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segunda-feira, 11 de agosto de 2025

Folclore Indígena (Nação Guarani) Erva Mate

Há muitos e muitos anos, uma grande tribo guarani, por se nômade precisavam encontrar um outro lugar para morar onde a caça fosse farta e a terra fértil. Lentamente os índios foram deixando a aldeia onde haviam vivido tantos anos.

O povo migrou, mas sem que ninguém soubesse um velho índio que dormira tapado por couros ao acordar se viu só, sem seus descendentes para cuida-lo.

É obrigado a levantar-se e agarrando-se as árvores se põem a caminhar, nisto surge uma bela e jovem índia que se coloca atrás dele.

Ela chamava-se Yari e era sua filha mais nova, que não teve coragem de abandonar seu velho pai, que sozinho iria morrer.

Numa triste tarde de inverno, o velho entretido colhendo algumas frutas, assustou-se quando viu mexer-se uma folhagem próxima. Pensou que fosse uma onça, mas eis que surge um homem branco muito forte, de olhos cor do céu e vestido com roupas coloridas.

Aproximou-se e disse-lhe:

- Venho de muito longe e há dias ando sem parar. Estou cansado e queria repousar um pouco. Poderia arranjar-me uma rede e algo para comer?

- Sim, respondeu o velho índio, mesmo sabendo que sua comida era muito escassa.

Quando chegaram à sua cabana, ele apresentou ao visitante a sua filha.

Yari acendeu o fogo e preparou algo para o moço comer. O estranho comeu com muito apetite. O velho e a filha emprestaram a cabana e foram dormir em uma das outras abandonadas.

Ao amanhecer o velho índio encontrou o homem branco, pediu que ele descansasse um pouco mais. Porem, respondeu-lhe que tinha percebido a necessidade dos dois, ninguém o tinha ajudado e acolhido tanto então. 

Embrenhou-se em direção à floresta. Depois de algum tempo retornou com várias caças.

- Vocês merecem muito mais! explicou o homem – me darem o que não tinham e foram de grande bondade. Tupã está preocupado com a saúde de vocês e por isto me enviou. E em gratidão a tanta bondade lhe concedo um pedido.

O pobre velho queria um amigo que lhe fizesse companhia até o findar de seus dias, para que pudesse deixar de ser um fardo para sua doce e jovem filha. O estranho levou-lhe então até uma erva mais estranha ainda dizendo:

- Esta é a erva-mate. Plante-a e deixa que ela cresça e faça-a multiplicar-se. Deve arrancar-lhe as folhas, fervê-las e tomar como chá. Suas forças se renovarão e poderá voltar a caçar e fazer o que quiser. Sua filha poderá então retornar a sua tribo. 

Yari resolveu que de qualquer jeito jamais deixaria de fazer companhia ao pai. Pela sua dedicação e zelo, o enviado do tupã sorriu emocionado e disse:

- Por ser tão boa filha, a partir deste momento passará a ser conhecida como Caá-Yari, a deusa protetora dos ervais. Cuidará para que o mate jamais deixe de existir e fará com que os outros o conheçam e bebam a fim de serem fortes e felizes.

Logo depois o estranho partiu, mas deixou na cabeça de Yari uma grande dúvida: como poderia ela, vivendo afastada das demais tribos divulgar o uso da tal erva? E o tempo foi passando...

Em uma tribo não muito distante dali, os índios estavam contentes com a fartura das caçadas.  Organizaram uma grande festa para comemorar, não faltava comida e muita bebida. Mas a bebida demais levou dois jovens índios a começaram a discutir e brigar. Tratava-se de Piraúna e Jaguaretê.

No furor da briga Jaguaretê empunha um tacape e bate na cabeça de Piraúna, matando-o. Jaguaretê foi então detido e amarrado ao poste das torturas. Pelas leis da tribo, os parentes do morto deveriam executar o assassino. Trouxeram imediatamente o pai de Piraúna para que ordenasse a execução. Muito consciente que a tragédia só aconteceu por estarem os jovens sob o efeito da bebida, liberou o Jaguaretê, que foi então expulso da tribo e foi buscar sua sorte na floresta e quem sabe nos braços de Anhangá, espírito mau da mata. Conforme caminhava e o efeito do álcool era amenizado, mais se arrependia do mal que fizera.

Passadas muitas décadas, alguns índios daquela tribo, aventuravam-se na mata fechada em busca caça que já estava rara no local em que viviam. Entrando no sertão, no meio da floresta, encontraram uma cabana e foram aproximando-se com cuidado, mas mesmo assim foram pressentidos e saiu da cabana um homem muito forte e sorridente. Muito embora seus cabelos fossem totalmente brancos, sua fisionomia era de um jovem e ofereceu-lhes uma bebida desconhecida. Identificou-se então como sendo Jaguaretê, o índio expulso de sua tribo e que a bebida desconhecida era o mate.

Contou que quando foi abandonado a sua sorte, muito andou e quando estava apertado de cansaço e remorso, jogou-se ao chão e pediu para morrer. Acordou-se com a visão de uma índia de rara beleza que apiedando-se dele disse-lhe:

- Meu nome é Caá-Yari e sou a deusa dos ervais. Tenho pena de você, pois não matou por gosto e agora arrepende-se amargamente pelo que fez. Para suportar seu exílio, eis aqui uma bebida que o deixará forte e lhe esclarecerá as ideias. 

Levou-o até uma estranha planta e voltou a dizer:

- Esta é a erva-mate. Cultive-a e a faça multiplicar. Depois prepare uma infusão com suas folhas e beba o chá. Seu corpo permanecerá forte e sua mente clara por muitos anos. Não deixe de transmitir a quem encontrar o que aprendeu com o mate.

- Por tanto, jovens guerreiros, quero que leve alguns pés da erva-mate para a sua tribo e que nunca deixem de transmitir aos outros o que aprenderam.

Aqueles índios voltaram e contaram aos outros os que haviam ouvido. O mate foi plantado e multiplicou-se. Outras tribos apreenderam e foi desta forma que seu uso chegou até nós.

Fontes:
Imagem criada com Microsoft Bing 

sábado, 9 de agosto de 2025

Folclore Indígena (Por quê é Triste o Jaburu)

 (Mito indígena de animais encantados do Mato Grosso) 

Nessa hora dúbia que ainda é dia e ainda não é noite, uma imensa tristeza se apodera dessa ave esquisita. E o jaburu, num dormitar profundo, nem sequer agita o longo pescoço, parecendo então um empalhado espécime de museu.

Nas grandes noites de cheia, move as asas poderosas e caminha de um lado para outro, lento e meditativo, como a montar guarda, naquela lagoa que é, desde há muito tempo, o seu pouso, a sua morada.

Vive sempre só e quando acontece aparecer um intruso, abre-lhe guerra e luta ferozmente.

Na hora crepuscular o seu voo nos faz lembrar velhas imagens de contos de fadas.

Quem viajar pelos sertões de Mato Grosso, mormente pela zona sul, há de encontrar à margem dos rios ou à beira das lagoas, uma ave cinzento-escura, pernas grossas, triste e esquisita, que tem, constantemente, a cabeça voltada para a terra…

É o jaburu.. .

Todas as tardes, ali escorado ele está numa perna só, tristonho, cabisbaixo.

Sobre a tristeza mística dessa ave há a seguinte versão: 

Mandi, indiozinho guerreiro, quebrando os preceitos sagrados da sua religião, deixou-se um dia apaixonar perdidamente por Ituna a mais formosa mulher da tribo de Morembi.

O pai queria fazê-lo Cacique, mas para isso era preciso, conforme dizia o pajé, que o filho não se casasse enquanto não passassem cinco luas, depois de ter recebido do pai o tacape de guerreiro e o diadema de morubixaba. Mas Mandi, que já havia consultado as águas da Lagoa Sagrada, sabia perfeitamente que a primeira lua muito longe estava ainda.

Por isso não podia esperar. Antes perder a soberania de Cacique do que ficar sem o amor daquela que Tupã mandara do céu, para alegria de seu coração na terra.

E Mandi não esperou, nem tão pouco ouviu as súplicas angustiosas do pai velhinho e doente…

Carin revoltou-se e, num momento de ódio, rogou uma praga terrível contra o filho.

Todas as tardes inevitavelmente, Mandi ia encontrar-se com Ituna à beira da Lagoa Sagrada e ali ficava, horas a fio, a contemplar a majestade de Febo, que se ocultava, aos poucos, na curva ensanguentada do horizonte.

Mas nunca estavam sós.

Uma ave de plumagem cinzento-escura, pescoço encolhido, descansando sobre uma das pernas, vinha fazer-lhes companhia.

E os dois se divertiam a jogar migalhas de fruta adocicada ou miolo saboroso de quipiá para aquela ave mansa e esquisita apanhar com o seu bico grosso e forte. E em pouco tempo eram três que todas as tardes vinham admirar à beira da lagoa, a sublimidade da luta do dia contra as trevas.. .

Ficara tão manso o jaburu que vinha tirar-lhes da palma da mão a fruta adocicada ou o miolo saboroso.

Uma tarde, porém, umas nuvens densas e pesadas conglobaram-se para os lados do poente, com prenúncio de borrasca iminente.

Na tribo dos Araés ia uma balbúrdia medonha. Carin, o valente e destemido guerreiro cacique, estava agonizante. As sombras daquela noite sem alvorada começavam a cair, lentamente sobre sua cabeça.

De quando em quando, pavoroso e medonho, um relâmpago rasgava o céu. O pajé, mãos cruzadas, cabeça caída sobre o peito rezava baixinho. Mulheres e crianças imitavam-no.

Quando percebeu que era chegada a hora, Carin chamou Mandi e entregou-lhe o tacape de guerreiro e o diadema de morubixaba.

Lá fora coroando o novo tuxana, um grupo de aráes dançava ao som de música fúnebre…

Mandi beijou a fronte bronzeada do pai e retirou-se. Na frente da palafita, mãos em conchas, sem dar atenção aos que saudavam, olhou embaixo e viu, por entre o clarão de um relâmpago, o vulto de Ituna que o esperava.

Não pode conter-se. Atirou para um lado os troféus sagrados que há pouco o pai lhe dera e desceu a encosta em desabalada carreira. Lá estava Ituna a formosa virgem que Tupã mandara do céu para a alegria do seu coração na terra.

Mandi contornou-lhe o corpinho delgado com seus braços longos e vigorosos e ia forçá-la para satisfação do seu incontido e lúbrico desejo, quando um raio, rasgando as trevas, veio cair-lhe em plena cabeça, fulminando-o juntamente com a índia virgem. 

No outro dia, já muito tarde, o pajé encontrou-os caídos sobre a relva úmida, os corpos estreitamente unidos, num abraço impressionante — o abraço da morte.

Lá estava também, meio idiotizado, o cismarento jaburu. Nessa mesma tarde um grupo de aráes abria duas covas nas terras de Pendejã, o heroico tuxana, pai de Carin, que ali tombara um dia em defesa da tribo varado pelas balas dos guerreiros brancos. Uma delas para receber o corpo do bravo cacique: a outra, aberta ao lado da Lagoa Sagrada para sepultar os dois jovens que tombaram fulminados, ante os olhos irados de Tupã, na hora da consumação do pecado…

O jaburu, tristonho e imóvel, tudo presenciara sem nada compreender.

E quando a última pá de terra caiu sobre a cova dos dois pecadores, ele voou e partiu.

Mas todas as tardes voltava.

Vinha esperar como de costume que alguém lhe atirasse a fruta adocicada ou o miolo saboroso.
Mas em vão. Nunca mais os viu voltar, alegres como dantes!

Daí por diante, o jaburu tornou-se mais triste ainda; as penas foram caindo aos pouco e a cabeça vergou sob o peso tremendo da dor… Mas ele não desanimava. Todas as tardes, ali estava descansando sobre uma das pernas em cima daquele amontoado de terra, os olhos cravados no chão, na esperança de ver surgir, debaixo dos seus pés, aquelas duas almas amigas.

Fontes:
Regina Lacerda (seleção). Estórias e Lendas de Goiás e Mato Grosso.
Imagem = http://www.flickr.com. 14.12.2013

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Aventuras de Pedro Malasartes – 1 (De como Malasartes entrou no céu)


Pedro Malasartes, um personagem folclórico que ganhou em cada recanto do Brasil, uma versão de sua estória. Originária da Europa, onde em cada país encontrase os seus pedros, como por exemplo, o Pedro Urdemales da Espanha, o Till Eulenspiegel da Alemanha, ou seja, em todas as culturas camponesas, onde há grandes diferenças sociais entre as classes, podemos encontrar contos populares onde o pobre é o esperto e o rico é o tolo. 

Aqui no Brasil encontrou condições favoráveis para permanecer e se espalhar por todas as nossas regiões. Assumindo particularidades brasileiras, se tornou um dos personagens mais populares de nossa cultura.

Personagem cosmopolita, cujo arquétipo, de espertinho com cara de bobo, é encontrado em diversas partes do mundo. Um burlão invencível nas histórias como ao tempo, que gerou tantos outros personagens como o João Grilo, o Amigo-da-Onça ou ainda o Zé Carioca. E é um contador de histórias que traz aos leitores o Malasartes: histórias de um camarada chamado Pedro, do polivalente Augusto Pessoa, que pesquisou nos mestres Câmara Cascudo, Basílio de Magalhães e Sílvio Romero, entre outros, e coletou algumas histórias para reuni-las nesse bom lançamento da Rocco Jovens Leitores.

Diversos autores já colocaram palavras para o camarada Pedro em seus livros, como o seu xará Pedro Bandeira, em seu Malasaventuras - safadezas do Malasarte (Moderna,1985), ou Sérgio Vianna, com Pedro Malasartes: Aventuras de um herói sem juízo (Resson, 1999) ou ainda Ana Maria Machado, com Histórias à Brasileira: Pedro Malasartes e outras, em dois volumes (Cia das Letrinhas, 2002 e 2004). E a todo o momento e em toda época exerce um poder de atração a diversas gerações de autores e leitores.

Malasartes é um matuto, um caipira de origem desprivilegiada, que conta com sua esperteza para alcançar seus objetivos. Um arquétipo do malandro brasileiro, que desafia as regras sociais, para obter benefícios próprios. Graças aos narradores de contos populares, os contadores de histórias, é que se difundiu o conto e garantiram sua continuidade.

Bem atípico de outros heróis da literatura tradicional e popular, Pedro é sempre colocado como um astucioso, cínico, inesgotável mente de fazer enganos aos seus adversários, sem escrúpulos e sem remorso, buscando o prazer imediato da situação para logo a seguir continuar se aventurando pelo mundo a torrar os tostões dos poderosos que enganou.

Pedro Malas Artes, como os portugueses o chamavam, vem fazendo arte em 12 contos, trazido em prosa e verso, de suas melhores peripécias pelo mundo. O carioca Augusto Pessoa apresenta histórias como Sopa de Pedra, A árvore que dava dinheiro, entre outras, ator, cenógrafo, figurinista, dramaturgo alia a sua experiência em adaptar contos populares ao teatro, a divertida aventura de representar esse personagem tão brasileiro. 
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artigo de Cadorno Teles, de Amontada/CE
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De como Malasartes entrou no céu – 1

Quando Malasartes morreu e chegou ao céu, disse a S. Pedro que queria entrar.

O santo porteiro respondeu:

- Estas louco! Pois ainda tens coragem de querer entrar no céu depois que tantas fizeste, lá pelo mundo?!

- Quero, S. Pedro pois o céu é dos arrependidos e tudo quanto acontece é por vontade de Deus.

- Mas o teu nome não está no livro dos justos e portanto, não entras.

- Mas então eu desejava falar com o Padre Eterno.

S. Pedro zangou-se só com aquela proposta. E disse:

- Não, para falares a Nosso Senhor, precisavas entrar no céu e quem entra no céu Dele não pode mais sair.

Malasartes se pôs a lamentar e pediu que o santo ao menos o deixasse espiar o céu só pela frestinha da porta para que tivesse uma ideia do que fosse o céu, e lamentasse o que havia perdido por causa das más artes.

S. Pedro já amolado, abriu uma fresta da porta e Pedro meteu por ela a cabeça. Mas de repente, gritou:

- Olha, S. Pedro, Nosso Senhor que vem falar comigo. Eu não te dizia?!

S. Pedro voltou-se com todo o respeito para dentro do céu, a fim de render as suas homenagens ao Padre Eterno que supunha ali vir.

E Pedro Malasartes então pulou para dentro do céu.

O santo viu que tinha sido enganado. Quis por o Malasartes para fora, mas ele contrariou:

- Agora é tarde! S. Pedro lembre-se que me disse que do céu uma vez entrando, ninguém pode mais sair. É a eternidade!

E S. Pedro não teve outro remédio senão deixar o Malasartes lá ficar.

Fonte:
Lindolfo Gomes. Contos populares brasileiros. São Paulo: Melhoramentos, 1965.
Artigo de Codorno Teles, no Recanto das Letras

quinta-feira, 5 de junho de 2025

Figueiredo Pimentel (A moça do lixo)


Passavam um dia duas fadas por um jardim formosíssimo e bem tratado, quando viram um monte de estrume que o chacareiro havia deixado para estercar a terra.

– Que coisa nojenta! – Disse uma delas. – Como é que se consente num jardim tão belo tamanha porcaria, ainda que seja por um momento!...

– Tive uma ideia, disse a outra. – Eu faço para que essa esterqueira se transforme numa mulher tão linda como Leona, a princesa adivinha, que é a mais formosa criatura do mundo.

– E eu faço, retorquiu a outra, para que ela tenha um anel no dedo. Enquanto estiver com esse anel, só poderá pronunciar a palavra “porcaria”, sem que nada mais possa dizer. Tirando-lhe o anel, será uma moça instruída e espirituosa, ao passo que, quem o usar, ficará com o mesmo defeito.

As duas fadas desapareceram, e, do estrume, surgiu uma moça maravilhosamente formosa.

Era nos jardins reais. O príncipe, passando por acaso, viu-a e ficou apaixonado. Perguntando-lhe quem era, de onde vinha, como se chamava, só obteve em resposta:

– Porcaria! Porcaria!...

Admirado por ouvir aquela grosseria, tão suja, em boca tão formosa, sua alteza insistiu. Em vão! A deslumbrante moça respondia sempre:

– Porcaria!... Porcaria!...

O príncipe quis fazê-la sua esposa, mas o rei, os ministros, os conselheiros da coroa e os grandes dignatários não o consentiram.

Não podendo, entretanto, deixar de vê-la a todos os instantes, o futuro soberano fê-la alojar no palácio.

Tempos depois teve de se casar, como era obrigado por lei. Deram-lhe como noiva uma princesa, filha de um imperador vizinho e aliado.

Preparando-se a toalete da noiva, uma criada lembrou-se que Porcaria tinha um anel sem igual.

Tirou-o, e apresentou-o à sua nova ama, que o enfiou no dedo.

Quando o cortejo chegou à igreja, na hora da celebração do casamento, perguntando o padre à noiva, se livremente recebia o príncipe, ouviu-a dizer:

– Porcaria!... Porcaria!...

Não houve meios de se lhe arrancar outra coisa: – Porcaria!... Porcaria!... falava sempre. O príncipe, em vista daquilo, exclamou:

– Não! Não me serve! Porcaria por porcaria, tenho lá na palácio uma melhor.

Foram buscar a outra, que encontraram falando e conversando com todo o espírito, e o casamento foi celebrado.
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ALBERTO FIGUEIREDO PIMENTEL nasceu e morreu em Macaé/RJ, 1869 — 1914 foi além de poeta, contista, cronista, autor de literatura infantil e tradutor. Manteve por muitos anos, desde 1907, uma seção chamada Binóculo na Gazeta de Notícias. Publicou novelas, poesia, histórias infantis e contos. Um de seus grandes êxitos foi o romance O Aborto, estudo naturalista, publicado em 1893, e por mais de um século completamente esgotado. Como poeta, participou da primeira geração simbolista chegando a se corresponder com os franceses. Era amigo de Aluísio Azevedo, com quem trocou cartas, enquanto o autor de O Cortiço estava fora do país como diplomata. Poeta, romancista, escritor de literatura infantil, ganhou destaque e se perpetuou nos compêndios da literatura brasileira. A coluna Binóculo, assinada pelo autor na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, de 1907 até 1914, obteve grande sucesso entre leitores e leitoras, ditando moda, o que faz de Figueiredo Pimentel o primeiro cronista social da capital. Era ele quem tratava das novidades da moda, do bom gosto, do chique em voga em Paris e que deveria ser aqui aclimatado. Obras: Fototipias, poesia, 1893; Histórias da avozinha, conto - somente em 1952; Histórias da Carochinha; Livro mau, poesia, 1895; O aborto, 1893; O terror dos maridos, romance e novela, 1897; Suicida, romance e novela, 1895; Um canalha, romance e novela, 1895.

Fontes:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado originalmente em 1896. 
Disponível em Domínio Público. 
Imagem criada por Feldman com Microsoft Bing

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Monteiro Lobato (A história dos macacos)


Antigamente, lá no começo do mundo, os macacos moravam com os homens nas cidades. Falavam como eles, mas não trabalhavam. 

Certa vez houve uma grande festa. Durante um dia e uma noite o tantã não parou de soar. Todos dançavam e bebiam um vinho feito de caldo de palmeira, porque ainda não era conhecida a uva. O velho chefe da tribo saiu dali cambaleando e foi parar no bairro dos macacos. 

Antes não fosse! Os macacos judiaram dele. Uns puxavam-lhe a tanga, outros punham-lhe a língua, outros beliscavam-lhe a pele. Tamanha foi a falta de respeito que o velho chefe enfureceu-se a ponto de queixar-se a Nzame, a divindade da tribo. 

Nzame mandou chamar o chefe dos macacos. Passou-lhe uma grande descompostura e disse: 

— De hoje em diante, como castigo, os macacos têm que trabalhar para os homens. 

Mas os macacos revoltaram-se contra a ordem do deus. Juraram não trabalhar. Quando iam para a roça, penduravam-se nas árvores do caminho, davam pulos pra aqui, pra ali, fugiam. Não houve meio de conseguir deles nenhum trabalho. O chefe da tribo se enfureceu. 

— Preciso dar uma lição nesta macacada. 

Depois de refletir algum tempo deu ordens, para uma grande festança, onde houvesse muito vinho. Mas dividiu as cabaças de vinho em dois lotes — um de vinho puro e outro de vinho misturado com uma erva dormideira. 

"Este é para os macacos" disse ele. 

Quando os macacos souberam da grande festa e da grande vinhaça, aproximaram-se todos muito xeretas. Dançaram, pularam e beberam até não poder mais. Meia hora depois dormiam sono profundo. 

O chefe, então, mandou que os seus homens metessem o chicote nos macacos até deixá-los peladinhos — e no dia seguinte botou-os no serviço. 

Mas quem pode com macaco? 

O berreiro que fizeram foi tamanho que o chefe, completamente zonzo, deu ordem para que lhes cortassem a língua. 

"É o único meio de acabar com esta gritaria." 

Ficaram os macacos sem línguas — mas dois dias depois sumiram-se da aldeia, afundando no mato. Nunca mais quiseram saber dos homens — e também nunca mais falaram. Quem tem língua cortada não fala.
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Monteiro Lobato (José Bento Renato Monteiro Lobato) nasceu em 1882, em Taubaté/SP, e faleceu em 1948, em São Paulo. Foi promotor, fazendeiro, editor e empresário. Apesar de também escrever para adultos, ficou mais conhecido por causa dos seus livros infantis. Faz parte do pré-modernismo e escreveu obras marcadas pelo realismo social, nacionalismo e crítica sociopolítica. Já seus livros infantis da série Sítio do Picapau Amarelo possuem traços da literatura fantástica, além de apresentarem elementos folclóricos, históricos e científicos.Em 1900, ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo. Em 1903, se tornou um dos redatores do jornal acadêmico O Onze de Agosto. Escreveu também para periódicos como Minarete, O Povo e O Combatente. Se formou em Direito no final do ano de 1904. Em 1908, se casou com Maria da Pureza. Com a morte do avô, em 1911, o escritor recebeu como herança algumas terras. Assim, decidiu morar na fazenda do Buquira. Ele passou a ser conhecido quando, em 1914, sua carta “Uma velha praga” foi publicada n’O Estado de S. Paulo. Em seguida, o autor criou o personagem Jeca Tatu. Três anos depois, desistiu da vida de fazendeiro e se mudou para São Paulo. Nesse ano, publicou o polêmico artigo Paranoia ou mistificação?, que critica as tendências modernistas. No ano seguinte, comprou a Revista do Brasil. Em 1920, fundou a editora Monteiro Lobato & Cia. Cinco anos depois, vendeu a Revista do Brasil para Assis Chateaubriand (1892–1968) e decretou a falência da editora Lobato & Companhia, que, a essa altura, já se chamava Companhia Gráfico-Editora Monteiro Lobato. Ele se tornou sócio da Companhia Editora Nacional. Se mudou para o Rio de Janeiro, em 1925. Dois anos depois, foi para Nova York, onde assumiu o cargo de adido comercial. Em 1929, devido à crise econômica, vendeu suas ações da Companhia Editora Nacional. No final de 1930, quando Getúlio Vargas (1882–1954) subiu ao poder, o escritor perdeu seu cargo de adido comercial. Retornou ao Brasil no ano seguinte. Em 1932, foi um dos fundadores da Companhia Petróleo Nacional. Anos depois, em 1941, o autor ficou preso, durante três meses, por fazer críticas ao regime ditatorial de Getúlio Vargas. Se tornou sócio da Editora Brasiliense, em 1946, ano em que decidiu morar na Argentina, onde foi um dos fundadores da Editorial Acteón. Voltou ao Brasil em 1947 e fez críticas ao governo de Eurico Gaspar Dutra (1883–1974). Em 1922, decidiu concorrer à cadeira número 11 da Academia Brasileira de Letras. Porém, desistiu da candidatura por não querer “implorar votos”. Já em 1926, voltou atrás e, novamente, concorreu a uma vaga na ABL, mas não foi eleito. Por fim, em 1944, recusou indicação para a Academia, em protesto por Getúlio Vargas ter sido eleito à Academia Brasileira de Letras em 1941

Fontes:
Monteiro Lobato. Fábulas. Publicado originalmente em 1937.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

quarta-feira, 14 de maio de 2025

David de Carvalho (Bentinho da Samambaia)


Cada um cai do cavalo como quer. Através de uma série de contos da roça, o autor, David de Carvalho, pretende mostrar algumas realidades estratificadas no quadro sócio-cultural de Minas Gerais, procurando captar, também, na temática, traços típicos do comportamento do montanhês, tais como o humor e a tristeza. 
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Indo para o Largo da Capela do Rosário, o Doutor Alonsinho caminha firme e prumado. Indo ao lado dele, meio encumbucado, o Bentinho da Samambaia ora coçava as costas, ora ajeitava a correia. De repente, ele tirou um envelope amarrotado do bolso traseiro da calça:

– Recebi hoje notícias do primo Florindo, que está bem de vida em São Paulo, só trabalhando como servente de pedreiro, mas não entendi o raio dos rabiscos dele, porque os garranchos parecem letras de médico. Está parecendo que ele escreveu assim: “Bentinho, partiu-se o pote no cimento do meio-fio, ô fim de mundo!”

O Doutor Alonsinho pegou o cartão:

– Por favor, deixe-me ver!

O Doutor Alonsinho correu os olhos nos dizeres do cartão:

– Bentinho, você está confundindo topografia com caligrafia e posto artesiano com parto cesariano. Você fugiu da escola? O que está escrito aqui é o seguinte: “Bentinho, participo-te o nascimento do meu filho, o Sigismundo.” Tinha razão o seu pai, o velho Agripino, quando recomendava a você que alisasse mais o banco na escola do Mestre Candinho.

O Bentinho da Samambaia coçou o rosto:

– É!… Deveras, o velho Agripino me recomendava isso. E também: – “Bento, se de tudo você vier um dia a pensar em deixar a lida da roça, então aprenda primeiro o ofício de pedreiro, ainda que não seja um pedreiro inteirado e sim um meia-colher, porque na reconstrução da Europa, depois de acabar a guerra, você vai ficar podre de rico.”

O Doutor Alonsinho franziu a testa:

– Bentinho, qual é o animal que faz cocô em forma de grão de café?

– Cabrito, uai!

– Em forma de bolinho do tamanho de um ovo?

– Cavalo, ora pois!

– E em forma de uma broa?

– Cuá! Só pode ser boi.

– E em que dia, mês e ano Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil?

– Ah! Isso lá eu vou saber, doutor?!

– Você só entende é de cocô mesmo! E fique sabendo que a pessoa que não aprende a escrita e a leitura torna-se desconfiada, a ponto de deixar passar a oportunidade de ganhar dinheiro.

O Bentinho da Samambaia mudou de assunto:

– Doutor, aquele de peito estufado que vai indo ali na frente, de chapéu de aba larga, lenço vermelho no pescoço e botas de cano como sanfona, é o Já Caiu. Hi-hi-hi!… Explico melhor, é o Lindolfinho das Cachebras, mas só é conhecido pelo apelido, desde certa vez num rodeio na cidade de Cláudio, com a tropa do Zé Capitão, fazendeirão lá das bandas de Divinópolis. Antes de montar na égua Pinga Fogo, o Lindolfinho das Cachebras virou para a assistência e acenou o chapelão de aba larga: – “Vou fazer esta égua pingar fogo de suor e dançar no compasso do estalo da minha tala.”

O Bentinho da Samambaia voltou a ajeitar a correia:

– Êta diaba de calça que não pára no lugar! A gente sunga, sunga, e não adianta. Ãh? E daí? Daí que o Lindolfinho das Cachebras caminhou pomposo para o meio do campinho onde a Pinga Fogo estava arreada, laçada, sugigada pelo Quinquim Barba e dois capatazes do Coronel Quinto Tolentino. Parecendo ter o rei na barriga, o Lindolfinho das Cachebras montou nela e ficou acenando o chapelão de aba larga para Deus e todo o mundo e contando farofa: – “Ah, eguinha mixuruca e pangaré, agora é que você vai conhecer um peão bamba!” Atrás de um funilão, o Múcio da Dona Quita animava o peão: – “O Zé Capitão oferece cinquenta contos de réis para o Lindolfinho das Cachebras, se ele conseguir segurar os pulos da Pinga Fogo. Fulano oferece tanto. Beltrano oferece tanto. Sicrano oferece tanto.” E o Múcio da Dona Quita anunciou com todo o rompante: – “Agora, vai montar na Égua Pinga Fogo o …” O Quinquim Barba e os dois capatazes soltaram a bicha e o Múcio da Dona Quita completou: – “Já caiu!”

O Bentinho da Samambaia enfiou a barra da camisa por dentro da calça:

– Enquanto o Lindolfinho estava batendo a poeira da roupa, cheguei perto dele: – “Você machucou?” Com cara de tatu que caiu da garupa, ele ficou me olhando com os olhos parados: – “Eu não e você?” Ora! Que pergunta mais estonteada. Então eu estava bancando o peão? Olhei sério para ele: – “Você deu uma pirueta muito esquisita. Achei até que você tivesse quebrado o pescoço.” Ele me encarou de cara fechada: – “Deixe de ser bobo, sô, porque cada um cai do cavalo como quer! E fique sabendo que, até para cair, o peão precisa de ter a sua destreza!” Deixei para lá. Daí que ele passou a ser conhecido só por Já Caiu.

Já passando em frente da Capela do Rosário o Bentinho da Samambaia tirou o chapéu de palha, fez o em-nome-do-padre e reajeitou a calça:

– Doutor Alonsinho, este “causo” puxou outro na minha ideia. Naquele tempo, eu costumava vir cá para o Arraial do Empanturrado no fim de semana. E ficava sapeando na alfaiataria do Dico. Como o Dico tinha sempre que dar umas saidinhas, eu ficava tomando conta da alfaiataria para ele. Até passar ferro de brasa nuns panos eu passava. Certo dia, lá estava eu, quando apareceu lá um viajante de tipo prosa, pândego e gorducho e me perguntou onde era o negócio do Vivico da Venda. Expliquei para ele e, de troça, recomendei que falasse gritado com o Vivico, porque ele era surdo que nem uma porteira. Na hora, até inventei um “causo” e contei para ele, que certa vez o Vivico, quando estava com a mulher perrengue e desenganada, estava xingando no mandiocal no fundo da horta da casa dele, porque uma porca tinha fuçado por lá. Disse até que encomendei ao Vivico para colocar uma peia ou forquilha como canga na fujona. E que, no outro dia, passando pelo mesmo lugar, lá estava de novo o Vivico. Que então perguntei como ia passando a comadre, a mulher dele. E ele, que por ser surdo que nem tiú, achou que eu estava perguntando pela porca, me respondeu: – “Não usei nem peia e nem forquilha. Preferi colocar a bicha no chiqueiro de engorda.”

O Bentinho da Samambaia tirou do bolso traseiro um lenço e passou na testa:

– Assim que o viajante saiu, passei em frente da venda do Vivico. Então, expliquei para ele que acabava de sair da alfaiataria um viajante procurando a venda dele. E recomendei ao Vivico que o mesmo era muito surdo e que conversasse gritado com ele. Fiquei imaginando a gritaria que os dois iam arrumar. Mais tarde, eu estava soprando atrás do ferro de brasa na alfaiataria do Dico, quando voltou o viajante gorducho, alegre e pândego e me apertou a mão: – “O senhor está de parabéns, porque, andando pelo arraial, só li letreiros escritos com erro: Bazar Ção Pedro, Pharmácia Bom Jezus…” O gorducho passou as palmas das mãos na barrigaça: – “Daí que voltei para a ospedaria, sem h mesmo e resolvi dar um prêmio de quinhentos mangos para o dono do letreiro que estivesse escrito corretamente. E o único que encontrei certo foi o do senhor. Portanto, a Alfaiataria Águia de Ouro está de parabéns. Então, aqui está o prêmio, a pelega.” Pensei comigo: – “O que ele está querendo é tirar desforra do trote, pois deve ter gritado tanto no ouvido do Vivico e o Vivico no dele, até que descobrissem a minha malasartice.” Virei para o viajante: – “Aqui mais aqui para o senhor! O senhor está querendo troçar comigo, porque o nome certo é Alfaiataria Agúia de Ouro.” Ele arregalou os olhos: – “Agulha?!” Fechei a cara para ele? – “Não. Agúia mesmo, porque cada um cai do cavalo como quer.”
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(David de Carvalho, ensaísta, contista, pesquisador. Itaúna/ MG)

Fontes:
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quarta-feira, 7 de maio de 2025

Luís da Câmara Cascudo (O Papagaio Real)


Duas moças moravam juntas e eram irmãs, uma muito boa e outra maldizente e preguiçosa. Cada uma tinha seu quarto. 

A mais velha começou a notar um barulho de asa e depois fala de homem no quarto da irmã. Ficou desconfiada e foi olhar pelo buraco da fechadura. Viu uma bacia cheia d’água no meio do quarto. Quando deu meia-noite chegou na janela um papagaio enorme, muito bonito e voou para dentro, metendo-se na bacia, sacudindo-se todo, espalhando água para todos os lados. Cada gota d’água virava ouro, e o papagaio, quando saiu do banho, foi um príncipe mais formoso do mundo. Sentou-se ao lado da irmã e ficaram a conversar animados como noivos.

A irmã ficou roxa de inveja. No outro dia, de tarde, encheu o peitoril da janela de cacos de vidro, assim como a bacia. Nas horas da noite o papagaio chegou e, batendo no peitoril, cortou-se todo. Voou para a bacia e cortou-se ainda mais. Arrastando-se, o papagaio não virou príncipe, mas chegou até a janela e disse para a moça, que estava assombrada com o que sucedera:

– Ai, ingrata! Dobraste-me os encantos! Se me quiseres ver, só no reino de Acelóis.

E, batendo asas, desapareceu. A moça quase se acaba de chorar e de se lastimar. Brigou muito com a irmã e deixou a casa, procurando o noivo pelo mundo. Ia andando, empregando-se como criada nas casas só para perguntar onde ficava o reino de Acelóis. Ninguém sabia ensinar e a moça ia ficando desanimada.

Uma noite, depois de muito viajar, já cansada, ficou com medo dos animais ferozes e subiu em uma árvore, escondendo-se bem nas folhas. Estava amoquecada quando diversos bichos esquisitos chegaram para baixo do pé de pau e pegaram a conversar.

– De onde chegou você?

– Do reino da Lua!

– E você?

– Do reino do Sol!

– E você?

– Do reino dos Ventos!

A moça prestou atenção. No primeiro cantar dos galos sumiram-se todos, e ela desceu e continuou a marcha. Andou, andou, até que chegou em outra mata e, para não ser devorada, trepou numa árvore. Lá em cima, quando a noite ficou bem fechada, chegaram umas vozes no pé do pau.

– De onde veio?

– Do reino da Estrela!

– De onde veio?

– Do reino de Acelóis!

– Que novidades me traz?

– O príncipe está doente e ninguém sabe como tratar dele...

A moça botou reparo e na madrugada seguiu no mesmo rumo pois as vozes já tratavam do reino de Acelóis. Andou, andou, andou. Finalmente, quando anoiteceu, estava dentro de uma floresta. Subiu em um pau e ficou quieta, lá em cima. Mais tarde as vozes começaram na falaria:

– De onde vem você?

– Do reino de Acelóis!

– Como vai o príncipe?

– Vai mal, coitado, não tem remédio!

– Ora não tem! Tem! O remédio é ele beber três gotas de sangue do dedo mindinho de uma moça donzela que queria morrer por ele!

Quando amanheceu o dia, a moça colocou-se na estrada. Ia o sol se sumindo quando ela avistou o reinado de Acelóis. Entrou no reinado e pediu agasalho numa casa. Na hora da ceia perguntou o que havia e disseram que o assunto da terra era a doença do príncipe. 

A moça, no outro dia, mudou os trajes, foi ao palácio e pediu para falar com o rei.

– Rei Senhor! Atrevo-me a dizer que ponho o príncipe bonzinho se Rei Senhor me der, de tinta e papel, a metade do reinado e de tudo quanto lhe pertencer.

O rei deu, de tinta e papel, a metade de tudo quanto possuía. A moça foi para o quarto, meou um copo d’água, furou o dedo mindinho, botou três gotas de sangue dentro, misturou e mandou ele beber. Assim que o príncipe engoliu, foi abrindo os olhos, levantando-se da cama e abraçando a moça, numa alegria por demais.

O rei ficou muito satisfeito e quando o príncipe disse que aquela era a sua verdadeira noiva desde o tempo em que ele estava encantado em um papagaio real, o rei não quis dar consentimento porque a moça não era princesa. A moça então falou:

– Rei Senhor! Tenho por tinta e papel a metade de tudo quanto é do rei senhor neste reinado. O príncipe é do rei senhor e eu tenho por minha a metade dele. Se rei senhor não quiser que eu case com ele, inteiro, levarei para casa uma banda.

Ao ouvir falar em cortar o príncipe pelo meio, como a um porco, o rei chegou-se às boas e deu o consentimento. 

Foram três dias de festas e danças e até eu me meti no meio, trazendo uma latinha de doce, mas na ladeira do Encontrão, dei uma queda e ela, paf! – no chão!...
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Luís da Câmara Cascudo nasceu em Natal/RN, em 1898 falecendo na mesma cidade em 1986. Foi um historiador, sociólogo, musicólogo, antropólogo, etnógrafo, folclorista, poeta, cronista, professor, advogado, jornalista e escritor brasileiro. Passou toda a sua vida em Natal e dedicou-se ao estudo do folclore e da cultura brasileira. Foi professor da Faculdade de Direito de Natal, hoje Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), cujo Instituto de Antropologia leva seu nome. Deixou obra volumosa e de grande relevância, em particular sobre história, folclore e cultura popular. Recebeu o Prêmio Machado de Assis pela Academia Brasileira de Letras, em 1956, pelo conjunto de sua obra.

Fontes:
Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público.
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quinta-feira, 1 de maio de 2025

Figueiredo Pimentel (A rainha das águas)


O reino da Pérsia foi há séculos passados governado pelo rei Nebul.

Esse rei, que vivia muito feliz governando o povo com sabedoria, um dia ficou cego.

Mandou chamar todos os médicos do seu reino, todos os curandeiros, todas as feiticeiras, para lhe darem algum remédio que o curasse.

Nada puderam conseguir.

Já estava Nebul desanimado, e conformado com a sua triste vida, quando um dia, apareceu uma velhinha, pedindo esmola.

Sabendo que o rei havia cegado, pediu para lhe ensinar o remédio que o havia de curar.

O rei mandou entrar a velhinha, que lhe disse:

– Saiba vossa real majestade que no mundo só existe um remédio capaz de o fazer recobrar a vossa preciosa vista. Existe num reino muitíssimo distante daqui, uma fonte chamada de rainha das Águas. Se alguém conseguir um pouco dessa água, e colocá-la sobre os olhos, imediatamente verá tão bem como um pássaro. Mas é muito difícil ir a esse reino. Quem for buscar a água deve se entender com uma velhinha que mora perto da fonte. Essa velhinha é quem há de informar se o dragão que vigia a entrada da fonte está dormindo ou acordado, porque a fonte está situada atrás de umas montanhas muito altas, e, se alguém for visto pelo terrível bicho, morrerá no mesmo instante.

O rei Nebul deu à velhinha grande quantia e retirou-se para os seus aposentos.

Mandou preparar uma grande esquadra composta de duzentos navios, e enviou seu filho mais velho, o príncipe Agar, para buscar a água, dizendo que lhe dava o prazo de um ano para estar de volta, aconselhando-o que não saltasse em país algum, para não se distrair; e que, se naquele prazo não voltasse, considerá-lo-ia morto pelo dragão.

O moço partiu: e depois de viajar muito, foi aportar a um país estranho e mito rico.

Saltou em terra, e começou a se divertir a ponto de gastar todo o dinheiro que levava, e a contrair dívidas, pelo que ficou preso.

Passado o ano, Nebul, não o vendo voltar, ficou triste, julgando-o morto.

Mandou preparar nova esquadra de quinhentos navios, porque supunha que seu filho morrera na guerra que travara no reino das Águas, em busca do remédio para a sua cegueira.

Enviou seu segundo filho, o príncipe André.

Fez-lhe a mesma recomendação:

– Se no prazo de um ano, meu filho, não estiveres de volta, terei que chorar a tua morte.

Partiu André e, depois de muito viajar, aportou ao mesmo país que seu irmão Agar.

Aí, fascinado pelas festas, gastou tudo quanto levara, contraiu grandes dívidas, e, como seu irmão, ficou preso.

Passado um ano, vendo o rei que o seu outro filho não voltava, ficou desanimado, e sem esperanças de recuperar a vista, pois supunha que André houvesse tido o mesmo fim que o primeiro.

Então, o mais moço, o jovem Oscar, que ainda era menino, foi se oferecer para ir buscar o remédio.

– Agora, quero ir eu, meu pai; e se for, garanto que lhe trarei a água.

O rei começou a brincar.

– Como queres tu ir, meu filho? Não vês a sorte de teus irmãos mais velhos? Que é feito deles? Morreram. Como posso eu deixar que faças semelhante viagem? Seria até um contrassenso.

O menino tanto insistiu, tanto pediu, tanto rogou, que, afinal, o rei, para o contentar, lhe concedeu a licença pedida.

Mandou preparar uma esquadra de cem navios, menor que a dos outros dois príncipes, e disse a Oscar que partisse quando quisesse.

O menino, antes de partir, foi assistir à missa no palácio, e pediu com todo o fervor a Nossa Senhora que o protegesse na empresa a que ia se arriscar.

Partiu no dia seguinte, e, depois de muito navegar, foi aportar no mesmo país onde estavam seus irmãos presos por causa das dívidas.

Pagou-as e soltou-os.

Os dois irmãos aconselharam-lhe que não continuasse a viagem o que era tempo perdido, pois aquele país era muito divertido, e que se deixasse ficar por ali.

O menino nada quis ouvir, e, embarcando de novo, partiu em direção ao reino das Águas.

Chegando aí, desembarcou sozinho, e foi procurar a velhinha, que morava perto da fonte, a qual, quando o viu, ficou admirada e disse:

– Ó meu netinho, que veio cá fazer? Olhe que você corre grande perigo. O dragão, guarda da fonte, que fica por trás daquelas montanhas, é uma princesa encantada, que tudo devora. Procure uma ocasião em que esteja dormindo, para entrar, e repare bem que, quando estiver com os olhos abertos, é que está dormindo; mas, se estiver com os olhos fechados, acautele-se, senão morre.

O menino tomou as suas precauções, de modo que, ao chegar à fonte encontrou a fera com os olhos abertos.

Aproximou-se da fonte, e encheu a garrafa que levava.

Já ia se retirando, quando o dragão acordou, e avançou sobre ele.

– Que atrevimento é esse, menino mortal, que faz com que tenhas a audácia de vir aos meus reinos?

O moço só teve tempo de desembainhar a espada.

Em um dos botes a fera foi ferida, e, com o sangue que gotejava, se desencantou numa formosa princesa.

– Devo casar-me com o homem que me desencantou. Dou-te um ano, jovem príncipe, para me vires buscar. Leva a água a teu pai, e volta. Se dentro deste prazo não estiveres aqui, irei buscar-te, onde estiveres.

Como sinal de ser reconhecido, deu-lhe a princesa um anel com um brilhante enorme.

O príncipe Oscar voltou ao país, passando pelo reino onde estavam seus irmãos, levou-os para bordo, com o fim de os conduzir ao palácio do rei Nebul, seu pai.

Quando os dois irmãos mais velhos souberam que o principezinho tinha se saído bem da empresa, ficaram invejosos e planejaram roubar a garrafa que continha a preciosa água.

Essa garrafa estava na mala do príncipe Oscar, que não a deixava um minuto sequer, guardando consigo a chave, quando se ia deitar.

Propuseram ao irmãozinho dar um grande banquete a bordo do navio, convidando para isso toda a oficialidade, banquete esse em regozijo por se ter encontrado a água que havia de dar a vista ao velho rei Nebul.

O príncipe Oscar consentiu, e os irmãos, cujo fim era embebedá-lo, durante as saúdes que se fizessem, ficaram contentes com a aquiescência do principezinho.

Fizeram a coisa tão bem-feita que o jovem Oscar se excedeu nas saúdes, a ponto de ficar embriagado.

Os dois irmãos, assim que o viram naquele estado, correram à mala, e trocaram a garrafa da fonte por uma de água do mar.

Oscar, assim que ficou bom, tratou de ver a sua mala, e, como a achou intacta, não desconfiou da troca.

Quando a esquadra se apresentou no porto da cidade onde vivia o rei Nebul, houve satisfação geral, sendo o principezinho recebido entre gerais aplausos.

Assim que deitou a água nos olhos de seu pai, este ficou desesperado de dor. Então, os dois irmãos, chamando o mais moço de impostor, trouxeram a garrafa que haviam roubado, e puseram a água nos olhos do ei, que recuperou imediatamente a vista.

Começaram as festas em regozijo ao grande acontecimento de haver Nebul recobrado a vista.

Agar e André recebiam aplausos de todo o mundo, que admirava a sua intrepidez, arriscando a vida em uma viagem tão perigosa.

O rei Nebul não quis que o príncipe Oscar assistisse às festas. Mandou matá-lo, dizendo que um impostor como ele, merecia ser queimado vivo.

No dia em que devia começar a festa em homenagem a tão valentes príncipes, seguiu de manhã cedo, para uma floresta muito longe do castelo, o príncipe Oscar, acompanhado de um batalhão enorme que devia matá-lo.

Os soldados, assim que chegaram no meio da floresta, tiveram pena do principezinho, e, em vez de matá-lo, cortaram-lhe um dedo, que foram levar ao rei Nebul, como prova de sua morte.

Oscar, assim que se viu livre da morte, começou a procurar a vida, porque naquele lugar, tão deserto, morreria de fome ou nas garras de algum animal feroz, dos que ali havia em quantidade.

Depois de andar muito, foi ter à casa de um lavrador, a quem ofereceu os seus serviços.

O lavrador, vendo aquele menino, só, naquele lugar deserto, tomou-o para escravo, e o maltratava todos os dias.

Já havia passado um ano, e era esse o tempo marcado pela rainha das Águas para o príncipe Oscar ir buscá-la, e efetuarem o casamento.

Não aparecendo, resolveu ir buscá-lo.

Mandou preparar uma esquadra de cem navios, e partiu em direção ao reino do rei Nebul.

Aí chegando, mandou um de seus generais avisar ao rei que lhe mandasse o príncipe que, um ano antes, havia ido aos eu reino buscar água de uma fonte que lhe havia de restituir a vista, e que tendo o príncipe lhe prometido casamento, e não voltando, ia à sua procura.

Mandava dizer ainda que se o príncipe não viesse, arrasaria a cidade em meia hora, com os poderosos canhões de sua esquadra.

Nebul, à vista da intimação, ficou aflito, e mandou que o príncipe Agar fosse a bordo se apresentar à princesa.

Chegando a bordo, lhe disse ela:

– Homem atrevido, como tens coragem de aparecer aqui? Onde está o sinal que te dei para o nosso reconhecimento?

O príncipe, que não tinha ciência de sinal algum, voltou para terra, envergonhado de ter feito figura tão triste diante de uma formosa dama.

A princesa enviou nova intimação ao rei Nebul, e este, cada vez mais aflito, fez ir seu filho André à presença da princesa.

O segundo filho foi tão infeliz como seu irmão. Não tendo o reconhecimento da princesa, voltou envergonhado pelo fiasco que havia feito.

A princesa mandou nova intimação à terra, dizendo que, se em vinte e quatro horas o príncipe que lhe prometera casamento não lhe aparecesse, mandaria arrasar a cidade, e depois incendiá-la.

O rei ficou aflitíssimo, pois não tendo mais nenhum outro filho, esperava com ânsia o prazo marcado para o extermínio de seu povo.

Já estava arrependido de ter mandado matar Oscar, quando um dos soldados do batalhão que acompanhou o menino à floresta disse que eles não tinham tido coragem de matar o jovem moço, e só lhe haviam cortado o dedo.

Quando o rei soube disso, teve um raio de esperança. Mandou emissários por todo o seu grande reino, à procura do jovem príncipe Oscar, dando a todo mundo os sinais do moço, e prometendo uma grande fortuna a quem o trouxesse ao seu palácio.

Pediu à princesa que lhe desse cinco dias de espera, dizendo que seu filho Oscar, que lhe tinha prometido casamento, estava em viagem, mas que já o havia mandado chamar com urgência.

A princesa concedeu o prazo pedido, dizendo que mais um segundo não concedia, e que se, contados os cinco dias, o príncipe não chegasse, não responderia pela vida de ninguém daquela cidade.

Havendo tanta gente a procurar o príncipe Oscar, muito fácil foi encontrá-lo como escravo do lavrador, onde trabalhava todo o dia, fazendo serões até alta noite.

Quando o lavrador soube que o seu escravo era um príncipe, ficou mais morto do que vivo.

Carregou o mocinho nas costas, e foi chorando levá-lo ao palácio do rei Nebul.

Estava terminado o prazo, e a princesa já tinha mandado preparar os canhões para bombardear a cidade, quando o príncipe lhe fez sinal que esperasse, porque ia ter com ela.

Assim que o jovem chegou a bordo do navio onde estava a Rainha das Águas, colocou no dedo o anel de ouro.

Esta, reconhecendo o príncipe, mandou o general avisar ao rei Nebul que era aquele o seu noivo, e que podia ficar descansado porque não mais bombardearia a cidade, e que partiria no dia seguinte, com o noivo para seu reino.

O rei convidou, então, a rainha das Águas para vir visitá-lo, porque queria conhecer sua nora.

Estavam todos no palácio, quando apareceu uma velhinha pedindo uma esmola.

Oscar, vendo que era a mesma que lhe tinha ensinado o remédio para seu pai recuperar a vista, voltou-se para a noiva, e disse:

– É esta a velhinha, formosa princesa, a quem devo a felicidade de me casar e de ver meu pai com a vista que tinha perdido.

A rainha das Águas voltou para o seu reino e casou-se com Oscar, que ficou sendo o rei que governava o país mais rico e mais formoso do mundo.

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ALBERTO FIGUEIREDO PIMENTEL nasceu e morreu em Macaé/RJ, 1869 — 1914 foi além de poeta, contista, cronista, autor de literatura infantil e tradutor. Manteve por muitos anos, desde 1907, uma seção chamada Binóculo na Gazeta de Notícias. Publicou novelas, poesia, histórias infantis e contos. Um de seus grandes êxitos foi o romance O Aborto, estudo naturalista, publicado em 1893, e por mais de um século completamente esgotado. Como poeta, participou da primeira geração simbolista chegando a se corresponder com os franceses. Era amigo de Aluísio Azevedo, com quem trocou cartas, enquanto o autor de O Cortiço estava fora do país como diplomata. Poeta, romancista, escritor de literatura infantil, ganhou destaque e se perpetuou nos compêndios da literatura brasileira. A coluna Binóculo, assinada pelo autor na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, de 1907 até 1914, obteve grande sucesso entre leitores e leitoras, ditando moda, o que faz de Figueiredo Pimentel o primeiro cronista social da capital. Era ele quem tratava das novidades da moda, do bom gosto, do chique em voga em Paris e que deveria ser aqui aclimatado. Obras: Fototipias, poesia, 1893; Histórias da avozinha, conto - somente em 1952; Histórias da Carochinha; Livro mau, poesia, 1895; O aborto, 1893; O terror dos maridos, romance e novela, 1897; Suicida, romance e novela, 1895; Um canalha, romance e novela, 1895.

Fontes:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado originalmente em 1896. 
Disponível em Domínio Público. 
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