!

E mostrou um palácio que era uma Babilônia, aparecido por encanto perto da mansão do rei.

A princesa casada vivia feliz, mas Cara de Veado não queria acompanhar a mulher para parte alguma, temendo envergonhá-la. As duas outras princesas casaram com dois príncipes elegantes e estavam orgulhosas dos maridos, fazendo inveja à irmã mais moça.

Sucedeu que, de tantos em tantos anos, o Rei mandava realizar umas cavalhadas muito concorridas. Vinha gente até do fim do mundo assistir. Todos os fidalgos corriam às justas, com lanças, tirando as argolinhas de ouro que eram dadas às damas, com muitos aplausos da multidão. Depois seguia-se um baile que durava a noite toda.

As duas princesas passavam os dias examinando vestidos e sonhando com as festas. A irmã caçula aparentava alegria, mas estava triste porque o marido não havia de correr às argolinhas com aquela cara.

Na manhã do dia das cavalhadas, Cara de Veado chamou a mulher e lhe disse:

– Aqui está o vestido que você deve ir à festa. Dê-me um banho, cate meus piolhos, perfume meu corpo e ficarei fechado num quarto até sua volta. Não quero que notem sua falta.

A princesa fez tudo quanto o marido pedira e, muito a contragosto, trancou-o num quarto, vestiu-se, tomou a carruagem e seguiu. Quando ela apareceu no tablado, todo mundo bateu palmas porque era a mais bonita de todas.

Começou a corrida. No meio dos cavaleiros apareceu um homem desconhecido, bonito, forte, bem armado e num cavalo que era um corisco. Correu todos os torneios e tirou todas as argolinhas. Ninguém o conhecia e quando os cavaleiros desfilaram junto do Rei para saudá-lo, o desconhecido baixou a lança de prata e deixou todas as argolinhas de ouro no colo da mulher do Cara de Veado.

O povo bateu tanta palma que a cidade estrondava.

A mulher do Cara de Veado quis sacudir fora as argolinhas e não fez para não afrontar a fidalguia, mas tomou a carruagem e voltou para casa. Encontrou o marido onde o deixara, perguntando se gostara das corridas. Ela respondeu contando o que sucedera.

– Você não gostaria mais de se ter casado com um cavaleiro como esse que lhe deu as argolinhas, do que comigo?

– Eu não troco meu marido por todos os cavaleiros desse mundo – respondeu a princesinha.

– Menos dois – disse o Cara de Veado.

A mulher não entendeu e o marido não lhe explicou.

No dia seguinte houve o mesmo caso. O cavaleiro desconhecido reapareceu, melhor vestido, montado e armado, e ganhou as argolinhas. Foi saudar o Rei e deitou-as todas no regaço da mulher do Cara de Veado. Depois, picou o cavalo nas esporas e sumiu-se.

A mulher voltou e contou o acontecido. Cara de Veado perguntou se ela não seria mais feliz com o desconhecido do que com ele.

– Eu não troco meu marido por todos os cavaleiros do mundo – foi a resposta.

– Menos dois – resmungou o Cara de Veado.

No terceiro, a mesma façanha. Cara de Veado ouviu a história e a resposta da esposa e disse:

– Menos dois...

E mandou que a mulher se vestisse para o baile. A mulher não queria ir, mas ele obrigou-a. A princesinha foi resolvida a não dançar porque só desejava dançar com o marido. No meio da festa apareceu o cavaleiro misterioso tão bem-vestido que causou espanto. Todas as damas e donzelas queriam dançar com ele, mas o cavaleiro foi até onde estava a mulher do Cara de Veado e pediu-lhe a honra de uma dança. Para não fazer desfeita, a moça aceitou e dançaram com muita graça várias vezes.

À meia-noite a princesinha saiu do baile e voltou para a casa. Encontrou Cara de Veado na mesma posição e houve a mesma troca de perguntas e respostas.

– Menos dois – repetiu.

Pela manhã a mulher deu a comida ao marido e foi administrar sua casa. Num quarto velho que havia no fim do palácio, viu um armário grande, empoeirado. Espanou-o e abriu-o. Qual não foi sua surpresa quando deparou todas as roupas que o cavaleiro misterioso usara nos três dias do torneio e no baile da véspera. Estava de boca aberta mirando aquelas maravilhas, quando ouviu um gemido. Voltou-se e viu o Cara de Veado.

– Você não ouviu eu dizer, por quatro vezes, “menos dois”? Pois cada vez que tinha uma prova de sua fidelidade, descontava dois anos no tempo do meu encanto. Esse quarto fechado não podia ser aberto porque fica fora do governo da casa. Sua curiosidade mudou meu destino e não posso mais ficar aqui.

A princesinha começou a chorar. Cara de Veado abriu uma janela enorme que havia e pediu que a mulher olhasse para o nascente e fosse dizendo o que avistasse. A mulher obedeceu.

– Estou vendo uma nuvem escura!

– Não é essa...

– Estou vendo uma nuvem cinzenta!

– Não é essa...

– Estou vendo uma nuvem branca!

– É esta! Adeus!

A nuvem branca foi crescendo, crescendo, encheu o quarto e no meio dela Cara de Veado pulou. A nuvem subiu, subiu, e a mulher avistou um grande Veado coberto de plumas, olhando-a do alto. E desapareceu.

Imediatamente o palácio desmanchou-se como se fosse feito de fumaça. A princesinha voltou para o palácio do rei seu Pai, chorando como uma órfã. O Rei recebeu-a muito bem, mas as duas irmãs riram muito da situação dela.

– Quem lhe obrigou a casar com bicho em vez de casar com gente? Vá procurar seu marido nos matos!...

A princesa deliberou procurar o marido pelo mundo. Muniu-se de um bordão e caminhou, caminhou, caminhou...

Num cair da noite chegou a uma casinha muito limpa e agradável, onde viu uma velha asseada e risonha que a recebeu com caridade. Deu-lhe de comer, de beber. A princesinha contou sua vida. A velha lhe disse:

– Minha filha, isto aqui é perigoso, mas, como você é protegida de Deus, eu vou tentar. Esconda-se por trás desse fogão porque a minha Filha quando chega, tudo fica gelado.

– Quem é sua filha?

– A Lua!

Quando a Lua chegou, a casinha ficou banhada por uma luz que parecia leite. A Lua estava de mau humor, farejando alto:

– Aqui me cheira a sangue real! Aqui me cheira a sangue real!

– Não é nada, minha filha. Jante e vamos conversar.

A Lua jantou e sossegou. A mãe perguntou:

– Minha filha, se por aqui chegasse uma peregrina, cansada e triste, que faria você?

– Eu, minha mãe? Tratá-la-ia bem...

A moça saiu de trás do fogão e a Lua recebeu-a bem, ouvindo-a contar sua história. Depois disse:

– Queria ajudar mas não sei onde fica o reinado do Veado de Plumas. Quem deve saber é minha madrinha, a Noite.

Sucedeu na casa da Noite o mesmo que houvera na casa da Lua. A Noite ignorava o reinado do Veado de Plumas e indicou a casa do Sol.

A princesinha seguiu seu caminho. O Sol, aquietado por sua mãe, conversou com a moça, mas desenganou-a quanto ao itinerário.

– Não sei. Quem deve saber são os Ventos.

Lá se foi a princesinha para a casa dos Ventos. A mãe dos Ventos alimentou-a, escondeu-a e aplacou a fúria dos filhos que chegaram uivando como uns desesperados. Depois do jantar, puseram-se às boas e entraram na conversa. O Vento Norte não sabia, nem o Vento Sul. O Vento Oeste já ouvira falar. O Vento Leste ficou importante:

– Sei onde é. Fica longe. É um reinado bonito, governado por um veado vestido de plumas muito alvas e brilhantes. Eu a levo amanhã.

Pela madrugada a mãe dos Ventos acordou a princesinha e lhe disse:

– Minha filha, quando você chegar lá, esconda-se na mata da lagoa do meio. Tem duas pedras de prata numa margem e aí todos os bichos encantados vêm beber água, diariamente. Fique de jeito que, assim que o Veado de Plumas baixar a cabeça na água, pule em cima, agarre-se nele e não se solte, haja o que houver. Deus a leve...

O Vento do Nascente arrebatou a moça e voou quase todo o dia. Ao tombar da noite deixou-a num caminho, perto da floresta. A moça viu a lagoa. Correu para lá e escondeu-se junto das duas pedras de prata.

Todos os animais vinham beber, aos grupos. Ao crepúsculo, ouviu-se um barulho de paus quebrados e galhos partidos e os bichos todos correram com medo. Apareceu então um Veado de Plumas enorme, majestoso como um monarca, e veio vindo, veio vindo, devagar, o focinho para o ar, desconfiado. Ia chegando para perto e, de repente, dava um trote e ficava longe. Depois voltava, aspirando forte, inquieto. Tanto se chegou, tanto se chegou que deu as costas para o lado da moça e pôs o focinho na água da lagoa. A moça, mais que depressa, saltou-lhe em cima, grudando-se no seu pescoço como se fosse um cadeado.

O Veado de Plumas deu mais de mil saltos, pulos, reviravoltas, bramando, atirando coices que escureciam, esfregando-se pelas árvores, correndo, mas a princesinha não o largou e mais e mais se segurava naquele turbilhão de pinotes e piruetas. Tanto o Veado saltou e se encostou nos espinhos que as plumas foram voando, uma a uma, e o couro se transformando em pele humana. Quando o veado cansou extenuado, e parou, estava mudado num príncipe bonito e forte, com a princesinha pendurada ao pescoço.

Foram juntos para o palácio que se erguia no centro da floresta. Entraram e foram recebidos pelos fidalgos que eram os animais desencantados. Um jantar magnífico apareceu e festejaram toda a noite o fim da penitência.

Pela manhã o Rei, sogro do Cara de Veado, foi olhar pela janela do seu palácio e viu um castelo muito mais imponente que o seu, ao lado. Mandou perguntar quem morava nele e, ao saber que voltara sua filha e o marido, correu para abraçá-los, chorando de alegria.

Houve festejos públicos três dias.

As duas princesas ficaram tão furiosas com a vitória da irmã que se precipitaram da torre, espatifando-se nos lajedos da calçada.

A rainha-mãe de Cara de Veado, que estivera todo esse tempo muda, recobrou a fala, sinal de que Deus lhe perdoara.
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OBSERVAÇÕES SOBRE O CONTO

Dividindo-o, é possível reconhecer as procedências, nos fabulários europeus, especialmente da península ibérica. Poder-se-ia chamar a história Cara de Veado, mas as narradoras teimavam em dizê-la Veado de Plumas. Os príncipes encantados que nasceram com focinho de cão, de macaco, de burro foram muitos. A atuação do Cara de Veado nas corridas de argolinhas já o filia a outro ciclo, assim como a presença no baile, tentando seduzir a própria esposa. No conto Bicão, que Silva Campos recolheu na Bahia (nº LXVIII), há o mesmo diálogo entre a moça e o príncipe encantado, mandando este que ela diga se vê as nuvens. A moça anuncia as nuvens escura, cinzenta e branca, que o leva. A viagem da esposa, peregrinando pela casa da Lua, da Noite, do Sol e dos Ventos, procurando saber onde ficava o reinado do Veado de Plumas, é um dos pormenores mais tradicionais na Europa. Ocorre, entre alguns contos, no Le Pays des Margriettes (Jean Fleurys, Littérature Orale de la Basse-Normandie, Paris, 1883), no A Paraboinha de Ouro (Teófilo Braga, nº 31), El Castillo de Oropé (Aurélio M. Espinosa, nº 128, Soria, Espanha), etc. O final exótico, da luta com o Veado de Plumas, não recordo haver encontrado símile.

A viagem da esposa é um dos motivos mais conhecidos dos contos europeus, ao redor do tema da “Terra a leste do Sol e a oeste da Lua”, os ventos (o vento Sul ou o Norte) levam a moça para o esposo, seguindo-se pormenores sempre diversos. Os contos dos irmãos Grimm, de George Webbe Dasent, a coleção escocesa de Campbell registram variantes.

Fonte> Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público.

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Luís da Câmara Cascudo (Chico Rei)

(Folclore do sudeste)

UM REI africano foi derrotado em combate e feito prisioneiro. O vencedor destruiu aldeias, plantações e celeiros do vencido. Reuniu a Rainha e os príncipes-meninos, sacudiu-os na estrada, como um rebanho sem nome, vendendo-os a todos como escravos, para o Brasil.

Na travessia do Atlântico, o Rei negro perdeu um filho e viu morrerem seus melhores generais e soldados fiéis, de fome, de frio, de maus-tratos. Impassível na humilhação, majestoso na derrocada, o soberano, riscado de chicotadas, faminto e doente, pisou as areias do Novo Mundo, como o último dos homens.

Foi, dias e dias, exposto no mercado dos escravos, marcado com tinta branca, comendo uma vez por dia.

Um proprietário de minas de ouro, vindo ao Rio de Janeiro para adquirir reforço vivo para o trabalho esgotante das lavras, escolheu o Rei, como quem simpatiza como um forte animal que o cansaço definhou.

Apalpou-lhe os braços, os ombros, fê-lo abrir a boca, mastigar, tossir e andar, e comprou-o, num lote compreendendo mulheres e homens. Marcharam a pé para as Minas Gerais, ao sol, à chuva, num tropel inominado e melancólico de condenados sem crime.

O Rei, de calças de algodão, busto nu, abria a marcha, como se dirigisse suas tropas, ao alcance das cubatas, cercado de honrarias. 

Ficaram todos em Vila Rica.

O Rei negro fora batizado com o nome de Francisco. Os negros escravos, em voz baixa, juntavam os dois títulos supremos do ex- soba valoroso. Diziam-lhe o nome cristão e o predicamento real.

O escravo era Chico Rei.

Silencioso, tenaz, obstinado, o negro revolvia terra e balançava a bateia com a regularidade de uma máquina sem repouso e sem pausa. Feitor e amo distinguiam-no pela sua sobriedade, esforço invulgar e natural compostura de modos e de ações.

Derredor de sua figura agrupavam-se os escravos que tinham sido guerreiros valentes, curvados, teimosos, insensíveis ao tempo, multiplicando o trabalho.

Um dia, Chico Rei apareceu ao amo com o preço de sua mulher em pepitas de ouro. O fazendeiro aceitou o prêmio e assinou a carta de alforria da negra, que fora uma rainha.

Mais algum tempo, Chico Rei era livre. Ele e a mulher, ajudados pela fidelidade de uma Corte que a desgraça não apagara em valor, economizavam, noite e dia, o preço da liberdade dos filhos e dos vassalos.

Ano a ano Chico Rei retirava da massa cativa homens e mulheres, restituindo ao trabalho livre seus velhos companheiros de armas e de caçadas. Uma a um, reconstruía-se o reino perdido, agora nas terras americanas.

Comprou ele uma lata de terra na Encardideira. A terra era uma mina de ouro. Chico Rei ficou rico, e o ouro ampliou os limites do seu domínio que era a reunião de homens livres, presos por um liame de veneração e de esperança.

Rei de manto e coroa, aclamado nas festas de Nossa Senhora do Rosário, Chico Rei era realmente um Soberano, com o poder de um direito que fora conquistado com lágrimas, sofrimentos e martírios.

Nenhuma autoridade era superior à sua voz, voz de Rei no mando, sem esquecer os anos igualitários no eito da escravidão. Negros e negras viviam com conforto e tinham alegrias trovejantes nos bailes populares, nos batuques que se estiravam pelas noites, no círculo sem-fim das danças-ginásticas e coletivas.

No dia 6 de janeiro, da Encardideira, vinha aquele Reino da África, vistoso, empenachado, rutilante de pedrarias, bailando pelas calçadas de Vila Rica, a Outro Preto, aristocrática, povoada de igrejas e de palácios, em louvor da Padroeira dos Escravos.

A Rainha, suas filhas e damas de honra traziam a carapinha empoada de ouro. Depois da Missa, da Procissão, dos bailados públicos, antes que voltassem ao Reino que se erguia, disciplinado e tranquilo, na Encardideira, Rainha e vassalas banhavam a cabeça na pia de pedra que há no Alto da Cruz. No fundo da taça, brilhando na água trêmula, ficava todo o ouro que enfeitara os penteados.

Novos escravos iam sair do cativeiro, resgatados por aquela dádiva singular. Por isso ninguém esquece, nas terras livres das Minas Gerais, a fisionomia de Chico Rei, o negro soberano, vencedor do destino, fundador de tronos, pela persistência, serenidade e confiança nos recursos eternos do trabalho.

Fonte> Luís da Câmara Cascudo. Lendas brasileiras para jovens. Projeto Livro para Todos. 
Disponível em Domínio Público. 

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Sílvio Romero (O Papagaio do Limo Verde)

(Folclore do Sergipe)
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Uma vez havia, num lugar retirado duma cidade, uma velha que tinha três filhas: uma de um só olho, outra de dois, e outra de três. Perto da casa da velha havia uma outra casa, onde morava uma moça muito bonita. Por esta moça enamorou-se o príncipe real do reino do Limo Verde, que a visitava todas as noites, e lhe estava dando muitas riquezas. 

A velha vizinha começou a desconfiar daquelas riquezas e, uma ou outra, ia à casa da moça para ver se pilhava alguma coisa, e nada. . .

Uma vez sua filha mais velha, que tinha três olhos, lhe disse: “Minha mãe, me deixe ir passar a noite na casa da vizinha que eu descubro o segredo.” 

A velha concordou, e a moça dos três olhos foi. Chegando lá disfarçou: “Ó vizinha, há muito tempo que não lhe vejo; vim hoje passar a noite com você.” 

— “Pois não, vizinha, a casa está às ordens!”, respondeu a bela namorada. 

Quando foi a hora de irem dormir, a dona da casa deu à sua companheira, em lugar de chá, uma dormideira. A moça dos três olhos ferrou no sono como uma pedra; roncou toda a noite e não viu nada.

O príncipe real do Limo Verde veio, como de costume, encantado num grande e lindo papagaio; foi chegando e batendo com as asas na janela do quarto; a namorada abriu-a, e ele foi dizendo: “Dai-me sangue, dai-me leite, ou dai-me água!”

A moça apresentou-lhe um banho numa grande bacia; o papagaio caiu dentro da água a se arrufar e bater com as asas; cada pingo d’água que lhe caía das penas era um diamante, e assim é que a moça ia ficando cada vez mais rica. O papagaio, no banho, desencantou-se num lindo príncipe, que passou a noite com a sua namorada. De madrugadinha tornou a virar em papagaio, bateu asas e foi-se embora. 

A mulher dos três olhos não viu nada; voltou para casa e disse à mãe que tudo eram boatos falsos, e que na casa da vizinha não havia novidade.

Daí a tempos a irmã de dois olhos se ofereceu para ir passar também uma noite na casa da vizinha; foi e chupou da dormideira, pegou no sono, e veio o papagaio, e ela nada viu. Voltou para casa sem descobrir o segredo. 

Passados alguns dias, a moça de um só olho se ofereceu à mãe, dizendo: “Agora, minha mãe, minhas irmãs já foram, e eu quero também ir descobrir o segredo.” 

As irmãs caçoaram muito dela: “Quando nós, que temos mais olhos do que tu, não vimos nada, quanto mais tu, que tens um só!. . . ” 

Enfim a velha consentiu, e a sua filha de um só olho foi. Chegando lá, fez muita festa à rica vizinha, e, quando foi a hora da ceia, fingiu que bebia a dormideira, e derramou-a no seio. Deitou-se e fingiu que estava dormindo.

Na alta noite chegou o grande e bonito papagaio, batendo com as asas na janela; a dona da casa abriu, e ele se desencantou num moço muito formoso, e, como das outras vezes, dentro da bacia do banho ficou muito ouro e muitos brilhantes que a namorada guardou. 

A sujeitinha de um olho só via tudo caladinha. No outro dia bem cedinho largou-se para casa e contou tudo à mãe. No dia seguinte a velha foi quem veio passar a noite na casa da moça. Quando entrou no quarto de dormir disfarçou e colocou umas navalhas bem afiadas na janela por onde tinha de entrar o papagaio. Ele, quando veio, se cortou todo nas navalhas e disse para a namorada: “Ah, Maria ingrata! Nunca mais me verás; só se mandares fazer uma roupa toda de bronze e andares até ela se acabar. . . ” Bateu asas, e voou. 

A moça, que não esperava por aquilo, ficou muito desgostosa, e logo compreendeu a razão das visitas daquela gente na sua casa. Mandou fazer uma roupa toda de bronze, e com chapéu, sapatos e bastão também de bronze, e largou-se pelo mundo a procurar o reino do Limo Verde. Depois de muito andar, sem ninguém lhe dar notícia, foi ter à casa do pai da Lua.

Lá chegando disse a que ia. O pai da Lua a recebeu muito bem, lhe disse que só sua filha lhe poderia dar notícia de tal terra, que ele não sabia; mas que ela, quando vinha para casa, era muito aborrecida e zangada com todos, que portanto a peregrina se escondesse bem escondida. Assim foi. 

Quando ela chegou, veio muito enjoada, dizendo: “Aqui me fede a sangue real!” 

O pai a enganou, dizendo: “Não, minha filha, aqui não  veio ninguém, foi um frango que eu matei para nós cearmos.”

A Lua tomou banho e se desencantou numa princesa muito formosa e foi para a mesa cear. Aí o pai disse: “Minha filha, se aqui viesse uma peregrina indagar por uma terra, tu o que fazias?” 

— “Mandava entrar e tratava muito bem.” 

A moça apareceu e disse a sua história. A Lua lhe respondeu que andara muitas terras; mas que daquela nunca tinha ouvido nem falar; mas o Sol havia de saber. A moça se despediu, e, na saída, a Lua lhe deu de presente uma almofadinha de fazer rendas toda de ouro, com os bilros de ouro, alfinetes de ouro e etc., tudo de ouro. A moça seguiu. 

Depois de muito andar, e estando já com os vestidos de bronze quase acabados, chegou à casa da mãe do Sol. Entrou e disse ao que ia. A mãe do Sol a tratou muito bem; disse que não sabia onde era aquela terra; mas seu filho havia de saber, porque andava muito; o que tinha era que quando vinha para casa era muito zangado, queimando tudo, e que ela se escondesse bem.

Assim foi. Quando o Sol veio, foi aquele quenturão de acabar tudo, e dizendo: “Aqui me fede a sangue real, aqui me fede a sangue real!” 

A mãe o enganou dizendo que tinha sido uma galinha que tinha preparado para o jantar. O Sol tomou seu banho e se desencantou num belo príncipe. Na mesa a mãe lhe disse: “Meu filho, se aqui viesse uma peregrina, perguntando por uma terra, tu o que fazias?” 

— “Mandava entrar e tratava muito bem.” 

A moça apareceu e disse o que queria. O Sol lhe respondeu que nunca tinha ouvido falar em semelhante terra, que só o Vento Grande poderia saber dela, porque andava mais do que ele. 

A moça se despediu, e, na saída, o Sol lhe deu uma galinha de ouro, com uma ninhada de pintos todos de ouro, e vivos e andando. A moça seguiu viagem e foi ter, depois de muito trabalho, à casa do pai do Vento Grande. 

Lá chegando disse ao que ia, e o velho pai do Vento Grande respondeu que não sabia; mas que seu filho havia de saber, o que tinha era que, quando vinha, era como doido, botando tudo abaixo, e que a moça se amarrasse bem num esteio da casa. 

Assim ela fez. O Vento Grande quando veio chegando era aquele zoadão, que fazia medo, botando muros e telhados abaixo, e dizendo: “Aqui me fede a sangue real!” 

— “Não é nada, meu filho, foi um capão para nossa ceia.” 

Assim o velho foi enganando até que ele tomou o banho e se desencantou num moço muito belo. Na mesa o pai lhe disse: “Se aqui viesse uma peregrina, tu o que fazias ?” 

— “Mandava entrar e tratava bem.” 

A moça apareceu e disse o que queria. O Vento Grande respondeu: “Oxente! Ainda agora passei por lá; é perto. Monte-se amanhã na minha cacunda, e, onde avistar um pé de árvore muito grande e copudo na frente de um palácio muito rico, agarre-se nos galhos, deixe-me passar que é aí.” 

No dia seguinte, quando o Vento Grande partiu, a moça montou-lhe na cacunda e seguiram. Depois de muito voar por muitas terras e reinos, avistou o pé de árvore na frente dum grande palácio; o Vento logo de longe foi dizendo: “É ali; agarre-se nos galhos, senão eu a levo para o fim do mundo.” 

Assim a moça fez; agarrou-se num galho da árvore, e o Vento seguiu. Ela desceu e pôs-se em baixo da árvore, imaginando um meio de entrar no palácio para ver o príncipe, ou ter notícias dele. Daqui a pouco chegaram três rolinhas e se puseram a conversar nos galhos da árvore. Disse uma delas: “Manas, não sabem? O príncipe real do Limo Verde está muito mal; talvez não escape.” Disse outra: “E o que será bom para ele?” Respondeu a terceira: “Ali não há mais remédio; as feridas que ele recebeu na guerra são três e não saram; só se pegarem a nós três, nos tirarem os coraçõezinhos, torrarem e moerem, e deitarem o pó nas feridas.” 

A moça ouviu toda a conversa das rolas; armou um laço e pegou todas três; matou-as, tirou os corações, torrou-os e fez um pozinho e guardou. 

Lá no reino tinha-se espalhado a notícia de que o príncipe estava à morte de umas feridas recebidas numas guerras. Não achando um meio de entrar no palácio, a peregrina tirou para fora a almofada de ouro, e se pôs a fazer renda. Veio passando uma criada do palácio, viu e foi dizer à rainha, mãe do príncipe: “Não sabe, rainha, minha senhora, ali fora está uma peregrina com uma almofada de ouro, com birros de ouro, fazendo renda também de ouro, coisa mais linda que dar-se pode. Só vosmecê possuindo. . . ”

A rainha mandou a criada perguntar à peregrina quanto queria pela almofada. A moça respondeu: “Para ela não é nada; basta me deixar dormir uma noite no quarto do príncipe que está doente.” 

A criada foi dar a resposta; mas a rainha ficou muito insultada e não quis. Mas a criada lhe disse: “O que tem, rainha minha senhora? O príncipe meu senhor está tão mal que nem conhece mais ninguém; que mal faz que aquela tola durma lá no quarto no chão?” 

A rainha concordou; foi a almofada de ouro para palácio, e a peregrina dormiu no quarto do doente. Logo nesta primeira noite ela lavou bem as feridas que o príncipe tinha no peito, e botou nelas o pó dos corações das rolinhas; mas o príncipe ainda não deu por de si, e não a conheceu. 

No dia seguinte a moça foi outra vez para debaixo da árvore, e puxou para fora a galinha de ouro com os pintinhos, que se puseram a andar. A criada veio passando e viu.

Correu logo para palácio e disse: “Ó rainha minha senhora, a peregrina está com uma galinha de ouro com uma ninhada de pintos, tudo vivinho e andando. . . Que coisa bonita! Só rainha, minha senhora, possuindo. . . ” 

A rainha mandou propor negócio. A moça disse que não era nada; bastava deixar ela dormir mais duas noites no quarto do príncipe. A rainha não queria; mas a criada arranjou tudo e a moça foi dormir no quarto do príncipe, e deu a galinha e os pintos de ouro. 

Na segunda noite que ela dormiu em palácio, a moça continuou o tratamento, e aí o príncipe foi melhorando e já a ia conhecendo. Na terceira noite acabou o curativo e o príncipe ficou bom. Depois que ficou de todo com saúde, saiu do quarto e apresentou à rainha e ao rei a peregrina como sua noiva, e assim se desmanchou o casamento que já lhe tinham arranjado com uma princesa vizinha. 

Houve muita festa na cidade e no palácio. . . E eu (isto diz por sua conta o narrador popular) trouxe de lá uma panelinha de doce para lhe dar (referindo-se à pessoa a quem contou a história), mas a lama era tanta que ali na ladeira dos Quiabos escorreguei e caí e lá foi-se o doce.

Entrou por uma porta,
Saiu por um pé de pato;
Manda o rei, meu senhor,
Que me conte quatro.

Fonte: Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Publicado originalmente em 1954. Disponível em Domínio Público.

domingo, 5 de novembro de 2023

Sílvio Romero (A moura torta)

(Folclore do Pernambuco)

Uma vez havia um pai que tinha três filhos, e, não tendo outra coisa que lhes dar, deu a cada um uma melancia, quando eles quiseram sair de casa para ganhar a sua vida. O pai lhes tinha recomendado que não abrissem as frutas senão em lugar onde houvesse água. 

O mais velho dos moços quando foi ver  o que dava a sua sina, estando ainda perto da casa, não se conteve e abriu a sua melancia. Pulou de dentro uma moça muito bonita dizendo: “Dai-me água, ou dai-me leite.” 

O rapaz não achava nem uma coisa nem outra, a moça caiu para trás e morreu.

O irmão do meio, quando chegou a sua vez, se achando não muito longe de casa, abriu também a sua melancia, e saiu de dentro uma moça ainda mais bonita do que a outra; pediu água ou leite, e o rapaz não achando nem uma coisa nem outra, ela caiu para traz e morreu.

Quando o caçula partiu para ganhar a sua vida foi mais esperto e só abriu a sua melancia perto de uma fonte. No abri-la pulou de dentro uma moça ainda mais bonita do que as duas primeiras, e foi dizendo: “Quero água ou leite.” 

O moço foi à fonte, trouxe água e ela bebeu a se fartar. Mas a moça estava nua, e então o rapaz disse a ela que subisse num pé de árvore que havia ali perto da fonte, enquanto ele ia buscar a roupa para ela. A moça subiu e se escondeu nas ramagens. 

Veio uma moura torta buscar água, e, vendo na água o retrato de uma moça tão bonita, pensou que fosse o seu e pôs-se a dizer:

“Que desaforo! Pois eu, sendo uma moça tão bonita, andar carregando água!... ”

Atirou com o pote no chão e arrebentou-o. Chegando em casa sem água e nem pote, levou um repelão muito forte, e a senhora mandou-a buscar água outra vez; mas na fonte fez o mesmo, e quebrou o outro pote. Terceira vez fez o mesmo, e a moça não se podendo conter deu uma gargalhada.

A moura torta, espantada, olhou para cima e disse: “Ah! E você, minha netinha!... Deixe eu lhe catar um piolho.” 

E foi logo trepando pela árvore arriba, e foi catar a cabeça da moça. Fincou-lhe um alfinete, e a moça virou numa pombinha e voou! A moura torta então ficou no lugar dela. 

O moço, quando chegou, achou aquela mudança tamanha e estranhou; mas a moura torta lhe disse: “O que quer? Foi o sol que me queimou!... Você custou tanto a vir me buscar!”

Partiram para o palácio, aonde se casou. A pombinha então costumava voar por perto do palácio, e se punha no jardim a dizer: “Jardineiro, jardineiro, como vai o rei, meu senhor, com a sua moura torta?” E fugia. 

Até que o jardineiro contou ao rei, que, meio desconfiado, mandou armar um laço de diamante para prendê-la, mas a pombinha não caiu. Mandou armar um de ouro, e nada; um de prata, e nada; afinal um de visco, e ela caiu. 

Foram levá-la que muito a apreciou. Passados tempos, a moura torta fingiu-se pejada e pôs matos abaixo para comer a pombinha. No dia em que deviam botá-la na panela, o rei, com pena, se pôs a catá-la, e encontrou-lhe aquele carocinho na cabecinha, e pensando ser uma pulga, foi puxando e saiu o alfinete e pulou lá aquela moça linda como os amores.

O rei conheceu a sua bela princesa. Casaram-se, e a moura torta morreu amarrada nos rabos de dois burros bravos, lascada pelo meio.

Fonte: Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Publicado originalmente em 1954. Disponível em Domínio Público.

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Contos do Folclore Brasileiro (A rainha que saiu do mar)

(Folclore do Rio de Janeiro)
HOUVE UM REI QUE DESEJAVA se casar com a moça mais bonita que houvesse no seu reino. Já se tinham corrido todas as casas, e chamado todos os pais de família para apresentarem suas filhas, e nenhuma tinha agradado ao rei.

Fazia oito dias que tinha assentado praça um recruta abobado num batalhão, e neste dia tinham de ser apresentadas as filhas de um lavrador, que eram as únicas moças que o rei ainda não tinha visto, e neste dia tinham de ir à missa os batalhões.

Logo que entrou na igreja o batalhão em que tinha assentado praça o tal abobado, pôs-se este a chorar, o que vendo o comandante do batalhão lhe perguntou o que tinha. Respondeu ele que “nada sofria, mas que tendo visto aquela imagem (apontando para uma imagem muito formosa que havia na igreja) tinha ficado com saudades de sua irmã, que muito se parecia com aquela santa.”

Ficaram todos duvidosos e zombando do pobre soldado; mas chegando aquilo aos ouvidos do rei, este mandou chamar o rapaz e lhe indagou da verdade, ao que ele respondeu ser exato ter uma irmã muito formosa e parecida com a imagem que havia na igreja.

Perguntando o rei onde morava ela, respondeu: “Nas gargantas do Monte Escarpado, a dez mil léguas por terra e cinco mil por mar.”

O rei mandou logo preparar uma esquadra e enviar uma delegação ao pai daquela moça, pedindo-a em casamento. O recruta também foi com a comissão.

Logo que chegaram ao Monte Escarpado avistaram a moça na janela e ficaram todos embasbacados ao ver tanta beleza junta.

O almirante entregou ao pai da moça a carta do rei, e o velho enviou a sua filha. Chegando a esquadra na volta do Monte Escarpado, o mar era muito forte, e a gente saltou para terra, indo com a moça ter à casa de uma velha, que ali morava.

A velha, que era um desmancha prazeres, indagou para onde iam e de onde vinham, e sabendo de tudo convidou a moça para ir dar um passeio pela horta e lá atirou ela dentro de um poço.

Ora já sendo de noite, quando tiveram os da esquadra de embarcar não deram por falta da moça, porque a velha pôs em lugar dela a sua filha, que era um monstro de feia.

Quando os  navios largaram e se fizeram ao largo, a velha foi ao poço, tirou a moça para fora, cortou-lhe os cabelos, furou-lhe os olhos, e botou-a num caixão e atirou no mar.

Foi o caixão parar ao reino primeiro que os navios. Um pescador o achou e levou para casa, e julgando ter dinheiro, pôs-se a gabar-se, dizendo que tinha dinheiro para combater com o rei. Foi chamado o pescador e confessou ter achado um caixão cheio de dinheiro, foi um guarda do palácio para examinar o caso. Aberto o caixão deram com a moça dentro, ficando todos penalizados com aquilo por verem uma moça tão bonita com os olhos furados e os cabelos cortados.

Voltou o guarda para palácio, conduzindo a moça. Quando lá chegou, já tinha também chegado a comissão com a filha da velha. O almirante, muito triste, disse ao rei: “Não fui como vim; fui alegre e volto triste; mas me sujeito à pena que rei, meu senhor, me quiser dar.”

O rei respondeu: “Nada tenho a fazer, senão casar-me com esta feia mulher, que me chegou.” Houve o casamento, mas o rei se conservou sempre triste e vestido de luto.

Apresentando-se-lhe a moça dos olhos furados, ainda mais triste ficou o rei. Sendo ela reconhecida por seu irmão e pelos da comissão, mandou o rei buscar a velha em cuja casa estiveram de passagem.

A velha negou tudo e até desconheceu a sua própria filha. O rei reconhecendo que os traços da velha eram os mesmos da moça com quem se tinha casado, despediu esta e mandou furar os olhos da velha e cortar-lhe os cabelos.

Logo que isto fizeram, os olhos da moça, que foi achada no mar, tornaram a ficar perfeitos e cresceram-lhe os cabelos. Houve então o novo casamento com a rainha, que veio do mar, sendo nele jogada a velha.


Fonte: Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Coleção Acervo Brasileiro vol. 3. Jundiaí/SP: Cadernos do Mundo Inteiro, 2018. Publicado originalmente em 1954. Disponível em Domínio Público.

sábado, 23 de setembro de 2023

Sílvio Romero (Uma das de Pedro Malasartes)

(Folclore do Sergipe)


UM DIA, PEDRO MALASARTES foi ter com o rei e lhe pediu três botijas de azeite, prometendo-lhe levar em troca três mulatas moças e bonitas. O rei aceitou o negócio. Pedro saiu e foi ter à casa de uma velha ali pela noitinha; pediu-lhe um rancho, e que lhe botasse as botijas no poleiro das galinhas.

A velha concordou com tudo. Alta noite, Pedro Malasartes levantou-se, foi de pontinha de pé ao poleiro, quebrou as botijas, derramou o azeite, lambuzando as galinhas. De manhã muito cedo Malasartes acordou a velha, e pediu-lhe as botijas de azeite. A velha foi buscá-las, e, achando-as quebradas, disse:

– “Pedro, as galinhas quebraram as botijas e derramaram o azeite.”

– “Não quero saber disso, disse Pedro; quero para aqui meu azeite, senão quero três galinhas.”

A velha ficou com medo, deu-lhe as três galinhas. Malasartes partiu e foi à noite à casa de outra velha; pediu rancho e que agasalhasse aquelas três galinhas entre os perus.

A velha, como tola, consentiu. Alta noite, Pedro se levantou, foi ao quintal, matou as três galinhas, besuntando de sangue os perus. No dia seguinte, bem cedo, acordou a velha, pedindo as suas galinhas, porque queria seguir viagem. A velha foi buscá-las e encontrou o destroço; voltou aflita, contando a Malasartes.

Ele fez um grande barulho até levar seis perus em troca das galinhas.

Na noite seguinte, foi ter à casa de um homem que tinha um chiqueiro de ovelhas, e pediu-lhe para passar a noite em sua casa e que lhe agasalhasse aqueles perus lá no chiqueiro das ovelhas, porque bicho com bicho se acomodavam bem. O homem assim fez. Tarde da noite, Pedro foi ao lugar onde estavam os perus, e matou-os a todos labreando de sangue as ovelhas. Pela manhã levantou-se bem cedo e pediu ao dono da casa os seus perus. O homem indo-os buscar achou-os mortos, e voltou muito aflito, dizendo:

– “Pedro, não sabe? As ovelhas mataram os seus perus.”

Ouvindo isto, Malasartes fez um grande espalhafato, gritando que o homem tinha morto os perus do rei e recebeu seis ovelhas pelos perus.

Largou-se, indo dormir na casa de um homem que tinha um curral de bois. Aí ele fez as mesmas artimanhas, até pegar seis bois pelas seis ovelhas. Mais adiante, ele encontrou uns vendilhões de ouro e trocou os bois por ouro. Mais adiante encontrou uns homens que iam carregando uma rede com um defunto. Pedro perguntou quem era, disseram-lhe que era uma moça. Ele pediu para ir enterrá-la e eles deram. Logo que os homens se ausentaram, ele tirou a moça da rede, encheu-a de bastante ouro e enfeites, e foi ter com ela nas costas à casa de um homem rico que havia ali perto. Pediu rancho, e disse às filhas do tal homem que aquela era a filha do rei que estava doente, e ele andava passeando com ela, e pediu que a fossem deitar.

Foram levar a moça para uma camarinha indo Malasartes com ela, dizendo que só com ele ela se acomodava. Deitou a moça defunta na cama e retirou-se, dizendo às donas da casa: “Ela custa muito a dormir, ainda chora como se fosse uma criança, quando chorar metam-lhe a correia.” Alta noite, Pedro foi e se escondeu debaixo da cama onde estava a morta e pôs-se a chorar como menino. As moças da casa, supondo ser a filha do rei, deram-lhe muito até ela se calar, que foi quando Pedro se calou. Depois ele escapuliu e foi para seu quarto.

De manhã ele pediu a moça, que queria ir-se embora. Foram ver a filha do rei, e nada de a poderem acordar. Afinal conheceram que estava morta, e vieram dar parte a Malasartes. Ele pôs as mãos na cabeça, dizendo:

– “Estou perdido; vou para a forca; me mataram a filha do rei!. . . ”

Os donos da casa ficaram muito aflitos, e começaram a oferecer coisas pela moça, e Pedro sem querer aceitar nada, até que ele mesmo exigiu três mulatas das mais moças e bonitas. O homem rico as deu, e Pedro disse que dava uma desculpa ao rei sobre a morte de sua filha, e lhe dava de presente as três mulatas, para o rei não se agastar muito.

Malasartes largou-se e foi logo para palácio, onde entregou ao rei as três mulatas com este dito:

– “Eu não disse a Vossa Majestade que lhe dava três mulatas pelas três botijas de azeite? Aí estão elas.”

O rei ficou muito admirado.

Entrou por uma porta,
Saiu por outra;
Manda o rei, meu senhor,
Que me conte outra.


Fonte: Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Publicado originalmente em 1954. Disponível em Domínio Público. 

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

Sílvio Romero (A Madrasta)

(Folclore do Sergipe)


Havia um homem viúvo que tinha duas filhas pequenas, e casou-se pela segunda vez. A mulher era muito má para as meninas; mandava-as como escravas fazer todo o serviço e dava-lhes muito.

Perto de casa havia uma figueira que estava dando figos, e a madrasta mandava as enteadas cuidar dos figos por causa dos passarinhos.

Ali passavam as crianças dias inteiros, espantando-os e cantando:

“Xô, xô, passarinho,
Aí não toques teu biquinho,
Vai-te embora pra teu ninho…”


Quando acontecia aparecer qualquer figo picado, a madrasta castigava as meninas. Assim foram passando sempre maltratadas.

Quando uma vez, o pai das meninas fez uma viagem, a mulher enterrou-as vivas. Quando o homem chegou a mulher lhe disse que as suas filhas tinham caído doentes e lhe tinham dado grande trabalho, e tomado muitas mézinhas (remédio caseiro), mas tinham morrido. O pai ficou muito desgostoso.

Aconteceu que nas covas das duas meninas, e dos cabelos delas, nasceu um capinzal muito verde e bonito, e quando dava o vento o capinzal dizia:

“Xô, xô, passarinho,
Aí não toques teu biquinho,
Vai-te embora pra teu ninho…”

Andando o capineiro da casa a cortar capim para os cavalos, deu com aquele capinzal muito bonito, mas teve medo de o cortar, por ouvir aquelas palavras. Correndo foi contar ao senhor.

O senhor não o quis acreditar, e mandou-o cortar aquele mesmo capim, porque estava muito grande e verde. O capineiro foi cortar o capim, e quando meteu a foice ouviu aquela voz sair de baixo da terra e cantando:

«Capineiro de meu pai,
Não me cortes os cabelos;
Minha mãe me penteava,
Minha madrasta me enterrou
Pelo figo da figueira
Que o passarinho picou.»


O capineiro, ouvindo isto, correu para casa assombrado, e foi contar ao senhor que o não quis acreditar, até que o negro insistiu tanto que ele mesmo foi, e mandando o negro meter a foice, também ouviu a cantiga do fundo da terra.

Então mandou cavar naquele lugar e encontrou as suas duas filhas ainda vivas por milagre de Nossa Senhora, que era madrinha delas.

Quando chegaram em casa acharam a mulher, morta por castigo.

Fonte:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Lisboa/Portugal: Nova Livraria Internacional, 1885.
Disponível em Domínio Público.
Atualização do português por J.Feldman

sábado, 22 de julho de 2023

Sílvio Romero (O Preguiçoso)

(Folclore do Pernambuco)

Havia um homem muito preguiçoso que nada fazia. 

Um dia veio um velho e pediu-lhe rancho em casa; o velho cansou-se de lhe bater na porta e nada do homem se animar a levantar-se para abrir a porta. Ao final, desenganado, o velho pediu à dona da casa que lhe guardasse ali uma toalha que levava, mas que a não abrisse. 

O velho seguiu seu caminho. A mulher guardou a toalha, mas teve curiosidade e abriu-a. Apareceu logo uma grande mesa com tudo quanto é de bom e melhor de que a mulher se regalou. Ela escondeu a toalha, e, quando o velho veio procurar a toalha, a mulher deu-lhe outra em vez da sua. 

Chegando o velho em sua casa, mandou a toalha se estender e a toalha quieta. O velho calou-se e no outro dia foi à casa do preguiçoso e deixou lá ficar uma cabra pedindo-lhe que a guardassem até a sua volta, mas que tivessem o cuidado de não lhe dizer: «Berra, cabra!» 

O velho retirou-se. 

A mulher foi e disse: «Ora, isto é mistério; aqui temos novidade! Berra, cabra!» 

Entrou a cabra a berrar e começou a cair muito dinheiro de ouro e prata da boca da cabra. Logo que a mulher viu isto, trocou a cabra por outra, e quando o velho veio saiu enganado. 

Chegando em casa mandou a cabra berrar, e nada, e nada! Percebeu que estava enganado e calou-se. 

Chegou por fim um trabalhador do velho e lhe pediu ao amo o seu jornal. Respondeu o velho: «Meu filho, eu não tenho, mais dinheiro; mas dou-te um porrete, que aqui tenho, que te há de fazer feliz.»

O rapaz recebeu o porrete e seguiu. Foi ter justamente na casa do preguiçoso. Pediu rancho e deu o porrete para guardar. 

A mulher trocou o porrete por outro, e no dia seguinte o moço disse: «Dê-me o meu porrete, que me quero ir.» 

porrete entrou a dar bordoadas de criar bichos no marido e na mulher. Puseram-se eles a gritar, e o rapaz ficou admirado de ver aquela virtude do porrete.

A mulher aflita gritou: «Meu senhor, mande seu porrete parar, que eu lhe dou o que me deu o velho para guardar. 

O moço disse: «Para, porrete, e tudo pra cá!» 

porrete parou, e a mulher entregou ao rapaz a toalha e a cabra. O moço tudo recebeu e voltou para casa do seu amo, e lhe contou o que se tinha dado com ele na casa do preguiçoso. 

O velho então lhe disse: «Esta toalha e esta cabra têm virtude; quando tiveres fome, estende esta toalha, e te há de aparecer comida da melhor; e esta cabra quando berra bota dinheiro pela boca.» 

O rapaz ganhou o mundo com seus três presentes.

Fonte:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Lisboa/Portugal: Nova Livraria Internacional, 1885.
Disponível em Domínio Público.
Atualização do português por J.Feldman