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domingo, 23 de março de 2025

Luís da Câmara Cascudo (O Marido da Mãe-D’Água)

Era uma vez um moço pescador muito destemido e bom que lutava com as maiores dificuldades para viver. Ultimamente o vento mudara e quase não havia peixe. Passava horas e horas na praia, com a pindaíba na mão e os peixes fugiam dele como o Diabo da cruz. O rapaz estava mesmo desanimado e dormia com fome muitas vezes.

Numa noite de luar estava ele querendo pescar e o peixe escapulindo depois de comer a isca. A noite foi avançando, avançando, o luar ficando alvo como a prata e caindo mesmo a friagem. O rapaz não queria voltar para sua casinha sem levar nem que fosse um peixinho para matar a fome.

Já ia ficando desanimado quando começou a ouvir umas vozes cantando tão bonito que era de encantar. As vozes foram chegando para mais perto, mais perto, e o rapaz principiou a olhar em redor para ver quem estava cantando daquele jeito. Numa ponta de pedra apareceu uma moça bonita como um anjo do céu, cabelo louro, olhos azuis e branca como uma estrangeira. Ficou com o corpo meio fora d’água cantando, cantando, os cabelos espalhados, brilhando como ouro.

O pescador ficou todo arrepiado mas criou coragem e disse:

– Que desejais de um cristão, alma penada?

A moça respondeu:

– Não sou alma penada, cristão! Sou a Mãe-d’Água! Nunca uma pessoa me perguntou alguma coisa e sempre eu dei, e jamais me ofereceram auxílio. Tens coragem?

– Tenho, declarou o rapaz.

– Queres pegar peixe?

– Quero!

– Pois sacode o anzol onde eu estou. Deves vir todas as noites até o quarto minguante e só pescar de meia-noite até o quebrar da barra.

Abanou a mão e mergulhou, sumindo-se.

O rapaz fez o que ela tinha aconselhado e pegou tanto peixe que amanheceu o dia e não pudera carregar tudo para casa.

Nunca mais viu a Mãe-d’Água mas, no tempo da lua, vinha pescar e foi ficando mais aliviado da pobreza. Os meses iam passando e ele ficando com saudade daquela formosura. 

Uma noite de luar, estando na pesca, ouviu o canto da Mãe-d’Água e, largando tudo, correu na confrontação da cantiga. Quando a Mãe-d’Água botou as mãos em cima da pedra o rapaz chegou para junto e, assim que ela se calou, o pescador agradeceu o benefício recebido e perguntou como pagaria tanta bondade.

– Quer casar comigo? – disse a Mãe-d’Água.

O rapaz nem titubeou:

– Quero muito!

A Mãe-d’Água deu uma risada e continuou:

– Então vamos casar. Na noite da quinta para sexta-feira, na outra lua, venha me buscar. Traga roupa para mim. Só traga roupa de cor branca, azul, ou verde. Veja que não venha alfinete, agulha ou coisa alguma que seja de ferro. Só tenho uma condição para fazer. Nunca arrenegue de mim nem dos entes que vivem no mar. Promete?

O rapaz, que estava enamorado por demais, prometeu tudo e deixou a Mãe-d’Água, que desapareceu nas ondas e cantou até sumir-se.

Na noite citada o pescador compareceu ao lugar, trazendo roupa branca, sem alfinete, agulha ou coisa que fosse ferro. Antes de o galo cantar, a Mãe-d’Água saiu do mar. O rapaz estava com um lençol bem grande, todo aberto. A Mãe-d’Água era uma moça tão bonita que os olhos do rapaz ficaram incendiados. Enrolou-a no lençol e foi para casa com ela.

Viveram como Deus com os Santos. A casa ficou uma beleza de arrumada, com roupa, mobília, dinheiro. Comida, água, nada faltava. O rapaz ficou rico da noite para o dia. O povo vivia assombrado com aquela felicidade que parecia milagre.

Passou-se um ano, dois anos, três anos. O rapaz gostava muito da Mãe-d’Água, mas de umas coisas ia se aborrecendo. A moça não tinha falta, mas, na noite da quinta para a sexta-feira, sendo luar, ficava até o quebrar da barra na janela, olhando o mar. Às vezes cantava baixinho que fazia saudade até às pedras e aos bichos do mato. Às vezes chorava devagarinho. O rapaz tratava de consolar a mulher, mas, com o correr dos tempos, acabou ficando enjoado daquela penitência e principiou a discutir com ela.

– Deixe essa janela, mulher! Venha dormir! Deixe de fazer assombração!

A Mãe-d’Água nem respondia, chorando, cantando ou suspirando na sina que Deus lhe dera.

Todo mês sucedia o mesmo. O rapaz ia ficando de mal a pior.

– Venha logo dormir, mulher presepeira! Que quisila idiota é essa? Largue essa mania de cantiga e choro virada para o mar! Você é gente ou é peixe?

E como o melhor já possuía em casa, deu para procurar vadiação do lado de fora, chegando tarde. A Mãe-d’Água recebia-o bem, não se queixando de nada e tudo ia correndo com satisfação e agrado da parte dela.

Numa noite o rapaz foi a um baile e ficou a noite inteira dançando, animado como se fosse solteiro. Nem se lembrava da beleza que esperava por ele em casa.

Só voltou de manhã e foi logo gritando pelo café, leite, bolos e mais coisas para comer. A Mãe-d’Água, com paciência, começou fazendo mais que depressa o que ele dissera, mas não vinha na rapidez do corisco.

O mal-agradecido, sentando-se numa cadeira, de cara franzida, não tendo o que dizer, começou a resmungar.

– Bem feito! Quem me mandou casar com mulher do mar em vez de gente da terra? Bem feito. É tudo misterioso, cheio de histórias. Coisas do mar... hi... eu te arrenego!

Logo que disse essas palavras, a Mãe-d’Água deu um gemido comprido e ficou da cor da cal da parede. Levantou as duas mãos e as águas do mar avançaram como um castigo, numa onda grande, coberta de espuma, roncando como um bicho feroz. 

O rapaz, morrendo de medo, deu uma carreira, subindo um monte perto da casa. Lá de cima se virou para ver. Casa, varanda, cercado, animais, tudo desaparecera. No lugar estava uma lagoa muito calma, pegada a um braço de mar. Ao longe ouviu uma cantiga triste, triste como quem está se despedindo do mundo.

Nunca mais viu a Mãe-d’Água.
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Fontes:
Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

terça-feira, 11 de março de 2025

Sílvio Romero (Amiga raposa e amigo corvo)

Amiga raposa convidou amigo corvo para fazerem uma viagem. A raposa convidou o gambá para seu companheiro, e o corvo convidou o caracará*. Partiram. Chegando no meio dos montes, veio a noite e foram pedir rancho na casa da amiga onça. A onça andava por fora atrás de um rebanho de carneiros, e chegou na casa muito tarde, trazendo um grande carneiro morto. Os hóspedes, que se achavam em casa, ficaram com medo.

Disse a raposa:

— Compadre corvo, as coisas não estão boas.

Disse o caracará:

—Ora, esta é boa, não temos de que temer; mas você, comadre raposa, é que deve estar em maus lençóis, sem ter onde se meter!

A raposa deu uma gargalhada e disse:

—Serei eu pior do que compadre cachorro?

O caracará:

— Comigo ninguém pode, não corro por terra, porque não corto bem o chão, mas corto o vento. Você, amiga raposa, e compadre gambá, é que têm de se ver hoje, quando ela pegou o compadre carneiro, que é maior de que vocês, quanto mais!

Chegou a hora da ceia. A onça convidou os seus hóspedes para cearem. Só a raposa é que pôde comer, por causa do feitio do prato. A onça fez mais mingau e espalhou numa pedra, e a raposa tornou a lamber. Depois o corvo disse:

— Comadre onça, eu não acho boa esta moda: quem lambe, come,  quem pinica com fome fica! Foram todos dormir.

O corvo disse para o caracará:

— Nós não havemos de ficar com fome.

Quando a onça pegou no sono, o corvo agarrou nos filhotes da onça, e os devorou com o bico; o caracará fez o mesmo. Safaram-se, deixando a raposa e o gambá dormindo. 

Quando a onça acordou, procurou os filhotes e só viu os ossos, e investiu para a raposa, que escapou-se e foi ao encontro de seus companheiros de viagem e os encontrou na casa do macaco. 

A raposa disse:

—Agora é ocasião de vingar-me do que vocês me fizeram.

Mas como era hora de jantar, ela esperou. No fim do jantar viu um cachorro, teve medo e despediu-se. Foram o corvo e o caracará para a casa do galo e a raposa já lá estava, esperando pela ceia. 

Chegada a hora, foram todos cear. O galo espalhou milho por toda a casa e disse: 

Venham de bico
Que me despico:
Quem tem focinho.
Nem um tico. 

A raposa meio desconfiada: 

Façam o que quiser,
Durmam vocês, é que se quer. 

Foram todos dormir, e a raposa foi convidar mais amigas para virem dar cabo de seus inimigos de penas. Deram cabo de todos, só deixando o gambá, por ser muito fedorento.
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* Caracará = ave de rapina semelhante ao falcão.
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SÍLVIO VASCONCELOS DA SILVEIRA RAMOS ROMERO (1851-1914) foi crítico e historiador da literatura brasileira. Fundador da Academia Brasileira de Letras. Pensador social, folclorista, poeta, jornalista, professor e político. Era sócio correspondente da Academia de Ciências de Lisboa. Nasceu na vila de Lagarto, Sergipe, 1851. Em 1868 mudou-se para o Recife e ingressou na Faculdade de Direito. Polêmico, combativo e contraditório, foi influenciado por seu conterrâneo Tobias Barreto. Juntos, lideravam uma escola que reunia jovens inteligentes e destemidos, que se encarregavam de irradiar as recentes ideias vindas da França. Quando estava no 2. Ano da faculdade, Sílvio Romero colaborou com vários jornais, entre eles, o Diário de Pernambuco, a República, o Liberal, o Correio de Pernambuco e o Americano. Em 1873 concluiu o curso de Direito. Em 1876 mudou-se para o Rio de Janeiro onde obteve a cátedra de filosofia. Ao defender sua tese, travou uma discussão com um de seus examinadores, o professor Coelho Rodrigues. A agressão resultou em um processo, que não teve consequências. Romero foi também professor da Faculdade Livre de Direito e da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro. Como poeta, teve uma breve carreira. O primeiro livro de poemas foi Cantos do Fim do Século, lançado em 1878, em uma tentativa de aderir poesia filosófica científica que pregava desde 1870 em artigos, mas que não obteve êxito. Em 1883 publicou Últimos Arpejos, seu segundo e último volume de poesia. Desenvolveu intensa atividade como escritor. Escreveu vários livros que abordavam praticamente tudo que se referia à realidade cultural brasileira como: filosofia, literatura, folclore, educação, política e religião. Publicou assuntos ligados à cultura popular revelando-se um grande folclorista. Escreveu sobre filosofia no Brasil e sobre escolas filosóficas diversas. Em 1878 escreveu Filosofia no Brasil, publicado em Porto Alegre. Sua obra História da Literatura Brasileira (1888), em dois volumes, menos uma história literária do que uma enciclopédia de conhecimentos sobre o Brasil, a origem e evolução de sua cultura, suas raízes sociais e técnicas, foi considerada sua obra mais revolucionária. Deixou uma vasta obra culturalmente valiosa e pioneira em muitos aspectos. Respeitado pela imprensa nacional, conquistou seu lugar como um dos mais importantes críticos e historiadores da literatura brasileira do século XIX. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1914.

Fontes:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Publicado originalmente em 1883.
Imagem criada por Feldman com Microsoft Bing 

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Monteiro Lobato (A mulher dengosa)

Era uma vez um homem que se casou com uma mulher muito cheia de dengues. Fingia não ter apetite. Quando se sentava à mesa era para tocar apenas nos pratos. Comia três grãos de arroz e já cruzava o talher, como se tivesse comido um boi inteiro.

O marido desconfiou de tanta falta de apetite, porque apesar daquele eterno jejum ela estava bem gordinha. E imaginou uma peça.

— Mulher — disse ele — tenho de fazer uma viagem de muitos dias. Adeus.

E partiu com a mala às costas — mas deu jeito de voltar sem ser percebido e de esconder-se na cozinha, atrás do pilão.

Logo que se viu só em casa, a mulher dos dengues suspirou de alívio e correu à cozinha.

— Joaquina — disse à cozinheira — prepare-me depressa uma sopa bem grossa, que quero almoçar.

A negra preparou uma panelada de sopa, que a dengosa engoliu até o finzinho.

Logo depois disse à cozinheira:

— Joaquina mate um frango e prepare-me um ensopado para o jantar.

A negra preparou o ensopado, que ela comeu sem deixar uma isca.

— Agora, Joaquina, prepare-me uns bijus bem fininhos para eu merendar.

E merendou os bijus, sem deixar nem um farelo.

— E agora, Joaquina, prepare-me um prato de mandioca bem enxuta para eu cear.

A negra preparou a mandioca, que a dengosa comeu até não poder mais.

O marido então escapou do seu esconderijo e foi bater na porta da rua, fingindo estar chegando da viagem. Era um dia de chuva bem forte.

Quando a mulher abriu e deu com o homem, ficou desapontada. Ele explicou que havia desistido da tal viagem e voltado.

— Mas maridinho, como chegou você tão enxuto, debaixo duma chuva tão grossa?

O marido respondeu:

— Se a chuva fosse tão grossa como a sopa que você almoçou, eu viria tão ensopado como o frango que você jantou; mas como era uma chuva fina como os bijus que você merendou, eu cheguei tão enxuto como a mandioca que você ceou.

A dengosa ficou admiradíssima daquelas palavras e desapontadíssima ao compreender que o esposo tinha descoberto sua manha. E acabou com os dengues.
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MONTEIRO LOBATO (José Bento Renato Monteiro Lobato) nasceu em 1882, em Taubaté/SP, e faleceu em 1948, em São Paulo. Foi promotor, fazendeiro, editor e empresário. Apesar de também escrever para adultos, ficou mais conhecido por causa dos seus livros infantis. Faz parte do pré-modernismo e escreveu obras marcadas pelo realismo social, nacionalismo e crítica sociopolítica. Já seus livros infantis da série Sítio do Picapau Amarelo possuem traços da literatura fantástica, além de apresentarem elementos folclóricos, históricos e científicos.Em 1900, ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo. Em 1903, se tornou um dos redatores do jornal acadêmico O Onze de Agosto. Escreveu também para periódicos como Minarete, O Povo e O Combatente. Se formou em Direito no final do ano de 1904. Em 1908, se casou com Maria da Pureza. Com a morte do avô, em 1911, o escritor recebeu como herança algumas terras. Assim, decidiu morar na fazenda do Buquira. Ele passou a ser conhecido quando, em 1914, sua carta "Uma velha praga" foi publicada n'O Estado de S. Paulo. Em seguida, o autor criou o personagem Jeca Tatu. Três anos depois, desistiu da vida de fazendeiro e se mudou para São Paulo. Nesse ano, publicou o polêmico artigo Paranoia ou mistificação?, que critica as tendências modernistas. No ano seguinte, comprou a Revista do Brasil. Em 1920, fundou a editora Monteiro Lobato & Cia. Cinco anos depois, vendeu a Revista do Brasil para Assis Chateaubriand (1892-1968) e decretou a falência da editora Lobato & Companhia, que, a essa altura, já se chamava Companhia Gráfico-Editora Monteiro Lobato. Ele se tornou sócio da Companhia Editora Nacional. Se mudou para o Rio de Janeiro, em 1925. Dois anos depois, foi para Nova York, onde assumiu o cargo de adido comercial. Em 1929, devido à crise econômica, vendeu suas ações da Companhia Editora Nacional. No final de 1930, quando Getúlio Vargas (1882-1954) subiu ao poder, o escritor perdeu seu cargo de adido comercial. Retornou ao Brasil no ano seguinte. Em 1932, foi um dos fundadores da Companhia Petróleo Nacional. Anos depois, em 1941, o autor ficou preso, durante três meses, por fazer críticas ao regime ditatorial de Getúlio Vargas. Se tornou sócio da Editora Brasiliense, em 1946, ano em que decidiu morar na Argentina, onde foi um dos fundadores da Editorial Acteón. Voltou ao Brasil em 1947 e fez críticas ao governo de Eurico Gaspar Dutra (1883-1974). Em 1922, decidiu concorrer à cadeira número 11 da Academia Brasileira de Letras. Porém, desistiu da candidatura por não querer "implorar votos". Já em 1926, voltou atrás e, novamente, concorreu a uma vaga na ABL, mas não foi eleito. Por fim, em 1944, recusou indicação para a Academia, em protesto por Getúlio Vargas ter sido eleito à Academia Brasileira de Letras em 1941

Fontes:
Monteiro Lobato. Fábulas. Publicado originalmente em 1922. Disponível em Domínio Público.  
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Viriato Padilha (Manuel do Riachão)

É bastante conhecida em diversos estados brasileiros, principalmente no norte, a lenda da misteriosa personagem a quem o povo deu o nome de Manuel do Riachão e cujas aventuras satânicas são contadas em verso rústico do Piauí a Sergipe.

Em alguns lugares se acredita que Manuel do Riachão era o Diabo em pessoa. Em outros o apresentam simplesmente como um indivíduo malfazejo e nefasto, que vendera a alma ao príncipe das trevas, afim de se tornar o primeiro tocador de viola e improvisador dos batuques sertanejos.

Em toda parte, porém, Manuel do Riachão figura na tradição como bardo sem rival, se afirmando que sua parada em qualquer lugar era prenúncio de calamidade súbita e inexplicável. O povo guarda lembrança de que secavam os regatos, não obstante a regularidade das chuvas, se dispersavam os rebanhos, surgiam enfermidades no gado, perdiam-se as lavouras, e até as pessoas se sentiam atacadas de sofrimentos estranhos, quando Manuel do Riachão, de viola a tiracolo, atravessava qualquer paragem.

Assim, apesar da admiração que causava por seus altos dotes de improvisador inspirado e violeiro habilíssimo, Manuel do Riachão não podia demorar muito tempo em algum ponto. Desde logo a indignação popular se levantava contra seus costumes singulares, e nela procurava um derivativo por causa dos males que começavam a afligir a terra, sendo o pobre violeiro obrigado a encapar a viola e buscar outro lugar, até que, sendo ali também perseguido, recomeçasse a eterna peregrinação. Assim vivia Manuel do Riachão. Os lugares que de preferência frequentava eram as tabernas, as mesas de jogo e, principalmente, os batuques, pelo prazer de derrotar no verso os mais afamados cantores.

Descrevamos a forma pela qual o povo do norte conta como o sombrio Manuel do Riachão desapareceu dos sambas sertanejos.

Numa noite de São João se folgava ruidosamente em modesta casa do sertão cearense. No terreiro crepitava grande fogueira que iluminava toda a frente da habitação. A criançada pagodeava em redor do fogo, assando batata e macaxeira no borralho. Na sala roncava o sapateado, puxado vigorosamente por uns cabras desempenados, vaqueiros, comboieiros e roceiros, e por moças sadias, robustas e esbeltas. Todas aquelas pessoas, ali reunidas em alegre folguedo, se conheciam muito e eram parentes próximos, afastados ou vizinhos bastante íntimos.

Assim se notava em todas as fisionomias bem-estar completo, satisfação imensa, principalmente nos rapazes e moças, quase todos de namoro entabulado ou de casamento ajustado.

Foi no meio dessa festa simples e boa que se lembrou um dia aparecer o misterioso indivíduo cujo nome encabeça estas linhas: Manuel do Riachão, o mais afamado e fantástico violeiro dos sertões do norte.

Esse bardo errante, sempre precedido de antipatia popular, se vira obrigado a abandonar Icó, onde assombrara pela perícia em improvisar mas onde também incorrera gravemente no desagrado público por haver desrespeitado, com uma cantada obscena, uma procissão que se fazia no lugar, sacrilégio que coincidiu com o aparecimento de uma praga de lagarta que devastou completamente os roçados de milho.

A calamidade foi tomada como consequência do desacato religioso, e Manuel do Riachão, temendo violência contra a sua pessoa, bebeu o último gole de aguardente nas tabernas do Icó, pôs a preciosa viola em bandoleira e até lá foi, estrada fora, procurando novos auditórios pra exibição de seus dotes de improvisador.

Gastou dias em atravessar a serra do Pereiro, porém na noite de São João já estava na chapada do Apodi, sôfrego pra cantar, visto como no caminho não encontrara parceiro com o qual se divertir.

Manuel do Riachão passava na estrada, quando viu a fogueira e a festa à qual já nos referimos. Sem hesitação se encaminhou ao lugar da patuscada e, se aproveitando de um momento de suspensão do batuque, chamou a viola ao peito, e cantou, com voz forte, estas duas quadras:

Senhora dona da festa
me ouça, faça favô
Não trago fome nem sede
nem me atormenta o calô
Só quero, senhora minha
dizer aos convidados
que, quando meu peito se abre
se esconde o mais pintado.

Todas as pessoas que estavam na sala, e bem assim a criançada que se divertia em torno da fogueira, correram para perto de Manuel do Riachão que, em pé, no meio do terreiro, continuava tangendo o rasgado na viola, sem dizer palavra, como esperando que alguém aceitasse o atrevido desafio. Muito alto, magro e de longo cavanhaque cor de barba de milho, tinha a perna arqueada em postura mefistofélica, e um riso sardônico arregaçava o canto dos lábios magros e arroxeados.

Naquela festa não haveria alguém que aceitasse o desafio daquele sujeito? Era o que todos, com os olhos, se perguntavam mutuamente, ansiosos pra uma lição ao insolente, e ao mesmo tempo desejosos de novo divertimento.

Não esperaram muito tempo os foliões. Dentre a chusma saiu logo um crioulo de gaforinha (cabelo arrepiado) crescida, Xico Bordão, que, apanhando uma viola, respondeu no mesmo tom e música ao violeiro errante:

No tempo em que eu cantava
Meu peito retinia
Dava um grito no Icó
E no Cariri se ouvia
Senhora dona da casa
faça favô, mande entrá
Quem a tua porta bate
pedindo só pra cantá.

Uma salva estrondosa de palmas, acompanhada de gritaria dos meninos, acolheu a cantiga de Xico Bordão, que, indo ao encontro do Riachão, que continuava sempre de perna arqueada e viola ao peito, o cumprimentou e o tomando no braço, o introduziu na sala. Rapazes e moças se sentaram nos bancos dispostos ao correr das paredes, e tendo a dona da casa chegado dois tamboretes aos contendores, estes se abancaram cerimoniosamente, e depois de chupitar cada um seu copinho de aguardente, começou o torneio poético e musical, que não durou muito, pois Bordão se declarou logo vencido e se retirou da sala, envergonhado.

Estimulados os brios dos assistentes pela derrota do companheiro, empurraram ao meio do aposento outro cantador, Xico Casa-Velha, que também tinha sua fumaça de improvisador.

Este, porém, no fim de duas quadras esmoreceu.

Dizendo seu nome numa quadrinha, Riachão se aproveitou dele, e respondeu que toda a casa velha era tapera. Isso foi suficiente pra confundir o adversário.

Ainda um terceiro cantador se sentou no fatídico tamborete: Era Totonho, filho da dona da casa, e esse também foi levado à parede com a mesma facilidade.

Então ninguém mais quis cantar com o homem magro do cavanhaque vermelho. E Manuel do Riachão, vendo que nenhum cantador vinha ocupar o tamborete vazio, se levantou, fez uma grande mesura e, recuando até a porta, se preparava pra se despedir em verso, como é costume, quando surgiu na sala, com um machete a tiracolo, e sem que alguém soubesse de onde entrara, um rapaz muito pálido, de longo cabelo dourado e anelado, olhos profundamente azuis, envolvido num amplo ponche-pala de cor cinzenta clara.

Esse moço se adiantou na sala, e se sentando no tamborete onde foram vencidos Bordão, Casa-Velha e Totonho, cantou com voz dulcíssima a seguinte quadrinha, em desafio, se fazendo acompanhar no machete:

Seu Manué do Riachão
Não dê já a despedida
Torne a afinar a viola
Que o dia vem longe ainda.

Manuel do Riachão, se sentindo nomear em lugar em que julgava ser completamente desconhecido, teve um estremecimento e fixou os olhos fundos e vivos como brasas no desconhecido que continuava dedilhando no machete, até então conservando a vista abaixada, como que por timidez e recato. A ligeira emoção do violeiro não foi no entanto percebida pelos foliões. E ele, procurando disfarçar, respondeu ao moço com esta quadra arrogante:

Bem sei que o dia vem longe
Temos tempo pra trová
Mas vosmecê se arrepende
Antes do galo cantá.

O moço de olhos cor do céu continuava de fronte baixa, e em sua fisionomia, que parecia anuviada por funda tristeza, nem sinal de emoção denunciou ao ouvir a resposta atrevida de Riachão.

Ao mesmo tempo que em todos os circunstantes crescia o interesse pelo desafio um pressentimento vago lhes dizia que Manuel do Riachão, segundo a frase popular, se estreparia naquela topada. Assim, foi com satisfação que viram o moço do machete ferir de novo o instrumento com as mãos, que eram de uma brancura de cera de carnaúba, e soltar estes versos:

Um ano tão bom de inverno
Que pecados são os teu!
Seu Manué do Riachão
Teu riacho não correu.

Manuel do Riachão tornou a fitar os olhos de brasa no moço do ponche-pala cinzento. O famoso violeiro como procurava saber quem parecia querer revelar ao auditório matuto sua misteriosa e sombria natureza. No entanto não deixou de fazer entrada em tempo e responder com visível mau-humor nos seguintes versos:

Se o riacho não correu
não foi por falta de inverno
É que as águas afundaram
Foram ferver no inferno.

Os caipiras começaram a se admirar da feição estranha que tomava o desafio poético. Quem seriam os dois singulares violeiros, tão estranhos e diferentes nos modos e nas figuras?, perguntavam, chegando as bocas aos ouvidos uns dos outros. Quando as últimas notas que acompanhavam os versos do Riachão se extinguiram, o moço triste do machete descerrou outra vez os lábios, ainda sem levantar a fronte, e cantou:

Seu Manué do Riachão
que triste sina é a tua
Na noite que vosmecê canta
no céu não se vê a Lua.

Riachão se torceu no tamborete, incomodado por essa segunda investida a sua reputação, e apenas o moço cor de cera acabava de desferir a última sílaba do verso, bramiu com voz forte, na qual se percebia claramente a raiva e o despeito:

Se a Lua não aparece
Na noite de meu descante
É, moço do machetinho
Que eu canto só no minguante.

Na verdade Manuel do Riachão era um repentista admirável, e essa resposta tão adequada causou a admiração dos sertanejos. O moço louro, porém, continuava impassível e de olhos fixos no chão. De seu amplo ponche-pala cinzento se flutuava como uma neblina levemente dourada que o envolvia todo, e assim que lhe coube a vez de cantar, gemeu no machetinho, com voz que mais parecia um rosário de suspiros docemente abemolados:

Padre, Filho, Espírito Santo
É o santo sinal da cruz
Bendito seja teu nome
Senhora mãe de Jesus.

E ao mesmo tempo que cantava esta copla o moço do machetinho levantava lentamente os olhos do chão, até os fitar em cheio em Manuel do Riachão, que, sem se saber por quê, se perturbou com a luz serena, profundamente azul que deles jorrava e, em sua confusão, deu uma nota falsa no acompanhamento e não pôde encontrar logo a réplica.

O moço do machetinho tornou a baixar os grandes olhos e, antes que o outro se restabelecesse completamente, lhe despediu mais esta quadra:

Seu Manué do Riachão
um caburé suspirô
Tempere, amigo, a viola
que o bordão desafinô.

Então Manuel do Riachão já se acalmara, e assim respondeu de pronto:

Minha viola, seu moço, tropica, 
mas não focinha. 
Tem ganho em tecla função 
coroa e grau de rainha.

No entanto, apesar dessa bravata de cantador laureado, Manuel do Riachão denunciava no semblante esquálido crescente perturbação. E embora só o encarara de frente uma vez, o moço pálido bem percebia, e assim saiu com esta:

Seu Manué do Riachão,
Uma coisa está se vendo
Tua viola enrouquece
tua voz esmorecendo.

Era verdade o que dizia o moço triste, porém Manuel do Riachão tentava ainda resistir, e assim respondeu, incontinenti:

Não te glorie com isso
Cantante do ponche-pala
Bebi demais no caminho
Sinto um pigarro na fala.

Esses versos eram prenúncio da derrota do terrível trovador. O auditório compreendeu e ficou suspenso dos lábios do cantador cor de cera que, sempre de olhos baixos, tangia no machetinho com tanta doçura que parecia que os dedos vaporosos nem feriam as cordas.

Logo que Riachão se calou, o moço levantou na segunda vez os olhos serenos, tornou a fitar em cheio no violeiro, e cantou com voz mais alta e vibrante:

Seu Manué do Riachão
Meu amigo e camarada
Vosmecê se avexa tanto
Eu me avexo de nada.

Manuel do Riachão, ao sentir de novo a luz clara e profundamente azul dos olhos do fantástico moço pálido, tornou a se confundir: Os dedos rasparam na viola, nervosamente, sem tirar harmonia, o corpo todo tremeu e, na segunda vez nesse desafio, não entrou logo com a réplica, ao que o moço do machete, aproveitando a descaída, tornou de novo a abrir os lábios, e cantou, a voz ficando aguda e firme:

Seu Manué do Riachão
Depois da flô vem a espiga
Quero que vosmecê reze
o padre-nosso em cantiga.

Sentindo essa provocação direta a seu sentimento religioso, Manuel do Riachão se ergueu com um salto. Todo o corpo foi tomado por um tremor convulsivo. E torcendo os braços e as pernas, como se fossem serpentes raivosas, vibrou as cordas da viola com tanta raiva, que as, fazia arrebentar, ao mesmo tempo que berrava com voz sombria:

Seu moço do ponche-pala
Não sou padre pra rezá
Renego os santos da igreja
Renego a pedra do artá.

Ao dizer isto, todas as luzes da sala se apagaram e também a fogueira que crepitava no terreiro. Todos foram tomados de assombro.

No luar que entrava na janela viram que o moço pálido se levantava e se erguia do chão, alguns palmos, ao mesmo tempo que cantava, com voz tão aguda que chegava a doer nos ouvidos, estes versos que foram os últimos do famoso desafio:

Senhora dona da festa
Abra a porta, acenda a luz
Estamos com o Diabo em casa
Rezemos o credo em cruz.

Assim que acabou de cantar se ouviu na sala um estrondo medonho. Se abrindo logo o assoalho, de meio a meio, nele se enterrou e sumiu o nefasto Manuel do Riachão, ao passo que o moço triste e de mãos cor de cera mais se elevava do chão. Seu amplo ponche-pala cinzento se transformara em par de asas brancas como a neblina da manhã. E seu machete tomara a forma duma palma, que comprimiu ao seio e, sempre subindo, voou na janela aberta e desapareceu no espaço, sem que olhos humanos o pudessem seguir.

É assim que o povo do norte conta como Manuel do Riachão desapareceu dos sambas sertanejos.
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ANNÍBAL DE ANDRADA MASCARENHAS (Minas Gerais, 11 de Junho de 1866 – Fortaleza, Ceará, 17 de Setembro de 1924) foi contista, jornalista, dono de jornal, poeta, autor de literatura infantil, historiador, professor, republicano e tradutor brasileiro. Apresentava-se com seu nome próprio e com alguns pseudônimos, entre eles o mais famoso é Viriato Padilha. Também utilizou outros pseudônimos em seus artigos, contos e crônicas, tais como: Aníbal Demóstenes, Tycho Brahe de Araújo Machado, Sancho Pança. Porém é notavelmente conhecido como o primeiro. Foi dono do Jornal Jacobinista chamado A Bomba, mais tarde conhecido como O Nacional.
Algumas Obras: Curso de História do Brasil, 1898; O Fabricante Moderno de Perfumes, Essencias, Sabões e Sabonetes, 1919; O orador do povo, 1935; Histórias do arco da velha, 1897; Os roceiros, 1899; Livro dos phantasmas, 1925; Histórias brasileiras - contos para crianças; Sábios ilustres, etc.

Fontes:
Viriato Padilha. Livro dos phantasmas. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.  
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sábado, 8 de fevereiro de 2025

Figueiredo Pimentel (A moça do lixo)

Passavam um dia duas fadas por um jardim formosíssimo e bem tratado, quando viram um monte de estrume que o chacareiro havia deixado para estercar a terra.

— Que coisa nojenta! Disse uma delas. Como é que se consente num jardim tão belo tamanha porcaria, ainda que seja por um momento!...

— Tive uma ideia, disse a outra. Eu faço para que essa esterqueira se transforme numa mulher tão linda como Leona, a princesa adivinha, que é a mais formosa criatura do mundo.

— E eu faço, retorquiu a outra, para que ela tenha um anel no dedo. Enquanto estiver com esse anel, só poderá pronunciar a palavra “porcaria”, sem que nada mais possa dizer. Tirando-lhe o anel, será uma moça instruída e espirituosa, ao passo que, quem o usar, ficará com o mesmo defeito.

As duas fadas desapareceram e do estrume surgiu uma moça maravilhosamente formosa.

E nos jardins reais, o príncipe, passando por acaso, viu-a e ficou apaixonado. Perguntando-lhe quem era, de onde vinha, como se chamava, só obteve em resposta:

— Porcaria! Porcaria!...

Admirado por ouvir aquela grosseria, tão suja, em boca tão formosa, sua alteza insistiu. Em vão! A deslumbrante moça respondia sempre:

— Porcaria!... Porcaria!...

O príncipe quis fazê-la sua esposa, mas o rei, os ministros, os conselheiros da coroa e os grandes dignatários não o consentiram.

Não podendo, entretanto, deixar de vê-la a todos os instantes, o futuro soberano fê-la se alojar no palácio.

Tempos depois teve de se casar, como era obrigado por lei. Deram-lhe como noiva uma princesa, filha de um imperador vizinho e aliado.

Preparando-se a toalete da noiva, uma criada lembrou-se que Porcaria tinha um anel sem igual.

Tirou-o, e apresentou-o à sua nova ama, que o enfiou no dedo

Quando o cortejo chegou à igreja, na hora da celebração do casamento, perguntando o padre à noiva, se livremente recebia o príncipe, ouviu-a dizer:

— Porcaria!... Porcaria!...

Não houve meios de se lhe arrancar outra coisa:

— Porcaria!... Porcaria!... – falava sempre.

O príncipe, em vista daquilo, exclamou:

— Não! Não me serve! Porcaria por porcaria, tenho lá no palácio uma melhor.

Foram buscar a outra, que encontraram falando e conversando com todo o espírito, e o casamento foi celebrado.
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ALBERTO FIGUEIREDO PIMENTEL nasceu e morreu em Macaé/RJ, 1869 - 1914, foi poeta, contista, cronista, autor de literatura infantil e tradutor. Manteve por muitos anos, desde 1907, uma seção chamada Binóculo na Gazeta de Notícias. Publicou novelas, poesia, histórias infantis e contos. Um de seus grandes êxitos foi o romance O Aborto, estudo naturalista, publicado em 1893, e por mais de um século completamente esgotado. Como poeta, participou da primeira geração simbolista chegando a se corresponder com os franceses. Era amigo de Aluísio Azevedo, com quem trocou cartas, enquanto o autor de O Cortiço estava fora do país como diplomata. Poeta, romancista, escritor de literatura infantil, ganhou destaque e se perpetuou nos compêndios da literatura brasileira. A coluna Binóculo, assinada pelo autor na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, de 1907 até 1914, obteve grande sucesso entre leitores e leitoras, ditando moda, o que faz de Figueiredo Pimentel o primeiro cronista social da capital. Era ele quem tratava das novidades da moda, do bom gosto, do chique em voga em Paris e que deveria ser aqui aclimatado. Obras: Fototipias, poesia, 1893; Histórias da avozinha, conto - somente em 1952; Histórias da Carochinha; Livro mau, poesia, 1895; O aborto, 1893; O terror dos maridos, romance e novela, 1897; Suicida, romance e novela, 1895; Um canalha, romance e novela, 1895.

Fontes:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado originalmente em 1896. 
Disponível em Domínio Público. 
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quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Sílvio Romero (O jabuti e o veado)

O jabuti saiu a procurar seus parentes e encontrou-se com o veado. 

O veado perguntou-lhe: “Para onde vai você?”

O jabuti respondeu: “Vou chamar meus parentes para virem me ajudar na caçada grande da anta.” 

O veado falou assim: “Então você matou a anta? Vá chamar todos, que eu fico aqui; quero vê-los.” 

O jabuti disse então: “Eu já me vou; aqui mesmo quero esperar que a anta apodreça, tirar-lhe o couro para fazer uma gaita.” 

O veado falou desse modo: “Você matou a anta, agora quero eu apostar uma carreira com você.” 

O jabuti respondeu: “Espere por mim aqui; vou ver por onde hei de correr.”

O veado disse: “Quando você correr pelo outro lado, deve responder quando eu gritar.” 

O jabuti disse: “Já vou indo.”

O veado falou-lhe: “Agora nada de demoras... Eu quero ver a tua valentia.”

O jabuti falou assim: “Espera um pouquinho; deixa-me chegar à outra banda.”

Logo que chegou ali, chamou todos os seus parentes. Postou-os a todos pela margem do pequeno rio para responderem ao veado tolo. Depois falou assim:

— Ó veado, você já está pronto?

O veado respondeu: — Eu já estou pronto.

O jabuti perguntou: — Quem é que vai na dianteira?

O veado riu-se e disse: — Tu vais mais adiante, jabuti.

O jabuti não correu; enganou o veado e foi colocar-se mais adiante.

O veado estava seguro confiando nas suas pernas.

O parente do jabuti gritou pelo veado. O veado respondeu para quem lhe ficava atrás. Assim o veado falou: — Eis-me que vou aqui, tartaruga do mato!

O veado correu, correu, correu, depois gritou: — Jabuti!

Outro parente do jabuti respondeu sempre adiante. O veado disse: “Eu ainda vou beber água.”

Então o veado ficou calado.

O jabuti gritou, gritou, gritou... Ninguém lhe respondeu.

Disse então: — Aquele macho porventura morreu. Deixa-me ir vê-lo.

O jabuti disse aos seus companheiros:

— Eu vou sorrateiro para espreitá-lo.

O jabuti, quando saiu na margem do rio, disse assim: — Nem sequer cheguei a suar.

Então chamou pelo veado: — Veado!

O veado não deu resposta.

Quando os companheiros do jabuti olharam para o veado disseram: — Verdadeiramente, já está morto.

O jabuti disse: — Vamos tirar o osso.

Os outros perguntaram-lhe: — Para que é que tu o queres?

O jabuti respondeu: — Para eu assoprar por ele e tocar em qualquer tempo.
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SÍLVIO VASCONCELOS DA SILVEIRA RAMOS ROMERO (1851-1914) foi crítico e historiador da literatura brasileira. Fundador da Academia Brasileira de Letras.Pensador social, folclorista, poeta, jornalista, professor e político. Era sócio correspondente da Academia de Ciências de Lisboa. Nasceu na vila de Lagarto, Sergipe, em 1851. Em 1868 mudou-se para o Recife e ingressou na Faculdade de Direito. Polêmico, combativo e contraditório, foi influenciado por seu conterrâneo Tobias Barreto. Juntos, lideravam uma escola que reunia jovens inteligentes e destemidos, que se encarregavam de irradiar as recentes ideias vindas da França. Quando estava no 2º. Ano da faculdade, Sílvio Romero colaborou com vários jornais, entre eles, o Diário de Pernambuco, a República, o Liberal, o Correio de Pernambuco e o Americano. Em 1873 concluiu o curso de Direito. Em 1876 mudou-se para o Rio de Janeiro onde obteve a cátedra de filosofia. Ao defender sua tese, travou uma discussão com um de seus examinadores, o professor Coelho Rodrigues. A agressão resultou em um processo, que não teve consequências. Romero foi também professor da Faculdade Livre de Direito e da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro. Como poeta, Sílvio Romero teve uma breve carreira. O primeiro livro de poemas de Sílvio Romero foi Cantos do Fim do Século, lançado em 1878, em uma tentativa de aderir à poesia filosófica científica que pregava desde 1870 em artigos, mas que não obteve êxito. Em 1883 publicou Últimos Arpejos, seu segundo e último volume de poesia. Desenvolveu intensa atividade como escritor. Escreveu vários livros que abordavam praticamente tudo que se referia à realidade cultural brasileira como: filosofia, literatura, folclore, educação, política e religião. Publicou assuntos ligados à cultura popular revelando-se um grande folclorista. Escreveu sobre filosofia no Brasil e sobre escolas filosóficas diversas. Em 1878 escreveu Filosofia no Brasil, publicado em Porto Alegre. Sua obra História da Literatura Brasileira (1888), em dois volumes, menos uma história literária do que uma enciclopédia de conhecimentos sobre o Brasil, a origem e evolução de sua cultura, suas raízes sociais e étnicas, foi considerada sua obra mais revolucionária. Sílvio deixou uma vasta obra culturalmente valiosa e pioneira em muitos aspectos. Respeitado pela imprensa nacional, conquistou seu lugar como um dos mais importantes críticos e historiadores da literatura brasileira do século XIX. Faleceu no Rio de Janeiro, no dia 18 de junho de 1914.

Fontes:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Publicado originalmente em 1883. Disponível em Domínio Público. 
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quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Luís da Câmara Cascudo (Maria Gomes)

Um homem viúvo tinha tantos filhos que não os podia alimentar nem vestir convenientemente. Quase sempre, na hora das refeições, uma das crianças ficava com fome. O Pai lastimava-se de sua miséria e, na falta de outro auxílio, deliberou abandonar um dos filhos na floresta. Tirou a sorte e recaiu na filhinha Maria que era muito inteligente, bonita e trabalhadora.

O homem levou a mocinha para a floresta e a deixou debaixo de uns pés de araçá, recomendando que se orientasse pelas pancadas do machado com que ele ia derrubar uma árvore para tirar uns favos de mel de abelhas.

Maria ficou, ficou, ficou. As horas passavam e o dia estava escurecendo quando ela ouviu umas pancadas. Procurou caminhar na direção do som e encontrou apenas o cabaço amarrado a um galho. O vento é que o fazia bater e provocava o barulho.

Vendo-se perdida, Maria andou, andou, andou e, ao anoitecer, subiu a uma árvore e de lá avistou o telhado de uma casa. Desceu e caminhou até deparar um casarão muito velho quase em ruínas, num descampado que metia medo aos mais corajosos.

Muito cansada e faminta, Maria rodeou a casa, entrou por uma porta larga e viu que as paredes estavam cheias de instrumentos de música e havia uma rede armada a um canto. A moça segurou um violino e tocou, tocou, tocou. De repente apareceu uma mesa coberta de iguarias fumegantes e apetitosas.

Uma voz misteriosa disse:

– Maria Gomes? O jantar está na mesa!

Maria jantou à vontade. Quando acabou, a voz se ouviu:

– Maria Gomes? Seu quarto é o último, no corredor!

A moça encontrou um quarto preparado de tudo, muito confortável, com roupa para mudar e objetos de uso. Deitou-se e dormiu tranquilamente.

Passaram-se muitas semanas. A moça tocava música; durante o dia, arranjava a casa, limpando-a. Não via pessoa alguma. Apenas a voz misteriosa dirigia o serviço.

Numa noite, a voz informou:

– Maria Gomes? Seu pai está doente. Quer ir vê-lo?

– Quero! – disse Maria Gomes.

A voz continuou:

– Amanhã pela manhã estará um cavalo branco selado esperando à porta. Dentro daquela gaveta há muito dinheiro. Leve quanto desejar para sua família. Tenha todo cuidado em obedecer a duas condições: primeira é não dizer onde e como está vivendo. A segunda é atender aos relinchos do cavalo. Quando ele der o primeiro relincho, despeça-se de todos. Ouvindo o segundo, esteja no meio do caminho e ao terceiro meta o pé no estribo. Se perder o cavalo nada mais posso fazer. Não esqueça!...

No outro dia tudo sucedeu como a voz ensinara. Maria encontrou o cavalo, com sela, montou-o e num minuto estava em casa do pai. 

O velho melhorou logo que a viu e recebeu muito dinheiro, ficando todos satisfeitíssimos com a visita da moça que julgavam morta e devorada pelas feras da mata.

No meio da conversa, Maria ouviu o relincho do cavalo branco. Imediatamente abraçou o pai, os irmãos e as irmãs, recusando todos os oferecimentos, e correu para a estrada. Nada dissera de sua vida, embora fosse muito interrogada. 

Ao segundo relincho do cavalo, a moça estava bem perto do animal e, mal este deu o terceiro sinal, Maria meteu o pé no estribo e foi transportada velozmente para o casarão misterioso no meio da floresta.

Assim outros tempos correram. Duas vezes Maria Gomes visitou seu pai. Na última ocasião o velho, já bem alquebrado pela idade e doença, faleceu. Maria chorou muito, agarrada com os irmãos. Soluçava tão alto que não ouviu o primeiro relincho do cavalo branco. Percebendo o segundo, correu como uma bala mas o terceiro relincho não a alcançou em ponto de montar. 

O cavalo partiu e Maria Gomes continuou correndo atrás do cavalo, gritando, chamando e chorando. Já estava exausta quando o animal voltou, coberto de espuma e se deteve esperando que ela o montasse.

– Se você não corresse atrás de mim eu voltaria para matá-la à força de coices –, disse o cavalo encantado.

No outro dia a voz explicou:

– Maria Gomes? Você já tem me servido muito. Agora eu devo ajudar você e completar minha sina. Vista-se de homem e monte o cavalo branco do qual nunca mais se separe e ouça todos os conselhos que ele lhe der. Será para sua e minha felicidade.

A voz emudeceu. Maria dormiu. Pela manhã vestiu-se de homem, encheu os bolsos de dinheiro, montou o cavalo branco e galopou até um reinado próximo.

Aí procurou empregar-se e, sendo robusto, benfeito e simpático, falando com desembaraço, encontrou o lugar de jardineiro no palácio do Rei.

O príncipe vinha todas as manhãs olhar as flores e conversar com o jardineiro com quem acabou sendo amigo íntimo. Sem saber por quê, ia-se apaixonando pelo rapaz. Os olhos do jardineiro pareciam duas joias. O príncipe dizia à rainha velha: Minha Mãe do coração, Os olhos de Gomes matam, De mulher sim, d’homem não!

A rainha velha dissuadia o filho dessa impressão, mas o príncipe teimava, teimava, teimava cada vez mais inseparável do Gomes.

Maria Gomes colocara o cavalo numa manjedoura vizinha ao seu quarto e não saía sem ele. Nunca montou outro animal apesar dos oferecimentos do príncipe.

Este vivia repetindo que os olhos de Gomes eram de mulher. A rainha velha aconselhou-o:

– Leve Gomes para uma caçada. Na hora de dormir arme as redes debaixo do jasmineiro grande que é encantado. As flores caem em cima das mulheres e as folhas em cima dos homens. Pela manhã, bote reparo onde ficaram as flores...

O príncipe foi com Gomes caçar. Armaram as redes, pela tardinha, debaixo do jasmineiro. O príncipe adormeceu logo e Gomes depois. As flores caíam na rede de Maria e as folhas em cima do príncipe. O cavalo branco que estava perto aproximou-se, relinchou e as flores caíram no príncipe e as folhas em Gomes.

Pela manhã o príncipe estava que parecia uma noiva ou um anjo, todo vestidinho de jasmins. Ficou decepcionado e voltou ao palácio sem saber da verdade.

A rainha velha deu outra orientação:

– Leve Gomes para um banho no rio. O jeito é você ficar sabendo...

Foram os dois. O príncipe caiu logo n’água e Gomes começou a despir-se lentamente, conforme o cavalo lhe dissera. Quando ficou apenas com a camisa, o cavalo começou a pular, a piafar, atirando patadas e desembestou pelo campo, obrigando Gomes e o príncipe, este nu em pelo, a correrem para aquietá-lo. Quando o conseguiram, Gomes estava molhado de suor e o príncipe cansadíssimo.

A rainha velha escolheu outro caminho:

– Convide ele para almoçar no palácio. Se for mulher sentar-se-á em cadeira baixa e esperará que a sopa esfrie.

O príncipe convidou Gomes e este foi ouvir o cavalo que lhe explicou tudo. No almoço, Gomes escolheu uma cadeira alta e tomou a sopa bem quente.

A rainha velha não desanimou:

– Quando estiverem conversando, em roda, sacuda uma laranja para ele. Se for mulher, habituada com a saia, abrirá as pernas para ter maior espaço e melhor aparar a fruta. Se for homem, juntará as pernas.

O cavalo, que adivinhava, avisou a Gomes. Sacudiram a laranja e Gomes apertou as pernas.

A rainha velha falou ainda:

– Só resta uma forma. Durma uma noite no mesmo quarto.

O príncipe convidou Gomes para um trabalho no palácio e o prolongou tanto que o falso rapaz foi obrigado a ficar para dormir nos aposentos do amigo. O príncipe esperou que Gomes adormecesse mas a moça resistiu toda a noite. Assim ainda a segunda, mas, na terceira, não podendo com as pálpebras, dormiu. O príncipe passou a mão pelo busto do amigo e encontrou a saliência dos seios.

– Eu bem sabia que você era mulher e não homem. Como estou apaixonado, prepare-se para casar comigo.

Pela manhã Maria Gomes foi onde estava o cavalo e contou tudo.

– Sei perfeitamente. Já chegou meu tempo de liberdade. Daqui a dias é 13 de junho, dia de Santo Antônio, meu padrinho. Peça ao Rei velho que marque umas cavalhadas para esse dia, convidando todo mundo. Eu comparecerei e te levarei comigo porque teu noivo sou eu!

Maria Gomes ficou radiante e foi pedir ao Rei velho que anunciasse umas cavalhadas, com jogo de argolinhas, para o dia de Santo Antônio. O Rei velho, que era muito influído para essas festas, convidou toda a gente e preparou um terreiro enorme, com arquibancadas para os fidalgos e as famílias assistirem.

No dia de Santo Antônio o terreiro ficou negrejando de gente. Cavaleiros sem conta compareceram, vestindo luxuosamente. Logo ao começar a justa surgiu um cavaleiro desconhecido, coberto de prata, magnificamente montado e correu argolinhas com todos os outros vencendo-os facilmente. Trouxe todos os adversários e pôs as argolinhas no colo do Rei muito lisonjeado.

O príncipe achou o cavaleiro muito antipático e não o aplaudiu.

No segundo dia, o cavaleiro voltou, vestindo roupa de ouro, e venceu a todos, entregando as argolinhas à rainha velha.

No último dia o cavaleiro, vestindo diamantes, derrotou todos os adversários e pôs as argolinhas no colo do príncipe, que virou o rosto para não fazer a vênia de agradecimento.

Nesse momento o cavaleiro atirou uma fita azul em Maria Gomes. Esta segurou uma ponta com o bico do pé e a outra com os lábios, fechando os olhos, como lhe dissera o cavalo, dias antes. Instantaneamente encontrou-se na garupa do cavalo que o cavaleiro montava.

Rei, rainha, príncipe, povo, todos correram para prender o raptor mas ninguém viu senão a poeira.

O cavaleiro galopou até o casarão velho. Parou e desceu Maria Gomes. Assim que esta pisou no chão, ouviu-se um estrondo e o casarão transformou-se num lindo palácio, resplandecente de luzes e cheio de criados, fidalgos e camareiros. Maria Gomes casou-se com o cavaleiro que era o cavalo encantado, e foram felizes como Deus com os anjos.
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LUÍS DA CÂMARA CASCUDO nasceu em Natal/RN, em 1898 falecendo na mesma cidade em 1986. Foi um historiador, sociólogo, musicólogo, antropólogo, etnógrafo, folclorista, poeta, cronista, professor, advogado, jornalista e escritor brasileiro. Passou toda a sua vida em Natal e dedicou-se ao estudo do folclore e da cultura brasileira. Foi professor da Faculdade de Direito de Natal, hoje Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), cujo Instituto de Antropologia leva seu nome. Deixou obra volumosa e de grande relevância, em particular sobre história, folclore e cultura popular. Recebeu o Prêmio Machado de Assis pela Academia Brasileira de Letras, em 1956, pelo conjunto de sua obra.

Fontes> 
Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público.
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