O rapaz, órfão de pai e mãe, saiu pelo mundo para ganhar a vida. Ia por um caminho quando viu uma pedra tapando a boca de um formigueiro e as formigas lutando para arredá-la. O moço, que tinha bom coração, abaixou-se e tirou a pedra com cuidado para não matar as formigas.
Quando acabou, uma formiguinha falou: – Se você se encontrar em dificuldades, diga: Valha-me o Rei das Formigas.
O rapaz seguiu sua estrada e adiante encontrou um carneiro com uma pata enganchada num arame. Soltou o bichinho.
O carneiro disse: – Quando você tiver uma dificuldade, diga: Valha-me o Rei dos Carneiros!
Lá mais longe o rapaz viu um peixe dentro duma poça d’água rasa, quase se acabando. O peixe estava com o lombo de fora, morrendo. O moço tirou-o da poça e sacudiu numa lagoa perto. O peixe mergulhou, foi embaixo, veio em cima, e falou: – Quando você tiver uma dificuldade, diga: Valha-me o Rei dos Peixes.
Quase avistando o reinado, o rapaz encontrou um gavião deitado no chão, seco de sede. Levou-o, deu-lhe um banho, deixou ele beber água e soltou. O gavião voou para um galho de pau e disse: – Quando você tiver uma dificuldade, diga: Valha-me o Rei dos Pássaros!
Chegando no reinado, o rapaz soube que a princesa tinha um espelho mágico que mostrava todas as coisas escondidas. O espelho só tinha forças de meia-noite até o primeiro cantar do galo. Quem se escondesse, e a princesa não descobrisse, casava com ela e, se ela achasse, perdia o homem a vida. O rapaz foi se oferecer para essa aventura.
Na primeira noite, procurou um canto fora do reinado e disse: Valha-me o Rei dos Carneiros! O carneiro apareceu e o rapaz disse o que queria.
– Monte nas minhas costas!
O rapaz montou e o carneiro largou-se correndo, de mato a dentro, para umas brenhas fechadas onde havia uma gruta. Deitou o rapaz na gruta e encheu os arredores de carneiros, uns por cima dos outros, que ninguém via outra coisa afora carneiro.
À meia-noite a moça puxou o espelho e procurou o rapaz, por todos os lados. Tanto virou que deu com a gruta, e o espelho mostrou o rapaz deitado no chão, coberto de carneiros. A princesa tomou nota e foi dormir.
No outro dia o rapaz se apresentou.
– Onde eu estava escondido?
– Deitado no chão, dentro de uma gruta, rodeado de carneiros!
– Era isso mesmo!
Na segunda noite, o rapaz apelou para o peixe. Foi à beira-mar e chamou: Valha-me o Rei dos Peixes!
O peixe riscou na praia. O moço contou sua dificuldade. O Rei dos Peixes mandou um tubarão engolir o rapaz e uma baleia engolir o tubarão e foi para o fundo do mar.
Na meia-noite, a princesa foi consultar o espelho. Caçou na terra e nos ares e procurou nos mares, com tanto cuidado que descobriu onde o rapaz estava dormindo.
Na manhã, o moço apareceu e perguntou:
– Onde eu passei a noite?
– Dentro de um tubarão, este numa baleia, no fundo do mar!
– Era isso mesmo!
Na outra noite, o rapaz chamou o gavião e contou sua agonia. O gavião levou-o nas costas até em cima das nuvens e lá apareceu outro gavião ainda maior que cobriu o Rei dos Pássaros com suas asas.
À meia-noite a princesa procurou o rapaz nas águas e na terra e não achou. Procurou nos ares e não viu. Tanto olhou e olhou que enxergou um pontinho escuro por cima das nuvens. Botou reparo e descobriu tudo. O rapaz, quando veio ao palácio, perguntou:
– Onde dormi a noite passada?
– Em cima de um gavião, coberto por outro, em cima das nuvens!
– Era isso mesmo!
Como era o terceiro dia, o rapaz foi condenado à morte, mas a princesa ficou com pena dele e pediu ao rei para deixar o moço experimentar uma vez mais.
O rapaz ficou contente e foi valer-se do Rei das Formigas. Esse ouviu a conversa toda e disse:
– O espelho descobriu você na terra, no mar e nos ares. Mas o espelho não pode ver a própria princesa. Eu vou virar você numa formiga e você suba para cima do vestido dela e esconda-se bem.
Dito e feito. O rapaz virou formiga, entrou no palácio, foi ao quarto da princesa e subiu pelo vestido acima, bem devagar para ela não pressentir, e escondeu-se na bainha da camisa.
À meia-noite a princesa procurou o rapaz em toda parte, virou e mexeu, e nada de ver onde ele estava dormindo. Passou-se a hora das forças do espelho encantado e ela não viu coisa alguma.
Amanheceu o dia e o rapaz voltou a ser gente e veio perguntar onde tinha dormido.
– Não sei onde você dormiu! Onde foi?
– Não digo enquanto não me casar com você!
Fizeram o casamento com muita festa e só depois de casado é que o moço disse onde tinha passado a sua última noite de solteiro.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * *
Luís da Câmara Cascudo nasceu em Natal/RN, em 1898 falecendo na mesma cidade em 1986. Foi um historiador, sociólogo, musicólogo, antropólogo, etnógrafo, folclorista, poeta, cronista, professor, advogado, jornalista e escritor brasileiro. Passou toda a sua vida em Natal e dedicou-se ao estudo do folclore e da cultura brasileira. Foi professor da Faculdade de Direito de Natal, hoje Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), cujo Instituto de Antropologia leva seu nome. Deixou obra volumosa e de grande relevância, em particular sobre história, folclore e cultura popular. Recebeu o Prêmio Machado de Assis pela Academia Brasileira de Letras, em 1956, pelo conjunto de sua obra.
Fontes:
Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing