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sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Luís da Câmara Cascudo (O Espelho Mágico)

O rapaz, órfão de pai e mãe, saiu pelo mundo para ganhar a vida. Ia por um caminho quando viu uma pedra tapando a boca de um formigueiro e as formigas lutando para arredá-la. O moço, que tinha bom coração, abaixou-se e tirou a pedra com cuidado para não matar as formigas. 

Quando acabou, uma formiguinha falou: – Se você se encontrar em dificuldades, diga: Valha-me o Rei das Formigas.

O rapaz seguiu sua estrada e adiante encontrou um carneiro com uma pata enganchada num arame. Soltou o bichinho. 

O carneiro disse: – Quando você tiver uma dificuldade, diga: Valha-me o Rei dos Carneiros!

Lá mais longe o rapaz viu um peixe dentro duma poça d’água rasa, quase se acabando. O peixe estava com o lombo de fora, morrendo. O moço tirou-o da poça e sacudiu numa lagoa perto. O peixe mergulhou, foi embaixo, veio em cima, e falou: – Quando você tiver uma dificuldade, diga: Valha-me o Rei dos Peixes.

Quase avistando o reinado, o rapaz encontrou um gavião deitado no chão, seco de sede. Levou-o, deu-lhe um banho, deixou ele beber água e soltou. O gavião voou para um galho de pau e disse: – Quando você tiver uma dificuldade, diga: Valha-me o Rei dos Pássaros!

Chegando no reinado, o rapaz soube que a princesa tinha um espelho mágico que mostrava todas as coisas escondidas. O espelho só tinha forças de meia-noite até o primeiro cantar do galo. Quem se escondesse, e a princesa não descobrisse, casava com ela e, se ela achasse, perdia o homem a vida. O rapaz foi se oferecer para essa aventura.

Na primeira noite, procurou um canto fora do reinado e disse: Valha-me o Rei dos Carneiros! O carneiro apareceu e o rapaz disse o que queria.

– Monte nas minhas costas! 

O rapaz montou e o carneiro largou-se correndo, de mato a dentro, para umas brenhas fechadas onde havia uma gruta. Deitou o rapaz na gruta e encheu os arredores de carneiros, uns por cima dos outros, que ninguém via outra coisa afora carneiro.

À meia-noite a moça puxou o espelho e procurou o rapaz, por todos os lados. Tanto virou que deu com a gruta, e o espelho mostrou o rapaz deitado no chão, coberto de carneiros. A princesa tomou nota e foi dormir.

No outro dia o rapaz se apresentou.

– Onde eu estava escondido?

– Deitado no chão, dentro de uma gruta, rodeado de carneiros!

– Era isso mesmo!

Na segunda noite, o rapaz apelou para o peixe. Foi à beira-mar e chamou: Valha-me o Rei dos Peixes! 

O peixe riscou na praia. O moço contou sua dificuldade. O Rei dos Peixes mandou um tubarão engolir o rapaz e uma baleia engolir o tubarão e foi para o fundo do mar.

Na meia-noite, a princesa foi consultar o espelho. Caçou na terra e nos ares e procurou nos mares, com tanto cuidado que descobriu onde o rapaz estava dormindo. 

Na manhã, o moço apareceu e perguntou:

– Onde eu passei a noite?

– Dentro de um tubarão, este numa baleia, no fundo do mar!

– Era isso mesmo!

Na outra noite, o rapaz chamou o gavião e contou sua agonia. O gavião levou-o nas costas até em cima das nuvens e lá apareceu outro gavião ainda maior que cobriu o Rei dos Pássaros com suas asas.

À meia-noite a princesa procurou o rapaz nas águas e na terra e não achou. Procurou nos ares e não viu. Tanto olhou e olhou que enxergou um pontinho escuro por cima das nuvens. Botou reparo e descobriu tudo. O rapaz, quando veio ao palácio, perguntou:

– Onde dormi a noite passada?

– Em cima de um gavião, coberto por outro, em cima das nuvens!

– Era isso mesmo!

Como era o terceiro dia, o rapaz foi condenado à morte, mas a princesa ficou com pena dele e pediu ao rei para deixar o moço experimentar uma vez mais. 

O rapaz ficou contente e foi valer-se do Rei das Formigas. Esse ouviu a conversa toda e disse:

– O espelho descobriu você na terra, no mar e nos ares. Mas o espelho não pode ver a própria princesa. Eu vou virar você numa formiga e você suba para cima do vestido dela e esconda-se bem.

Dito e feito. O rapaz virou formiga, entrou no palácio, foi ao quarto da princesa e subiu pelo vestido acima, bem devagar para ela não pressentir, e escondeu-se na bainha da camisa.

À meia-noite a princesa procurou o rapaz em toda parte, virou e mexeu, e nada de ver onde ele estava dormindo. Passou-se a hora das forças do espelho encantado e ela não viu coisa alguma. 

Amanheceu o dia e o rapaz voltou a ser gente e veio perguntar onde tinha dormido.

– Não sei onde você dormiu! Onde foi?

– Não digo enquanto não me casar com você!

Fizeram o casamento com muita festa e só depois de casado é que o moço disse onde tinha passado a sua última noite de solteiro.
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Luís da Câmara Cascudo nasceu em Natal/RN, em 1898 falecendo na mesma cidade em 1986. Foi um historiador, sociólogo, musicólogo, antropólogo, etnógrafo, folclorista, poeta, cronista, professor, advogado, jornalista e escritor brasileiro. Passou toda a sua vida em Natal e dedicou-se ao estudo do folclore e da cultura brasileira. Foi professor da Faculdade de Direito de Natal, hoje Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), cujo Instituto de Antropologia leva seu nome. Deixou obra volumosa e de grande relevância, em particular sobre história, folclore e cultura popular. Recebeu o Prêmio Machado de Assis pela Academia Brasileira de Letras, em 1956, pelo conjunto de sua obra.

Fontes:
Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

domingo, 21 de setembro de 2025

Monteiro Lobato (A onça e o coelho)

A onça havia plantado uma roça, onde nasceu muita urtiga. A onça ficou atrapalhada. Nem entrar na roça podia, porque a urtiga arde muito. Foi então que chamou os animais da floresta. 

— Quem me capinar esta roça sem se coçar ganha um boi. — disse ela. 

O macaco se prontificou a fazer o serviço. Mas assim que deu começo à capinação, coçou-se tanto que a onça o tocou de lá. 

Veio o bode, que também se coçou com o chifre. A onça tocou o bode. 

Por fim apresentou-se um coelhinho. "Esta é boa!" — disse a onça. — "Se nem o macaco e o bode puderam capinar a roça, que espera fazer este bichinho?" 

Mas como o coelho insistisse, consentiu. 

A onça ficou fiscalizando o serviço para ver se ele se coçava; depois cansou-se daquilo e deixou uma sua filha no lugar. 

O coelho, que não podia mais de tanta comichão, teve uma ideia. Voltou-se para a filha da onça e perguntou: "Escute: aqui, oncinha, o tal boi que sua mãe prometeu não é um boi malhado, com uma mancha amarela aqui (e dizendo isso coçava a perna), e outra aqui (e coçava o lombo) e outra aqui (e coçava o focinho)? 

A oncinha, muito boba, respondeu que era. O coelho prosseguiu no trabalho, e quando a comichão apertou demais veio novamente perguntar se o boi não tinha também uma mancha amarela em tal e tal parte — e coçava ali. E desse modo conseguiu capinar a roça inteira, ganhando o boi. 

Mas a onça impôs uma condição. 

— Compadre coelho, dou o boi, mas você só poderá matá-lo num lugar onde não houver moscas, nem galo que cante, nem galinha que cacareje. 

O coelho, concordando, lá se foi com o boi em procura de um lugar onde pudesse matá-lo. Andava um pedaço, parava, escutava e sem tardança ouvia um cocoricocó! 

— Aqui não serve. Tem galo. — e seguia para adiante. 

E foi andando até que chegou a um lugar onde não havia mosca nenhuma, nem se ouvia nenhum coricocó. Então matou o boi. Nisto surge a onça. 

— Compadre coelho, — disse ela — um boi é muita coisa para você. Passe para cá um pedaço. 

O coelho deu-lhe um pedaço, que a onça devorou num segundo. 

— Não chegou para matar a minha fome, compadre. Passe para cá outro pedaço. — e o coelho deu outro pedaço. Por fim a onça devorou o boi inteirinho. 

O coelhinho voltou para casa muito triste, com o facão na cintura. Ia pensando num meio de vingar-se da onça. 

Teve uma ideia. Entrou no mato e pôs-se a cortar cipó. Apareceu a onça. 

— Que está fazendo aí, compadre coelho? 

— Estou tirando cipós. Como Deus vai castigar o mundo com uma tremenda ventania, preciso de cipó para me amarrar a um tronco de árvore. 

A onça, amedrontadíssima, pediu: 

— Nesse caso, amarre-me também, compadre. 

— Não posso. — disse o coelho fingida-mente. — Tenho de ir para casa amarrar meus filhinhos. 

— Amarre-me primeiro, - pediu a onça - e depois vá amarrar seus filhinhos. 

O coelho coçou a cabeça e por fim disse: 

— Está bem, comadre onça e como prova de amizade vou fazer esse grande favor — e amarrou-a com todos os cipós, deixando-a impossibilitada do menor movimento. 

— Bom, — disse ele ao concluir o serviço — a comadre está tão bem amarradinha que nem o maior dos furacões é capaz de arrancá-la daí — e foi-se embora, a rir. 

Passado algum tempo a onça, vendo que não vinha vento nenhum, desconfiou. "Querem ver que fui tapeada pelo tal coelho? Como agora livrar-me deste amarramento?" 

Vinha vindo um macaco. 

— Amigo macaco, faça o favor de tirar de mim estes cipós. 

Mas o macaco, sabidão que era, apenas disse: "Deus ajude a quem te amarrou", e foi-se embora. 

Apareceu um veado. 

— Amigo veado, faça o favor de desamarrar-me, pediu a onça. 

O veado, apesar de burrinho, deu a mesma resposta do macaco, e lá se foi. 

Veio o bode, e aconteceu a mesma coisa. 

Passadas algumas horas, o coelho foi espiar como ia indo a onça. 

— Compadre coelho, viva! O vento não apareceu e eu estou que não posso mais. Venha desamarrar-me. 

O coelho, com dó dela, pôs-se a desenrolar os cipós. Assim que a malvada se viu livre, nhoc! deu-lhe um pega. Mas o coelho alcançou dum pulo um buraco, mesmo assim a onça agarrou-lhe um pé. 

O coelho caiu na risada. 

— Ah, como é tola a minha comadre onça! Agarrou uma raiz de pau e está pensando que é meu pé. Ah, ah, ah!... 

A onça, desapontada, soltou as unhas, pensando mesmo que houvesse ferrado uma raiz de pau. O coelho afundou no buraco. 

Uma garça veio pousar ali perto. A onça chamou-a. 

— Comadre garça, — disse ela — fique de olho nesta cova, enquanto eu vou buscar uma enxada. Não deixe o coelho sair. 

A garça ficou na árvore, com os olhos no buraco. 

O coelho disse: — Que grande tola! Então é assim que uma garça toma conta de buraco onde está um coelho? 

— Como devo fazer então? — perguntou a bobinha. 

— Ora, ora! Tem de vir aqui e ficar com o bico dentro do buraco. 

A garça desceu da árvore e enfiou o bico no buraco. O coelho atirou-lhe aos olhos um punhado de areia e escapou. 

Nisto veio a onça com a enxada. Cavou, cavou até lá no fundo e nada de coelho. 

— Comadre garça, que fim levou o coelho que estava aqui? 

— Não sei! — respondeu a tola. — Ele me mandou que enfiasse o bico no buraco. Assim que enfiei o bico, me botou nos olhos areia. Fiquei cega e nada mais vi. 

A onça, furiosa, deu um bote na garça, que lá se foi voando, muito fresca da vida.
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Monteiro Lobato (José Bento Renato Monteiro Lobato) nasceu em 1882, em Taubaté/SP, e faleceu em 1948, em São Paulo. Foi promotor, fazendeiro, editor e empresário. Apesar de também escrever para adultos, ficou mais conhecido por causa dos seus livros infantis. Faz parte do pré-modernismo e escreveu obras marcadas pelo realismo social, nacionalismo e crítica sociopolítica. Já seus livros infantis da série Sítio do Picapau Amarelo possuem traços da literatura fantástica, além de apresentarem elementos folclóricos, históricos e científicos.Em 1900, ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo. Em 1903, se tornou um dos redatores do jornal acadêmico O Onze de Agosto. Escreveu também para periódicos como Minarete, O Povo e O Combatente. Se formou em Direito no final do ano de 1904. Em 1908, se casou com Maria da Pureza. Com a morte do avô, em 1911, o escritor recebeu como herança algumas terras. Assim, decidiu morar na fazenda do Buquira. Ele passou a ser conhecido quando, em 1914, sua carta “Uma velha praga” foi publicada n’O Estado de S. Paulo. Em seguida, o autor criou o personagem Jeca Tatu. Três anos depois, desistiu da vida de fazendeiro e se mudou para São Paulo. Nesse ano, publicou o polêmico artigo Paranoia ou mistificação?, que critica as tendências modernistas. No ano seguinte, comprou a Revista do Brasil. Em 1920, fundou a editora Monteiro Lobato & Cia. Cinco anos depois, vendeu a Revista do Brasil para Assis Chateaubriand (1892–1968) e decretou a falência da editora Lobato & Companhia, que, a essa altura, já se chamava Companhia Gráfico-Editora Monteiro Lobato. Ele se tornou sócio da Companhia Editora Nacional. Se mudou para o Rio de Janeiro, em 1925. Dois anos depois, foi para Nova York, onde assumiu o cargo de adido comercial. Em 1929, devido à crise econômica, vendeu suas ações da Companhia Editora Nacional. No final de 1930, quando Getúlio Vargas (1882–1954) subiu ao poder, o escritor perdeu seu cargo de adido comercial. Retornou ao Brasil no ano seguinte. Em 1932, foi um dos fundadores da Companhia Petróleo Nacional. Anos depois, em 1941, o autor ficou preso, durante três meses, por fazer críticas ao regime ditatorial de Getúlio Vargas. Se tornou sócio da Editora Brasiliense, em 1946, ano em que decidiu morar na Argentina, onde foi um dos fundadores da Editorial Acteón. Voltou ao Brasil em 1947 e fez críticas ao governo de Eurico Gaspar Dutra (1883–1974). Em 1922, decidiu concorrer à cadeira número 11 da Academia Brasileira de Letras. Porém, desistiu da candidatura por não querer “implorar votos”. Já em 1926, voltou atrás e, novamente, concorreu a uma vaga na ABL, mas não foi eleito. Por fim, em 1944, recusou indicação para a Academia, em protesto por Getúlio Vargas ter sido eleito à Academia Brasileira de Letras em 1941

Fontes:
Monteiro Lobato. Histórias de Tia Nastácia. Publicado originalmente em 1937. Disponível em Domínio Público.  
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sábado, 30 de agosto de 2025

Sílvio Romero (O pescador)

(folclore do Pernambuco)

Havia um homem que era pescador e tinha uma filha. Um dia, ele foi pescar e achou uma joia no mar, muito bonita. Ele voltou para casa muito alegre e disse à filha:

 — Milha filha, eu vou dar esta joia de presente ao rei.

A filha disse que ele não desse, e antes guardasse, mas o velho não a ouviu e levou a joia ao rei. 

Este recebeu a joia e disse ao velho que (sob pena de morte) queria que ele lhe levasse sua filha ao palácio: nem de noite, nem de dia, nem a pé, nem a cavalo, nem nua, nem vestida. 

O velho pescador voltou para casa muito triste, o que vendo a filha, perguntou-lhe o que tinha. 

Então, o pai respondeu que estava triste porque o rei tinha-lhe ordenado que ele a levasse, nem de dia, nem de noite, nem a pé, nem a cavalo e nem nua, nem vestida. 

A moça disse ao pai que descansasse, que ficava tudo por conta dela, e pediu que lhe desse uma porção de algodão e saiu montada num carneirinho. 

Quando chegaram no palácio, o rei ficou muito contente e satisfeito, porque o velho tinha cumprido o que havia ordenado sob pena de morte. 

A moça ficou no palácio e o rei disse-lhe que ela podia escolher e levar para casa a coisa de que mais lhe agradasse dali. 

Na ocasião do jantar, a moça deitou um bocado de dormideira no copo de vinho do rei e chamou os criados e mandou preparar uma carruagem. Quando o rei tomou o vinho, deu-lhe logo muito sono e foi dormir. 

A carruagem já estava preparada e a moça mandou os criados botarem o rei dentro e largou-se para casa. Quando o rei acordou da dormideira, achou-se na casa do velho pescador, deitado em uma cama e com a cabeça no colo da moça. 

O rei ficou muito espantado e perguntou o que queria dizer aquilo. 

Ela então respondeu que ele tinha dito que podia trazer do palácio aquilo que mais lhe agradasse e do que mais ela se agradou foi dele. 

O rei ficou muito contente ao ver a sabedoria da rapariga e casou-se com ela, havendo muita festa no reino.
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SÍLVIO VASCONCELOS DA SILVEIRA RAMOS ROMERO (1851-1914) foi crítico e historiador da literatura brasileira. Fundador da Academia Brasileira de Letras. Pensador social, folclorista, poeta, jornalista, professor e político. Era sócio correspondente da Academia de Ciências de Lisboa. Nasceu na vila de Lagarto, Sergipe, 1851. Em 1868 mudou-se para o Recife e ingressou na Faculdade de Direito. Polêmico, combativo e contraditório, foi influenciado por seu conterrâneo Tobias Barreto. Juntos, lideravam uma escola que reunia jovens inteligentes e destemidos, que se encarregavam de irradiar as recentes ideias vindas da França. Quando estava no 2. Ano da faculdade, Sílvio Romero colaborou com vários jornais. Em 1873 concluiu o curso de Direito. Em 1876 mudou-se para o Rio de Janeiro onde obteve a cátedra de filosofia. Romero foi também professor da Faculdade Livre de Direito e da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro. Como poeta, teve uma breve carreira. O primeiro livro de poemas foi Cantos do Fim do Século, lançado em 1878, em uma tentativa de aderir poesia filosófica científica que pregava desde 1870 em artigos, mas que não obteve êxito. Em 1883 publicou Últimos Arpejos, seu segundo e último volume de poesia. Desenvolveu intensa atividade como escritor. Escreveu vários livros que abordavam praticamente tudo que se referia à realidade cultural brasileira como: filosofia, literatura, folclore, educação, política e religião. Publicou assuntos ligados à cultura popular revelando-se um grande folclorista. Escreveu sobre filosofia no Brasil e sobre escolas filosóficas diversas. Em 1878 escreveu Filosofia no Brasil, publicado em Porto Alegre. Sua obra História da Literatura Brasileira (1888), em dois volumes, menos uma história literária do que uma enciclopédia de conhecimentos sobre o Brasil, a origem e evolução de sua cultura, suas raízes sociais e técnicas, foi considerada sua obra mais revolucionária. Deixou uma vasta obra culturalmente valiosa e pioneira em muitos aspectos. Respeitado pela imprensa nacional, conquistou seu lugar como um dos mais importantes críticos e historiadores da literatura brasileira do século XIX. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1914.

Fontes:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Publicado originalmente em 1883.
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domingo, 24 de agosto de 2025

Figueiredo Pimentel (Um raio de sol)

Uma formosa manhã de maio, limpa, alegre, fresca, perfumada, é um dos maiores encantos da natureza.

Em uma dessas lindas manhãs de primavera, bem cedo, ainda à hora em que o sol se faz anunciar pelos seus primeiros raios, Helena, ainda dormia! Como sorri em algum sonho alegre! Ainda ninguém entrou no quarto dela, e apesar disto, a Heleninha já hoje recebeu um beijo. Quem foi então, que lhe deu? Algum passarinho que entrasse pela janela? Não! A janela está fechada. Foi um raio de sol que, penetrando por uma fenda passou nos lábios de Helena, e ficou todo espantado por encontrar uma menina ainda a dormir. Mas, de repente, Helena acorda, esfrega os olhos, relanceia a vista por todos os lados para ver quem a acordou, e dá com o raio de sol.

— Raiozinho brilhante, disse-lhe ela, tiveste muito juízo em me vires visitar. Aposto que estás levantado há muito tempo. Quem sabe mesmo se já trabalhaste muito esta manhã?

— É verdade que sim, respondeu o raio, já hoje trabalhei muito. Quando meu pai me despede não dá licença para que me divirta, e tem razão, porque eu, quando estou mais contente, é quando trabalho.

— Teu pai? Mas quem é teu pai?

— É o sol. Mora lá em cima, muito alto, no céu. É tão grande, tão grande, que não poderia vir à terra, por isso manda os filhos em seu lugar. Os filhos são os raios do sol meus irmãos, que à minha semelhança, alumiam e aquecem a terra.

— Mas, tornou Helena, teus irmãos poderiam entrar contigo no quarto?

— De modo nenhum, a fenda era estreitíssima. Só eu pude passar. Os outros raios ficaram lá fora, estão alumiando a fachada da casa. Agora, se tu quiseres abrir a janela, entrarão contentíssimos em teu quarto.

— Ainda não, disse Helena, eu queria que tu, antes disso, me contasses tudo o que tens feito e o que viste no teu passeio esta manhã.

— Oh! Já vi muitas coisas. Não te posso contar todas; mas, se gostas dir-te-ei algumas. Quanto rompi da montanha, entrei numa floresta, e dei claridade a uma família de cotias que se recolhiam à toca, e pareciam alegríssimas, naturalmente tinham dançado toda a noite em algum gramado. Na mesma floresta alumiei um ninho de sabiás negros. A mãe, mal me viu, acordou o marido, depois os filhinhos, e todos a um tempo, principiaram a cantar. Interei aluminar também um besouro muito velho, mas escondeu-se logo debaixo de uma folha, por me não querer ver. Por volta das cinco horas entranhei-me numa sebe à borda da estrada e fiz desabrochar uma formosa trepadeira, cor-de-rosa e branca. Quando cheguei, ainda estava toda fechada, mas apenas a aqueci, logo se abriu, eu fiquei alegríssimo ao observá-la. Na mesma sebe alumiei uma aranha que estava a tecer a teia, espero que ninguém a destrua, porque levou muito tempo, e teve muito trabalho em a tecer. Mesmo ao pé, fiz brilhar as gotas de orvalho suspensas nas vergônteas das ervas, ajudei uma pitanga amadurecer e aqueci uma mosca. Ainda fiz muitas mais coisas, amanhã as contarei. Agora, já é tarde, é mais que tempo de te levantares.

— Oh! por quem és, conta-me ainda mais alguma coisa, disse a pequenina. Não vistes crianças esta manhã?

— Ora, se vi! E muitas! Levantaram-se bem cedo. A Luizinha, ainda não eram seis horas, já estava a dar de comer às galinhas, ao mesmo tempo que a leiteira saía para a cidade. O Joãozinho levava as cabras para o pasto, em companhia do pai, que ia ceifar erva! Ah! Já me esquecia dizer-te que muitas vezes trabalho ajudado pelos meus irmãos; sozinho não poderia muito. Agora, uns com os outros, amadurecemos os trigos e as frutas todas, de que tu gostas tanto, aquecemos as costas da avó da Luizinha, que estava sentada no pátio, e secamos uma camisa e uma touca, que estão penduradas na corda. Ai! Ai! Que tenho falado muito! É tempo e retempo de te vestires e de te pores a trabalhar mas sempre te confessarei com franqueza que, se os raios do sol se devem dar por felizes por prestarem luz aos trabalhadores, não gostam muito de aluminar os preguiçosos.

— Lindo raio, obrigada por tantas coisas boas que hoje me ensinaste. Se voltares amanhã, à mesma hora, eu te prometo que não me hás de encontrar na cama; aproveitarei a tua formosa luz para continuar a minha tarefa.

Dizendo isto, Helena levantou-se e foi abrir a janela de par em par. Os raios de sol entraram todos ao mesmo tempo no quarto, e encheram-no de luz. Helena, preparou-se, almoçou, e deu princípio ao seu dia, com a firme intenção de se tornar numa boa trabalhadorazinha.
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ALBERTO FIGUEIREDO PIMENTEL nasceu e morreu em Macaé/RJ, 1869 — 1914 foi além de poeta, contista, cronista, autor de literatura infantil e tradutor. Manteve por muitos anos, desde 1907, uma seção chamada Binóculo na Gazeta de Notícias. Publicou novelas, poesia, histórias infantis e contos. Um de seus grandes êxitos foi o romance O Aborto, estudo naturalista, publicado em 1893, e por mais de um século completamente esgotado. Como poeta, participou da primeira geração simbolista chegando a se corresponder com os franceses. Era amigo de Aluísio Azevedo, com quem trocou cartas, enquanto o autor de O Cortiço estava fora do país como diplomata. Poeta, romancista, escritor de literatura infantil, ganhou destaque e se perpetuou nos compêndios da literatura brasileira. A coluna Binóculo, assinada pelo autor na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, de 1907 até 1914, obteve grande sucesso entre leitores e leitoras, ditando moda, o que faz de Figueiredo Pimentel o primeiro cronista social da capital. Era ele quem tratava das novidades da moda, do bom gosto, do chique em voga em Paris e que deveria ser aqui aclimatado. Obras: Fototipias, poesia, 1893; Histórias da avozinha, conto - somente em 1952; Histórias da Carochinha; Livro mau, poesia, 1895; O aborto, 1893; O terror dos maridos, romance e novela, 1897; Suicida, romance e novela, 1895; Um canalha, romance e novela, 1895.
Fontes:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado originalmente em 1896. 
Disponível em Domínio Público. 
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sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Contos e Lendas Indígenas (Tribo Kadiwéu*) Alagadiélali

Quando Deus fez a criação dele aqui na terra, de certo que tinha muito poder. Por isso, os índios têm tantas histórias do que ocorreu naquele tempo.

Conta-se que, naquele tempo, havia um animal dentro de uma lagoa, chamado alagadiélali. Fez o Criador uma coberta de palha de acuri, para sondar aquele animal que devorava outros animais existentes na região e que eram suas criações.

Ficou sondando a lagoa e viu um veado se aproximar para beber água e ele sumiu, devorado que fora pelo monstro.

Pensou o Criador em matá-lo e se pôs a dialogar com o martim-pescador:

– Martim, empreste-me seu capote!

– Senhor, se eu o emprestar, morro de frio.

Mesmo assim aceitou o empréstimo e desvestiu-se.

Então, o Criador se fantasiou de pássaro e foi matar o alagadiélali dentro d’água.

O monstro foi puxado para terra e cortado em pedaços, pois estava gordo. O Criador distribuía o sebo desse monstro aos outros animais, razão do porco ter a natureza de gordo, porque dele comeu bastante.

Depois, o Criador tocou uma buzina e os outros animais começaram a chegar, para receber as fatias de gordura do alagadiélali. O primeiro a aparecer, como se percebe, foi o porco. Depois apareceu o boi que também engoliu o sebo, do mesmo que o cavalo e a capivara.

O veado e a ema comeram pouco sebo e, por isso, se tornaram magros, pois chegaram atrasados ao chamado, longe que estavam.

Além do mais, a ema resolveu descansar em cima de um formigueiro, antes de chegar ao Criador. Dormiu e teve suas asas roídas pelos insetos, o que conserva até hoje.

O cágado, quando está gordo, tem apenas o fígado gorduroso, pois, vagaroso que é, chegou por último. Achou ele apenas uma brasa engordurada e engoliu. Assim, se explica não ter ele carne alguma.
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Os Kadiwéu, conhecidos como "índios cavaleiros", por sua destreza na montaria, guardam em sua mitologia, na arte e em seus rituais o modo de ser de uma sociedade hierarquizada entre senhores e cativos. Guerreiros, lutaram pelo Brasil na Guerra do Paraguai, razão pela qual, como contam, tiveram suas terras reconhecidas. Integrantes da única "horda" sobrevivente dos Mbayá, um ramo dos Guaikurú.

Fontes:
FERNANDES, José; BATISTA, Orlando Antunes. Lendas terena e kadiwéu. Disponível em http://www.jangadabrasil.com.br/julho35-im35070b-htm/index.htm
Povos Indígenas do Brasil.
https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Kadiw%C3%A9u
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quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Sílvio Romero (O homem pequeno)


(Folclore do Sergipe)

UMA VEZ UM PRÍNCIPE saiu a caçar com outros companheiros, e enterraram-se numa mata. O príncipe, que se chamava D. João, adiantou-se muito dos companheiros e se perdeu. Depois de muito andar, avistou um muro muito alto, que parecia uma montanha, e para lá se dirigiu. Quando lá chegou percebeu que estava numa terra estranha, pertencente a uma família de gigantes. O dono da casa era um gigante enorme, que quase dava com a cabeça nas nuvens; tinha mulher também gigante, e uma filha gigante de nome Guimara.

Quando o dono da casa viu D. João, gritou logo: “Oh, homem pequeno, o que anda fazendo?” 

O príncipe contou-lhe a sua história, e então o gigante disse: “Pois bem; fique aqui como um criado.” 

O príncipe lá ficou, e, passados uns tempos, Guimara se apaixonou por ele. 

O gigante, que desconfiou da coisa, chamou um dia o príncipe, e lhe disse: “Oh, homem pequeno! Tu disseste que te atrevias a derrubar numa só noite o muro das minhas terras e a levantar um palácio?” 

“Não, senhor meu amo; mas, como vossemecê manda, eu obedeço.” 

O moço saiu por ali vexado de sua vida, e foi ter ocultamente com Guimara, que lhe disse: “Não é nada; eu vou e faço tudo.” 

Assim foi: Guimara, que era encantada, deitou abaixo o muro, e levantou um palácio que dar-se podia. 

No outro dia o gigante foi ver bem cedo a obra e ficou admirado. “Oh, homem pequeno?” 

— “Inhô!” 

— “Foste tu que fizeste esta obra ou foi Guimara?” 

— “Senhor, fui eu, não foi Guimara; se meus olhos viram Guimara, e Guimara viu a mim, mau fim tenha eu a Guimara, e Guimara mau fim tenha a mim.” 

Passou-se. Depois de alguns dias, o gigante, que andava com vontade de matar o homem pequeno, lhe levantou outro aleive: “Oh, homem pequeno! Tu disseste que te atrevias a fazer da ilha dos bichos bravos um jardim cheio de flores de todas as qualidades, e com um cano a deitar, a despejar água, tudo numa noite?” 

— “Senhor, eu não disse isto, mas como vossemecê ordena eu irei fazer.” 

Saiu dali mais morto do que vivo, e foi ter com Guimara, que lhe disse: “Não tem nada; eu hoje hei de fazer tudo de noite.” 

Assim foi. De noite ela fugiu de seu quarto, e, com o homem pequeno, trabalhou toda a noite, de maneira que no outro dia lá estava o jardim cheio de flores, e com um cano a jorrar água; era uma obra que dar-se podia. 

O gigante, dono da casa, foi ver a obra e ficou muito espantado, e então, formou o plano de ir à noite ao quarto de Guimara e ao do homem pequeno para os matar. 

A moça, que era adivinha, comunicou isto a D. João, e convidou-o para fugir, deixando nas camas em seu lugar duas bananeiras cobertas com os lençóis para enganar ao pai.

Alta noite fugiram montados no melhor cavalo da estrebaria, o qual caminhava cem léguas de cada passada. 

O pai quando os foi matar os não encontrou, e disse o caso à mulher, que lhe aconselhou que partisse atrás montado no outro cavalo que caminhava cem léguas de cada passada, e seguisse a toda a brida. 

O gigante partiu, e, quando ia chegando perto dos fugitivos, Guimara virou um riacho e D. João um negro velho, o cavalo num pé de árvore, a sela numa leira de cebolas, e a espingarda, que levavam, num beija-flor. 

O gigante, quando chegou ao riacho, se dirigiu ao negro velho, que estava tomando banho: “Oh, meu negro velho! Você viu passar aqui um moço com uma moça?” 

O negro não prestava atenção, mergulhava n’água, e quando levantava a cabeça, dizia: “Plantei estas cebolas, não sei se me darão boas!. . . ” 

Assim muitas vezes, até que o gigante se maçou e se dirigiu ao beija-flor, que voou-lhe em cima, querendo furar-lhe os olhos. 

O gigante desesperou e voltou para casa. Chegando lá contou a história à velha sua mulher, que lhe disse: “Como você é tolo, marido! O riacho é Guimara, o negro velho o homem pequeno, a leira de cebola a sela, o pé de árvore o cavalo, e o beija-flor a espingarda. Corra para trás e vá pegá-los.”

O gigante tornou a partir como um danado até chegar perto deles, que se haviam desencantado e seguido a toda a pressa. 

Quando eles avistaram o gigante, a moça se transformou numa igreja, D. João num padre, a sela num altar, a espingarda no missal, e o cavalo num sino. 

O gigante entrou pela igreja adentro, dizendo: “Oh seu padre, o senhor viu passar por aqui um moço com uma moça?” 

O padre, que fingia estar dizendo missa, respondeu:

“Sou um padre ermitão, Devoto da Conceição, Não ouço o que me diz, não. Dominus vobiscum.”

Assim muitas vezes, até que o gigante se aborrece e volta para trás desesperado. Chegando em casa contou a história à mulher, que lhe disse: “Oh, marido! Você é muito tolo! Corra já, volte, que a igreja é Guimara, o padre é o homem pequeno, o missal a espingarda, o altar a sela, o sino o cavalo.” 

Eles lá se desencantaram e seguiram a toda a pressa, mas o gigante de cá partiu feroz; ia botando serras abaixo, e, quando estava de novo quase a pegá-los, Guimara largou no ar um punhado de cinza e gerou-se no mundo uma neblina tal que o gigante não pôde seguir e voltou. 

Depois disto os fugitivos chegaram ao reino de D. João. Guimara, então, lhe pediu que, quando entrasse em casa, para não se esquecer dela por uma vez, não beijasse a mão de sua tia. 

O príncipe prometeu, mas quando entrou em palácio a primeira pessoa que lhe apareceu foi sua tia, a quem ele beijou a mão, e se esqueceu, por uma vez, de Guimara, que o tinha salvado da morte. 

A moça lá perdeu na terra estranha o encanto, e ficou pequena como as outras, mas sempre triste.
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SÍLVIO VASCONCELOS DA SILVEIRA RAMOS ROMERO (1851-1914) foi crítico e historiador da literatura brasileira. Fundador da Academia Brasileira de Letras. Pensador social, folclorista, poeta, jornalista, professor e político. Era sócio correspondente da Academia de Ciências de Lisboa. Nasceu na vila de Lagarto, Sergipe, 1851. Em 1868 mudou-se para o Recife e ingressou na Faculdade de Direito. Polêmico, combativo e contraditório, foi influenciado por seu conterrâneo Tobias Barreto. Juntos, lideravam uma escola que reunia jovens inteligentes e destemidos, que se encarregavam de irradiar as recentes ideias vindas da França. Quando estava no 2. Ano da faculdade, Sílvio Romero colaborou com vários jornais. Em 1873 concluiu o curso de Direito. Em 1876 mudou-se para o Rio de Janeiro onde obteve a cátedra de filosofia. Romero foi também professor da Faculdade Livre de Direito e da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro. Como poeta, teve uma breve carreira. O primeiro livro de poemas foi Cantos do Fim do Século, lançado em 1878, em uma tentativa de aderir poesia filosófica científica que pregava desde 1870 em artigos, mas que não obteve êxito. Em 1883 publicou Últimos Arpejos, seu segundo e último volume de poesia. Desenvolveu intensa atividade como escritor. Escreveu vários livros que abordavam praticamente tudo que se referia à realidade cultural brasileira como: filosofia, literatura, folclore, educação, política e religião. Publicou assuntos ligados à cultura popular revelando-se um grande folclorista. Escreveu sobre filosofia no Brasil e sobre escolas filosóficas diversas. Em 1878 escreveu Filosofia no Brasil, publicado em Porto Alegre. Sua obra História da Literatura Brasileira (1888), em dois volumes, menos uma história literária do que uma enciclopédia de conhecimentos sobre o Brasil, a origem e evolução de sua cultura, suas raízes sociais e técnicas, foi considerada sua obra mais revolucionária. Deixou uma vasta obra culturalmente valiosa e pioneira em muitos aspectos. Respeitado pela imprensa nacional, conquistou seu lugar como um dos mais importantes críticos e historiadores da literatura brasileira do século XIX. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1914.

Fontes:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Publicado originalmente em 1883.
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segunda-feira, 11 de agosto de 2025

Folclore Indígena (Nação Guarani) Erva Mate

Há muitos e muitos anos, uma grande tribo guarani, por se nômade precisavam encontrar um outro lugar para morar onde a caça fosse farta e a terra fértil. Lentamente os índios foram deixando a aldeia onde haviam vivido tantos anos.

O povo migrou, mas sem que ninguém soubesse um velho índio que dormira tapado por couros ao acordar se viu só, sem seus descendentes para cuida-lo.

É obrigado a levantar-se e agarrando-se as árvores se põem a caminhar, nisto surge uma bela e jovem índia que se coloca atrás dele.

Ela chamava-se Yari e era sua filha mais nova, que não teve coragem de abandonar seu velho pai, que sozinho iria morrer.

Numa triste tarde de inverno, o velho entretido colhendo algumas frutas, assustou-se quando viu mexer-se uma folhagem próxima. Pensou que fosse uma onça, mas eis que surge um homem branco muito forte, de olhos cor do céu e vestido com roupas coloridas.

Aproximou-se e disse-lhe:

- Venho de muito longe e há dias ando sem parar. Estou cansado e queria repousar um pouco. Poderia arranjar-me uma rede e algo para comer?

- Sim, respondeu o velho índio, mesmo sabendo que sua comida era muito escassa.

Quando chegaram à sua cabana, ele apresentou ao visitante a sua filha.

Yari acendeu o fogo e preparou algo para o moço comer. O estranho comeu com muito apetite. O velho e a filha emprestaram a cabana e foram dormir em uma das outras abandonadas.

Ao amanhecer o velho índio encontrou o homem branco, pediu que ele descansasse um pouco mais. Porem, respondeu-lhe que tinha percebido a necessidade dos dois, ninguém o tinha ajudado e acolhido tanto então. 

Embrenhou-se em direção à floresta. Depois de algum tempo retornou com várias caças.

- Vocês merecem muito mais! explicou o homem – me darem o que não tinham e foram de grande bondade. Tupã está preocupado com a saúde de vocês e por isto me enviou. E em gratidão a tanta bondade lhe concedo um pedido.

O pobre velho queria um amigo que lhe fizesse companhia até o findar de seus dias, para que pudesse deixar de ser um fardo para sua doce e jovem filha. O estranho levou-lhe então até uma erva mais estranha ainda dizendo:

- Esta é a erva-mate. Plante-a e deixa que ela cresça e faça-a multiplicar-se. Deve arrancar-lhe as folhas, fervê-las e tomar como chá. Suas forças se renovarão e poderá voltar a caçar e fazer o que quiser. Sua filha poderá então retornar a sua tribo. 

Yari resolveu que de qualquer jeito jamais deixaria de fazer companhia ao pai. Pela sua dedicação e zelo, o enviado do tupã sorriu emocionado e disse:

- Por ser tão boa filha, a partir deste momento passará a ser conhecida como Caá-Yari, a deusa protetora dos ervais. Cuidará para que o mate jamais deixe de existir e fará com que os outros o conheçam e bebam a fim de serem fortes e felizes.

Logo depois o estranho partiu, mas deixou na cabeça de Yari uma grande dúvida: como poderia ela, vivendo afastada das demais tribos divulgar o uso da tal erva? E o tempo foi passando...

Em uma tribo não muito distante dali, os índios estavam contentes com a fartura das caçadas.  Organizaram uma grande festa para comemorar, não faltava comida e muita bebida. Mas a bebida demais levou dois jovens índios a começaram a discutir e brigar. Tratava-se de Piraúna e Jaguaretê.

No furor da briga Jaguaretê empunha um tacape e bate na cabeça de Piraúna, matando-o. Jaguaretê foi então detido e amarrado ao poste das torturas. Pelas leis da tribo, os parentes do morto deveriam executar o assassino. Trouxeram imediatamente o pai de Piraúna para que ordenasse a execução. Muito consciente que a tragédia só aconteceu por estarem os jovens sob o efeito da bebida, liberou o Jaguaretê, que foi então expulso da tribo e foi buscar sua sorte na floresta e quem sabe nos braços de Anhangá, espírito mau da mata. Conforme caminhava e o efeito do álcool era amenizado, mais se arrependia do mal que fizera.

Passadas muitas décadas, alguns índios daquela tribo, aventuravam-se na mata fechada em busca caça que já estava rara no local em que viviam. Entrando no sertão, no meio da floresta, encontraram uma cabana e foram aproximando-se com cuidado, mas mesmo assim foram pressentidos e saiu da cabana um homem muito forte e sorridente. Muito embora seus cabelos fossem totalmente brancos, sua fisionomia era de um jovem e ofereceu-lhes uma bebida desconhecida. Identificou-se então como sendo Jaguaretê, o índio expulso de sua tribo e que a bebida desconhecida era o mate.

Contou que quando foi abandonado a sua sorte, muito andou e quando estava apertado de cansaço e remorso, jogou-se ao chão e pediu para morrer. Acordou-se com a visão de uma índia de rara beleza que apiedando-se dele disse-lhe:

- Meu nome é Caá-Yari e sou a deusa dos ervais. Tenho pena de você, pois não matou por gosto e agora arrepende-se amargamente pelo que fez. Para suportar seu exílio, eis aqui uma bebida que o deixará forte e lhe esclarecerá as ideias. 

Levou-o até uma estranha planta e voltou a dizer:

- Esta é a erva-mate. Cultive-a e a faça multiplicar. Depois prepare uma infusão com suas folhas e beba o chá. Seu corpo permanecerá forte e sua mente clara por muitos anos. Não deixe de transmitir a quem encontrar o que aprendeu com o mate.

- Por tanto, jovens guerreiros, quero que leve alguns pés da erva-mate para a sua tribo e que nunca deixem de transmitir aos outros o que aprenderam.

Aqueles índios voltaram e contaram aos outros os que haviam ouvido. O mate foi plantado e multiplicou-se. Outras tribos apreenderam e foi desta forma que seu uso chegou até nós.

Fontes:
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sábado, 9 de agosto de 2025

Folclore Indígena (Por quê é Triste o Jaburu)

 (Mito indígena de animais encantados do Mato Grosso) 

Nessa hora dúbia que ainda é dia e ainda não é noite, uma imensa tristeza se apodera dessa ave esquisita. E o jaburu, num dormitar profundo, nem sequer agita o longo pescoço, parecendo então um empalhado espécime de museu.

Nas grandes noites de cheia, move as asas poderosas e caminha de um lado para outro, lento e meditativo, como a montar guarda, naquela lagoa que é, desde há muito tempo, o seu pouso, a sua morada.

Vive sempre só e quando acontece aparecer um intruso, abre-lhe guerra e luta ferozmente.

Na hora crepuscular o seu voo nos faz lembrar velhas imagens de contos de fadas.

Quem viajar pelos sertões de Mato Grosso, mormente pela zona sul, há de encontrar à margem dos rios ou à beira das lagoas, uma ave cinzento-escura, pernas grossas, triste e esquisita, que tem, constantemente, a cabeça voltada para a terra…

É o jaburu.. .

Todas as tardes, ali escorado ele está numa perna só, tristonho, cabisbaixo.

Sobre a tristeza mística dessa ave há a seguinte versão: 

Mandi, indiozinho guerreiro, quebrando os preceitos sagrados da sua religião, deixou-se um dia apaixonar perdidamente por Ituna a mais formosa mulher da tribo de Morembi.

O pai queria fazê-lo Cacique, mas para isso era preciso, conforme dizia o pajé, que o filho não se casasse enquanto não passassem cinco luas, depois de ter recebido do pai o tacape de guerreiro e o diadema de morubixaba. Mas Mandi, que já havia consultado as águas da Lagoa Sagrada, sabia perfeitamente que a primeira lua muito longe estava ainda.

Por isso não podia esperar. Antes perder a soberania de Cacique do que ficar sem o amor daquela que Tupã mandara do céu, para alegria de seu coração na terra.

E Mandi não esperou, nem tão pouco ouviu as súplicas angustiosas do pai velhinho e doente…

Carin revoltou-se e, num momento de ódio, rogou uma praga terrível contra o filho.

Todas as tardes inevitavelmente, Mandi ia encontrar-se com Ituna à beira da Lagoa Sagrada e ali ficava, horas a fio, a contemplar a majestade de Febo, que se ocultava, aos poucos, na curva ensanguentada do horizonte.

Mas nunca estavam sós.

Uma ave de plumagem cinzento-escura, pescoço encolhido, descansando sobre uma das pernas, vinha fazer-lhes companhia.

E os dois se divertiam a jogar migalhas de fruta adocicada ou miolo saboroso de quipiá para aquela ave mansa e esquisita apanhar com o seu bico grosso e forte. E em pouco tempo eram três que todas as tardes vinham admirar à beira da lagoa, a sublimidade da luta do dia contra as trevas.. .

Ficara tão manso o jaburu que vinha tirar-lhes da palma da mão a fruta adocicada ou o miolo saboroso.

Uma tarde, porém, umas nuvens densas e pesadas conglobaram-se para os lados do poente, com prenúncio de borrasca iminente.

Na tribo dos Araés ia uma balbúrdia medonha. Carin, o valente e destemido guerreiro cacique, estava agonizante. As sombras daquela noite sem alvorada começavam a cair, lentamente sobre sua cabeça.

De quando em quando, pavoroso e medonho, um relâmpago rasgava o céu. O pajé, mãos cruzadas, cabeça caída sobre o peito rezava baixinho. Mulheres e crianças imitavam-no.

Quando percebeu que era chegada a hora, Carin chamou Mandi e entregou-lhe o tacape de guerreiro e o diadema de morubixaba.

Lá fora coroando o novo tuxana, um grupo de aráes dançava ao som de música fúnebre…

Mandi beijou a fronte bronzeada do pai e retirou-se. Na frente da palafita, mãos em conchas, sem dar atenção aos que saudavam, olhou embaixo e viu, por entre o clarão de um relâmpago, o vulto de Ituna que o esperava.

Não pode conter-se. Atirou para um lado os troféus sagrados que há pouco o pai lhe dera e desceu a encosta em desabalada carreira. Lá estava Ituna a formosa virgem que Tupã mandara do céu para a alegria do seu coração na terra.

Mandi contornou-lhe o corpinho delgado com seus braços longos e vigorosos e ia forçá-la para satisfação do seu incontido e lúbrico desejo, quando um raio, rasgando as trevas, veio cair-lhe em plena cabeça, fulminando-o juntamente com a índia virgem. 

No outro dia, já muito tarde, o pajé encontrou-os caídos sobre a relva úmida, os corpos estreitamente unidos, num abraço impressionante — o abraço da morte.

Lá estava também, meio idiotizado, o cismarento jaburu. Nessa mesma tarde um grupo de aráes abria duas covas nas terras de Pendejã, o heroico tuxana, pai de Carin, que ali tombara um dia em defesa da tribo varado pelas balas dos guerreiros brancos. Uma delas para receber o corpo do bravo cacique: a outra, aberta ao lado da Lagoa Sagrada para sepultar os dois jovens que tombaram fulminados, ante os olhos irados de Tupã, na hora da consumação do pecado…

O jaburu, tristonho e imóvel, tudo presenciara sem nada compreender.

E quando a última pá de terra caiu sobre a cova dos dois pecadores, ele voou e partiu.

Mas todas as tardes voltava.

Vinha esperar como de costume que alguém lhe atirasse a fruta adocicada ou o miolo saboroso.
Mas em vão. Nunca mais os viu voltar, alegres como dantes!

Daí por diante, o jaburu tornou-se mais triste ainda; as penas foram caindo aos pouco e a cabeça vergou sob o peso tremendo da dor… Mas ele não desanimava. Todas as tardes, ali estava descansando sobre uma das pernas em cima daquele amontoado de terra, os olhos cravados no chão, na esperança de ver surgir, debaixo dos seus pés, aquelas duas almas amigas.

Fontes:
Regina Lacerda (seleção). Estórias e Lendas de Goiás e Mato Grosso.
Imagem = http://www.flickr.com. 14.12.2013

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Aventuras de Pedro Malasartes – 1 (De como Malasartes entrou no céu)


Pedro Malasartes, um personagem folclórico que ganhou em cada recanto do Brasil, uma versão de sua estória. Originária da Europa, onde em cada país encontrase os seus pedros, como por exemplo, o Pedro Urdemales da Espanha, o Till Eulenspiegel da Alemanha, ou seja, em todas as culturas camponesas, onde há grandes diferenças sociais entre as classes, podemos encontrar contos populares onde o pobre é o esperto e o rico é o tolo. 

Aqui no Brasil encontrou condições favoráveis para permanecer e se espalhar por todas as nossas regiões. Assumindo particularidades brasileiras, se tornou um dos personagens mais populares de nossa cultura.

Personagem cosmopolita, cujo arquétipo, de espertinho com cara de bobo, é encontrado em diversas partes do mundo. Um burlão invencível nas histórias como ao tempo, que gerou tantos outros personagens como o João Grilo, o Amigo-da-Onça ou ainda o Zé Carioca. E é um contador de histórias que traz aos leitores o Malasartes: histórias de um camarada chamado Pedro, do polivalente Augusto Pessoa, que pesquisou nos mestres Câmara Cascudo, Basílio de Magalhães e Sílvio Romero, entre outros, e coletou algumas histórias para reuni-las nesse bom lançamento da Rocco Jovens Leitores.

Diversos autores já colocaram palavras para o camarada Pedro em seus livros, como o seu xará Pedro Bandeira, em seu Malasaventuras - safadezas do Malasarte (Moderna,1985), ou Sérgio Vianna, com Pedro Malasartes: Aventuras de um herói sem juízo (Resson, 1999) ou ainda Ana Maria Machado, com Histórias à Brasileira: Pedro Malasartes e outras, em dois volumes (Cia das Letrinhas, 2002 e 2004). E a todo o momento e em toda época exerce um poder de atração a diversas gerações de autores e leitores.

Malasartes é um matuto, um caipira de origem desprivilegiada, que conta com sua esperteza para alcançar seus objetivos. Um arquétipo do malandro brasileiro, que desafia as regras sociais, para obter benefícios próprios. Graças aos narradores de contos populares, os contadores de histórias, é que se difundiu o conto e garantiram sua continuidade.

Bem atípico de outros heróis da literatura tradicional e popular, Pedro é sempre colocado como um astucioso, cínico, inesgotável mente de fazer enganos aos seus adversários, sem escrúpulos e sem remorso, buscando o prazer imediato da situação para logo a seguir continuar se aventurando pelo mundo a torrar os tostões dos poderosos que enganou.

Pedro Malas Artes, como os portugueses o chamavam, vem fazendo arte em 12 contos, trazido em prosa e verso, de suas melhores peripécias pelo mundo. O carioca Augusto Pessoa apresenta histórias como Sopa de Pedra, A árvore que dava dinheiro, entre outras, ator, cenógrafo, figurinista, dramaturgo alia a sua experiência em adaptar contos populares ao teatro, a divertida aventura de representar esse personagem tão brasileiro. 
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artigo de Cadorno Teles, de Amontada/CE
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De como Malasartes entrou no céu – 1

Quando Malasartes morreu e chegou ao céu, disse a S. Pedro que queria entrar.

O santo porteiro respondeu:

- Estas louco! Pois ainda tens coragem de querer entrar no céu depois que tantas fizeste, lá pelo mundo?!

- Quero, S. Pedro pois o céu é dos arrependidos e tudo quanto acontece é por vontade de Deus.

- Mas o teu nome não está no livro dos justos e portanto, não entras.

- Mas então eu desejava falar com o Padre Eterno.

S. Pedro zangou-se só com aquela proposta. E disse:

- Não, para falares a Nosso Senhor, precisavas entrar no céu e quem entra no céu Dele não pode mais sair.

Malasartes se pôs a lamentar e pediu que o santo ao menos o deixasse espiar o céu só pela frestinha da porta para que tivesse uma ideia do que fosse o céu, e lamentasse o que havia perdido por causa das más artes.

S. Pedro já amolado, abriu uma fresta da porta e Pedro meteu por ela a cabeça. Mas de repente, gritou:

- Olha, S. Pedro, Nosso Senhor que vem falar comigo. Eu não te dizia?!

S. Pedro voltou-se com todo o respeito para dentro do céu, a fim de render as suas homenagens ao Padre Eterno que supunha ali vir.

E Pedro Malasartes então pulou para dentro do céu.

O santo viu que tinha sido enganado. Quis por o Malasartes para fora, mas ele contrariou:

- Agora é tarde! S. Pedro lembre-se que me disse que do céu uma vez entrando, ninguém pode mais sair. É a eternidade!

E S. Pedro não teve outro remédio senão deixar o Malasartes lá ficar.

Fonte:
Lindolfo Gomes. Contos populares brasileiros. São Paulo: Melhoramentos, 1965.
Artigo de Codorno Teles, no Recanto das Letras