quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Isabel Furini (A Rosa Vaidosa)


Malba Tahan (Uma Lenda sobre a Beleza)


No livro sagrado, que os sábios intitulam "O Lótus da Lei Perfeita", encontrarás, meu amigo, depois da décima página, uma lenda esquecida pelos homens, apesar de estudada por sete profetas. Refiro-me à Lenda da Beleza que venceu o Tédio e conquistou a Vida.

Certa vez, por um triste capricho da Fatalidade, o poder do mundo foi cair nas mãos odientas da Vulgaridade.

- Que fez a Vulgaridade ao subir ao trono? Resolveu destruir e aniquilar a sua perigosa rival - a Beleza.

Chamando o Tédio, seu servo predileto, disse-lhe a execrável soberana:

- Detesto a Beleza! Quero fazê-la desaparecer da face da terra. Tens ordem para pendê-la e matá-la de qualquer modo.

O tédio respondeu:

- Escuto e obedeço, senhora! Mas, afinal, como é a Beleza? Como poderei encontrá-la, se não a conheço?

- Ora, nada mais simples - tornou a Vulgaridade. - Interroga um poeta qualquer e logo saberás como é a Beleza.

Partiu o Tédio. Encontrando um poeta interpelou-o:

- Como é a Beleza?

Sem hesitar, respondeu o poeta:

- Ainda ignoras? A Beleza é loura, de olhos azuis da cor do céu; a sua pele é clara e rosada, as suas mãos...

- Basta! Tudo o mais que disseres seria fastidioso e inútil. Já sei como é a Beleza! Vou descobri-la por mais oculta que esteja.

E o Tédio partiu em busca da Beleza...

Depois de muito caminhar, chegou ao país de Moab, para além do grande deserto. Um camponês repousava sob uma árvore.

- Terás visto, por aqui - perguntou o Tédio - a Beleza que procuro?

- Queres descobrir a Beleza! - exclamou o camponês. - Ei-la precisamente ali, ó forasteiro!

E apontou na direção de uma jovem que se encaminhava para a ponte, levando ao ombro um pequeno cântaro.

O Tédio procurou certificar-se. A graciosa rapariga era morena, de olhos verdes e cabelos castanhos como as filhas de Judá! Mas como diferia da que fora descrita pelo poeta! Não, não podia ser a Beleza!

- A Beleza fugiu para a China! - informou um peregrino.

Seguiu o Tédio para a China e indagou de um rico mandarim que soltava papagaios de seda:

- Senhor! Teria a Beleza aparecido em vossa terra?

- Apareceu, sim - replicou, alegre, o mandarim. - Ei-la!

E com o seu dedo de unha longa e angulada, apontou para uma rapariga ocupada em fabricar lanternas de papel.

O escravo da Vulgaridade preparou-se para executar a ordem que recebera. Enganara-se, porém, o informante. A jovem que o mandarim indicara era pálida, esguia, tinha os olhos amendoados, os cabelos negros e ondulados. Não! aquela não podia ser a Beleza!

O Tédio deixou o país dos chineses e foi em busca de outros climas. Diante dele a Beleza fugia sempre, ocultando-se astuciosamente. Todo o seu esforço tornou-se inútil. Não conseguiu encontrar e destruir a Beleza!
________________________
E o livro admirável "O Lótus da Lei Perfeita" - ensina com sua eterna e incomparável sabedoria:

- Eis por que a Beleza floresce e domina, sob aspectos tão diversos, quando a observamos, nos inconquistáveis recantos e países do mundo. Aqui é morena e tem olhos negros, mais adiante é loura, de claros olhos de anil. Aqui é viva e alegre, para, além, surgir sentimental e terna!

É que a Beleza, para fugir do mal do Tédio e ao perigo da Vulgaridade, varia sempre e sem cessar.

    
Fonte:
Malba Tahan. Os Segredos da Alma Feminina nas Lendas do Oriente.

Manuel Du Bocage (Sonetos) III


XVI

Já sobre o coche de ébano estrelado
Deu meio giro a noite escura e feia;
Que profundo silêncio me rodeia
Neste deserto bosque, à luz vedado!

Jaz entre as folhas Zéfiro abafado,
O Tejo adormeceu na lisa areia;
Nem o mavioso rouxinol gorjeia,
Nem pia o mocho, às trevas costumado:

Só eu velo, só eu, pedindo à sorte
Que o fio, com que está minh'alma presa
À vil matéria lânguida, me corte:

Consola-me este horror, esta tristeza;
Porque a meus olhos se afigura a morte
No silêncio total da Natureza.

XVII

Oh, tranças, de que Amor prisões me tece,
Oh, mãos de neve, que regeis meu fado!
Oh tesouro! oh mistério! oh par sagrado,
Onde o menino alígero adormece!

Oh ledos olhos, cuja luz parece
Tênue raio de sol! oh gesto amado,
De rosas e açucenas semeado,
Por quem morrera esta alma, se pudesse !

Oh! Lábios, cujo riso a paz me tira,
E por cujos dulcíssimos favores
Talvez o próprio Júpiter suspira !

Oh perfeições! Oh dons encantadores!
De quem sóis?... Sois de Vênus? - é mentira
Sois de Marília, sois de meus amores.

XVIII
 
Já se afastou de nós o Inverno agreste
Envolto nos seus úmidos vapores;
A fértil Primavera , a mãe das flores
O prado ameno de boninas veste:

Varrendo os ares o sutil nordeste
Os torna azuis : as aves de mil cores
Adejam entre Zéfiros, e Amores,
E torna o fresco Tejo a cor celeste;

Vem, ó Marília, vem lograr comigo
Destes alegres campos a beleza,
Destas copadas árvores o abrigo:

Deixa louvar da corte a vã grandeza:
Quanto me agrada mais estar contigo
Notando as perfeições da Natureza!

XIX
 
Grato silêncio, trêmulo arvoredo,
Sombra propícia aos crimes, e aos amores,
Hoje serei feliz! - longe, temores,
Longe, fantasmas, ilusões do medo.

Sabei, amigos Zéfiros, que cedo,
Entre os braços de Nise, entre estas flores,
Furtivas glórias, tácitos favores,
Hei de enfim possuir: porém segredo!

Nas asas frouxos ais, brandos queixumes
Não leveis, não façais isto patente,
Que nem quero que o saiba o pai dos numes :

Cale-se o caso a Jove onipresente,
Porque se ele o souber, terá ciúmes,
Vibrará contra mim seu raio ardente.

XX
 
Temo que a minha ausência e desventura
Vão na tua alma, docemente acesa ,
Apoucando os excessos da firmeza.
Rebatendo os assaltos da ternura :

Temo que a tua singular candura
Leve o tempo fugaz, nas asas presa
Que é quase sempre o vício da beleza,
Gênio imutável, condição perjura:

Temo! E se o fado meu, fado inimigo
Confirmar impiamente este receio ,
Espectro perseguidor, que anda comigo,

Com rosto, alguma vez de mágoa cheio ,
Recorda-te de mim, dize contigo :
“era fiel, amava-me e deixei-o"

XXI
 
Enquanto o sábio arraiga o pensamento
Nos fenômenos teus, oh Natureza
Ou solta árduo problema, ou sobre a mesa
Volve o sutil geométrico instrumento:

Enquanto, alçando a mais o entendimento,
Estuda os vastos céus, e com certeza
Reconhece dos astros a grandeza,
A distância, o lugar, e o movimento:

Enquanto o sábio, enfim, mais sabiamente,
Se remonta nas asas do sentido
À corte do Senhor onipresente:

Eu louco, cego, eu mísero, eu perdido
De ti só trago cheia, ó Jônia, a mente:
Do mais, e de mim mesmo ando esquecido...

XXII

O corvo grasnador e o mocho feio
O sapo berrador e a rã molesta,
São meus únicos sócios na floresta,
Onde carpindo estou, de angústia cheio:

Perdi todo o prazer, todo o recreio…
Ah, malfadado amor, paixão funesta!
Urselina perdi, nada me resta,
Madre terra! Agasalha-me em teu seio;

Da víbora mordaz permite, oh Sorte,
Que nos matos aspérrimos que piso
As plantas me envenene o tênue corte!

Ah! Que é das graças? Que é do paraíso?
A minh'alma onde está? Quem logra... oh Morte,
Quem logra de Urselina o doce riso?

Fonte:
BOCAGE, Manuel Maria Barbosa Du. Soneto e outros poemas. São Paulo: FTD, 1994.

Monteiro Lobato (Um Homem Honesto)


— EXCELENTE CRIATURA! Dali não vem mal ao mundo. E honesto, ah! Honesto como não existe outro — era o que todos diziam do João Pereira.

João Pereira trabalhava em repartição pública. Estivera a princípio num tabelionato e depois no comércio como caixeiro do empório Ao Imperador dos Gêneros.

Deixou o empório por discordância com a técnica comercial do imperante, que toda se resumia no velhíssimo lema: gato por lebre. E deixou o cartório por não conseguir aumentar com extras o lucro legal do honradíssimo tabelião. Atinha-se ao regimento de custas, o ingênuo, como se aquilo fora a tábua da lei de Moisés, coisa sagrada.

Na repartição vegetava já há dez anos sem conseguir nunca mover passo à frente. Ninguém se empenhava por ele, e ele, por honestidade, não orgulho, era incapaz de recorrer aos expedientes com tanta eficácia empregados pelos colegas na luta pela promoção.

— Quero subir por merecimento, legalmente, honestamente! — costumava dizer, provocando risinhos piedosos nos lábios dos que “sabem o que é a vida”.

João Pereira casara cedo, por amor — não compreendia outra forma de casamento — e já tinha duas filhas mocetonas. Como fossem sobremaneira curtos os seus vencimentos, a pequena família remediava-se com a renda complementar dos trabalhos caseiros. Dona Maricota fazia doces; as meninas faziam crochê — e lá empurravam a pulso o carrinho da vida.

Viviam felizes. Felizes, sim! Nenhuma ambição os atormentava e o ser feliz reside menos na riqueza do que nessa discreta conformidade dos humildes.

— Haja saúde que vai tudo muito bem — era o mote de João Pereira e dos seus.

Mas veio um telegrama...

Nos lares humildes telegrama é acontecimento de monta, anunciador certo de desgraça. Quando o estafeta bate na porta e entrega o papelucho verde, os corações tumultuam violentos.

— Que será, santo Deus?

Não anunciava desgraça aquele. Um tio de João Pereira, residente no interior, convidava-o a servir de padrinho no casamento da filha. Era distinção inesperada e Pereira, agradecido, foi. E muito naturalmente foi de segunda classe, porque nunca viajara de primeira, nem podia.

Bem recebido, apesar de sua roupa preta fora da moda, funcionou gravemente de testemunha, disse aos nubentes as chalaças do uso, comeu os doces da festa, beijou a afilhada e no dia seguinte se fez de volta. Acompanharam-no à estação o tio e os noivos, amáveis e contentes; mas protestaram indignados ao vê-lo meter a maleta num carro de segunda.

— Não admitimos!... Tem que ir de primeira.

— Mas se já comprei o bilhete de volta...

— É o de menos — contraveio o tio. — Mais vale um gosto do que quatro vinténs. Pago a diferença. Tinha graça!...

E comprou-lhe bilhete de primeira, sacudindo a cabeça:

— Este João...

João Honesto, assim forçado, pela primeira vez na vida embarcou em vagão de luxo, e o conforto do Pullman, mal o trem partiu, levou-o a meditar sobre as desigualdades humanas. A conclusão foi dolorosa. Verificou que é a pobreza o maior de todos os crimes, ou, pelo menos, o mais severa e implacavelmente punido.

Aqui, por exemplo, neste vagão dos ricos, refletia ele: poltronas de couro, boas molas no truck, asseio meticuloso, janelas amplas, criado às ordens. Tudo pelo melhor. Já nos carros dos pobres é o reverso, demonstrando-se o propósito de castigar com requinte de crueldade o crime de pobreza dos que neles embarcam. Nada de molas nos trucks para que o rodar áspero, solavancado, faça padecer a carne humilde. Nos bancos de tábua, tudo reto e anguloso, sem sequer um boleio que favoreça o repouso das nádegas. Bancos feitos de tabuinhas estreitas, separadas entre si de modo a martirizar o corpo. O espaldar — uma tábua a prumo — vai só até meia altura, negando assim a esmolinha dum apoio à triste cabeça do “sentado”. Bancos, em suma, que parecem estudados pacientemente por grandes técnicos da judiaria com o fim de obter o mínimo de comodidades no máximo de possibilidades torturantes. As janelas sem vidraças, só de venezianas, dir-se-iam ajeitadas ao duplo fim de impedir o recreio da vista e canalizar para dentro todo o pó de fora. Nada de lavatórios: o pobre deve ser mantido na sujeira. Água para beber? Vá ter sede na casa do senhor seu sogro!

João sorriu. Veio-lhe à ideia lindo “melhoramento” escapo à sagacidade dos técnicos: encanar para dentro dos vagões de segunda a fumaça quente da locomotiva.

— Incrível não terem ainda pensado nisso!...

Lembrou-se depois dos teatros, e viu que eram a mesma coisa. As torrinhas são construídas de jeito a manter bem viva na consciência do espectador a sua odiosa condição social.

— És pobre? Toma! Aguenta a dor de espinha do banco sem espaldar nos trens e nos teatros resigna-te a não ver nem ouvir o que vai no palco.

João Pereira ainda filosofava estas desconsoladoras filosofias quando o trem chegou. Desembarcaram todos — à rica, pacotes e malas por mãos de solícitos carregadores. Só ele conduzia a sua, pequenina mala barata de papelão a fingir couro.

Saiu. Na rua, porém...

— Diário Popular, Plateia...

... lembrou-se dum jornal comprado em caminho e que deixara no carro. Não vale nada um jornal lido? Vale, sim, e tanto que Pereira voltou depressa a buscá-lo. Sempre é um bocado a mais de papel na casa. Ao penetrar no Pullman vazio tropeçou num pacote largado no chão.

— Não sou eu só o esquecido! — refletiu Pereira a sorrir, apanhando-o.

A curiosidade não é privilégio das mulheres. João apalpou o pacote, cheirou-o e por fim rasgou de leve um canto do invólucro.

— Dinheiro!

Era dinheiro, muito dinheiro, um pacotão de dinheiro!

Pereira sentiu um tremelique de alma e corou. Se o vissem naquele momento, sozinho no carro, com o pacote a queimar-lhe as mãos... “Pega o larápio!” Esqueceu do jornal lido e partiu incontinenti à procura do chefe da estação.

— Dá licença?

O chefe interrompeu o que fazia e olhou-o com displicência.

— Encontrei num carro do expresso este pacote de dinheiro.

À mágica voz de dinheiro o chefe perfilou-se e, arregalando os olhos num dos bons assombros da sua vida, exclamou pateticamente:

— Dinheiro?!...

— Sim, dinheiro — confirmou João. — Num carro do expresso. Eu voltava de Himenópolis, e ao desembarcar...

— Deixe ver, deixe ver...

João depôs sobre a mesa o pacote. Com os óculos erguidos para a testa, o chefe desfez o amarrilho, desembrulhou o bolo e assombrado viu que era na verdade dinheiro, muito dinheiro, um dinheirão!

Contou-o, com dedos comovidos. Pasmou. Encarou a fito o homem sobrenatural.

— Trezentos e sessenta contos!

Piscou. Abriu a boca. Depois, erguendo-se, disse em tom sincero, espichando-lhe a mão:

— Quero ter a honra de apertar a mão do homem mais honesto que ainda topei na vida. O senhor é a própria honestidade sob forma humana. Toque!

João apertou-lha humildemente e também a de outros auxiliares que se haviam aproximado.

— O seu caso — continuou o chefe — marcará época. Há trinta anos que sirvo nesta companhia e nunca tive conhecimento de coisa idêntica. Dinheiro perdido é dinheiro sumido. Só não é assim quando o encontra um... como é o seu nome?

— João Pereira, para o servir.

— Um João Pereira, o Honrado. Toque de novo!

João saiu nadando em delícias. A virtude tem suas recompensas, deixem falar, e a consciência dum ato como aquele cria na alma inefável estado de êxtase. João sentia-se muito mais feliz do que se tivera no bolso, suas para sempre, aquelas três centenas de contos.

Em casa narrou o fato à mulher, minuciosamente, sem todavia indicar o quantum achado.

— Fez muito bem — aprovou a esposa. — Pobres, mas honrados. Um nome limpo vale mais do que um saco de dinheiro. Eu sempre o digo às meninas e puxo o exemplo deste nosso vizinho da esquerda, que está rico, mas sujo como um porco.

João abraçou-a comovido e tudo teria ficado por ali se o demônio não viesse espicaçar a curiosidade da honrada mulher. Dona Maricota, depois do abraço, interpelou-o:

— Mas quanto havia no pacote?

— Trezentos e sessenta contos.

A mulher piscou seis vezes, como se jogada de areia nos olhos.

— Quan... quan... quanto?

— Tre-zen-tos e ses-sen-ta!

Dona Maricota continuou a piscar por vários segundos. Em seguida arregalou os olhos e abriu a boca. A palavra dinheiro nunca lhe sugerira a ideia de contos. Pobre que era, dinheiro significava-lhe cem, duzentos, no máximo quinhentos mil-réis. Ao ouvir a história do pacote imaginou logo que se trataria aí duns centos de mil-réis apenas. Quando, porém, soube que a soma atingia a vertigem de trezentos e sessenta contos, sofreu o maior abalo de sua existência. Esteve uns momentos estarrecida, com as ideias fora do lugar. Depois, voltando a si de salto, avançou para o marido num acesso de cólera histérica, agarrou-o pelo colarinho, sacudiu-o nervosamente.

— Idiota! Trezentos e sessenta contos não se entregam nem à mão de Deus Padre! Idiota! Idiota!... Idioooota...

E caiu numa cadeira, tomada de choro convulso. João pasmou. Seria possível que morasse tantos anos com aquela criatura e ainda lhe não conhecesse a alma a fundo? Tentou explicar-lhe que seria absurdo variar de proceder só porque variava a quantia; que tanto é ladrão quem furta um conto como quem furta mil; que a moral...

Mas a mulher o interrompeu com outra série de “idiotas” esganiçados, histéricos, e retirou-se para o quarto, descabelando-se, louca de desespero.

As filhas estavam na rua; quando voltaram e souberam do caso, puseram-se incontinenti ao lado da mãe, furiosíssimas contra a tal honestidade que lhes roubava uma fortuna.

— Você, papai...

João quis impor a sua autoridade paterna. Ralhou e fê-las ver quão indecoroso era pensarem de semelhante maneira. Foi pior. As meninas riram-se, escarninhas, e deram de suspirar com o pensamento posto na vida de regalos que teriam se o pai possuísse melhor cabeça.

— Automóvel, um bangalô em Higienópolis, meias de seda...

— ... com baguetes...

— ... chapéus de Mme. Lucille, vestido de tafetá...

— Tafetá? Seda lamée!...

— Meninas! — esbravejou Pereira. — Eu não admito!

Elas sorriram com ironia e retiraram-se da sala, murmurando com desprezo.

— Coitado! Até dá dó!

Aquele nunca imaginado desrespeito magoou-o ainda mais do que a repulsa da mulher. Pois quê?! Ter aquela recompensa uma vida inteira de sacrifícios norteados no culto severo da honra? Insultos da esposa, censura e sarcasmo das filhas? Teria, acaso, errado? Verificou que sim. Errara num ponto. Devia ter entregado o dinheiro em segredo, de modo que ninguém viesse a ter notícia do incidente...

Os jornais do dia seguinte trouxeram notas sobre o grande acontecimento. Louvaram com calor aquele “gesto raro, nobilíssimo, denunciador das finas qualidades morais que alicerçam o caráter do nosso povo”.

A mulher leu a notícia em voz alta, por ocasião do almoço, e como não houvesse sobremesa disse à filha:

— Leva, Candoca, leva este elogio ao armazém e vê se nos compra com ele meio quilo de marmelada...

João encarou-a com infinita tristeza. Não disse palavra. Largou o prato, ergueu-se, tomou o chapéu e saiu.

Na repartição consolou-se. Receberam-no com parabéns e louvores.

— O teu ato é daqueles que nobilizam a espécie humana — disse, dando-lhe a mão, um companheiro. — Toque.

Pereira apertou-lha, mas já sem comoção nenhuma, preferindo no íntimo que não lhe falassem naquilo.

Estavam todos curiosos de saber como fora a coisa e rodearam-no.

— Conta por miúdo a história, João.

— Muito simples — respondeu ele com secura. — Encontrei um pacote de dinheiro que não era meu e entreguei-o, aí está.

— Ao dono?

— Não. A um chefe, a um chefe lá...

— Muito bem, muito bem. Mas escuta: não devias ter entregado o dinheiro antes de saber a quem pertencia.

— Perfeitamente — acudiu outro. — Antes de saber a quem pertencia e antes que o dono reclamasse...

— ... e provasse — pro-vas-se, entendes? — que era dele! — concluiu um terceiro.

João irritou-se.

— Mas que é que têm vocês com isso? Fiz o que a minha consciência ordenava e pronto! Não compreendo essa meia honestidade que vocês preconizam, ora bolas!

— Não se abespinhe, amigo. Estamos dando nossa opinião sobre um fato público que os jornais noticiaram. Você hoje é um caso — e os casos debatem-se.

O chefe de seção entrou nesse momento. A palestra cessou. Cada qual foi para sua mesa e João absorveu-se no trabalho, de cara amarrada e coração pungido.

À noite, na cama, já mais conformada, dona Maricota voltou ao assunto.

— Você foi precipitado, João. Não devia ter tanta pressa em entregar o pacote. Por que não o trouxe primeiro aqui? Eu queria ao menos ver, pegar...

— Que ideia! “Ver, pegar”...

— Já contenta uma pé rapada como eu, que nunca enxergou pelega de quinhentos. Trezentos e sessenta contos!...

— Não suspire assim, Maricota! Basta a cena de ontem...

— Impossível. É mais forte do que eu...

— Mas, venha cá, Maricota, fale sinceramente, fale de coração: acha mesmo que fiz mal procedendo honestamente?

— Acho que você devia ter trazido o dinheiro e devia consultar-me. Guardávamos o pacote e esperávamos que o dono o reclamasse — e provasse — pro-vas-se que era dele...

— Dava na mesma. Esse dinheiro nunca seria meu.

— Ficava sendo, é boa! Mas, olhe, João, você nunca pensou bem. Você não tem boa cabeça. É por isso que vivemos toda a vida esta vidinha miserável, comendo o pão que o diabo amassou...

— “Vidinha miserável!”... Sempre fomos felizes, nunca percebemos que éramos pobres...

— Sim, mas percebo-o agora, porque só agora nos surgiu a ocasião de enriquecer. Foi uma sorte grande que Deus nos mandou.

— “Deus... ”

— Deus, sim, e você o ofendeu afastando-a com o pé. Poderíamos estar ricos, fazendo caridade, beneficiando os doentes... Quanta coisa! Mas a tal honestidade...

— “A tal honestidade!...”

— Sim, sim! Tudo tem conta na vida, homem! Ladrão é quem furta um; quem pega mil é barão, você bem sabe. Veja os seus companheiros. O Nunes, que começou com você no cartório, já ronca automóvel e tem casa.

— Mas é um gatuno!

— Gatuno, nada! O Claraboia, esse já tem fábrica de chapéus. O seu Miguel — até quem, meu Deus! — comprou outro dia um terrenão em Vila Mariana.

— Mas é um passador de nota falsa, mulher!

— Passador de nota falsa, nada! Tem boa cabeça, é o que é. Não vai na onda. Não é um trouxa como você…

E não teve mais arranjo a vida do homem honrado. Adeus, paz! Adeus, concórdia! Adeus, humildade! A casa tornou-se-lhe um perfeito inferno. Só se ouviam suspiros, palavras duras. João perdeu a esposa. Impossível reconhecer na meiga companheira de outrora a criatura amarga, irredutível de ideias, que a visão dos trezentos e sessenta contos produzira.

E aquele coro que com ela faziam as meninas, sempre irônicas, sarcásticas...

— O vestido da Climene custou quinhentos mil-réis. Quando teremos um assim!

— Pois, olhe, às vezes a gente acha na rua vestidos assim, não um, mas centenas...

— Que adianta? Acha, mas desacha...

E suspiros.

Também na repartição foi-se-lhe o sossego. Todos os dias torturavam-no com alusões e indiretas irônicas.

Certa vez um dos colegas disse logo ao entrar:

— Sabem? Encontrei na rua um lindo broche de brilhantes.

— E levaste-o logo ao chefe, digo, ao Gabinete dos Objetos Achados...

— Não sou nenhum trouxa! Levei-o, sim, ao prego. Deu-me trezentos e sessenta mil-réis — e desde já vos convido a todos para uma vasta farra no domingo próximo.

— Vai também, seu Pereira?

O mártir não respondeu, fingindo-se absorto no trabalho.

— Não dá a honra... É um homem honeeeesto... Raça privilegiada, superior, que não se mistura, que não liga... Pois vamos nós, beber à beça, beber o broche inteirinho! Nem todos nascem com vocação para santo do calendário.

E o pior foi que desde o malfadado encontro do dinheiro João Pereira entrou a decair socialmente. Parentes e conhecidos deram de fazer pouco caso do “trouxa”. Se alguém lhe lembrava o nome para algum negócio, era fatal o sorrisinho de piedade.

— Não serve, o João não serve. É um coitado...

Convenceram-se todos de que João Pereira não era “um homem do seu tempo”. O segredo de todas as vitórias está em ser um homem do seu tempo...

Seis meses depois o descalabro da casa era completo. Perdida a alegria de outrora, dona Maricota azedara de gênio. Vivia num desânimo, lambona, descuidada dos afazeres domésticos, sempre aos suspiros.

— Para que lutar? Nunca sairemos disto... As ocasiões não aparecem duas vezes e quem deixa de agarrá-las pelos cabelos está perdido.

Aquele desleixo agravou a situação financeira da casa. Todos os encargos recaíam agora sobre os ombros do chefe, cujo ordenado não aumentava. João enojou-se da vida e perdeu o ânimo de vivê-la até o fim. Desejou a morte e acabou pensando no suicídio. Só a morte poria termo àquele martírio de todos os momentos, forte demais para uma alma bem formada como a sua.

Um dia o proprietário do prédio suspendeu o aluguel. Dona Maricota deu a notícia ao marido, cheia de indiferença.

— Esteve cá o homem da casa e disse que do próximo mês em diante são mais cinquenta...

— ?!...

— Mais cinquenta mil-réis, sim, ali na ficha! Ou, então, olho da rua!

— Mas é uma exploração miserável! — exclamou Pereira. — A casa é um pardieiro e nós não podemos, positivamente não podemos...

— Pois é. E quando uns diabos destes perdem pacotes — porque você bem sabe que só eles possuem pacotes para perder —, ainda aparece quem lhos restitua... Você está vendo agora como eles formam os tais pacotes. Arrancando o pão da boca duns miseráveis como nós — dos honestos...

— Pelo amor de Deus, Maricota, não me fale mais assim que sou capaz duma loucura!...

— Está arrependido? Está convencido de que foi tolo? Pois quando encontrar outro pacote faça o que todos fariam: meta-o no bolso. Quem rouba a ladrão tem cem anos de perdão.

Estavam à mesa, sozinhos, tomando o magro café da noite.

— E você ainda não sabe de uma coisa — continuou ela depois duma pausa, como indecisa se contaria ou não.

— Que é?

— Disse-me hoje a Ligiazinha que você anda por aí de apelido às costas...

— Quê?

— João Trouxa! Ninguém diz mais Pereira...

O mártir ergueu-se, lançado por violento impulso interno.

— Basta! — exclamou num tom de desvario que assustou a mulher, e largando de chofre a xícara retirou-se para o quarto precipitadamente.

Dona Maricota, ressabiada, susteve a sua caneca a meio caminho da boca. E assim ficou, suspensa, até que tombou para trás, estarrecida.

Reboara no quarto um tiro — o tiro que matou o último homem honesto…

Fonte:
Monteiro Lobato. O Macaco que se fez Homem.

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Gilson Faustino Maia (Poema em Décimas: O Poeta)


Você conhece o poeta,
aquele que canta em versos
as belezas do Universo
e que de forma discreta,
fala da vida secreta
dos seus ais, dos seus amores?
De seu mundo de esplendores?
Ele está em toda parte,
canta com garra e com arte,
sua fé e seus louvores.

Está na terra e no ar,
está na morte e na vida,
no olhar da mulher querida,
em seu viver, seu sonhar
e no desejo de amar.
Canta o mar com seu furor,
os desencontros do amor,
florestas, aves em festas,
madrugadas e serestas
e as mágoas do trovador.

A lua e sua beleza.
Canta a paz, tão desejada,
o amor que ficou na estrada,
as forças da natureza
e do sol, a realeza.
Canta a vida, tão sofrida,
sua pobreza bandida,
sua ternura no olhar.
Porém quem irá cantar
sua eterna despedida?

Fonte:
Poema enviado pelo poeta

Aparecidos Raimundo de Souza (Bizarro)


OITO E MEIA DA MANHÃ.

Dona Cecília está sentada confortavelmente na enorme mesa da sala tomando seu desjejum. A campainha toca. De má vontade se levanta. Caminha a passos lerdos devido à idade e alcança o hall que antecede a grande sala de estar. Estica o corpo. Na ponta dos pés, espia pelo buraquinho do olho mágico. Vê um homem de costas. Esse é um dos muitos, ou melhor, o principal defeito que os desconhecidos, de um modo geral, fazem questão de carregar. Ao baterem na porta de alguém (principalmente em prédios de apartamentos, onde não se conta com serviços de portaria), ao invés de permanecerem com a cara virada para o olho mágico, a fim de serem prontamente reconhecidos, optam por se distraírem mirando um ponto qualquer, ao acaso. Geralmente escolhem os pés, como a se certificarem se os sapatos não saíram correndo.

Dona Cecília fica um instante, quieta, imaginando que o sujeito logo desistirá. Volta à mesa. Renova o café. A campainha volta a tocar. Desta feita, três vezes consecutivas. Furiosa, a sessentona retorna ao hall. Todavia, não se dispõe a perder tempo perscrutando o corredor. Destranca e abre de vez. Ao fazê-lo, contudo, solta um grito medonho, ao tempo que bate a porta estrepitosamente na cara do inesperado visitante. Rosilda, a empregada, vem da cozinha, às carreiras. Atrás dela, acode também Nancy, a sobrinha e a filhinha Ciane, de oito anos. Rosilda se benze ao ver a velhota à beira de um ataque de nervos.

— Que foi dona Cecília? Que bicho lhe mordeu?

As duas amparam a anciã e a carregam para o quarto.

— Por Deus! — quer saber Rosilda. — O que foi que aconteceu?

Nancy igualmente curiosa, segura carinhosamente a mão da espantada e boquiaberta velhinha.

— Que diabo fez a senhora se assustar tanto assim?

Como dona Cecília perdera a voz momentaneamente, a jovem refaz os passos da tia. Volta à sala e escancara a porta, de supetão. Agarrada a sua saia, está a espevitada Ciane, tomada igualmente pela curiosidade de saber o que arriou a idosa a cair cheia de medo e pavor. O sujeito parado no umbral se condensa e compõem a figura de um cidadão vestido impecavelmente. Usa terno preto, camisa branca e gravata marrom, combinando com os sapatos. Na mão esquerda uma pilha enorme de livros.

— Pois não, senhor?

— Om ia, enhorita — diz a visita com a voz fanhosa. — Eu ome é Eporace. Ou endedor ambuante e íblias agradas.

— O que? Como!?

Nessa hora, e só nessa hora, Nancy percebe que o infeliz não tem nariz. Como se momentaneamente uma agulha rombuda estivesse perfurando seu coração, a bela dá um passo atrás, acometida de um medo infundado, mas tão forte, que o impulso imediato não é outro senão o de bater a porta com toda força na fuça do infeliz. Quando um ser humano não tem um olho, a coisa complica um pouco, ou melhor, complica muitíssimo. Sem orelha, passa. Com um ouvido só, engana. Sem um braço, ou perna, idem. Sem os dois, vexa, oprime, acanha, embora as pessoas olhem de soslaio, ficando inteiramente penalizadas. No fim, se acaba aceitando. Contudo, um rosto feio, de homem, e ainda por cima, sem o nariz, é de deixar qualquer filho de Deus assustado. A bem da verdade, assustado seria pouco. Assustadíssissimo, ou qualquer outro qualificativo ou coisa parecida, cairia de excelente tamanho.

Ciane, todavia, se adianta às intenções da mãe e aquiesce com ela, envolta num sorriso infantil repleto da mais pura inocência.

— Mãezinha, atende ele. Coitado, não tem nariz!

Nancy fica estática. Alguns segundos se queda paralisada. Sem nenhum tipo de ação. Rosilda chega de novo, bisbilhotando. Por pouco, ao pregar os olhos no cidadão bem ali a alguns passos dela, não segue o mesmo caminho da patroa, tendo um piripaque súbito e fulminante. Atordoada, volta, aos gritos, no passo que veio e some no fim do corredor que acessa os aposentos de dona Cecília, não sem antes fechar atrás de si à porta a chave.

Enquanto isso, na sala Nancy se recobra do susto. Ou pelo menos tenta.

— O senhor não quer entrar?

— Uito obriado.

— Pode repetir o que disse antes e me explicar a que veio?

O desnarigado coloca sobre uma mesinha de centro os volumes que carrega. Nancy lhe indica o sofá.

— Por favor, tome assento.

A figura extravagante obedece. Fala.

— Ou endedor e Íblias Agradas — diz a guisa de explicação. – Ostaria e icar om um eemplar ara e ajuar? Ez eais — completa numa cortesia quase diplomática.

Nancy não consegue entender uma palavra sequer. Ciane, esperta e arisca, socorre a mãe e a tira de um embaraço prestes a tomar corpo e forma.

— Mamãe, o tio vende Bíblias Sagradas.

— É!?

— Ele falou que cada livro custa dez reais. O nome dele é Leporace.

O coitado olha para a menina visivelmente contrafeito, porém, com ternura incontida. Sorri um sorriso feio e deformado, mas franco e verdadeiro. Em seguida desvia o rosto para a mãe. Balança a cabeça de modo a confirmar as palavras da miúda.

— Arotinha eserta. Enza Eus!

Sem saber o que responder, a moça encara a filha.

— O tio falou que sou esperta. Disse mais: Benza Deus!

Nancy chacoalha a cabeça feita vaquinha de presépio.

— Compra, mãe. É livro de Jesus.

— Como é que você sabe?

— Minha professora, na escola, outro dia, falou sobre isso. A senhora compra?

Tanto a jovenzinha insiste que Nancy, condoída e compadecida do estado lastimável do vendedor, acaba adquirindo dois exemplares.

— Tome, um é seu. Este outro dê a Rosilda.

Apanha a bolsa. Tira o dinheiro e estende ao rapaz.

— Aqui está. Aceita um café?

— E ão or inômodo...

Nancy vai até a cozinha e retorna com uma bandeja. O café é servido. Ao terminar, o vendedor retira de um bolso interno do paletó um maço de panfletos. Puxa um e estende a guria. De um lado, está impressa a oração do Pai Nosso, do outro, os Dez Mandamentos.

— Rá ocê! Embrança o io...

O homem feio termina o café em silêncio. Faz uma referência com a cabeça, em agradecimento. Então se levanta, passa a mão nos livros. Acena um adeus silencioso a Ciane. Vira as costas e ganha o corredor.

Fonte:
SOUZA, Aparecido Raimundo de. Havia uma ponte lá na fronteira. São Paulo: Ed. Sucesso, 2012.

Teresinka Pereira (Poemas Recolhidos) III


A IMPORTÂNCIA DA ANDORINHA

Alguém disse que uma andorinha só
pode fazer o verão,
além de outras coisas,
sem o truque dos sonhos.
E até mesmo sem o pedaço do céu
que nos abriga pela tarde.

A andorinha em questão,
se faz palavra de calor,
rosa de verão, esperança
cotidiana de transitar
sobre a vida,
sobre as esperas
e a ansiedade.

Uma andorinha só, que
se enlouquece e de repente
volta ao sendeiro de onde
partiu: caminho de aurora,
coração de mel, repetida
negação de nosso ateísmo.

DE MAIOR IMPORTÂNCIA

Decidi que hoje não trabalho:
vou só viver!

Declaro que meu testemunho
desta semana vai ser
minha liberação
desta fatalidade
de estar presente no planeta.

Hoje descobri que
tenho séculos marcados
nos meus genes e que
meu polimorfismo
é vão mas autêntico.

Não me surpreende
que hoje me sinta
mais importante
que o pôr do sol.

ESTOU SÓ

Vivo na alternativa
para não me assustar
com a realidade presente.

Vivo o apocalipse
como um animal selvagem
que finge de morto
para enganar o inimigo
ameaçador.

Vivo com o coração vazio
com medo de amar
o próprio paraíso do amor.

Nada quero ganhar
para nada perder
no diamante da noite.

Minha língua é volúvel:
digo palavras de pedra
e depois faço silêncio
para ouvir o vento.

ESPERANÇA

Na senda de teu amor
busquei meu doce céu,
meus verdes bosques
e água pura.

Os mais lindos prazeres
desfrutei em teu carinho.

Que fazer agora
que meu inocente passo
se distanciou de ti
e que tudo se vê tão triste...

De nossa paz brotou
uma dura sombra
e na poesia cresce o pranto...

Talvez no sábio tempo futuro
haja ainda uma faísca
de esperança para o amor!

NÃO VIVEMOS

Não vivemos, só morremos.
Isso nos dizem na escola,
na igreja e na família.
Dizem que a morte é bela,
mas a mim me parece sórdido
que os vivos dependam
das mortes dos heróis
para seguir vivendo
sua própria morte.

A primavera vem a meio passo
e morre antes da última flor.
A luz do dia é linda,
mas é durante a noite
que nos aliviamos
de nossa tristeza de viver.

O sol é mais humilde que a flor
e os sonhos são
muito mais eloquentes
que as vitórias do amor.

É uma total alucinação viver
sem um sonho puro porque
cada manhã a luz aberta
nos rouba do tempo
e do ébrio segredo da vida.

NOSSA REALIDADE

É necessário ser verdadeiros
até mesmo nos sorrisos,
nas palavras com as quais
cumprimentamos e nas que
pomos nos versos.

Os rastros imprevistos
não valem para salvar
nossa altaneira conveniência,
nem as esperanças servem
para salvar as difíceis distâncias.

É necessário cortar
todos os voos
de intermináveis quimeras,
multiplicar os avanços
da cotidiana tristeza
e o silêncio no qual
a tropeços caminhamos sós
rendidos à nossa simples
realidade.

OUTRO POEMA

Meu teclado, entre sombras,
acostumado que está à amargura,
tem soberbas cicatrizes.

Entretanto vou pensando sempre
nas profundas paixões
que produzem a morte ébria,
calada e desnuda, quando ataca
a um anjo na solidão.

Tenho meu peito ferido
com sangrenta violência:
harpas clandestinas me roubaram
além das alegrias e tristezas,
meu hábito de perpétuo espanto.

SE VOCÊ NÃO ESTÁ...

E agora que eu quero
recordar seus olhos,
onde estão?

Que cor de vivacidade
positivista os vestem hoje?

E quando quero romper
a palavra e o costume,
que inútil me sinto
se você não está?

Homens como você
não agarram o tempo
com as mãos ocupadas
na fogueira do calendário...

Por isso, me admiro
que me consideres
e não te esqueças de
regressar à nostalgia
desta tarde cor de cinza
para sufocar os outros ídolos
de minha paciente ternura.

Fonte:
Poemas enviados pela poetisa

Carlos Drummond de Andrade (A Visita Inesperada)


A empregada correu na frente, para avisar:

— Me desculpe, madame, mas a campainha tocou e mal eu fui abrindo a porta, essa madame aí foi entrando e dizendo que precisava falar com o doutor.

Atrás vinha uma senhora de porte altaneiro, que se plantou diante da mesa onde jantavam quatro pessoas e disse:

— Boa noite. Vim aqui buscar meu marido.

Os comensais entreolharam-se, em conferência muda de espantos que não encontravam expressão verbal, nem mesmo um oh!

A dona da casa, refazendo-se, quebrou o silêncio:

— Não quer sentar-se?

— Obrigada. Não pretendo me demorar nesta casa.

E voltando-se para um dos homens sentados:

— Agenor, vamos embora?

Agenor, sem levantar o rosto, respondeu:

— Estou jantando.

— Peça licença para interromper o jantar e vamos para casa.

— Estou jantando, já disse, e não costumo interromper minhas refeições.

— O lugar de você fazer refeições é a nossa casa, e não me consta que esta seja a nossa casa.

— Com licença, Heleninha — disse o outro homem. — Agora me lembrei que tenho de visitar um doente no Grajaú antes das dez. Vamos embora, Teresa?

— Não, Euclides — disse a dona da casa. — Prefiro que vocês fiquem. Não vejo nenhum inconveniente em que este assunto seja tratado em mesa-redonda, tanto mais quando Teresa é minha irmã e você é meu cunhado. E então, Agenor?

— Gosto de jantar tranquilo — respondeu Agenor. — Além do mais, não acho correto que pessoas estranhas entrem em domicílio alheio sem serem convidadas.

— Perdão, Agenor, essa pessoa estranha é sua mulher legítima, e a pessoa em cuja casa você está jantando é que é realmente um elemento estranho à nossa sociedade conjugal — objetou a recém-chegada.

— E se o diálogo fosse desenvolvido no salão, depois do jantar? — propôs Heleninha, ríspida.

— É mesmo — aprovou Teresa. — Você não acha, Lucrécia, que tudo pode ser conversado daqui a pouco? Estamos quase acabando.

Lucrécia transigiu:

— Bem, eu espero quinze minutos, não mais.

— Nesse caso, aceita um café? — sugeriu Heleninha, com um meio sorriso de circunstância (ou de vitória prévia?).

A invasora pensou um instante para responder:

— Aceito.

O dr. Euclides levantou-se e ofereceu-lhe uma cadeira, que Lucrécia, antes de sentar-se, recuou um pouco, a significar que absolutamente não participaria da mesa da amante de seu marido.

Voltando o silêncio, coube a Teresa realimentar a conversa, dizendo para a irmã:

— Heleninha, este seu Bianco é espetacular. Um nu tão sensual, e ao mesmo tempo tão casto.

— Pois eu ainda gosto mais dos trigais do Bianco, todo aquele esplendor da terra, que ilumina a parede em redor — disse o dr. Euclides.

— Se é Bianco, é sempre bom — comentou Agenor, saindo do mutismo em que mergulhara após a última estocada de sua mulher.

Entraram a falar de pintura, em sobremesa lenta.

— Aprecio os seus conhecimentos em matéria de arte, Agenor, mas não podia andar mais depressa com essa mousse de chocolate que está no seu prato? — agrediu outra vez Lucrécia.

Agenor continuou brincando com o talher na orla do prato, enquanto discorria sobre o fim da arte conceitual.

— Está se esgotando o tempo regulamentar — continuou ela — e eu não saio daqui sem você.

— Vamos tomar o café na sala — atalhou Heleninha, um pouco nervosa.

Levantaram-se todos.

— O meu cliente não pode esperar, o estado dele não é bom — disse Euclides. — Você vai permitir que eu me retire com Teresa.

— Não, querido, você e Teresa vão ficar aqui. O cliente inclusive terá vida mais longa, e é falta de educação se despedir logo depois da comida — objetou Heleninha.

Dirigiram-se todos para o salão.

— Muito bem — disse Heleninha, sentando-se como os demais, enquanto se servia café. — Agora podemos examinar calmamente a situação.

— Concordei em tomar café mas não concordei em examinar nenhuma situação — ressalvou Lucrécia. — Aliás, ela é muito clara. Agenor é meu marido e eu vim buscá-lo, simplesmente.

— Que é que você diz a isso? — perguntou Heleninha, virando-se para Agenor.

— Não preciso de guia para me levar a essa ou àquela parte — respondeu ele, olhando para o teto.

— Talvez precise, Agenor. Você saiu de casa às sete e meia da manhã, prometendo voltar para o almoço, e até agora. Todos os dias a mesma coisa. Concluo daí que lhe faz falta alguém para reconduzir você ao lar conjugal.

— Sou maior de vinte e um, tenho minhas pernas.

— Eu sei, ninguém está negando isso.

— Quando me sinto bem num lugar, satisfeito, relaxado, prefiro ficar mais tempo nele.

— Até certo ponto é razoável, meu caro. Mas se você se sentir bem no Regine’s, por exemplo, será que vai passar o resto da vida lá?

Heleninha atalhou:

— Dada a natureza do diálogo, não seria melhor vocês ficarem à vontade, sem estarmos presentes? Nós iremos lá para dentro, enquanto vocês conversam.

— Não. É ótimo que você esteja presente — disse Lucrécia — porque você é exatamente o motivo feminino pelo qual Agenor não para mais em casa. Quanto a Euclides e Teresa, até é bom que eles fiquem sabendo, se é que não sabem.

— Você está me responsabilizando pelo fato de seu marido não parar em casa?

— Claro, queridinha. Não é aqui que ele janta praticamente de segunda a domingo? E quando não janta aqui, não é com você que ele janta fora de casa? Com você que ele vai ao cinema, ao teatro, a Cabo Frio, passeia de lancha, faz não sei mais o quê?

— Admito que nós fazemos juntos uma porção de programas sociais, mas você também me fará a fineza de admitir que ele não faz nada obrigado, faz porque quer, porque gosta de fazer. Eu não administro Agenor.

— É possível. Em todo caso, e sem querer aprofundar esse ponto, convido Agenor a sair comigo para passar uns tempos em nossa casa.

— Estou bem aqui — respondeu Agenor, examinando atentamente as unhas.

— Você pode ir, eu vou mais tarde.

— Procure ser gentil, meu bem. Se não quer que sua mulher o acompanhe, pelo menos acompanhe sua mulher até a casa. Parece que ainda estamos casados.

— Parece — confirmou Agenor. — Você disse a palavra certa. Parece, mas não é verdade.

— Como? No civil, no religioso, você põe em dúvida?

— Os papéis, não. Mas a realidade atrás dos papéis. Eu me sinto solteiro.

— Escute aqui, Lucrécia — disse Teresa. — Não quero me meter na vida de vocês, mas quem sabe se um desquite não pegava bem? No meu caso deu certo, não foi, Euclides?

— É — confirmou Euclides. — No meu também. Nosso casamento vai navegando em mar azul.

— Agradeço o seu conselho, Teresa — disse Lucrécia. — Mas desquite não é vitamina C, que se receita para todo mundo. Eu não quero me desquitar de Agenor.

— Está vendo? — exclamou Agenor, com um gesto desalentado, de mãos abertas, na direção de Heleninha.

— Então, permita que eu também meta a colher no assunto, embora não seja do meu feitio — aparteou Euclides. — Se você não quer o desquite é porque lhe tem amor. Se lhe tem amor, procure reconquistá-lo, ou aceite-o como ele é.

Heleninha repeliu a lição, antes que Lucrécia o fizesse:

— Essa não, Euclides. Ele é quem tem de decidir. Vamos, Agenor, não fique com essa cara de habitante de outro planeta, que não tem nada com a gente.

— Querem saber de uma coisa? — bradou Agenor. — Vou-me embora, mas não é para casa. Vou sozinho, recuso companhia. Não aceito discussão coletiva dos assuntos de minha vida particular. Ciao para todos.

Levantou-se e ia sair, quando as duas mulheres o travaram pelo braço:

— Não, Agenor, você vai é comigo, que sou sua mulher.

— Agenor, você não vai sem decidir esta parada — disse Heleninha. — Se você sair, não precisa mais voltar. Exijo que fique e resolva de uma vez por todas esta situação.

— Com que direito você estabelece restrições ao livre-arbítrio de meu marido? — protestou Lucrécia. — Ele quer sair, eu também quero. Vou sair com ele, e está resolvida a situação.

Agenor continuava irritado:

— Se vocês começam a brigar, eu desapareço e ninguém mais terá notícias minhas. Sumo! Viro fumaça!

— Nãããão! — exclamaram as litigantes em uníssono.

— Viro sim! Chega de competição em torno da minha pessoa!

Heleninha, por sua vez, estranhou:

— Que é isso, Agenor? Então você me coloca em nível de competição com Lucrécia? Por acaso eu fui à sua casa tirar você dos braços dela? Pois bem, pode sair, não serei eu que implore a você a graça de ficar comigo.

— Não é isso — respondeu Agenor —, eu não quis ofender você, eu estou nervoso, eu…

— Viu? — disse Lucrécia. — Viu o que você fez com ele? Agenor, um homem tão calmo, tão forte, de repente sua estrutura psicológica desmorona diante dos ataques desferidos por você, que não o compreende. Ninguém resiste à incompreensão.

— Quem fala em incompreensão, se a presença de Agenor em minha casa prova justamente que ele não é compreendido em casa de você?

— Quer um tranquilizante, nego? — propôs Teresa docemente, dirigindo-se a Agenor, que, com a cabeça, respondeu: sim.

— Primeiro vamos tratar do nervoso de Agenor, depois vocês discutem — disse Euclides, lembrando-se da sua condição de médico.

As duas calaram-se.

Com as mãos na cabeça, e a cabeça baixa, Agenor virara estátua.

— Acho melhor pôr ponto final nesta discussão — disse Lucrécia.

— Também acho — concordou Heleninha.

Uma brisa de paz circulou pelo salão.

— Você fuma? — perguntou Lucrécia, estendendo o maço de cigarros a Heleninha.

— Aceito — respondeu ela. E acrescentou: — Obrigada.

Teresa e Euclides acenderam seus cigarros. O fumo tornou o ambiente ainda mais apaziguador.

Ingerido o tranquilizante, Agenor deixou-se estar em serena passividade. Ninguém ousava perturbar-lhe o repouso.

— Sabem da última do Lulu Blake? — indagou Euclides. — Tocou fogo na mansão da Isolda Schnitz para exorcizar um lobisomem. Que não era lobisomem, era o motorista da Isolda, que fazia barulho de madrugada para assustar o Lulu.

— Lulu é muito impulsivo — comentou Lucrécia. — Uma ocasião, na piscina do Copa…

— É, eu me lembro — confirmou Heleninha. — Atirou n’água, com vestido e tudo, a duquesa de Armenonville, que dissera para ele: “Vous êtes un drôle de pantin, monsieur”.

Entraram a recordar demasias de temperamento de Lulu Blake, nas quais Agenor não parecia interessado. Guardava silêncio nobre e distante, de olhos cerrados.

— Não fale alto, Euclides — ponderou Heleninha. — Assim você acorda Agenor.

— Isso mesmo — apoiou Lucrécia. — Vamos falar baixinho.

Mas Agenor abriu espontaneamente os olhos, já recuperado, e todos se felicitaram pela sua reação pronta.

— Desculpem o incômodo que lhes dei — disse ele calmamente. — Não dormi a noite passada, com esse calor, e necessito invariavelmente de oito horas de sono para manter o equilíbrio.

— Incômodo nenhum, ora — disseram todos, expressamente ou pela fisionomia.

— Quantas horas são?

— Passa um quarto de meia-noite.

— Vamos embora, Lucrécia?

— Vamos, meu bem.

— Cuide bem dele, Lucrécia — recomendou Heleninha. — Você volta amanhã?

— Fique tranquila — prometeu Lucrécia.

— Volto — prometeu Agenor.

— Depois a gente resolve tudo — disse Heleninha.

— Tá — disse Lucrécia.

Ciao. Ciao. Ciao. Despediram-se cordialmente.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Jorge Fregadolli (Minha Namorada… Maringá)


Ó Maringá… terra amada,
canto tuas mil riquezas.
És a bela flor alada
nos voos, trazes surpresas.

Maringá nasceu na mata,
o seu ninho, um denso verde,
nas noites, teu céu é prata,
ao sol, bonito ouro-verde.

O café, tua riqueza,
tens história não distante,
deu-te um mundo de certeza,
veio a geada castigante.

Outros rumos tu tomaste,
recomeço por inteiro;
e para trás não deixaste
com a garra do pioneiro.

Eras tão linda, menina,
em dez de maio, nasceste.
Aos setenta anos, divina…
os desafios venceste.

Não és mais a caboclinha
de outrora, vês, Maringá?
Tens o garbo de rainha,
que te aplaude o Paraná.

Teus progressos, que pujantes,
seguem direções distintas.
Há esferas conflitantes,
com as nuanças das tintas.

Louvo seu templo sagrado,
nosso ícone, a Catedral.
A Mãe, gesto idolatrado,
de puro amor filial.

Nasceste para ser bonita,
ó querida Maringá.
Exibes graça infinita
nas filhas que Deus te dá.

Terra de gente de fibra.
Maringá urbe garbosa,
tem alma sensível, vibra.
Que cidade glamorosa!

És a Cidade Canção,
de povo gentil, feliz,
que, de alegre coração,
que no cantar te bendiz.

É filha de Maringá
a querida Academia,
orgulho do Paraná…
um canteiro de poesia!

Belas praças… avenidas,
desfilam-se arranha-céus…
são riquezas incontidas
sob o azul de belos véus.

Projetos e mais paixão…
escolas, saúde e arte –
conquistas do coração,
que do homem a luta é parte.

A medicina, altaneira,
modelo de prontidão,
abre caminho, é ligeira,
conquista espaço, atenção.

O engenho da linha férrea
é progresso, admiração.
Trilhos debaixo da terra
gorjeiam linda canção.

Gigantesco aeroporto
leva Maringá ao mundo;
uma conquista e conforto
de progresso tão fecundo.

O comércio, com lampejos
atende a todo querer,
desde o pequeno desejo
até mais alto poder.

É o Parque do Japão
uma lembrança constante,
vida, beleza, e emoção
de um recanto bem distante.

Maringá, hoje, faz anos,
quero mesmo te abraçar
ao declarar-me que te amo!
Para sempre vou te amar!

Fonte:
Poema enviado pelo autor.

Contos e Lendas do Mundo (África: Kigbo e o Espírito do Mato)

Kigbo, que quer dizer «homem teimoso», tinha um nome que lhe assentava às mil maravilhas, pois um homem teimoso é aquele que não descansa enquanto não leva a sua avante. Segundo um mito dos lorubas, a teimosia de Kigbo é que foi a fonte de todos os seus males.

Kigbo e sua mulher, Dolapo, eram ambos jovens e tinham vivido com os pais até casarem. Isso significava que não possuíam terras próprias. Quando chegou a altura de os aldeões prepararem os campos para o plantio, o pai de Kigbo foi a casa do filho para falar com ele.

 - Tens uma mulher bonita e um filho esplêndido, chegou pois a altura de cuidares deles - disse. - Procuraremos um lugar fora da aldeia, limparemos o terreno e faremos dele a tua plantação particular.

 - Não quero - respondeu Kigbo.

 - Não queres? - admirou-se o pai. - Mas tu precisas de cultivar alimentos para ti e para a tua família. Agora és independente, Kigbo. Nem os teus pais nem os da Dolapo têm obrigação de sustentar-vos.

- O que eu quis dizer é que não quero arranjar um terreno nos arredores da aldeia, pois já está quase tudo tomado e, portanto, só conseguiríamos dispor de terra suficiente para um campo pequeno.

 - Mas tu só precisas de um campo pequeno - advertiu-o o pai. Há terra suficiente para todos.

 - Quero fazer uma plantação no mato - disse Kigbo.

 - No mato? - exclamou o pai, ficando de boca aberta. - Que perfeita loucura! Ninguém cultiva aí. O mato fica longe de casa e é perigoso!

 - Não ligo à distância e é exatamente porque ninguém cultiva lá que poderei desbravar um campo do tamanho que quiser - explicou Kigbo, sorrindo.

 - E o perigo... - lembrou-lhe o pai. Kigbo fitou o pai e respondeu:

 - Tu mesmo me puseste o nome de teimoso. Nada me fará mudar de ideias.

 Foi assim que Kigbo se pôs a caminho do mato por sua conta e risco. Começava a desbravar a terra quando um grupo de espíritos apareceu.

 - Nós somos os espíritos do mato - disseram. - Esta terra pertence-nos. Que fazes aqui?

 - Preparo um bocado de terra para plantar o meu milho - respondeu Kigbo teimosamente.

 Não queria permitir que um grupo de espíritos alterasse os seus planos.

- Nós somos os espíritos do mato - repetiu o grupo. - Esta terra pertence-nos. Fazemos o mesmo que tu.

Então os espíritos, em vez de expulsarem Kigbo, começaram a ajudá-lo na sua tarefa, daí que, passado pouco tempo, uma ampla clareira estava desbravada.

Satisfeito, Kigbo parou e os espíritos imitaram-no. A seguir, sem ao menos um «obrigado», voltou de novo para a aldeia.

Ao chegar a casa, encontrou o pai à sua espera, tendo a seu lado Dolapo.

- Estava muito preocupado contigo - disse-lhe o pai. - Receei que os espíritos te tivessem apanhado e feito coisas terríveis.

- Coisas terríveis? - riu-se Kigbo. - Quando comecei a dar conta de uns arbustos, eles apareceram e até ajudaram. O trabalho ficou feito num instante... Amanhã voltarei lá para revolver a terra.

- Será que não aprendeste nada comigo, grande teimoso? Já te avisei de que o mato é um sítio terrível, e que os espíritos não são para brincadeiras.

Quando, na manhã seguinte, Kigbo voltou, levando consigo um saco de milho, o grupo de espíritos do mato apareceu de novo.

- Nós somos os espíritos do mato. Esta terra pertence-nos. Que fazes aqui?

- Remexo o solo para plantar as minhas sementes - respondeu Kigbo.

- Nós somos os espíritos do mato - repetiram. - Esta terra pertence-nos. Fazemos o mesmo que tu.

Kigbo começou então a lavrar a terra, antes coberta de mato, e os espíritos ajudaram. Num instante, o solo ficou preparado para ser semeado. A seguir, Kigbo tirou do saco uma mão-cheia de grãos, que começou a espalhar.

- Nós somos os espíritos do mato - disse o coro. - Esta terra pertence-nos. Fazemos o mesmo que tu.

E começaram a semear. Depressa o trabalho estava terminado.

Satisfeito, Kigbo parou e os espíritos imitaram-no. Depois, uma vez mais sem agradecer, voltou para a aldeia.

O tempo passou e as estações mudaram. Depois do tempo de semear veio o de colher e Kigbo continuou a viver, à sua maneira egoísta e teimosa, sem se preocupar minimamente com os outros.

Todos os outros aldeões podiam vigiar facilmente as suas pequenas plantações, mesmo na orla da aldeia, para acompanhar o crescimento do milho. Kigbo, no entanto, era obrigado a percorrer uma grande distância até à beira do mato onde desbravara o seu campo de cultivo. Mas achava que valera a pena. Via-se, a perder de vista, um mar de milho a brilhar ao sol.

Kigbo pensava: «As pessoas acham que sou teimoso, mas vejam o que eu consegui com a minha esperteza. Todos têm plantações pequenas e precisam de trabalhar duramente nelas. Eu tenho este campo enorme e aqueles espíritos tolos fizeram a maior parte do trabalho duro por mim. Espero que me ajudem quando o milho estiver maduro e pronto a colher!»

O orgulho que Kigbo sentia no seu milho dourado era tão grande que resolveu ir buscar a mulher e o filho para o verem. Voltou então à aldeia.

Dolapo, entretanto, sentia remorsos.

«Kigbo pode ser teimoso», pensou, «mas é meu marido e eu amo-o... e, quando trabalha, faz com grande empenho.»

Resolveu então ir até lá para ver com os seus próprios olhos. Devem ter tomado caminhos diferentes, pois não se cruzaram. Quando, por fim, Dolapo chegou à plantação, não viu Kigbo em lado nenhum.

 Fora uma grande caminhada e Dolapo aborreceu-se com a teimosia dele. Porque não desbravara ele um campo mais pequeno perto da aldeia?

O filho de Dolapo começou a chorar.

- Tens fome, pequenino? - perguntou-lhe ela. - Não posso dar-te este milho, pois ainda não amadureceu.

Porém, como o filho não se calava, Dolapo arrancou uma maçaroca de milho - apesar de ainda não estar madura - e deu-lha a comer.

Nesse preciso momento, o grupo de espíritos apareceu e disse:

- Nós somos os espíritos do mato. Esta terra pertence-nos. Fazemos o mesmo que tu.

E, antes de Dolapo perceber o que estava a acontecer, os espíritos do mato cortaram as maçarocas de todo o milho. Não tardou que o solo ficasse juncado de maçarocas de milho verdes, estando assim irremediavelmente perdida toda a safra!

- Que foi que fizemos?! - exclamou Dolapo.

Sentou-se a chorar, e os seus queixumes, junto com os do bebé que também começara a fazer o mesmo, soaram tão alto que chegaram aos ouvidos de Kigbo, que ia a caminho de casa. Este ficou com uma cara preocupada.

- Este choro parece-me da Dolapo e do bebê - disse, cada vez mais receoso. - E vem do mato!

Voltou para trás e correu o mais depressa que pôde para a sua plantação. Que estaria Dolapo a fazer ali com o seu filho? O mato era um sítio muito perigoso. Quando lá chegou, ficou horrorizado perante o panorama com que deparou. Não havia uma única maçaroca de pé. A plantação ficara reduzida a um mar de hastes secas, sem qualquer préstimo!

- Que aconteceu? - perguntou Kigbo, embasbacado.

- O nosso filho chorava com fome, de modo que eu arranquei uma maçaroca e dei-lha - explicou-lhe a mulher.

- Criança estúpida! - gritou Kigbo, fazendo, em seguida, algo de terrível. Enraivecido, agarrou no menino e sacudiu-o.

Antes de ter tempo para se aperceber das consequências do seu ato, o grupo de espíritos apareceu e disse:

- Nós somos os espíritos do mato. Esta terra pertence-nos. Fazemos o mesmo que tu.

Então, antes de Kigbo poder detê-los, começaram todos a sacudir a pobre criança da mesma maneira.

Kigbo sentiu-se culpado e furioso com o que acontecera. Era horrível tratar alguém - sobretudo uma criança - daquela maneira, porém tentou convencer-se de que a culpa fora de Dolapo.

- Olha o que me obrigaste a fazer! - exclamou, cometendo novo erro, pois esbofeteou a mulher.

- Nós somos os espíritos do mato - disse o grupo, mais uma vez. Esta terra pertence-nos. Fazemos o mesmo que tu.

Depois começaram todos a dar bofetadas em Dolapo. Kigbo, dando-se conta de quão teimoso e louco fora, bateu com os punhos na cabeça.

- Que estúpido fui! - queixou-se. - Porque não ouvi o meu pai?

- Nós somos os espíritos do mato - repetiu o grupo, virando-se para ele. - Esta terra pertence-nos. Fazemos o mesmo que tu.

Começaram então a bater em Kigbo.

- Esta terra pertence-nos - repetiam, sem que ele percebesse uma palavra por causa das pancadas.
_____________________________
Esta lenda tem muitos fins. Um deles conta que Kigbo e Dolapo fugiram do mato levando o filho com eles e que o grande teimoso aprendeu a lição. Outro diz que os três foram mortos pelos espíritos. Um terceiro relata que Kigbo morreu nas mãos dos espíritos, mas Dolapo e o filho escaparam com vida.

Seja qual for o fim que tiveram, o certo é que o pai de Kigbo tinha razão. O mato é um lugar perigoso e não se pode brincar com os espíritos... por muito prestáveis que estes se possam mostrar ao princípio.


Fonte:
Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

Apollo Taborda França (O Corvo)


do clássico de Edgard Allan Poe (EUA)
À meia-noite, sombria,
Eu triste, lendo manuais. . .
Ouvi sons de quem batia,
Para entrar em meus umbrais.
— Isto posto e nada mais!

Foi num pérfido dezembro,
Na saudade de Lenora…
Sinto bem, como me lembro,
Pela morte ela se fora.
— Para mim não volta mais!

Nesta lúgubre noitada,
Está alguém que pede abrigo…
A livrar-se da nortada,
Ou de um atroz inimigo.
— Penso nisso e nada mais!

Inseguro, ponderei,
Quem bate tenha paciência...
Quase em sono atendo à lei
Do refúgio, na insistência.
— Porta aberta e nada mais!

Perquiri lá fora além,
Tudo escuro, ânsia e medo…
Nem de Lenora, também.
Pra abrandar meu acre enredo.
— Só silêncio e nada mais!

Novamente o grave ruído
Faz vibrar os meus vitrais,,.
Mais plangente que um gemido,
Desses ermos sepulcrais.
— É o vento e nada mais!

Abro a janela, de chofre,
Entra um vulto, me observa...
Um Corvo, odor de enxofre,
Vem, pousa em minha Minerva.
— Fica ali e nada mais!

Surpreendido com a figura,
Esqueço as dores morais...
Qual seu nome, ó negrura
Dos tempos bem ancestrais?
— Disse o Corvo: "Nunca mais!"

Nunca ouvi falar um corvo,
Nem qualquer outro animal…
Grande enigma absorvo,
Pois, que foge ao racional,
— Crocitando: "Nunca mais!"

E não disse uma outra cousa,
Nem uma pena moveu...
Até amigos vão-se à lousa,
E você, volta ao museu?
— A resposta: "Nunca mais!"

Sempre iguais, duas palavras,
Aprendeu não sei de quem..,
Termos de doridas lavras
Do seu dono que é ninguém.
— Sempre o nunca: "Nunca mais!"

Perturbado, na cadeira,
Fui mudando a posição...
Será a frase derradeira,
Ou há nisso uma intenção?
— Expressando: "Nunca mais!"

Olhar duro, penetrante,
Me angustiava no coxim...
Ela ausente, eu hesitante,
Nunca sofri nada assim.
— Suportando o "Nunca mais!"

Ar difuso, perfumado
Qual incenso celestial…
Penso nela, sou coitado,
Não a esqueço é meu ritual,
— Grasna o Corvo: "Nunca mais!"

Satanás ou ave preta,
Tlins quebrados de cristais…
Há um bálsamo, não treta,
Pra findar estes meus ais?
— Ouço a saga: "Nunca mais!"

Profeta ou fero bruxo,
Pelo Deus que é dos mortais...
Volta ela, num refluxo,
Dessas hostes abismais?
— Geme o Corvo: "Nunca mais!"

Nos separe a sua fala,
Vai-te às trevas infernais…
Não o quero em minha sala,
Sumam lembranças que tais.
— Implacável: "Nunca mais!"

Segue a noite, densa e nua,
Suas sombras são punhais…
Ave-diabo continua
Desafiando os meus ideais.
— Libertar-me… nunca mais!

(Curitiba-PR, 12.10.1988)
Fonte:
Apollo Taborda França. 10 Grande Temas (clássicos) da Literatura. Curitiba/PR: Gráfica Vitória, 1989.
Livro enviado por Vânia Ennes.

Vinicius de Moraes (Encontros)


Meu primeiro encontro, em Poesia, depois das inelutáveis influências da juventude, foi o de Murilo Mendes. A fase da imitação declinava lentamente, à medida que os poetas melhoravam.

Discípulo ardente de Júlio Dantas, tendo escrito aos 14 anos um poema chamado "Os três amores", passei por Guerra Junqueiro em branco. Julgava-o um grande filósofo mais que um poeta, e temia-lhe o tom blasfemo. É que não lera ainda Os simples, onde está o melhor do seu lirismo. Nessa ocasião, fiz do sr. João Lira Filho mentor espiritual. Dei-lhe Foederis arca para ler. A Arca em aspas era um livrão de capa preta onde ia pondo os versos que me pareciam razoáveis. O sr. João Lira Filho não se agradou da poesia. Deu-me uns conselhos: que eu deixasse daquilo, que poesia era "frescura" e "abandono", que meus sonetos eram "muito ruins" e só as trovas "onde você procura imitar Adelmar é que são mais ou menos". A palavra "abandono" que interpretei mal, feriu-me a suscetibilidade juvenil. Larguei do sr. João Lira Filho e do seu mestre da Academia e dei com Guilherme de Almeida. Aquilo é que era poeta! Como é que o homem fazia aquelas coisas, que perfeição!

            O relógio de mogno, grave, enorme
            Dorme

Meu olhar se concentrava sobre a magia da palavra "mogno". Se me perguntassem o que era Poesia, eu diria que era aquela palavra feiticeira. Lembro-me que fiz um verso onde falava "em teus seios de mogno e teus lábios de écran". Meus poemas redundavam em diálogos sutilíssimos entre a amada e eu, passavam-se sempre numa casa de chá elegante ou num ônibus de luxo, tinham de Toi et moi, que felizmente só vim a ler mais tarde.

Castro Alves e Bilac não me fizeram grande impressão. Li-os apressadamente, sem que me tivessem marcado muito. A poesia paterna, que encontrara numa gaveta velha em casa, foi a minha grande decisiva influência. Desejei imenso fazer versos assim, versos de amor, despidos das ideias grandiloquentes que assustavam no vate baiano e do brilho de joalheria que cegava no artífice da "Via Láctea".

            Junto de ti, ó minha amada
            Passam-se os dias a voar
            Se longe estou, como apressada
            Minha alma à tua quer chegar!

Posso citá-los ainda de cor. Causaram-me inveja e me fizeram sofrer. Pensei que nunca poderia ser poeta.

Chorei. Cheguei ao furto. Uma vez mostrei a alguns conhecidos um que me parecia o melhor, como se fora meu. Assinei meu nome embaixo. Na noite desse dia tive uma das maiores crises por que já passei neste meu fadário. Pensei pela primeira vez em me suicidar.

Depois, fui crescendo, como acontece na vida. Na Faculdade de Direito entrei em pasmo contacto com os grandes do CAJU, o centro da elite da escola. Era garoto e andava fardado de aspirante a oficial da reserva. Foi uma época rica e dolorosa, de lutas íntimas, de descobertas gloriosas, de ânsia e aspiração infindáveis. Otávio de Faria e San Thiago Dantas, dois dos nomes de maior projeção acadêmica, discutiam problemas de Poesia no Café do Areal. Ouvia quieto, mas com um ouvido gigante, as sentenças misteriosas, ditadas sabe Deus por que demônio, que na boca de San Thiago se prestigiavam de uma claridade que para mim tinha algo de sobrenatural, e que Otávio de Faria fazia sombrias, dilacerantes. A um devo uma amizade que através de tanta coisa vivida tem se mostrado sempre boa e generosa, amável no cotidiano mas atenta nos momentos difíceis. Ao outro devo a Amizade.

Foram esses dois homens que me iniciaram nos mistérios da Poesia. Falavam em Murilo Mendes e Augusto Frederico Schmidt. San Thiago Dantas lembrava-se às vezes do derradeiro:

            O filósofo é como o galinho branco, pequenino, dormindo...

Eu pensava. Que não seria aquilo tudo? Filósofo... galinho branco... Realmente, uma sugestão qualquer, branca, assim como um idéia branca, a idéia branca de um filósofo, Platão, sei lá. Palmo a palmo conquistava a compreensão do incompreensível. Um dia ouvi um nome: Baudelaire. Outro: Rimbaud. Mais outro: Mallarmé. Outro ainda: Verlaine. E pus-me a ler.

Mas isso não vem ao caso. Com Murilo Mendes a coisa foi assim: achava-me passeando com Otávio de Faria pela Praia do Flamengo. De repente ele produziu uma brochura branca, quase quadrada, com o título Poemas em caracteres negros. Era Murilo Mendes. Minhas mãos estavam virgens ainda de qualquer nova poesia brasileira. Minha emoção foi grande.

Fiz perguntas, como era, como não era. Lemos alguns poemas juntos. Otávio criticava, de dentro da admiração real pelo poeta. Travei conhecimento com a questão do "sublime" e do "cotidiano" em Poesia. Ponderei coisas. Coisas me foram ponderadas.

Em casa li o livro até de manhã. Achei-o magistral em tudo, até no que tinha de artifício. A primeira impressão que o poeta me deu é de que vivia num espaço cristalizado em ângulos onde anjos cubistas salmodiavam ao som de saxofones. Todas essas adolescentes burguesas geométricas, essas meninas em eterna projeção e prolongamento, movia-as o poeta, transformado em mágico, como a novos títeres, através de versos como fios metálicos, num cenário fantástico de metrópoles cônicas, paisagens elásticas, ao som de melodias penetrantes.

Mais tarde, já com o primeiro livro publicado, conheci o poeta na Avenida, por intermédio de Otávio. Vinha deblaterando, o dedo em riste, uma gravata vermelha, o rosto azul de entalhe magro dignificado por uma testa vasta e dolorosa. Pôs-me a mão no ombro, depois me abraçou com longos braços dançarinos. Senti a imediata cordialidade do artista, a sua ânsia de comunhão. Disse-me palavras reconfortantes, de longe ainda me gritava coisas, escandalosamente.

Via-o depois em concertos, em conferências, ora mergulhado na música, ora apontando ondulante de uma multidão, a me enviar mensagens periódicas de fraternidade com a mão espantosa, quebradiça e exangue. E desde sempre Murilo Mendes foi um amigo. Ouço muito falar mal dele, de seu espírito fantástico, da teatralidade com que vive. Eu próprio já tenho sentido certa má-vontade - a minha má vontade de animal razoável - contra o poeta nos seus momentos de irrisão declamatória. Mas que me deixem dizer: a par de ser um grande poeta brasileiro, com um modo pessoalíssimo para a Poesia, Murilo Mendes é um puro e um coração bom, não direi como a água, de que não gosto, mas como o uísque.

Com Augusto Frederico Schmidt foi diferente. Já em meio à primeira experiência poética, juntando os poemas que iriam dar O caminho para a distância, li Navio perdido. Tinha do poeta uma idéia que me perturbava um pouco. Ouvia falar dele como se fala dos gênios. Alguém sem pé nem cabeça, a quem não se leva muito a sério no que diz, uma pessoa variável, inconstante, passeando pela vida uma grande alma insatisfeita, ferida de Poesia. Dizia-se que o poeta era assim e o homem assado, que a vida do homem não traduzia a obra do poeta, a sua extraordinária mensagem lírica. Mensagem... o termo me pegou em cheio. Achei que mensagem é que era. Adotei mensagem. Quando Aporelli mexia com o bardo, aproveitando-se das suas levitações poéticas, eu me enfezava, achava um desrespeito, embora bem que risse. Navio perdido passou a ser o meu livro. Sentimentos comuns em face da Poesia, a vocação do "sublime", causa de que me fizera paladino, me aproximavam muito de Schmidt. Contudo, não gostei quando os críticos acharam grande semelhança de tons entre as duas poesias. Eu queria era ser pessoal, tinha uma vaidade danada disso. Pensava que ficar como continuador do lirismo schmidtiano era muita honra, mas não para mim. Minha extrema mocidade não admitia senão uma linha de frente geral. Todo mundo junto.

Um artigo de Manuel Bandeira me deixou louco. Hoje, pensando nessas coisas, dá-me uma grande ternura por mim mesmo. Que menino esplêndido eu era! Manuel Bandeira (isto é, o inimigo de então, o chefe da poesia do "cotidiano") ousava escrever, colocando meu livro do lado de vários outros, que eu realmente tinha vocação poética, mas que precisava muito abandonar o "tom schmidtiano", metrificar minhas linhas, deixar de muitas facilidades com o verso livre, que só é bom na mão dos mestres.

Como fiquei queimado! Achei que você não entendia nada de Poesia, Manuel, que você não era o Grande Poeta, vivendo a vida inefável dos símbolos misteriosos, dos rios loucos, das luas assexuadas, das mulheres trágicas e dos caminhos de Deus.

Mas, voltando a Schmidt. Uma noite vinha com Otávio de Faria pela rua Sachet. Ia ver meu livro que acabava de sair e que a Schmidt Editora distribuíra. À porta da famosa livraria, onde tanta coisa confusa já teve lugar, encontrava-se o poeta. Achei-o irreal, à primeira vista. Apertou-me a mão com um gesto que eu não soube se era de simpatia ou de zanga, porque ao mesmo tempo que me prendia fortemente, me mantinha a distância. Houve falta de jeito. Schmidt exclamou: "Ah, é esse!" Depois falou em Gilberto Amado, o qual teria dito que eu era "um alto". Ficou tudo meio atrapalhado, meio confuso. Eu queria ir-me embora, Otávio também, que não sabia como casar aqueles dois poetas. De volta, creio que fiz observações pouco gentis sobre o que ficara.

Durante um certo tempo, Schmidt passou a ser uma presença incômoda. Não havia crítica, notinha de jornal onde se mencionasse meu livro, que não falasse nos poetas irmãos, um prosseguindo no caminho que o outro abrira. A coisa para mim tomou um ar de pendenga, de corrida rasa, com Schmidt à frente, e eu em segundo, fazendo força para emparelhar.

Quando todas essas coisas passaram e a minha vaidade trancada começou a dar mofo, algumas saídas juntos, algumas conversas foram dissipando a impressão de ceci tuera celà que a presença de Schmidt me causava. Ia gostando dele, compreendendo-lhe o método lírico dentro do desarranjo formal, amando-lhe a inteligência de vôo tão largo. Hoje em dia vemo-nos menos, mas nos gostamos mais. Às vezes dá-me uma saudade do poeta, e eu tomo a iniciativa de ir visitá-lo no seu décimo andar sobre Copacabana. Mesmo porque, ele não me procura. Schmidt tolera pouco os intelectuais, e embora eu nunca converse "inteligente" com ele, creio que o poeta descansa mais o espírito britando pedra, por assim dizer, na companhia dos seus amigos homens de negócio, onde o troco inocente de idéias deixa às vezes saldo para uma das partes. Eu que, em companhia do poeta, já tive oportunidade de assistir a algumas dessas reuniões, acho que talvez ele é que esteja com a razão. Há um mistério agradável nesses homens de ar vagamente entendiado que vivem do gozo rápido das tiradas, que andam muito de táxi e percorrem numa noite vários ambientes, resolvendo uma mesma questão que nunca entre em jogo.

O encontro de Manuel Bandeira, que coisa excelente foi! Eu ainda tinha várias dificuldades em relação à poesia do poeta, mas intimamente mudara muito. Se no princípio me quisessem levar a ele, talvez tivesse relutado. Depois, não. Manuel me escrevera um cartão agradecendo a remessa de Forma e exegese, que me remexeu por dentro. Lia-o às vezes, a Manuel, invejando-lhe secretamente a sobriedade perfeita do verso, mas sempre em oposição ao modo de sua poesia. No fundo, achava que não se podia transigir assim com o Espírito, com a Fome metafisica, com a Visão. Mas, ai de mim, já amava o poeta. Meu coração de mulher da vida já batia por ele. Andava dando um jeito para encontrá-lo.

Anah e Carlos Chagas Filho deram-me o ensejo. Esses caros amigos, cuja casa da rua Jardim Botânico era para mim uma coisa perfeita de gosto e intimidade, providenciaram o encontro. O próprio Manuel, diziam eles, achava que a idéia de um jantar tinha seus pontos. E uma lagartixa resolveu a questão.

Eu havia chegado e esperava na sala, quando vi uma lagartixa branca. Parti a caçá-la, o que fiz com o maior cuidado para não magoar o bichinho frágil. E Manuel me pegou assim, com a lagartixa na concha da mão e aderiu imediatamente a ela. Dei-lhe um aperto de canhota, porque tinha a lagartixa na direita. O poeta esticou o pescoço, ficou observando o animalzinho com o seu perfil de pássaro, depois riu à-toa, um riso que mal parecia vir daquele siso sério. O riso me venceu. A ternura pelo poeta foi imediata. Um segundo depois estávamos conversando no sofá, eu brilhando discretamente para não chocar o amigo em perspectiva. Falou-se dos Mello Moraes, de poesia, de violão. Eu trouxera o violão, que era assim uma espécie de prato forte meu (nem tão forte, na verdade...) e que hoje em dia considero uma cruz. Cantei umas modas. Manuel parece que gostou.

Vi-o pela segunda vez no Salão de Belas-Artes. Foi quando me apresentou a Mário de Andrade. Fez-me as mesmas festas, perguntou pelo violão, falou vagamente em se marcar qualquer coisa. Mário de Andrade conservou-se "onézimo", segundo a gnomonia ovalleana, que é um modo sui generis de imparticipação.

Uma noite saímos juntos. Grande noite para mim, e Manuel, paternal, me levou ao cinema, me levou à Americana para tomarmos um malted milk, depois me levou ao Beco, onde subi sete andares num elevador vermelho, que pia feito gavião quando chega. Conheci seu quarto, esse quarto que às vezes tem sido para o poeta um lugar de tristezas; e que para mim tem sido tantas vezes um lugar de sossego. E banhei-me do verso exemplar de Estrela da manhã, ainda inédito, que o poeta leu para mim, ou melhor, que me jogou em cima, com aquele seu modo brusco de ler poesia.

Manuel é hoje em dia um ser à parte para mim. Todo o mundo tem seus dias de antipatia do amigo, suas brigas, suas caturrices. Chega-se mesmo a enjoar da pessoa, da presença, do modo de ser, de certos pequenos hábitos irritantes. Fica-se mesmo com uma tendência vaga a partir a cara, sem prejuízo grande para a amizade. Com Manuel, jamais! Nunca a menor bulha, mesmo dentro de um ou dois pontos de vista diferentes. Manuel aceita o amigo e se impõe a ele. É fiel, mas não intervém; presto, sem se fazer sentir. Parece Ronald Colman.

Mas eu tinha falado em Mário de Andrade. Mário foi uma conquista minha. O poeta, a princípio, não quis nada comigo. Fui-lhe mesmo apresentado umas duas ou três vezes, sem resultado. Fazia um ar, meu Deus, vaguíssimo, de ombros um pouco levantados.

Mas em São Paulo, que é sua casa, eu fui um dia à casa dele com Armandinho Sales de Oliveira, Mário de Andrade tinha dirigido um recital colosso, de modinhas do Império, de modo que estava no céu com o pé de fora. À saída, não me lembro mais por que, a uma pergunta de Armandinho eu respondi: "Tomara!" Mário de Andrade me pegou vivamente pelo braço. "Você também vem. Uma pessoa que fala tomara, tomara, meu Deus! - que gostosura! - tem direito a beber minha caninha. Ah, não! você vem!"

E eu fui. E eis como venci Mário de Andrade, pela linguagem. Em casa dele bebemos toda a garrafa de caninha. Houve grandes confraternizações. E hoje em dia, mal acabo de escrever um livro, corro para Mário de Andrade. Ele critica impiedosamente, inefavelmente. Anota as margens. Sinto que gosta de meus poemas, mas tem uma "diferença" qualquer com minha poesia. Eu o acho uma criatura esplêndida, com todas as suas manias. E que bom poeta! Poucos literatos no Brasil terão uma figura tão vasta e universal, apesar do seu fanático regionalismo. Conheço gente que o acha fiteiro. Mas a esses eu direi - lede-o para entendê-lo:

            Muito de indústria me fiz careca
            Abri salão nos meus pensamentos.

Ou ainda:

            Danço para não chorar.

Também em São Paulo conheci Oswald, também de Andrade. Achava-me no Hotel Esplanada, no quarto de Manuel Bandeira, que deveria ir jantar com o poeta de Pau-Brasil. Ao saber quem eu era, prorrompeu em gargalhadas positivamente obscenas: "Então é esse menino, com esse ar esportivo, o autor daqueles versos compridos como um iole-a-8! Mas você não tem medo de fazer tanta força nessa regata desigual, seu poeta?"

Eu me abespinhei um pouco, mas não fiz má cara à piada. Dei uma em troca. E logo a cordialidade se estabeleceu. Saímos os três e jantamos em boa camaradagem. Oswald estava brilhantíssimo.

Procurava-o sempre que ia a São Paulo. Gostava de seu jeito e de sua casa. Boa casa para a gente se sentir à vontade, entre originais até de Picasso, vendo Oswald construir de um lado e arrasar de outro. O poeta tem a paixão da literatura. É um demolidor, mas é, por outro lado, um espírito altamente construtivo. Gosto dos homens assim, mutáveis mas intransigentes enquanto creem, bem raciados, os homens que gostam da sua casa e da sua mulher, não os femininos, os impotentes ou os fracos. Oswald tem essa grande qualidade macha que lhe dá sumo à vida. Quase todo o mundo o teme. Temo-lhe o destabocamento e a sátira irresponsável. Compreendo que não gostem dele. Mas no fundo é um homem fácil de se gostar, com um grande complexo sentimental de paternidade, um homem de coração gordo e violento.

Homem que vi estranho foi o poeta Carlos Drummond de Andrade. Conheci-o para lhe pedir um favor e desde então nunca mais fiz outra coisa. Mas já tenho ido lá para pedir-lhe o simples favor de vê-lo um pouco. Achei-o intratável a primeira vez, parecia um estilete e não um chefe de gabinete. Saí impressionado, pensando comigo que nunca poderia ser amigo de um sujeito assim.

Não sei se ele gosta de mim ou não, não me interessa. Eu o tenho em especial carinho. Invejo-lhe a poesia descarnada e lúcida, e como que iluminada por um sol fluido de aurora. Tenho

            Amor, a quanto me obrigas.

O poeta louco Jayme Ovalle, ou melhor, "o místico", como o chamou Manuel Bandeira, foi na minha vida um encontro de que não me esqueço. Conheci-o três dias depois de sua chegada da Europa, em casa de Schmidt. Tinha uma curiosidade enorme em vê-lo. Soube que andava fechado, não querendo receber ninguém, sofrendo as agruras da dor-sem-nome, roído de saudade da Inglaterra. Mas combinei uma tramoia com Schmidt e fui, com um ar de quem não quer. Encontrei o poeta no meio da sua garrafa de uísque, rodeado pelo grupo familiar atento e respeitoso. Seu monóculo me recebeu mal, enquanto seu olho de águia me considerava com ar pouco amigável. Calei-me e fiquei quietinho, espiando passear o gênio.

Passado um tempo Ovalle sentou-se. Todos se voltaram para ele. Alguma coisa ia suceder. Mas ele limitou-se a falar fanhosamente para Schmidt: "Põe um Bachzinho aí na vitrola pra mim, põe?"

Só então se virou para o meu lado. Ficou me olhando um pouco, eu gelado mas firme, sorrindo um riso covarde. Ao fim de um tempo sorriu também.

- Ele é muito bonzinho - disse, apontando-me com o dedo. - Ele é tão bonzinho que um dia... que um dia ele é capaz de sair correndo assim, compreende, sair correndo assim, e aí...

Mas não cheguei a saber o que ia acontecer comigo no fim da corrida. Schmidt voltava com um livro de poemas do poeta, poemas ingleses, feitos na sua amada Londres. Ovalle relutou um pouco, mas acabou lendo quase tudo. Eu fiquei ouvindo sem compreender muita coisa, mas compreendo muita coisa do homem a que ouvia. Ovalle chorou, ajoelhou-se, às vezes se curvava até o chão para em seguida saltar como um calunga doido, falava música, fazia gestos tão patéticos que parecia querer se agarrar ao xale invisível de Nossa Senhora.

Juro que fiquei fisicamente cansado da emoção. Quando resolvi sair, o poeta quis vir comigo. E fomos juntos por Copacabana afora. Depois entramos num táxi para a cidade. Na cidade pusemo-nos a beber - e bebemos tanto que nem as estrelas do céu ou os peixinhos do mar fariam conta do que bebemos. A madrugada nos encontrou na Lapa, comendo um filé à moda com vinho verde. A expressão do poeta sossegara muito, e ele agora me contava sobre as coisas do mistério, num tom simples e persuasivo. Ouvi de sua boca a explicação integral da famosa Gnomonia. Ouvi-o falar de Bach e Beethoven. Ouvi-o exaltar as mulheres da vida. Mais tarde, às sete horas da manhã, assisti ao seu encontro com Manuel Bandeira, encontro emocionante, depois de quatro anos de ausência, e um pequena rusga. Do quarto de Manuel fui para a Censura Cinematográfica, onde dormi durante a projeção um sono de duas horas e liberei todas as fitas.

Até hoje, quando nos encontramos, sinto entre nós a fidelidade a esse primeiro encontro. Descobrimos coisas, fazemos caso de tudo, nunca há silêncio entre nós.

Meu amigo Pedro Nava, ou melhor, o dr. Pedro Nava, é um grande poeta brasileiro que também é médico. Um olho clínico, como dizem seus colegas. E eu digo amém, porque Pedro Nava é o meu médico. Já me diagnosticou uma apendicite, e guardo bem a lembrança - a última lembrança ao ser anestesiado - de seu olho clínico posto em tristeza diante da possibilidade de um trespasse meu. Pedro Nava, sendo como é meu amigo, contou-me mais tarde o medo que tivera que eu morresse, não tanto porque fosse eu paciente, mas porque era seu amigo. É verdade que se morre muito nesse negócio de operação, por mais que o cirurgião seja hábil, como era no meu caso. Tive um medo póstumo, quando o poeta me fez ver essa possibilidade.

Mas já que se falou em morrer, em se tratando de Morte o poeta Pedro Nava comparece e fica triste. Porque se trata de um ser votado à Morte, tanto em sua profissão, onde luta exemplarmente contra ela, como em sua poesia, onde é todo dela. Pedro Nava é o criador da ideia sinistra do defunto que todos nós carregamos conosco, a quem damos de comer e beber e para quem arranjamos mulher; defunto que se senta, se levanta, anda na rua, vai ao cinema, escova os dentes e, no fim da noite, se deita imóvel para imitar o descanso eterno.

Como se pode deduzir, Pedro Nava é um ser terrível, um perturbador da ordem, um russo. É o poeta russo Pedro, o grande. Só se sente bem ou no seu hospital, onde combate, com uma prudência de conhecedor a fundo, todos os candidatos à Morte; ou perturbando a alma alheia com sua grande tristeza - e por que não dizer dor-de-corno? - sua ternura úmida e animal de mastim fiel, e sua poesia lancinante.

É um grande Pedro! Travei relações com ele em casa de Rodrigo Mello Franco de Andrade - esse Rodrigo cuja amizade é para mim uma coisa extrema na vida - e o poeta batalhou para me manter a distância. Não queria mais saber de amigos, que são criaturas que atrapalham muito, sofrem, adoecem, morrem, é o diabo!

Mas pouco a pouco venci o poeta. Hoje ele é um desses quatro ou cinco que já não distingo mais em meu sentimento. É um homem espantosamente rico e inteligente. Não há balda, como se diz em Minas, que lhe passe. Sua capacidade inventiva, no domínio da psicologia lírica, é assombrosa. Marca não importa quem, com dois ou três traços essenciais. Sua poesia bissexta, como se diz, segundo a expressão de Prudente de Morais Neto - porque vem de raro em raro -, é excelente. Quem não leu "O defunto" não sabe o que é sugestão de morte. É o poema mais "incômodo" que há. Perturba o tempo todo, irremediavelmente.

            Quando morto estiver meu corpo
            Evitem os inúteis disfarces...

E por fim meu primo, meu amado primo, que também é Pedro e é o anjo dos "Dantas" - Prudente de Morais Neto. É preciso concentrar-se muito para dizer a menor das suas qualidades. Sua poesia - que ele chama bissexta - é o próprio lirismo. É um canto japonês. É o saquê. E fica-se sem saber o que admirar mais nesse homem: se essa alma que aninha tudo com o mesmo amor, o bem e o mal, o puro e o impuro; ou o seu espírito lógico, que separa com precisão matemática o justo do injusto, embora justificando a ambos.

Quem o vê a primeira vez pode bem achá-lo bobo - e muitos bobos têm caído nessa esparrela. Se eu tivesse que "procurar-lhe o bicho", diria talvez que Prudente parece um bom chantecler, com seu topete, seu olho azul, sua cabeça que lhe movimenta todo o corpo ao se voltar, e esse corpão genial, terno, túmulo ideal para as confidências, os segredos, os sentimentos mais íntimos, as paixões mais puras, as contemplações mais estáticas.

Porque esse homem, de aparência burguesa e de inteligência prática, é um contemplativo. Não se irrita, não quer mal a ninguém, perdoa a injustiça que lhe fazem. Mas é justo e preciso como a luz elétrica. Não fica escaninho que lhe passe despercebido quando se volta para o julgamento de alguém ou de alguma coisa. Não tolera a mentira ou o engano. Prefere sofrer os males de uma verdade desnecessária que o remorso de uma mentira generosa. E isso não porque se ache demasiado íntegro diante da vida. Porque o erro o nauseia e desequilibra. Seu caminho é um doce movimento para a frente, um doce movimento de braços abertos.

Eu vos incito a amá-lo muito, vós que o não conheceis ou o admirais apenas. Não importa a posição em que estejais, direita, esquerda, centro avante, ou retaguarda. É preciso amá-lo com o maior carinho, com maior doçura e deixar que ele vos ame também, porque a glória desse mundo é pouca e o amor desse homem é uma grande glória.

Mas estou me tornando patético. Ou não estou? Não sei. Sei de uma coisa: que Prudente de Morais Neto, o criador da Cachorra, sobrinho de Manuel Bandeira e meu primo pelo coração, foi o homem mais exato que já vi até hoje. E a propósito disto, cabe uma consideração.

Que grupo excelente fazem todos esses homens! Olhem que estive viajando, conhecendo gente nova, tive contato com grandes poetas ingleses, ouvi-os falarem, vi outros grupos de homens de espírito; mas nada assim como eles. Essa força lírica, essa poesia magistral que estão criando para o Brasil, esse impacto de ternura e sordidez, essa coragem diante da vida, essa modéstia real, esse socorro mútuo, essa discrição e esse escândalo com que vivem, só os encontrei neles, aqui entre nós, nesses pequenos grupos dentro do grande Grupo. E faz um bem terrível pensar nisso. Que onde quase todos esperam recompensas, esses homens não esperam nada, apenas a fidelidade mútua. Que onde quase todos usam de processos turvos, muitas vezes inconfessáveis, esses homens agem limpamente, sem sequer se dar conta disso. Vivem em meio à ganância geral com armas desiguais, senão desarmados.

São almas caríssimas, perfeitas de sentimento. Quando se queixam o fazem na melhor poesia, mas porque o fazem assim se queixam pouco. Não transigem com a má literatura: sabem esperar o amadurecimento da palavra a fim de que ela não traga engano. E são homens que se iludem, sujeitos às mesmas tentações e às mesmas quedas, com a mesma sensação da própria fraqueza e da própria sordidez.

Mas neles até a sordidez é inefável. Eis o que os diferença. Neles a sordidez se transforma em poesia e a poesia em canto. E não é essa a maior grandeza do poeta? É possível ser-se poeta sem ser sórdido?

Fonte:
Escrito pelo poeta para o Jornal Correio da Manhã, em 1940.