sábado, 12 de agosto de 2017

Conto Africano (A Árvore que falava)

Longe, muito longe… bem no coração da savana, vivia uma árvore maior e mais velha do que qualquer outra.

Abrigava, sob a sua corcha toda a sabedoria de África.

A seus pés, por entre as altas ervas, a leoa espiava o antílope ou a zebra que se tinham afastado do grupo. Como era a única árvore das redondezas, os pássaros, que se empoleiravam nos ramos mais altos, conheciam-na bem. Também as girafas, que comiam as folhas dos ramos do meio, a conheciam. E os leões, que se estendiam sob os ramos baixos para fazerem a sesta…

E assim a árvore conhecia todos os segredos dos pássaros, dos leões, das girafas, das zebras e de muitos outros animais. É que ela escutava com todas as suas folhas.

Até os homens vinham sentar-se debaixo da árvore no momento das grandes decisões, discutindo os assuntos sérios à sombra dos seus ramos.

A árvore sabia mais sobre o povo dos homens do que o mais velho dos anciãos e o mais sábio dos sábios. Porque ela sabia calar-se, enquanto eles gostavam de falar.

Mas a árvore não guardava para si o seu saber: àqueles que tinham os ouvidos atentos, ela murmurava, em confidência, a resposta a muitas questões.

Quando os seus filhotes estavam suficientemente grandes para voar, as andorinhas, as cotovias e os estorninhos tinham por hábito levá-los até à árvore. Ao cair da noite, a árvore enchia-se de chilreios. Passado algum tempo, com três bicadas, os pais faziam calar os mais palradores. E cada um escutava o murmúrio que subia da raiz mais profunda até ao raminho mais alto.

No dia seguinte, os jovens sabiam um pouco mais da arte de voar em ziguezague para enganar as aves de rapina que mergulham sobre as presas. E a águia ou o milhafre regressavam às montanhas de mãos a abanar, perguntando-se por que milagre todos os passarinhos daquele canto da savana se tinham tornado, de repente, tão espertos!

E cada girafinha que partia a mascar um punhado de folhas da árvore ficava a saber um pouco melhor como evitar a leoa que caçava. E, misteriosamente, cada leãozinho, depois da sesta ao pé da árvore, desconfiava um pouco mais do riso da hiena que rondava à procura de uma presa fácil.

Mas os homens, esses, partiam tão sisudos e estúpidos como tinham vindo, e a sua tagarelice nada lhes tinha ensinado porque não sabiam escutar.

Eram orgulhosos e arrogantes. Incendiavam a savana com os seus fogos e matavam mais animais do que aqueles que precisavam para se alimentar. Matavam-se até uns aos outros. E chamavam a isso «a guerra». A árvore falava-lhes, como a todos, mas os homens não a escutavam. Por causa deles, a árvore ficou triste. Pela primeira vez, sentiu-se velha e cansada. Se pudesse, ter-se-ia deitado para esquecer. Mas quando se é uma árvore, é preciso ficar de pé a recordar…

Foi então que as suas folhas amareleceram e secaram e, em breve, ficou nua no meio da savana. Os pássaros começaram a desdenhar dos seus ramos e os leões e as girafas também, porque ela deixou de lhes falar.

E todos diziam que ela estava morta.
* * *

Por muito tempo a árvore seca ficou de pé. E parecia que nada viria alguma vez a mudar… O milhafre da montanha estava contente e as hienas riam-se. A leoa perdeu um leãozinho, a girafa, uma girafinha e a andorinha, três passarinhos que mal sabiam voar.

Mas, uma manhã, veio um pequeno homem com um ar decidido. Tinha o olhar de uma criança, e esse olhar não refletia nem fogo nem sangue. As suas mãos não agarravam nem arco nem zagaia. Contudo, era um homem.

Parou ao pé da árvore seca, estendeu os braços e, com as pontas dos dedos, tocou no tronco, muito devagar, ao de leve, como se acordasse alguém que dorme. A corcha estremeceu. E a voz do pequeno homem subiu ao longo da árvore, terna como um cântico muito antigo. O homem falava à árvore, cheio de simplicidade. Depois, calou-se. E encostando a orelha ao tronco, escutou. O vento nos ramos parecia formar palavras e frases. E quanto mais a árvore falava, mais a expressão do homem se iluminava.

Quando a árvore terminou, o homem partiu. Quando voltou, trazia um machado aos ombros. Uma vez perto da árvore, levantou a cabeça em direcção aos ramos e murmurou algumas palavras em tom de desculpa. Depois, firme nas suas pernas, com o cabo do machado bem preso nas mãos, começou a cortar o tronco.

E a madeira ressoou na savana, até aos limites do deserto e das montanhas.

Cada pássaro, cada leão e cada girafa reconheceram a voz da velha árvore.

Em conjunto, acorreram para junto dela, mas apenas encontraram um cepo e algumas aparas espalhadas pelo solo.

É que o pequeno homem, ajudado por alguns da sua aldeia, tinha levado a árvore até casa. E, com medo dos homens, os animais não se atreveram a segui-lo.

Uma vez chegados à aldeia, o homem pôs-se a trabalhar. Tinha uma grande ideia: para que a voz de madeira da velha sábia percorresse de novo a savana, iria fazer um tantã.

Um tantã mais sonoro e maior do que qualquer outro. Suficientemente longo para que todos os homens da tribo pudessem tocar em conjunto.

Como o homem pegava de novo no machado para podar os ramos e deixar, assim, o tronco livre, aqueles que tinham carregado a árvore com ele fizeram -lhe sinal que parasse:

― Pequeno homem, nós ajudámos-te ― disseram os homens fortes com as suas vozes grossas. ― O nosso trabalho deve ser pago.

― Mas… com que é que vos vou pagar? Eu não tenho nada, bem sabem!

― Deixa-te disso! ― insistiram os homens fortes. ― Trouxemos a tua árvore, dá-nos a nossa parte.

― Não pode ser ― protestou o homem. ― É preciso que o tronco fique inteiro para este tantã. Se não, como é que a tribo poderá tocar?

Os homens obstinavam-se a reclamar a sua parte da madeira e o assunto foi levado ao Conselho dos Anciãos.
* * *

Era uma assembleia de homens muito velhos e muito tagarelas. Sempre prontos a pronunciar uma sentença ou um julgamento, tanto a propósito do que conheciam como do que ignoravam. Nada lhes agradava mais do que reunirem-se quando lhes pediam um conselho, e também quando não lho pediam! Ora, o Conselho tinha por hábito reunir-se debaixo da grande árvore, e os velhos sentiam-se desamparados… pois a árvore tinha sido cortada! O mais velho dos Anciãos, um pequeno velhinho com a face enrugada como uma ameixa seca, agitou o cachimbo por cima da cabeça e tomou a palavra:

― O Conselho não se pode reunir por falta de um lugar adequado.

E expeliu uma baforada do seu cachimbo.

Os outros membros do Conselho, sentados em círculo, aprovaram com um movimento de cabeça, expeliram, cada um, uma baforada do seu cachimbo e guardaram silêncio.

Os homens fortes, que queriam a sua parte da árvore, e o pequeno homem, que nada queria, não sabiam o que fazer.

Impaciente por começar o trabalho, o homem avançou para dentro do círculo, curvou-se respeitosamente diante do mais velho dos Anciãos:

― Digam-me apenas se posso começar o meu trabalho, já que estais aqui reunidos.

― Ah, não! É verdade que estamos aqui ― respondeu o Ancião.

— Mas o Conselho não está reunido. Por isso, não pode dar a sua opinião.

Expeliu uma outra baforada e calou-se.

Os homens fortes, impacientes por levar a madeira que lhes cabia, inclinaram-se, por sua vez, diante dos Anciãos e disseram:

― Digam-nos apenas se podemos pegar na nossa parte.

O Ancião nem se deu ao trabalho de responder. Limitou-se a expelir uma baforada do cachimbo e permaneceu em silêncio.

Mas o mais forte, que também era o mais impaciente, deu um passo em frente.

De imediato, o velho homem largou o cachimbo e, com uma voz trémula, acrescentou precipitadamente:

― O Conselho vai reunir… para decidir onde terá lugar o próximo Conselho.

O discurso enfadonho que se seguiu poderia ter durado até ao final dos tempos, se o Conselho não tivesse acabado por decidir… que decidiria mais tarde!

De seguida, os velhos aconselharam o pequeno homem a dar aos homens fortes o que eles pediam. Depois, reclamaram, por sua vez, um pedaço da árvore como recompensa pelo sábio conselho. E o pequeno homem assim o fez porque era costume dar uma prenda aos Anciãos, como agradecimento pelos seus conselhos.

E cada um se apressou a serrar, a rachar e a atar.

E o pedaço de árvore não tardou a transformar-se em achas, toras e feixes para queimar. Os homens acendiam fogueiras à volta da aldeia para manter afastados os animais selvagens. Ignoravam que os animais tinham ainda mais medo deles do que das suas fogueiras.
* * *

Um pouco desiludido, o pequeno homem reparou na diminuição do tronco, mas disse para si mesmo que, apesar de tudo, ainda chegava para fazer um bom tambor para a tribo.

Lançou-se ao trabalho, cheio de coragem. O machado, no entanto, não era muito adequado para o descortiçamento, por isso decidiu ir a casa de um vizinho pedir emprestado um podão, cuja lâmina curvada faria melhor o serviço. Como era hábito, o vizinho estava a fazer a sesta e o pequeno homem acordou-o para lhe fazer o pedido.

― Ah! És tu? ― disse o vizinho, bocejando como um hipopótamo. ― O que queres de mim?

― Se fazes favor, podias emprestar-me o teu podão? ― perguntou muito educadamente o pequeno homem.

― Eh! ― respondeu o vizinho, tão amável quanto um crocodilo a quem interromperam a digestão. ― Não me deixas dormir com esse barulho todo… E ainda por cima queres que te empreste o meu podão! E se eu precisar dele?

― Mas… é só por um dia! Amanhã já terei acabado!

― O que me dás em troca?

― Sabes bem que não tenho nada de meu.

― Ah não? E essa árvore? É tua, não é?

― Sim, mas… ― começou o pequeno homem.

― Pois bem, dá-me um pedaço para alimentar a minha fogueira e emprestar-te-ei o meu podão.

Assim se fez, já que mais ninguém na aldeia tinha a ferramenta de que o pequeno homem precisava.

Um pouco desiludido, atentou no tronco, agora mais pequeno. No entanto, havia ainda madeira para fazer um tantã para a tribo.

Lançou-se ao trabalho, cheio de coragem. E o descortiçamento depressa terminou.

Mas, quando quis cavar o tronco, apercebeu-se de que não tinha cinzel para o fazer.

De certeza que o vizinho tinha um, mas será que lho emprestaria sem reclamar mais um pedaço da árvore?

Infelizmente, mais ninguém da aldeia tinha cinzel. E era preciso acordar novamente o hipopótamo, amável como um crocodilo.

― Tu, outra vez! ― bocejou o vizinho. ― O que queres?

― Desculpa ― disse o pequeno homem com a sua voz gentil. ― Vim devolver-te o podão… e pedir-te, em troca, um cinzel, se fazes o favor.

― Em troca? ― zombou o vizinho. ― Não há troca nenhuma porque o podão é meu. Dá-me um pedaço de madeira para a minha fogueira e emprestar-te-ei o meu cinzel.

Assim foi feito. E o pequeno homem, um pouco desiludido, atentou no tronco muito curto. Ainda podia fazer um bonito tantã, não para toda a tribo, mas, mesmo assim, um bonito tantã. Cheio de coragem, meteu mãos à obra e depressa cavou o tronco. Faltava apenas endurecê-lo ao lume, para que fosse mais sólido e para que o seu som chegasse mais longe. Mas o pequeno homem não tinha fogueira e já havia dado tanta madeira aos outros que não possuía o suficiente nem para atear uma fogueira. Claro que a fogueira do vizinho crepitava, um pouco mais longe, mas não ousava acordá-lo pela terceira vez.

Foi então pedir aos homens fortes, que faziam uma grande fogueira, a permissão de passar o seu tantã pelo fogo.

― De acordo, ― disseram eles ― mas com a condição de pores uma acha na nossa fogueira, como todos fazem.

― Mas… já não tenho madeira, já vos dei tudo! ― respondeu.

― Ah sim? E isto, não é madeira? ― perguntou o mais forte dos homens fortes, indicando o pequeno tantã.

Com a morte na alma, o pequeno homem teve de se resolver a cortar um pedaço do tantã antes mesmo de lhe ter ouvido a voz.

E quando pensou naquilo que lhe restava do imenso tronco que a árvore lhe tinha dado, esteve quase para se sentar a chorar e abandonar o seu belo projeto.

Mas caiu de novo em si e disse para si mesmo que, apesar de tudo, se não chegasse para um tantã, chegaria para fazer um grande tambor.

Cheio de coragem, meteu mãos à obra e o que restava do tantã foi rapidamente convertido em djembé. (Djembé é o nome que se dá a esta espécie de tambor, em África). Mas o pequeno homem apercebeu-se de que lhe faltava uma pele de cabra para o tambor.

Partiu então à procura do rebanho de cabras. A rapariga que as guardava era ainda quase uma criança, e o pequeno homem pensou que seria mais fácil falar com ela.

― Bom dia ― disse à criança.

― Bom dia ― respondeu ela. ― És tu que dás madeira a toda a gente em troca de uma ferramenta ou de lume?

― Sim, quer dizer… ― começou ele.

― O que queres de mim? ― interrompeu a criança.

― Apenas uma pele de cabra, uma daquelas que tens por aí. Mas já não tenho madeira para te dar.

― É pena ― disse a rapariga. ― Justamente, também eu necessito de um pouco de madeira. Para afastar os leões do meu rebanho não há nada melhor do que uma boa fogueira, disseram-me os Anciãos.

― Oh, por favor, dá-me uma pele. Bem vejo que não te fazem falta ― suplicou o pequeno homem.

― Pelo contrário, as minhas peles, troco-as por madeira! ― retorquiu a criança.

E, como mais ninguém na aldeia tinha peles de cabra, o homem foi obrigado, uma vez mais, a cortar um pedaço do tambor.

A pele de cabra era dura e seca, frágil como uma corcha. Antes de a colocar no tambor, era preciso macerá-la, fervê-la, esticá-la, batê-la para a tornar mais suave e tão sólida como o couro.

Só faltava levá-la ao curtidor.

Aquele que curtia todas as peles da tribo morava sozinho fora da aldeia, perto do rio. O seu trabalho requeria muita água. E os outros não teriam querido que ele se instalasse perto, devido ao cheiro insuportável das peles molhadas.

Mas, por mais longe que o curtidor morasse, também ele tinha ouvido falar da árvore abatida. Por sua vez, reclamou uma parte, como prêmio do seu trabalho.

― Mas já não há nenhuma árvore! ― lamentou-se o pequeno homem. Ficou apenas um tambor!

― De acordo ― concluiu o curtidor. ― Contentar-me-ei com um bocado do tambor.

E o pequeno homem cortou e deu-lhe a madeira, e a pele foi curtida, seca e ficou pronta a ser colocada no djembé.

Quando quis esticá-la, deu-se conta de que lhe faltava uma corda para o fazer.

Foi então à procura daquele que na aldeia melhor sabia entrançar cordas. É que a corda que estica a pele de um djembé tem de ser sólida.

Tal como os outros, o entrançador de cordas pediu um pouco de madeira. Apesar dos seus protestos e lamentos, o pequeno homem nada conseguiu. E o tambor ficou ainda mais pequeno.

O pequeno homem regressou a casa perturbado, com a corda ao ombro. Ao ver o tambor tão pequeno, perguntou-se se teria valido a pena o trabalho.

Depois, recordou a árvore que se erguia no meio da savana. Lembrou-se da promessa que lhe tinha feito e a coragem voltou-lhe. Depressa a pele de cabra foi colocada no djembé, em arco, e muito esticada por uma rede de nós sólidos e complicados.

O homem olhou para o seu djembé, finalmente pronto! Claro que era um djembé muito pequenino, bem diferente daquele tantã que ele quereria ter talhado e no qual toda a tribo teria tocado em conjunto. No entanto, o homem não ficou decepcionado, porque era um belo djembé: esculpido, polido, suficientemente largo para as suas pequenas mãos, e suficientemente grande para lhe caber entre os joelhos. Então, o homem quis experimentá-lo. Com as palmas e os dedos pôs-se a tocar. E a voz que saía deste tambor, tão pequenino que mais parecia um tambor de criança, era ampla e vasta e profunda como a floresta.

O homem sentiu-se arrebatado e as suas mãos continuaram a tocar… E a voz imponente do pequeno djembé estendeu-se a toda a aldeia e à savana inteira.

Um por um, todos os da tribo se aproximaram dele. Tinham vindo todos: desde o mais ancião dos Anciãos à pequena guardadora de cabras, do mais forte dos homens fortes ao vizinho crocodilo. Tinham deixado as suas fogueiras, as suas conversas enfadonhas e as suas sestas, para formar um círculo em redor do pequeno tambor. E faziam silêncio.

Do pequeno djembé elevavam-se palavras e frases que diziam toda a savana: o medo da zebra que foge à azagaia do caçador ávido, o sofrimento da erva que curva perante a chama acesa pelo homem, a doçura do vento que murmura nos ramos da árvore… E os homens escutavam. Eles, que só pensavam na caça, na guerra e nas fogueiras, faziam silêncio.

Assim, até aos limites da montanha e do deserto, cada pássaro, cada leão e cada girafa reconheceram a voz da velha árvore. E, graças às mãos do pequeno homem, todos partilharam de novo o seu saber, por muito tempo ainda. Porque, ao som do djembé, o cepo da antiga árvore germinou. Do jovem rebento brotou uma nova árvore.

E, sob a sua corcha de árvore, corria a seiva da sabedoria de África.

A seus pés, por entre as ervas altas, a leoa espiava o antílope ou a zebra que se tinham afastado do grupo. Os pássaros, que se empoleiravam nos ramos mais altos, conheciam-na bem. E as girafas, que comiam as folhas dos ramos do meio, e os leões, que se estendiam sob os ramos baixos para fazerem a sesta.

Até os homens…

Fonte:
Do Spillers. L’arbre qui parle. Toulouse, Milan Poche, 1999. Disponível em Contos de Encantar

Carlos Leite Ribeiro (Sabendo e Recordando) Parte I

Novela em 5 partes.

Novela de Carlos Leite Ribeiro 
Embora romanceada, é baseada em fatos reais, passados por familiar de uma pessoa amiga, cujos fatos se passaram em Portugal e no Brasil.
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Este livro foi escrito, em parte, baseado sobre o filme de ficção “Casablanca” (*) produzido em 1942. Comecei então a imaginar: o que teria acontecido a estas personagens depois de Casablanca? Como dizia o Mestre Almada Negreiros: “a caverna da mente dos escritores é insondável e imprevista …”. E assim, comecei a escrever este livro, que é pura ficção.
Carlos Leite Ribeiro

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(*) Casablanca, (Marrocos – África Oriental) em árabe “dar al-Bayda ou Dar el-Beida” que quer dizer “a casa branca”. Cidade de Marrocos e seu principal porto no oceano Atlântico. Casablanca desenvolveu-se durante o período colonial francês. Em Janeiro de 1943, realizou-se nesta cidade marroquina, uma conferência entre Churchill e Roosevelt, no decurso da qual os generais franceses De Gaulle e Giraud tiveram o primeiro encontro.

Ambos trabalharam durante muitos anos num escritório de advogados em Lisboa, em gabinetes diferentes e separados. Quando se cruzavam no corredor, davam um simples cumprimento, como: “olá”; “bom dia”; “tarde”. Só uma vez em tantos anos, ele deu-lhe uma boleia (carona), numa tarde muito chuvosa, até ao Metro que nem ficava longe do escritório, pois ela tinha o carro a reparar. Nem almoçavam no mesmo restaurante.

Os anos foram passando e chegou a altura da reforma: primeiro ela e meses depois ele. Por casualidade, ambos começaram a lanchar na mesma pastelaria que ficava no centro de Lisboa. Olhavam um para o outro, sorriam e cumprimentavam-se.

Certo dia e também por casualidade, ela sentou-se numa mesa junto à mesa que ele ocupava.

- Então Dona Ivone, como vai a sua vidinha, depois de se reformar?

- Vai bem Sr. Júlio, só com uns “achaques” de vez em quando, devido à idade. E a sua vidinha como vai – perguntou-lhe ela, o que ele respondeu-lhe:

- Descontando o reumatismo e uns “ataques” de artrite, vai indo bem. E podia ser melhor se os impostos não fossem tão altos!

- Desse mal, também me queixo, meu caro amigo (não sei se possa e deva trata-lo como amigo?)

- Trate-me como quiser, desde que retire o “Sr”. Pode tratar-me só por Júlio e eu a tratarei só por Ivone. Está de acordo?

Começou a ser habitual os tais encontros naquela pastelaria, só com a diferença de ambos se sentarem na mesma mesa. Durante semanas, as conversas foram banais, praticamente só falando dos filhos e dos netos. Até que um dia, começaram a falar de suas famílias. A determinada altura, Ivone perguntou-lhe:

- Júlio, o que lhe vou perguntar, corro o risco de estar completamente enganada. Seu sobrenome é Blaine – certo?

- Desde que nasci – disse-lhe ele com um sorriso aberto.

- O sobrenome Lund, não lhe diz nada?

- Confesso que não, mas porquê?

- O nome de seu avô, por acaso não era Rick Blaine?

- Sim, era do sobrenome do meu avô paterno. Mas porque essa pergunta, digamos tão “misteriosa?

- Minha avó escreveu um diário que quando morreu, entregou-o a minha mão que por sua vez mo deu a mim. Nesse diário, minha avó materna, conta que conheceu durante a segunda guerra, um americano de nome Rick Blaine, o qual foi a paixão de sua vida.

- Meu avô Rick, foi um aventureiro, digamos compulsivo. Conseguiu fugir de França quando os alemães ocuparam-na, e durante uns anos fixou-se em Casablanca.´, em pleno Marrocos.

- Então acertei, é mesmo de seu avô que estou a falar, mas fale de seu avô.

- Segundo as “crônicas” da família, meu avô em Casablanca, teve de matar um general ou major alemão para ajudar a fugir uma mulher que até era casada.

- Até aqui conheço a história, que depois lhe contarei. O que foi feito de seu avô?

- Quero saber essa história direitinha. Continuando a falar do que dizem as crônicas familiares. Meu avô Rick teve de fugir de Casablanca para Brazzaville (ex- Congo Belga), onde montou um bar em parceria com um chefe de polícia que tinha conhecido em Casablanca, e parece que ajudou a matar o tal general alemão. O Louis Renault.

Mas Brazzaville era um ninho de nazistas que estavam espalhados por toda a parte e, por azar, foi lá assassinado. Meu avô mais uma vez teve de abandonar o negócio e fugir com a filha do Louis Renault, para Lourenço Marques (hoje Maputo) em Moçambique e lá casou com ela, ou seja com minha avó. Casamento esse que durou pouco tempo, pois minha avó fugiu, levando-lhe todo o seu dinheiro, abandonando – o assim como o filho.

Meu avô teve de trabalhar no duro em Moçambique, para poder sobreviver. Entretanto, uma família portuguesa que vivia nesse país africano, acolheu e mais tarde adotou meu pai. Quando regressaram a Portugal, trouxeram meu pai que cá casou e eu nasci aqui nesta bela cidade que é Lisboa.

- Nunca soube mais nada de seu avô Rick?. Só agora reparo que já é noite e tenho que me ir embora. Amanhã continuaremos a história. Esta noite quero dar uma vista de olhos pelo diário que minha avó Ilsa Lund escreveu.

- Sim, já é noite e estava quase a convidá-la para jantar comigo. Como quer ir para casa, eu acompanho-a até lá.

Foi uma noite em que ambos tiveram dificuldade em adormecer. Ela impressionada com o que ele lhe contou do avô; ela desejosa de lhe contar a história de sua avó. Ambos tiveram vontade de ligar um ao outro, mas tinham receio de incomodar a outra parte. Por fim, Ivone encheu-se de coragem e ligou para ele.

- É o Júlio? Desculpe de lhe ligar a esta hora…

- É um prazer ouvi-la! Também tinha vontade de lhe ligar, mas não queria incomodá-la. Pelos vistos, ambos estamos com dificuldade em adormecer!

- Estou deitada a passar os olhos sobre o diário de minha avó.

- Tem encontrado coisas interessantes?

- Afirmativo, mas não lhe vou contar aqui pelo telefone. Nem antes de saber toda a história de seu avô! Temos muito que falar sobre nossos avós!

- Deve ser preciso muitas horas! Atrevo-me a convidá-la para um almoço, pois assim teríamos mais tempo para dar à língua. Aceita?

- Aceito!

- Já amanhã?

- Amanhã não pode ser pois tenho cá em casa a senhora que faz a limpeza. Se o Júlio aceitar, poderá ser na próxima sexta-feira?

- Por mim está tudo bem. E onde a Ivone quer almoçar (e se quiser jantar também), diga que eu aceito. E também diga a hora em que posso a ir buscar no fundo da sua rua.

- Gosto muito da beira-mar da zona de Setúbal. Mas só almoçar.

- Proponho-lhe a Serra de Arrábida, depois as praias da Figueirinha, Portinho da Arrábida e almoçar em Sesimbra no restaurante “O Velho e o Mar”, que tem sempre um peixe espetacular.

- Também gosto muito da Arrábida, de suas belas praias e de Sesimbra e também conheço esse restaurante. Também conheço o belo Convento de Nossa Senhora da Arrábida. A hora, pode ser às 10?…

- Amiga Ivone, não pode ser mais cedo? Tomávamos o pequeno almoço em Almada.

- Pensando bem, o Júlio pode vir-me esperar ás 08.30. E o pequeno almoço poderá ser em Corroios, numa pastelaria que também conheço e tem sempre bolos quentinhos rssss.

- Então até sexta-feira e tente fazer um soninho bem descansado.

- Também tenha uma boa noite. Abraço.

- Um beijo!

No dia e hora combinada, Júlio estava no fundo da rua esperando a Ivone. Quando já estava com o telemóvel (celular) na mão para lhe ligar para lhe perguntar se tinha esquecido o combinado, quando ela apareceu junto ao carro e logo que entrou, perguntou-lhe:

- Não estou muito atrasada, pois não?

- Claro que não. A Ivone só está atrasada 25 minutos!

- Pelo meu relógio, são só 20 minutos, Veja se acerta seu relógio!

Ele deu uma sonora gargalhada e partiram para o passeio. Depois de passar a Ponte 25 de Abril e já à entrada de Almada, ela disse-lhe que estava com muita fome e se podiam ir tomar o pequeno almoço a Almada, talvez a um Shopping, desculpando-se:

- Sabe, o atravessar o Tejo faz-me sempre abrir o apetite.

- E também os 25 minutos de atraso, também lhe provocaram ainda mais essa fome rsssss

- Nem tenho palavras nem lhe quero responder!

Já a caminho da Arrábida, ele perguntou-lhe por onde queria começar, o que ela, depois de pensar algum tempo, respondeu-lhe:

- Se o “cavalheiro” estiver de acordo, podemos começar por visitar o Convento de Nossa Senhora da Arrábida. É um local calmo, onde se vê o mar e sempre me sinto bem.

- De acordo, pois ainda sou uma “cavalheiro à moda antiga”!

- Daqueles que atiram flores às damas?

- Sou ainda mais completo: não só atiro flores como também o respectivo vaso! .
KKKKKKK !!! E nesse local podemos falar mais um pouco de seu avô.

Algum tempo depois chegaram ao convento e numa das varandas superiores admiraram o belo estuário do rio Sado e um pouco à esquerda, Troia (portuguesa que fica na margem esquerda do Sado).

Lembrou-se que quando mais novo, conheceu Troia ainda estado “selvagem”, era uma grande herança, mais tarde comprada pelo grupo Grão-Pará. Hoje tem vários pavilhões e condomínios Também se lembrou que um grande amigo dele, nas escavações arqueológicas para prática de seu curso, em determinada altura encontrou um cobra. Fugiu gritando que tinha encontrado uma cobra com mais de três metros. Os companheiros mataram a cobra e ao medi-la não tinha mais de 70 centímetros. Nesse acampamento, ficou conhecido por “Cobra de três metros”!

continua...
 
Fonte: O Autor. Disponível em http://cencaestamosnos.blogspot.pt/search/label/CONTOS

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Virgínia Woolf (Noite de Festa)

Ah, mas vamos esperar um pouco! — A lua está no alto; o céu, aberto; e lá, erguendo-se numa elevação contra o céu, com árvores por cima, está a terra. As nuvens prateadas e fluidas contemplam ondas do Atlântico. Na esquina da rua, o vento sopra de leve e me levanta o casaco, estendendo-o delicadamente no ar antes de o deixar curvar-se e cair, como o mar que agora engrossa para rebentar nos rochedos e depois se afasta de novo. — A rua está quase vazia; as venezianas das janelas estão fechadas; as vidraças amarelas e vermelhas dos navios lançam por um momento um reflexo sobre o azul flutuante. Doce é o ar da noite. As criadas deixam-se ficar ao redor da caixa de correio ou namoram na sombra da parede onde a árvore derrama sua chuvarada escura de flores. Tal como na casca da macieira as mariposas tremem sugando açúcar pelo longo filamento negro da probóscide. Onde estamos? Que casa pode ser a casa da festa? Todas essas são pouco comunicativas, com suas janelas cor-de-rosa e amarelas. Ah — dobrando a esquina, ali no meio, lá onde a porta está aberta —, espere um momento. Vamos observar as pessoas, uma, duas, três, que se precipitam na luz como as mariposas vão de encontro ao vidro de uma lanterna que ficou no chão da floresta. Eis um táxi que passa depressa para o mesmo local. Dele desce uma dama volumosa e pálida, que entra na casa; um senhor vestido para a noite, em preto e branco, paga ao chofer e a segue, como se ele também estivesse muito apressado. Venha, porque senão nos atrasamos.

Sobre todas as cadeiras há almofadinhas macias; nesgas tênues de gaze enroscam-se por sobre sedas brilhantes; velas vertem chamas periformes nos dois lados do espelho oval; há escovas de fino casco de tartaruga; frascos talhados com lavores de prata. Pode isto ter sempre esta aparência — não é isto a essência — o espírito? Alguma coisa dissolveu meu rosto. Coisa que aliás mal aparece em meio à névoa prateada da luz das velas. Pessoas passam por mim sem me ver. Como têm rostos, as estrelas parecem cintilar em seus rostos, através da rósea coloração da carne. A sala está repleta de figuras vívidas, contudo insubstanciais, que se postam eretas à frente de prateleiras listadas por inumeráveis volumezinhos; cabeças e ombros maculam quinas de molduras quadradas com douração; e a massa de seus corpos, lisos como estátuas de pedra, aglutina-se contra uma coisa cinzenta, tumultuosa, brilhante também, como que tendo água dentro, além das janelas sem cortinas.

“Venha para o canto e vamos conversar.”

“Maravilhosos!  Maravilhosos  seres  humanos!  Espiritualizados  e maravilhosos!”

“Porém eles não existem. Você não está vendo o lago, pela cabeça do Professor? Não está vendo o cisne nadar, pela saia de Mary?”

“Posso imaginar umas rosinhas de fogo espalhadas em torno deles.”

“As rosinhas de fogo não são senão como os vaga-lumes que vimos juntos em Florença dispersos pela glicínia, átomos flutuantes de fogo, que vão queimando enquanto voam — queimando, não pensando.”

“Queimando, não pensando. E assim todos os livros por trás de nós. Aqui está Shelley — aqui está Blake. Basta jogá-los no ar para ver seus poemas descerem como paraquedas dourados que rodopiam e brilham e vão deixando cair sua chuva de florações em forma de estrelas.”

“Quer que eu lhe cite Shelley? ‘Vamos! faz escuro no matagal sob a lua…’”

“Espere, espere! Não condense nossa atmosfera tão fina em gotas de chuva salpicando a calçada. Vamos respirar mais um pouco no pó de fogo.”

“Vaga-lumes na glicínia.”

“Bem cruel, reconheço; mas veja como as grandes floradas surgem diante de nós; vastos candelabros de ouro e roxo fosco pendentes dos céus. Você não sente como a bela douradura nos tinge as coxas, quando entramos, e como as paredes cor de ardósia oscilam pegajosamente sobre nós, quando nos arremessamos, cada vez mais fundo, pelas pétalas, ou então se esticam como tambores?”

“O professor se agiganta sobre nós.”

“Diga-nos, Professor…”

“Madame?”

“Em sua opinião é necessário escrever gramáticas? E a pontuação? A questão das vírgulas de Shelley interessa-me profundamente.”

“Vamos sentar. Para dizer a verdade abrir janelas após o por do sol — eu de pé com as minhas costas — conversa todavia agradável — Sua pergunta, sobre as vírgulas de Shelley. Questão de certa importância. Ali, um pouco para a sua direita. A edição da Oxford. Meus óculos! O castigo dos trajes de noite! Não me aventuro a ler… Além do mais vírgulas… O tipo moderno é execrável. Concebido para corresponder à exiguidade moderna; pois eu confesso que encontro pouco de admirável nos modernos.”

“Nisso eu concordo inteiramente com o senhor.”

“Ah, é? Pois eu temia oposição. Na sua idade, nos seus — trajes.”

“Professor, eu encontro pouco de admirável nos antigos. Estes clássicos — Shelley, Keats; Browne; Gibbon; haverá uma página que o senhor possa citar inteira, um parágrafo perfeito, uma frase mesmo que não se possa ver emendada pela pena de Deus ou do homem?”

“Xi, Madame! Sua objeção tem peso, mas falta-lhe sobriedade. Além do mais a sua escolha de nomes… Em que câmara do espírito pode a senhora consorciar Shelley e Gibbon? A não ser de fato pelo ateísmo de ambos — Mas vamos ao ponto. O parágrafo perfeito, a frase perfeita; hum! — minha memória — e depois meus óculos, que eu larguei lá por trás, no parapeito da lareira. Garanto. Mas a sua crítica aplica-se à própria vida.”

“Certamente esta noite…”

“A pena do homem, imagino, poderia ter pouco trabalho para reescrever isso. A janela aberta — de pé na corrente de ar — e, permitam-me sussurrá-lo, a conversa destas senhoras, compenetradas e benevolentes, com opiniões exaltadas sobre o destino do negro que está neste momento mourejando sob chicote para extrair borracha para alguns dos nossos amigos envolvidos em amenas conversações aqui. Para desfrutar da perfeição da senhora…”

“Concordo com o senhor. Há que excluir.”

“A maior parte de tudo.”

“Mas, para demonstrar corretamente isso, temos de descer à raiz das  coisas; pois temo que sua crença seja apenas um desses amores-perfeitos que são comprados e plantados para uma noite de festa e de manhã já estão murchos. O senhor mantém a exclusão de Shakespeare?”

“Madame, eu não mantenho nada. Estas senhoras me deixaram fora de mim.”

“São mulheres benevolentes, que armaram seu acampamento à margem de um dos riachos tributários de onde, colhendo ali caniços para flechas e mergulhando-os bem em veneno, com o cabelo entrançado e a pele pintada de amarelo, elas saem de vez em quando para plantá-los nos flancos do conforto; tais são as mulheres benevolentes.”

“Os dardos que elas atiram ardem. Isso, somado ao reumatismo…”

“O professor já se foi? Coitado do velho!”

“Mas, na idade dele, como ainda poderia ter o que, na nossa, nós já estamos perdendo? Quero dizer…”

“O quê?”

“Você não se lembra, bem na infância, quando, em conversa ou brincadeira, se a gente pisava no atoleiro ou alcançava uma janela ao cair, uma espécie de choque imperceptível congelava o universo numa sólida bola de cristal que se tinha um instante em mãos? Tenho certa crença mística de que todo o tempo passado e o futuro também, as lágrimas e cinzas das gerações, coagularam-se numa bola; éramos então absolutos e inteiros; nada então era excluído; e uma coisa era certa — felicidade. Mais tarde porém, quando a gente os segura, esses globos de cristal se dissolvem: há alguém falando sobre negros. Vê no que dá tentar dizer o que se tem em mente? Em contrassenso.”

“Precisamente. Porém que coisa triste é o bom senso! Que vasta renúncia ele representa! Ouça um instante. Distinga uma das vozes. Agora. ‘Tão frio deve parecer depois da Índia. Sete anos também. Mas o hábito é tudo.’ Isso é bom senso. É acordo tácito. Todos fixaram os olhos em alguma coisa visível para cada um. Não tentam mais olhar para a centelha de luz, a pequena sombra roxa que pode ser terra fértil no horizonte, ou apenas um brilho esvoaçante na água. É tudo compromisso — tudo segurança, o modo mais comum de relações entre seres humanos. Por isso não descobrimos nada; nós paramos de explorar; paramos de acreditar que há alguma coisa para descobrir. ‘Contrassenso’, você diz; querendo dizer que eu não verei seu globo de cristal; e me envergonho um pouco de o tentar.”

“A fala é uma rede velha e rasgada, pela qual os peixes escapam  quando é jogada neles. O silêncio talvez seja melhor. Venha até a janela, vamos tentar.”

“Coisa estranha é o silêncio. A mente se torna como uma noite sem estrelas; mas de repente um meteoro desliza, esplêndido, atravessando a escuridão, e se extingue. Por essa diversão, nunca dizemos suficientemente obrigado.”

“Ah, somos uma raça ingrata! Quando olho para minha mão no peitoril da janela e penso no prazer que ela já me deu, como tocou em seda e cerâmica, em paredes quentes, como se espalmou na grama úmida ou banhada de sol, deixou o Atlântico esguichar por seus dedos, apoderou-se de jacintos e narcisos, colheu ameixas maduras, nunca por um segundo desde que eu nasci deixou de me falar de quente e frio, molhado ou seco, espanta-me que eu use esta maravilhosa composição de carne e nervos para escrever invectivas à vida. No entanto é isso o que fazemos. Pense bem a esse respeito, a literatura é o registro do nosso descontentamento.”

“Nossa insígnia de superioridade; nossa ambição de honrarias. Você há de admitir que gosta mais das pessoas descontentes.”

“Gosto do som melancólico do mar distante.”

“Que história é essa de falar de melancolia em minha festa? É claro que, se vocês ficarem cochichando num canto… Mas venham e deixem-me apresentá-las. Este é Mr. Nevill, que aprecia seus escritos.”

“Nesse caso — boa noite.”

“Nalgum lugar, esqueci o nome do jornal — qualquer coisa de sua autoria — esqueço agora o título do artigo — ou era um conto? Você escreve contos? Não é poesia que você escreve? São tantos os amigos da gente, e depois todo dia está saindo alguma coisa que… que…”

“Que a gente não lê.”

“Bem, para ser honesto, por desagradável que possa parecer, ocupado como estou o dia todo com assuntos de natureza odiosa, ou melhor, fatigante — o tempo que eu tenho para a literatura eu dedico a…”

“Aos mortos.”

“Detecto ironia na sua correção.”

“Inveja, não ironia. A morte é da maior importância. Como os franceses, os mortos escrevem muito bem, e, por alguma razão, podemos respeitá-los e sentir, enquanto iguais, que são mais velhos e sábios, como nossos pais; o relacionamento entre vivos e mortos é certamente dos mais nobres.”

“Ah, se você pensa assim, vamos falar dos mortos. Lamb, Sófocles, de Quincey, Sir Thomas Browne.”

“Sir Walter Scott, Milton, Marlowe.”

“Pater, Tennyson.”

“Agora, agora, agora.”

“Tennyson, Pater.”

“Feche a porta; puxe as cortinas para que eu veja apenas seus olhos. Eu me ponho de joelhos. Cubro o rosto com as mãos. Adoro Pater. Venero Tennyson.”

“Prossiga, filha.”

“É fácil confessar nossos erros. Mas que escuridão é tão fechada para ocultar nossas virtudes? Eu amo, adoro — não, não consigo lhe dizer como minha alma é uma rosa de devoção por — o nome treme em meus lábios — Shakespeare.”

“Concedo-lhe absolvição.”

“No entanto, com que frequência se lê Shakespeare?”

“Com que frequência é a noite de verão impecável, a lua perfeita, os espaços entre as estrelas profundos como o Atlântico? Com que frequência as rosas mostram branco no escuro? A mente, antes de ler Shakespeare…”

“A noite de verão. Oh, isto sim é que é maneira de ler!”

“Rosas que ondulam…”

“Ondas quebrando…”

“Ares singulares da aurora vindos pelos campos afora para forçar as portas da casa sem surtir efeito…”

“Deitando então para dormir, a cama é…”

“Um barco! Um barco! A noite inteira no mar…”

“Com estrelas que se postam a prumo…”

“E lá no meio do oceano nosso barquinho flutuando sozinho, isolado mas sustentado, atraído pela compulsão das luzes nórdicas, seguro, cercado, dissipa-se onde a noite repousa sobre a água; lá diminui e desaparece, e nós, já submersos, lacrados na frieza das pedras lisas, abrimos nossos olhos de novo; traço, batida, ponto, salpico, mobília de quarto, e a barulhada da cortina no trilho. — Eu ganho a vida. — Apresente-me! Oh, ele conheceu o meu irmão em Oxford.”

“E você também. Venha para o meio da sala. Tem alguém aqui que se lembra de você.”

“Em criança, querida. Você usava um vestidinho cor-de-rosa.”

“O cachorro me mordeu.”

“Ficar jogando paus no mar, já pensou que perigo? Mas sua mãe…”

“Na praia, na barraca…”

“Sorria sentada. Ela adorava cachorros. — Você conhece a minha filha? Este é o marido dela. — Era Tray que ele chamava? o grande, o amarronzado, porque havia um outro, o menor, que mordeu o carteiro. Posso ver isso agora. Ah, as coisas de que a gente se lembra! Mas estou impedindo…”

“Oh, por favor (Sim, sim, eu escrevi, estou indo). Por favor, por favor. — Pro inferno, Helen, interrompendo! E lá vai ela, nunca mais — abrindo caminho entre as pessoas, ajeitando seu xale, descendo lentamente os degraus: foi-se! O passado! o passado!…”

“Ah, mas ouça. Diga-me; estou com medo; tantos estranhos; alguns barbudos; outros tão bonitos; ela esbarrou na peônia; caíram todas as pétalas. E feroz — a mulher com aqueles olhos. Os armênios morreram. E os trabalhos forçados. Por quê? Tanta tagarelice também; a não ser agora — cochichos — todos nós devemos cochichar — nós estamos ouvindo — esperando — mas então o quê? A lanterna acender! Cuidado com sua gaze! Certa vez uma mulher morreu. Dizem que isso acordou o cisne.”

“Helen está com medo. Essas lanternas de papel acendendo e as janelas abertas deixando a brisa entrar levantam nossos babados. Mas eu não estou com medo das chamas, sabe. É o jardim — quero dizer, o mundo. Que me assusta. Aquelas pequenas luzes lá longe, cada qual com um círculo de terra por baixo — cidades e morros; e depois as sombras; os movimentos do lilás. Não fique conversando. Vamos sair. Pelo jardim; sua mão na minha.”

“Vamos. Faz escuro no matagal sob a lua. Vamos, haveremos de enfrentá-las, essas ondas de escuridão coroadas pelas árvores, que se erguem para sempre, solitárias, trevosas. As luzes se levantam e caem; a água é rala como o ar; por trás dela está a lua. Você afunda? Ou você se levanta? Você enxerga as ilhas? Sozinha comigo.”

Fonte:
WOOLF, Virgínia. A Marca na Parede e outros contos.

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Cícero Galeno Lopes (Não sei se disse)

Na mocidade a gente olha pra vida como vinda. É como madrugada, toda luz de porvir. De repente você se encontra com dois filhos, olha ao redor, está sozinha. Você fica olhando pela janela de muitos vidros que tem a esperança.

Você quer as coisas como gostaria que elas lhe fossem, como elas deveriam ser. Não vim aqui pra dizer só os sacrifícios nem só o desespero. Vim por trabalho. Nesta cidade, antiga e grande, só menor que a capital, as coisas vão ficando mais velhas a cada dia, porque seu coração vai se cobrindo de idas sem vindas. Tudo se vai, tudo vai indo. Vai indo seu rosto, vão indo seus cabelos, vão se sumindo as luzes, o dia vai caindo pra tarde. Os muitos vidros da janela lhe impedem ao invés de lhe abrir a vista. São obstáculos ao invés de passagens. Em lugar de você olhar pra terra, pras ruas, você fica olhando é pras estrelas, pras aves, que parece que nelas a vida não para. Porque são muitas estrelas, e você não sabe os nomes delas, porque são tantas que você duma noite pra outra não sabe se é a mesma ou outra que está na mira do seu olhar. Porque você não vê os corpos dos pássaros que morrem de natureza. Você vê apenas os que foram matados por pedradas ou venenos. Esses você vê no seu caminho.

Depois que fiquei sozinha moro numa peça emprestada, porque faz muito que nada posso pagar. A fila assim enorme que se formou pra vir falar aqui com os senhores assusta. Estou esperando minha vez desde ontem. Se os senhores vissem minha casa – a gente diz assim – aí que iam se assustar. Se eu voltar de mãos vazias desta fala com os senhores, meus filhos, de oito e dez, magrinhos e tristinhos, eles vão ter que voltar outras vezes pro hospital. De mês em mês, lá vão eles, como lá estão neste momento, tomando soro. Noutras vezes, vão amparados em mim, na busca de comer a sopinha que o hospital pode dar, que todos lá sabem que estão lá porque não têm o que engolir. Em casa, o que bebem é água e água com açúcar. Vão querer dizer, como já disseram, que sou mãe despreocupada, porque eles não vão ao colégio.

Me digam os senhores: como ir? Quando passo por um banco, fico pensando no dinheiro dos que têm. Chego a pensar - credo! - que algum assaltante até pode ter um pouco de razão de fazer o que faz. Não que concorde. Mas olhos de filho com fome, amarelinhos de desalimentação, têm força de virar pessoa. O choro deles, muito mais. Tive empregos, não coisa boa, mas possível de suportar momentos tristes.

Fiquei sozinha, porque o pai dos meninos não suportou olhar pra eles nem me ver como sou. Às vezes vem, chora disfarçado, cospe no chão, sem levantar os olhos, sem falar comigo mais que um grunhido de chegada e outro de saída, as roupas sujas, arqueado como se levasse sempre pesos mais pesados que ele. Pega um, se encosta noutro, ficam os três no chão sentados, algumas palavras que os meninos perguntam. Quando pode, bebe até dormir, caído onde estiver, nem se esconde mais. Com esta aparência alguém me dá emprego? Quer dizer, alguns, quase todos não dão. Mas aqui é emprego público. Falei com alguns na fila. Tem gente com estudos, marcas no jeito de ser de quem teve boa vida, trabalhando. Agora estão como eu. Todos não vão poder entrar: tem mais gente que lugar.

Eu, pela benção de Deus e compreensão mesmo dos senhores, tenho que pedir não dinheiro, mas emprego, que não é de fato coisa de se pedir, não deveria. Não façam por mim; façam por dois meninos que neste mesmo momento estão na cama do hospital, pra depois voltar pra casa – é como a gente se acostuma a dizer – e depois voltar pra lá. Tem outro jeito? Tem pessoas que às vezes me dizem quase sempre que compreendem minha situação. Como? Se compreendessem, me permitiriam um trabalho, mesmo que passageiro. Se deixo meus filhos todos os dias, como vai ser? Se compreendessem não negariam. As pessoas – acho – pensam que compreendem. Compreender só se vivessem como nós, eu com os meninos.

Todas as coisas que pude ter, que não foram muitas nem tão boas, se foram pra pagar armazém. Hoje pra duzentos gramas de bolachinha. Amanhã pra dois saquinhos de chá. Depois, pra meio quilo de açúcar. Quero - é o que mais preciso - pegar esse emprego. Estou cansada de virar saco de lixo. Não resolve. Não me importa que seja com lixo. O que quero é varrer as ruas, arrancar a erva, quero um salário no fim do mês. Quero de novo ter outra panela, ter caneca com alça, quero poder ter fogo de gás, um fogão, cama e uma casinha, um buraco qualquer, meu.

Quando pegar os meninos no hospital, vou contar pra eles que estou empregada, que vou ter uma chance de emprego fixo, vou poder comprar de novo com livreta pra o fim do mês e pagar do meu trabalho. Vão poder ter comida nos horários.

Se tem taxa, não posso pagar. Suas perguntas não respondi, acredito. Mais que respostas vim lhes trazer a vida que rola pelas ruas e becos desta cidade, que quero ajudar a limpar, é o que mais quero, preciso como nada. Nem é preciso muito saber pra isso. Caprichosa sempre fui, quando tinha com que. Sempre moradas humildes, de gente pobre, mas tinha. Fico pensando quando me lembro que contam que esta cidade tinha até banco com nome dela. Aonde foi? Que fizeram com ele? O governo tem parte nos bancos. Por que não ajuda quem precisa? Não quero dizer que é o que faz este governo. Quero e preciso. Me desculpem se falo mal, entorto a conversa, se meto pé por mão. Desculpem. A necessidade não é amiga da fala mansa e macia. Esse emprego é mais que emprego, é a minha vida e a dos meninos que os senhores vão devolver, queira Deus e a compreensão mesmo dos senhores. A gente vota, a gente espera. Sei ler até bem ligeiro, faço contas, posso pegar condução. Me determino.

E vassoura, empurrar carrinho de cisco, ensacar não requerem tanto mais. Acho que já disse. Se não disse o que era preciso, olhem pros meus olhos, pras covas da minha boca, vejam meus cabelos, as marcas. No verão, quando os que podem vêm ao Cassino, daqui me vou, moro na rua, fazemos biscates, os meninos ajudam. Quando se vão, vem o inverno, aí a gente teme, a gente treme. A vida vira isso de ter que pedir até mesmo pra trabalhar, porque atrás do trabalho vem o fim do mês, seguro. Não sei se disse?

Fonte:
LOPES, Cicero Galeno.A curva da estrada. Porto Alegre: Movimento, 2000.

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Renato Alves (Caderno de Trovas)

1
A água pura não tem cor,
nem branca, nem amarela;
não tem cheiro, nem sabor...
Mas ninguém vive sem ela!
2
Agradeço a quem quiser-me
como eu sou, como um irmão...
Não é na cor da epiderme
que se vê meu coração!
3
Ao receber tuas cartas
uma frustração me invade:
tu me dás notícias fartas,
mas me matas de saudade!
4
Ao repensar minha história,
encontrei com emoção
por trás de cada vitória
um mestre no coração!
5
Ao te encontrar, velha agenda,
lá no fundo da gaveta,
meu passado se desvenda...
És a minha  “caixa-preta”!
6
Beleza de mais efeito
que este colar de rainha
tu não tens sobre o teu peito,
dentro dele é que se aninha...
7
Com esplendor natural
e fulgor exuberante,
de uma gota no varal
o sol faz um diamante.
8
“Conhecer não é saber”
- ensina a douta ciência...
”Pôr alma no que aprender” ,
isto, sim, é sapiência!
9
Coração, relógio louco
que registra o meu desejo,
bate muito ou bate pouco,
na medida em que te vejo!
10
De meu pai herdei o nome,
de minha mãe, a ternura;
da pobreza herdei a fome,
a minha herança mais dura!
11
Eis meu desejo ideal,
minha utopia e quimera:
– Ver teus braços, afinal,
abrirem-se à minha espera!
12
Escute a voz da razão:
– Nunca esmoreça, persista!...
É com determinação
que o sonho vira conquista.
13
Mais rápido do que a luz,
através do imaginar,
pensamento nos conduz
a todo e qualquer lugar,
14
Mesmo em meio à dura lida,
fazer versos nos renova:
–  Cabe todo o bem da vida
nas quatro linhas da trova!
15
Mil livros já devorei,
mas neles não achei graça,
até hoje eu nada sei...
– Muito prazer, sou a traça!
16
Minha vida era rotina
tão amarga quanto fel,
mas transformou-se, menina,
com sua chegada, em mel!
17
Não diga que é velho alguém
pela idade transcorrida...
Só é velho quem não tem
mais sonhos em sua vida!
18
Ninguém há que saiba tudo,
nem tudo pode saber...
Muito se aprende e, contudo,
há sempre o que se aprender!
19
No campo foi algodão,
tornou-se fio e tecido,
ganhou cor e confecção...
Está pronto o seu vestido!
20
Nunca condenes o irmão
sem de provas ter ciência;
dá-lhe, sem contestação,
a presunção da inocência.
21
O gajo, sendo um velhaco,
engajou-se bem no ofício:
– um cargo de puxa-saco
pra puxar palma em comício!
22
O mar geme nos rochedos
prantos tão desconsolados,
pois guarda muitos segredos
e sonhos dos afogados...
23
O mestre faz da alma um templo
para ouvir nossa oração,
e, assim, mostra que é o exemplo
que ensina qualquer lição!
24
O muro é separação,
produto de preconceito;
se você quer união,
construa pontes no peito!
25
O trabalho é punição,
uma herança do passado...
Deus quis castigar Adão,
e sobrou pro nosso lado!...
26
“O vinho seco faz bem!”
- recomendou sua avó...
E ele foi ao armazém,
e lá pediu: “Vinho em pó!”
27
Pandorga... cafifa... pipas...
tens nomes em abundância,
mas com todos participas
dos sonhos da nossa infância!
28
Planto o grão com uma meta:
- Gerar vida em profusão...
E este ciclo se completa
quando o trigo vira pão.
29
Pode ser pobre ou poeta,
sem perder a autoestima;
mas há de ter como meta
não ter pobreza na rima.
30
Quando a feia se  “embeleza” ,
mas o resultado é trágico,
diz o espelho, que se preza:
– Ela pensa quer eu sou mágico!...
31
Quando a humana insensatez
dissemina a poluição,
para ter sol outra vez,
só com imaginação...
32
Quando do meu lar amado
transpus o velho portão,
pedaços do meu passado
espalharam-se no chão!
33
Quando estou no teu regaço,
tu me dás consolo e mel...
Como há sonho em teu espaço,
livro, amigo de papel!
34
Quando o amor é inconsequente,
nas mais tórridas paixões,
pode fundir-se a corrente
que liga os dois corações!
35
Quem de si não cede nada,
no céu não terá lugar.
Coisa mais abençoada
do que receber... é dar!
36
Quem não tem medo da morte,
quem nunca faz nada em vão,
quem, antes de tudo é um forte...
Este é o homem do sertão!
37
Que nome você daria
ao que sente a mãe que chora
ao pé da cama vazia
de um filho que foi embora?...
38
Razão e Emoção, na gente,
são irmãs, mas não se dão:
a primeira habita a mente,
a segunda, o coração!
39
Se és de fato um vencedor
deves sempre ter em vista,
não o prêmio e seu valor,
mas o prazer da conquista!
40
Se és duro de coração,
não perdes por esperar:
do céu só terá perdão
quem é capaz de perdoar.
41
Ser poeta é transformar
a palavra em brasa ardente
para com ela queimar
a emoção que está na gente!
42
Se tens pela vida apreço,
não entres na droga braba!
Tu decides o começo,
mas não sabes como acaba.
43
Sigo, no delírio infindo
da saudade que me arrasa,
uma só música ouvindo:
os teus passos pela casa!
44
Sob chuva ou sol que abrasa,
como nos tempos antigos,
o portão da minha casa
não se fecha aos meus amigos!
45
Tal qual pérola valiosa
que na ostra tem morada,
minha alma tão pretensiosa
mora no peito da amada.
46
Te enfeiticei, fui omisso,
quis um  “caso” passageiro;
mas o Amor fez o feitiço
virar contra o feiticeiro!
47
Ter fé, amor, otimismo
e uma inabalável crença
nos faz saltar sobre o abismo
de qualquer indiferença!
48
Terrível palavra é o  “não”
que corta, poda, cerceia...
Feliz quem, no coração,
traz o  “sim” que a paz semeia!
49
Trovador que espalha o sonho
que lhe mora n’alma inquieta
confessa ao mundo, risonho,
a bênção que é ser poeta!
50
Tua pele o vento alisa,
sensual, com seu frescor.
Como eu invejo esta brisa
que te alisa, meu amor!...
51
Tu me prendes, me agrilhoas,
me escravizas sem sentir,
mas destas algemas boas
eu não pretendo fugir...
52
“Vitamina está na casca!”
-De um comilão eu ouvi...
E quase que ele se enrasca
ao comer abacaxi!
53
Voltei a ter confiança
neste mundo tão ruim
ao descobrir a criança
que ainda habitava em mim!

Concurso de Trovas Intersedes 2018 (Prazo: 31 de Janeiro de 2018)

Realização UBT- Seção de Maringá-PR

1. Tema: ACHADO (L-F), devendo a palavra-tema constar do corpo da trova.

2. Poderão participar  exclusivamente trovadores filiados a seções e/ou delegacias da UBT, exceto os da Seção de Maringá.

3.  Enviar apenas uma trova, com indicação da delegacia ou seção a que pertence o concorrente.

4. Na remessa pelo Correio (sistema de envelopes), usar Luiz Otávio como remetente, e o mesmo endereço do destinatário.

5. Na remessa via internet, escrever a trova e o nome e endereço completo do concorrente no corpo do e-mail.

6. Prazo: até 31/01/2018.

7. – Endereços para remessa:

        Pelo Correio:
        Nilsa Alves de Mello
        Rua Santos Dumont, 2544 – Ap. 1401
        CEP. 87013-050 – MARINGÁ-PR
     ___________________________________
        – Por e-mail:
           José Feldman (fiel depositário)
           magodosversos@gmail.com

 

8.– Serão premiadas 04 (QUATRO) trovas, sendo 01 (UMA) VENCEDORA e 3 (TRÊS) MENÇÕES HONROSAS. Troféu ou medalha para a Vencedora e diplomas para as demais.

9. – A  Seção ou Delegacia a que pertencer o vencedor deverá promover o concurso subsequente.

10. – Caberá à Comissão Organizadora resolver os casos omissos e suas decisões serão definitivas e irrecorríveis.

11. – A remessa das trovas significa total conhecimento e completa aceitação deste Regulamento.

A.A. DE ASSIS – Coordenador

Obs.: Outras informações poderão ser solicitadas pelo e-mail: alkalu77@gmail.com


Como enviar por envelopes, veja em
https://singrandohorizontes.blogspot.com.br/2017/08/sistema-de-envelopes-para-concursos-de.html

Como enviar por email, veja em 
https://singrandohorizontes.blogspot.com.br/2017/08/envio-de-trovas-por-email.html

terça-feira, 8 de agosto de 2017

A Glosa


Glosa é uma forma de poema utilizada que foi primeiramente registrada em Português no "Cancioneiro Geral" de Garcia Resende (1536) que colecionou 880 poemas. Um dos formatos é a cantiga, com um mote de quatro ou cinco versos e uma glosa de oito ou dez.

    Composição poética de origem peninsular, constituída por uma estrofe inicial, onde é apresentado o tema (mote), seguida por tantas estrofes quantos os versos apresentados na estrofe inicial e devendo ser estes incluídos sucessivamente, um a um, no final de cada estrofe, para desenvolvimento do tema da composição, que é sobretudo amoroso.

    Lembre-se que o termo glosa é sinônimo de volta e que este possui três acepções diferentes: ora de composição poética; ora de verso, que se repete no final das estrofes que glosam o mote; ora, já numa extensão de sentido, de estrofes, que desenvolvem o tema do mote nas cantigas e nos vilancetes.

    A glosa tem grande representatividade, a partir do século XV, nos cancioneiros hispânico e português, dos quais se destaca o Cancioneiro Geral (1516) de Garcia de Resende, sendo sobretudo desenvolvida por poetas palacianos.

    Também pode ser referência a uma forma usada pelos poetas do Nordeste do Brasil, principalmente os cantadores, em forma de uma ou mais décimas (estrofe de 10 versos) que respondem a um desafio, expresso em forma de mote. O mote é, geralmente, um dístico, ou seja, composto por dois versos. Esses versos se apresentam na glosa de duas formas mais comuns:

    Os dois versos aparecem no fim da estrofe, compondo a rima, que, na maioria das vezes, segue o esquema ABBAACCDDC.

    Um verso do mote aparece como quarto verso da glosa, e o outro verso na última posição. O esquema rímico é semelhante.

    O poeta Paulo Camelo criou e apresentou o que ele denominou Glosa com mote migrante, um poema com mais de uma estrofe (de duas a cinco), onde o mote, em dístico, aparece em posições diferentes, ascendendo nas estrofes das últimas para as primeiras posições.

MOTE NO FINAL
MOTE
"Devagar, como fogo de monturo,
a saudade invadiu meu coração".

GLOSA
Na fazenda, nasci e me criei,
peraltava e fazia escaramuça,
morcegava, no campo, a besta ruça,
jararaca até mesmo já matei.
Não me lembro da vez em que acordei
assombrado com tiros de trovão,
pinotava da rede para o chão
e saía correndo pelo escuro.
Devagar, como fogo de monturo,
a saudade invadiu meu coração".
(Carlos Severiano Cavalcanti)

MOTE EM VERSOS SEPARADOS

MOTE
"Por esses caminhos venho
pedaços de mim deixando".

GLOSA
Nem juntos arte e engenho
de Camões podem cantar
como em vão a tropeçar
por esses caminhos venho.
O amor para mim é lenho
que em meio aos lobos em bando,
aos trancos vou carregando
e a cada mulher que passa
sou tragado na fumaça,
pedaços de mim deixando
(Zé Barreto)

    Há ainda as glosas feitas a partir de trovas, sendo atualmente a mestra no gênero, a trovadora gaúcha Gislaine Canales. Neste gênero, o mote é uma trova inteira (4 versos setesilábicos), geralmente de outro trovador, e a partir dele a glosa é feita com 4 trovas, sendo que cada verso do mote é colocado individualmente em cada trova, na posição correspondente. Isto é, o 1o verso do mote é o 1o da primeira trova da glosa, o 2o é o 2o verso da segunda trova e assim sucessivamente, como demonstramos no exemplo abaixo:

Gislaine Canales
Glosando Izo Goldman


SAUDADE BOÊMIA...

MOTE:
Pelas noites, na cidade,
busco esquecer-te, porém,
o meu drama é que a saudade
é uma boêmia também...
(Izo Goldman)


GLOSA
Pelas noites, na cidade,
eu ando de bar em bar
e a tristeza que me invade
de tão grande, não tem par!

Ouço uma bela canção!
Busco esquecer-te, porém,
a dor do meu coração,
vai muito além, muito além!

Enfrento a realidade:
Eu nunca vou te esquecer,
o meu drama é que a saudade
veio comigo viver!

E nessa angústia sem fim
me ajudar, não pode alguém!
A saudade está em mim,
é uma boêmia também...

Fonte Principal: Wikipedia

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Olivaldo Junior (A Poesia)

(Conto para 21 de março: Dia Mundial da Poesia)

Quase às seis da tarde, hora em que muitos voltam para casa e vão se preparar para o jantar, foi a essa hora que a danada resolveu aparecer. "Muito prazer!", disse ela ao jovem homem, estupefato, entrando em casa. "Posso entrar com você, em seu lar?", disse a moça de olhos negros, tão fundos quanto um buraco negro desse cosmo que nos cerca. O jovem, que chegava do trabalho, meio sem jeito, não soube bem o que dizer, mas aceitou que ela entrasse. Ah, as coisas de que uma moça é capaz com um jovem cavalheiro!... Fechada a porta, pediu à estranha moça que se sentasse um pouco e, deixando sua bolsa de trabalho de lado, foi à cozinha pegar o óbvio, um copo d'água, a sua "visita". "Quero café...", pediu a moça, num tom de voz mais elevado, para que o jovem homem pudesse ouvi-la. "E agora? Não sei fazer café!...", pensou o jovem procurando uma embalagem de Chá da China que a mãe lhe tinha comprado outro dia. "Tenho chá!...", gritou, da cozinha, o rapaz. "Serve!...", assentiu a moça, um tanto contrafeita, é verdade, mas há situações em que é melhor uma xícara de chá na mão do que mil bules de café voando, sabe-se lá em que cozinha...

O jovem voltava para a sala com a bandeja nas mãos, quando a moça olhava um porta-retratos em que ele, ao pé de uma velha árvore, agachado, mão direita apegada ao tronco, sorria muito. "Gostei dessa foto!...", disse a ele já pegando sua xícara de fumegante Chá da China, a moça que já se sentia em casa, mesmo tendo entrado há pouco em sua vida. "Pois é, eu também gosto...", respondeu a ela o jovem que já começava a se incomodar com aquela desconhecida ali, em pé, como se tivesse vindo inspecionar-lhe a vida, e sem licença nenhuma para isso. "Vou ficar aqui.", declarou ao jovem, se sentando na poltrona mais macia da sala, uma relíquia deixada pela avó do rapaz, pouco antes de ela morrer, ou melhor, "subir no telhado"... "Claro, pode sentar-se aí!.., respondeu gentilmente à moça, que lhe acrescentou: "Você não me entendeu. Vou ficar morando aqui.". O jovem deu um salto da cadeira em que se havia sentado e, como já se encaminhasse para a porta, decretou: "Me desculpe, mas você não pode. A casa não é só minha, minha mãe já vai chegar, não temos lugar. Me desculpe mesmo, mas é hora de você ir.". Nisso, começou a ventar e a chover.

"Não vou embora nunca mais de sua casa, nem de sua vida, foi você que me deixou entrar...", respondeu ao jovem homem aquela moça, toda em preto, dona de si, confortavelmente sentada na melhor poltrona da sala. "Serei sua hóspede para sempre, é melhor se acostumar.", e levou mais uma vez a xícara de Chá da China aos lábios faiscantes de vermelho, tão rubros quanto as faces daquele jovem que não sabia o que fazer. Deixou a porta de lado e jogou-se na mesma cadeira. Não sabia o que pensar. "Não vou dar muito trabalho, menino...", falou a moça ao pobre homem. "Como não?", perguntou-lhe o jovem. Barulho na porta. Era a mãe. Entrou, falou das comadres que encontrara no mercado, do calor e que o jantar sairia em breve. Não, sua mãe não vira a moça. "Quem é você?", assustado, indagou o jovem à incógnita mulher que, para responder a ele, se inclinou um pouco para a frente e, quase num sussurro, lhe disse: "Muito prazer, menino. Sou a Poesia. Ando a visitar homens e mulheres do mundo todo, todos os dias, há uns três mil anos, talvez há mais tempo, não sei, insuflando-lhes muitos versos e muitas ideias poéticas, para que possam compreender melhor o avesso das cotidianas horas vividas. Aceita a minha companhia? Serei só sua enquanto estiver com você, mas o que eu lhe puser no colo você repartirá com todos os seus, como quem reparte o pão de fome aos famintos do universo. O que me diz?".

Anos depois, numa livraria da cidade, num evento simples, mas marcante, o jovem homem lançava seu primeiro livro de versos, singelamente intitulado: "A visita da Poesia".

Com licença, alguém bate à porta. Um momento!...

Fonte: O Autor

domingo, 6 de agosto de 2017

Charles Dickens (A História dos Duendes que Raptaram um Coveiro)

Numa velha cidade clerical, situada nesta parte do Condado, há muito, muito tempo — tanto tempo que a história deve ser verdadeira, de vez que nossos bisavós nela acreditaram implicitamente —, oficiava como sacristão e coveiro no cemitério da igreja um certo Gabriel Grub. De modo algum, porém, se infira que, pelo fato de ser coveiro e viver constantemente cercado de símbolos mortuários, deva um homem tornar-se taciturno e melancólico; os agentes funerários são os sujeitos mais alegres do mundo e, certa feita, tive a honra de privar com um deles que, na vida particular, e quando não em serviço, era um sujeitinho cômico e jocoso, capaz de trautear uma canção burlesca sem qualquer lapso de memória, ou de esvaziar um bom copo de um só fôlego. Todavia, apesar de tais precedentes em contrário. Gabriel Grub era rabugento, taciturno, azedo — um homem ensimesmado e solitário, que não se dava com ninguém, a não ser consigo mesmo e com uma velha garrafa, encapada de vime, que lhe cabia no amplo e fundo bolso do colete — e que fitava cada rosto alegre que por si passasse com um olhar de malícia tão torva e mal-humorada que ninguém lhe suportaria o escrutínio sem sentir arrepios.

Pouco antes da meia-noite, certa véspera de Natal. Gabriel colocou a pá ao ombro, acendeu a lanterna e encaminhou-se para o velho cemitério, pois tinha de preparar uma cova para o dia seguinte; sentindo-se muito deprimido, pensou que seu ânimo melhoraria se se pusesse logo a trabalhar. Enquanto caminhava pela velha rua, viu a luz alegre dos fogoscrepitantes brilhar através das janelas antigas, e ouviu os risos altos e os gritos jubilosos daqueles que se haviam reunido à volta deles; observou os alvoroçados preparativos para a festa do dia seguinte e aspirou os numerosos aromas apetitosos deles resultantes, escapando-se pelas janelas das cozinhas, em nuvens. Tudo isso era fel e absinto para o coração de Gabriel Grub; e quando bandos de crianças saltavam para fora das casas e, aos saltos, atravessavam a rua e encontravam-se, antes de terem tido tempo de bater à porta fronteira, com meia dúzia de moleques de cabelo encaracolado, que se agrupavam em torno deles enquanto subiam para passar a noite em folguedos natalinos. Gabriel sorria torvamente e apertava o cabo da pá com mais força, ao pensar em sarampo, escarlatina, difteria, coqueluche e muitas outras fontes semelhantes de consolação.

Nesse feliz estado de espírito. Gabriel caminhava, respondendo aos cumprimentos bem-humorados dos vizinhos que por ele cruzavam com um grunhido lacônico e rabugento; por fim, enfiou-se pela escura viela que levava ao cemitério. Gabriel estivera ansioso por chegar à viela porque o lugar era, de modo geral, ermo e funéreo, e a gente da vila não se arriscava a andar por ali senão durante o dia, quando brilhava o sol; por consequência, o coveiro ficou assaz indignado ao ouvir uma voz infantil entoando uma alegre canção de Natal no mesmo santuário que era chamado "Beco dos Caixões" desde os dias da velha abadia e dos monges de cabeça raspada. À medida que Gabriel caminhava e que a voz se tornava mais próxima, descobriu pertencer a um menino que corria a juntar-se a um dos grupinhos da velha rua e que, em parte para sentir-se acompanhado, em parte para preparar-se para a ocasião, berrava a canção com toda a força dos pulmões. Gabriel esperou até que o menino passasse por ele e, encurralando-o num canto, deu-lhe cinco ou seis pancadas na cabeça com a lanterna, apenas para ensiná-lo a modular a voz. E enquanto o menino fugia, com as mãos na cabeça, entoando canção bem diversa da anterior. Gabriel Grub casquinhou sozinho, alegremente, e entrou no cemitério, fechando o portão atrás de si.

Tirou o casaco, pôs a lanterna no chão e, dirigindo-se à cova inacabada, nela trabalhou durante uma hora ou mais, com gosto. Mas a terra estava endurecida pela geada e não era coisa fácil cavá-la nem atirá-la para cima; embora houvesse lua, era lua muito nova, que pouco iluminava a cova imersa na sombra da igreja. Em qualquer outra ocasião, tais obstáculos teriam feito Gabriel Grub sentir-se muito triste e miserável, mas estava tão satisfeito por ter acabado com a cantoria do menino, que mal se deu conta dos pequenos progressos que fazia e, terminado o trabalho da noite, olhou para dentro da cova com soturna satisfação, murmurando, enquanto reunia seus apetrechos:

Bom quarto para a última dormida:
Sete palmos de terra, finda a vida;
Pedra aos pés e também à cabeceira,
Petisco para os vermes da valeira;
Relva em cima, de argila emparedado,
Belo quarto em terreno consagrado!

— Ho! ho! — riu Gabriel Grub, sentando-se num túmulo liso, que era seu lugar de descanso favorito, e sacando a garrafa de vime. — Um esquife no Natal! Um caixão natalino! Ho! ho! ho!

— Ho! ho! ho! — repetiu uma voz as suas costas.

Gabriel interrompeu, algo alarmado, o ato de levar a garrafa à boca e olhou à volta de si. As profundezas do túmulo mais antigo ali existente não estavam mais tranquilas e silenciosas do que o próprio cemitério à pálida luz da lua. A branca e fria geada brilhava nas lousas tumulares e cintilava, qual fieira de gemas, por entre os entalhes de pedra da velha igreja. Havia uma camada de neve dura e crespa sobre o chão, amortalhando os montículos de terra com um lençol tão alvo e macio, que mais pareciam estes uma fileira de cadáveres cobertos apenas com suas mortalhas. Nenhum ruído, por leve que fosse, quebrava a profunda tranquilidade da paisagem solene. Tão frio e quieto era o ambiente que até o próprio som parecia ter-se enregelado.

— Foram os ecos — concluiu Gabriel Grub. levando novamente a garrafa à boca.

— Não foram, não — disse uma voz profunda.

Gabriel ergueu-se assustado e ficou interdito de espanto e de terror quando seus olhos deram com uma aparição que lhe gelou o sangue nas veias. Sentada numa tumba alta, perto dele, havia uma estranha figura supraterrena, que Gabriel constatou, desde logo, não ser gente deste mundo. Suas pernas longas e fantásticas, que bem poderiam chegar ao chão, estavam encolhidas e cruzadas de maneira esquisita e espantosa; trazia nus os braços nervosos; suas mãos descansavam sobre os joelhos. O corpo curto e roliço estava vestido de roupas apertadas e acuchiladas; uma capa curta pendia-lhe das costas; a gola estava recortada em bicos curiosos, que serviam de gravata ou de golilha ao duende, e os sapatos tinham longas pontas reviradas. Trazia na cabeça um chapéu em forma de pão de açúcar, enfeitado com uma pena solitária, e coberto de branca geada; o duende parecia estar sentado muito à vontade, na tumba, havia mais de duzentos ou trezentos anos. Permanecia imóvel, com a língua zombeteira de fora, careteando para Gabriel Grub com uma expressão que só os duendes são capazes de assumir.

— Não foram os ecos — repetiu o duende.

Gabriel Grub estava paralisado e não soube responder.

— Que fazes aqui na véspera de Natal? — perguntou o duende, com voz severa.

— Vim cavar uma cova, sir — balbuciou Gabriel Grub.

— Que homem é este que anda em meio a covas numa noite assim? —
exclamou o duende.

— Gabriel Grub! Gabriel Grub! — berrou um doido coro de vozes, que parecia encher o cemitério. Gabriel olhou temerosamente à volta, mas não viu ninguém.

— Que trazes aí nessa garrafa? — perguntou o duende.

- Genebra, sir — respondeu o sacristão, mais trêmulo do que nunca, pois havia comprado-a de contrabandistas e julgou que talvez seu interlocutor pertencesse ao departamento fiscal dos duendes.

— Quem bebe genebra sozinho num cemitério, numa noite como esta? — exclamou o duende.

—Gabriel Grub! Gabriel Grub! — gritaram as doidas vozes novamente.

O duende olhou maliciosamente para o coveiro aterrorizado e, alçando a voz, exclamou:

- E quem é, então, nossa boa e legítima presa?

A tal pergunta, o coro invisível replicou, num uníssono que vibrava como as vozes de muitos meninos cantando ao som poderoso do órgão da velha igreja; um uníssono que, aos ouvidos do coveiro, parecia transportado por um vento selvagem, e que, conforme passava, ia morrendo; mas o estribilho era sempre o mesmo:

— Gabriel Grub! Gabriel Grub!

O duende fez uma careta maior do que as anteriores e disse:

—Bem. Gabriel, que achas disso?

O coveiro arquejou.

— Que achas disso. Gabriel? — repetiu o duende, atirando as pernas para o ar, de cada lado do túmulo, e olhando para as pontas reviradas dos sapatos com tanta satisfação quanto se admirasse os mais elegantes calçados vendidos em Bond Street.

— É... é... muito curioso, sir — replicou o coveiro, semimorto de terror. -  Muito curioso e muito bonito, mas acho que vou voltar ao trabalho para terminá-lo, sir, se mo permitirdes.

— Trabalho! — exclamou o duende. — Que trabalho?

— A cova, sir; abrir uma cova — tartamudeou o coveiro.

— Oh!, a cova, hein? — disse o duende. — Quem é que se compraz em abrir covas numa ocasião em que todos os outros homens se divertem?

Novamente, as vozes misteriosas repetiram:

— Gabriel Grub! Gabriel Grub!

— Receio que meus amigos te desejem. Gabriel — disse o duende, pondo toda a língua de fora (e que língua. Santo Deus!). — Receio que meus amigos te desejem. Gabriel.

— Por favor, sir — replicou o coveiro aterrorizado —, creio que não, sir; eles não me conhecem, sir; não acredito que esses cavalheiros me hajam visto antes, sir.

— Oh!, viram-te, sim — replicou o duende. — Bem conhecemos o homem de cara amuada e cenho franzido que desceu a rua hoje à noite, olhando as crianças com olhar maldoso, e apertando, raivoso, o cabo da pá. Bem conhecemos o homem que, com o coração cheio de inveja e maldade, surrou um menino, só porque esse menino podia ser alegre e ele não. Bem o conhecemos, bem o conhecemos.

Nesse ponto, o duende riu um riso esganiçado, que os ecos devolveram multiplicado, e, atirando as pernas para o ar, equilibrou-se, de cabeça para baixo, ou melhor, sobre a ponta do chapéu em forma de pão de açúcar, à beirada estreita do túmulo, de onde, numa cambalhota extremamente ágil, foi cair bem aos pés do coveiro, assumindo a posição de um alfaiate entregue ao seu ofício.

— Acho... acho que tenho de ir-me embora, sir — disse o coveiro, fazendo um esforço para mover-se.

— Ir embora! — exclamou o duende. — Gabriel Grub vai embora. Ho! ho! ho!

Enquanto o duende ria, o coveiro, olhando de relance para a igreja, viu-lhe as janelas iluminadas, como se estivessem acesas todas as luzes do edifício; a luz desapareceu, o órgão pôs-se a tocar uma melodia saltitante, e grupos inteiros de duendes, perfeitas reproduções do primeiro, derramaram-se pelo cemitério e começaram a saltitar sobre as tumbas, jamais detendo-se, um instante que fosse, para tomarem fôlego, mas cabriolando cada vez mais alto, um depois do outro, com maravilhosa destreza. O primeiro dos duendes era um saltador espantoso, e nenhum dos outros o ultrapassava; mesmo no auge do terror, o coveiro não pôde deixar de observar que, enquanto seus companheiros se contentavam em saltar por cima das tumbas de tamanho ordinário, o primeiro piruetava sobre os jazigos familiares, com grades de ferro e tudo, tão facilmente quanto se estes fossem marcos de estrada.

Por fim, a brincadeira chegou ao cúmulo da excitação; o órgão tocava cada vez mais depressa, e os duendes pulavam cada vez mais rápidos, enrodilhando-se sobre si mesmos, dando cambalhotas sobre o chão e saltando sobre as tumbas quais bolas de futebol. O cérebro do coveiro girava com tanta rapidez quanto a da agitação que contemplava, e suas pernas vergavam conforme os espíritos lhe passavam diante dos olhos; subitamente, o rei dos duendes, atirando-se sobre ele, agarrou-o pelo colarinho e com ele desapareceu pela terra adentro.

Quando Gabriel Grub conseguiu recuperar o fôlego, que a descida vertiginosa lhe fizera perder, encontrou-se no que parecia ser uma vasta caverna, circundado de todos os lados por multidões de duendes feios e zombeteiros; no centro da caverna, num assento elevado, estava seu amigo do cemitério e, logo atrás dele, sem poder mexer-se, o próprio Gabriel Grub.

— A noite está fria — disse o rei dos duendes —, muito fria. Tragam-lhe algo quente para beber!

A esta voz de comando, meia dúzia de duendes oficiosos, com um perpétuo sorriso nas faces, que Gabriel Grub imaginou fossem cortesãos por causa disso, desapareceram num átimo e logo voltaram com uma taça de fogo líquido, que apresentaram ao rei.

— Ah! — exclamou o duende, cujas faces e garganta faziam-se transparentes à medida que ia engolindo o líquido chamejante —, como isto esquenta! Tragam uma caneca para Mister Grub.

Foi em vão que o coveiro protestou não ser de seu hábito tomar o que quer que fosse de quente à noite; um dos duendes segurou-o, enquanto outro lhe derramava a beberagem incendiada pela garganta abaixo; toda a assembleia torcia-se de rir ao vê-lo tossir, engasgar-se e enxugar as lágrimas que lhe corriam abundantemente dos olhos, depois de ter engolido a causticante bebida.

— E agora — disse o rei, enfiando, num gesto fantástico, a ponta do seu chapéu afunilado nos olhos do coveiro e provocando neste dor agudíssima —, e agora mostrem ao homem da desgraça e da tristeza algumas pinturas do nosso grande depósito!

A medida que o duende dizia tais palavras, uma nuvem espessa, que obscurecia a extremidade mais remota da caverna, dissipou-se gradualmente e pôs a descoberto, muito ao longe, segundo parecia, um aposento pequeno e pobremente mobiliado, posto que limpo e bem-arrumado. Um bando de crianças comprimia-se em torno do fogo alegre, agarradas às saias da mãe e saltitando-lhe ao redor da cadeira. A mãe erguia-se, de quando em quando, e descerrava as cortinas da janela, como se aguardasse a chegada de alguém; uma refeição frugal estava servida sobre a mesa e uma cadeira de braços fora disposta perto do fogo. Uma batida à porta fez-se ouvir; a mãe abriu-a, e as crianças, acorrendo para lá, puseram-se a bater palmas de alegria ao verem seu pai entrar. Estava molhado e tinha ar fatigado; sacudiu a neve das roupas, enquanto as crianças, apinhando-se em volta dele, tomaram-lhe a capa, o chapéu, a bengala e as luvas e, com ar azafamado, levaram tudo para fora da sala. Depois, quando o recém vindo se sentou à mesa, ao pé do fogo, as crianças treparam-lhe sobre os joelhos, a esposa acomodou-se ao seu lado, e tudo se fez felicidade e aconchego.

Mas uma alteração, quase imperceptível, ocorreu no quadro. A cena era agora um pequeno dormitório, no qual o mais lindo e o mais jovem dos filhos jazia agonizante; o róseo havia-lhe desaparecido das faces e a luz fugira-lhe dos olhos; enquanto o coveiro o olhava com um interesse que jamais havia conhecido ou experimentado até então, a criança morreu. Seus pequenos irmãos e irmãs rodearam-lhe o leito minúsculo e tomaram-lhe as mãozinhas frias e lânguidas, mas estremeceram ao toque e olharam medrosamente para o seu rosto infantil: era calmo e tranquilo e revelava paz, mas a linda criança estava morta e eles souberam que era agora um anjo a olhá-los e a abençoá-los lá do céu luminoso e feliz.

Uma luz brilhante passou de novo pelo quadro e o seu tema alterou-se outra vez. O pai e a mãe estavam agora velhos e alquebrados e o número de filhos a rodeá-los diminuíra de mais da metade; todavia, a felicidade e a alegria brilhavam em todas as faces e reluziam em todos os olhos enquanto, agrupada em volta do fogo, a família ouvia e contava velhas histórias dos dias idos. Lenta e tranquilamente, o pai desceu ao túmulo e, logo depois, a companheira de seus cuidados e aflições acompanhou-o àquele lugar de repouso. Os poucos sobreviventes ajoelharam-se ao lado de seus túmulos e regaram de lágrimas a verde relva que os recobria; ergueram-se, depois, e afastaram-se, tristes e enlutados, mas não com gritos amargos ou com lamentos desesperados, pois sabiam que os encontrariam, novamente, algum dia; mais uma vez, mergulharam na azáfama do mundo, e o contentamento e a jovialidade lhes voltaram. A nuvem desceu sobre o quadro e ocultou-o dos olhos do coveiro.

— Que achas disso? — perguntou o duende, voltando seu rosto largo para Gabriel Grub.

Gabriel murmurou algo a respeito de ter achado o quadro muito bonito, e pareceu ficar um tanto envergonhado quando o duende o fitou com seus olhos candentes.

— Tu, miserável criatura! — disse o duende, num tom de absoluto desprezo. — Tu!

Parecia resolvido a acrescentar mais alguma coisa, mas a indignação sufocou-o; erguendo uma de suas flexibilíssimas pernas, e agitando-a acima da cabeça para firmar a pontaria, descarregou um belo pontapé em Gabriel Grub; a esse exemplo os duendes se comprimiram em torno do pobre coveiro e castigaram-no sem clemência, de acordo com o costume estabelecido e invariável dos cortesãos deste mundo, que dão pontapés em quem a realeza dá, e agradam a quem a realeza agrada.

— Mostrem-lhe algo mais! — ordenou o rei dos duendes.

A estas palavras, a nuvem dissipou-se e uma bela e rica paisagem fez-se
visível — a mesma que se contempla até hoje, a meia milha da velha cidade clerigal. O sol refulgia no céu límpido e azul; a água cintilava sob os seus raios; as árvores pareciam mais verdes e as flores mais alegres a sua benéfica influência. A água murmurejava com um ruído agradável; as árvores farfalhavam à leve brisa que lhes agitava as folhas; os pássaros cantavam nos ramos, e a cotovia, lá no alto, saudava o amanhecer. Sim, era manhã — uma clara e balsâmica manhã estival; a menor das folhas, o mais diminuto dos talos de grama palpitavam de vida. A formiga saía para seu labor cotidiano; a borboleta, revoluteando, aquecia-se aos cálidos raios de sol; miríades de insetos estiravam as asas transparentes e gozavam a breve, posto que feliz, existência. O homem caminhava, enlevado pela cena, e tudo era brilho e esplendor.

— Tu, miserável criatura! — exclamou o rei dos duendes, em tom de maior desprezo ainda. E, novamente, fez um floreio com a perna e castigou os ombros do coveiro; novamente, os duendes circundantes imitaram o exemplo do chefe.

Muitas e muitas vezes a nuvem apareceu e desapareceu; e muitas e muitas lições foram ensinadas a Gabriel Grub, que, embora lhe doessem os ombros, devido ao reiterado castigo neles aplicado pelo pé do duende, assistia a tudo com um interesse que nada lograva diminuir. Viu os homens que trabalhavam arduamente para ganharem o escasso pão de cada dia, alegres e felizes; viu que, mesmo para os mais ignorantes, o doce aspecto da Natureza era fonte inesgotável de prazeres e alegrias.

Viu aqueles que haviam sido criados com mimos e que tinham crescido em meio a carinhos, alegres, malgrado as privações, e superiores a sofrimentos que teriam esmagado outros de mais rude constituição, porque traziam dentro do peito as próprias fontes da felicidade, da alegria e da paz. Viu que as mulheres, as mais ternas e frágeis entre todas as criaturas de Deus, eram frequentemente superiores à tristeza, à adversidade e à desgraça, porque traziam, no fundo do coração, um manancial inesgotável de afeto e devoção. Viu, sobretudo, que homens como ele, sempre a escarnecerem da jovialidade e da alegria alheias, eram o pior joio que existia sobre a bela superfície da terra; e, confrontando todo o bem do mundo com o mal nele existente, chegou à conclusão de que o mundo, no fim das contas, era um lugar muito decente e respeitável. Mal chegara a tal conclusão quando a nuvem que envolvera o último quadro pareceu envolver-lhe também os sentidos, convidando-o ao repouso. Um por um, os duendes desapareceram de sua vista e, quando o último se desvaneceu, o coveiro mergulhou em sono profundo.

O dia já havia nascido quando Gabriel, despertando, se achou estirado sobre a laje lisa do cemitério, tendo ao lado, vazia, a garrafa de vime, e o casaco, a pá e a lanterna, recobertos da geada alvacenta da véspera, espalhados no chão. A lousa sobre a qual vira o duende sentado pela primeira vez erguia-se diante dele, e a cova em que trabalhara na noite anterior não distava muito dali. A princípio, duvidou da realidade de suas aventuras, mas a dor aguda que sentiu nos ombros, quando tentou erguer-se, convenceu-o de que os pontapés dos duendes não haviam sido de modo algum imaginários.

Titubeou, novamente, ao observar que não havia pegadas na neve que os duendes tinham pinoteado, mas logo achou explicação para o fato, ao lembrar-se de que, sendo eles espíritos, não haveriam de deixar impressão visível atrás de si. Destarte, Gabriel Grub pôs-se de pé, tão bem quanto lho permitiu a dor nas costas, e, limpando a geada do casaco, vestiu-o e voltou o rosto para a cidade.

Era, todavia, um homem mudado, e não suportava a ideia de retornar a um sítio onde seu arrependimento seria objeto de motejo e sua transformação, de dúvida. Hesitou por alguns momentos; decidiu-se, depois, a buscar outro lugar onde pudesse ganhar o pão.

A lanterna, a pá e a garrafa de vime foram encontradas no cemitério naquele mesmo dia. Houve a princípio inúmeras conjecturas quanto ao destino do coveiro, mas logo se concluiu que ele havia sido levado pelos duendes; não faltaram, mesmo, algumas testemunhas dignas de crédito que o haviam visto, muito distintamente, transportado pelo ar no lombo de um cavalo castanho, cego de um olho, com os quatro traseiros de leão e a cauda de urso. Com o passar do tempo, chegou-se a crer piamente em tudo isso, e o novo coveiro costumava exibir aos curiosos, em troca de insignificante propina, um bom pedaço do cata-vento da igreja que havia sido derrubado acidentalmente pelo referido cavalo em sua fuga aérea, e que ele, coveiro, encontrara no cemitério, um ou dois anos mais tarde. Infortunadamente, estas histórias ficaram algo desmoralizadas pelo inesperado aparecimento de Gabriel Grub em pessoa, mais ou menos dez anos depois; estava velho, reumático, esfarrapado e feliz. Contou sua história ao vigário e também ao prefeito; com o tempo, sua narrativa passou a ser aceita como fato histórico, forma sob a qual se perpetuou até hoje. Os que acreditam no conto do cata-vento, tendo sido iludido na sua boa-fé, não se mostravam mais dispostos a deixar-se iludir novamente, e assumindo ares de sabidos, encolhiam os ombros, tocavam a fronte e murmuravam algo a respeito de Gabriel Grub ter bebido toda a genebra e adormecido sobre a lápide lisa; ofereciam explicação para o que ele havia visto na caverna dos duendes, dizendo que, depois de haver corrido o mundo. Gabriel tornara-se mais esperto. Mas tal opinião, que não chegou nunca a se popularizar, foi-se extinguindo aos poucos. Seja como for, tendo Gabriel Grub padecido de reumatismo até o fim de seus dias, sua história tem, ao menos, uma moral, à falta de coisa melhor — a de que, se um homem ficar mal-humorado e beber sozinho na véspera de Natal, pode ter a certeza de que não tirará muito proveito disso, ainda que os espíritos da bebida sejam menos fortes ou estejam tantos graus acima do normal quanto aqueles que Gabriel Grub viu na caverna dos duendes.

Fonte:
http://nefasto.com.br/historia-dos-duendes-que-raptaram-um-coveiro-charles-dickens/