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terça-feira, 29 de outubro de 2019

Contos e Lendas do Mundo (África: Kigbo e o Espírito do Mato)

Kigbo, que quer dizer «homem teimoso», tinha um nome que lhe assentava às mil maravilhas, pois um homem teimoso é aquele que não descansa enquanto não leva a sua avante. Segundo um mito dos lorubas, a teimosia de Kigbo é que foi a fonte de todos os seus males.

Kigbo e sua mulher, Dolapo, eram ambos jovens e tinham vivido com os pais até casarem. Isso significava que não possuíam terras próprias. Quando chegou a altura de os aldeões prepararem os campos para o plantio, o pai de Kigbo foi a casa do filho para falar com ele.

 - Tens uma mulher bonita e um filho esplêndido, chegou pois a altura de cuidares deles - disse. - Procuraremos um lugar fora da aldeia, limparemos o terreno e faremos dele a tua plantação particular.

 - Não quero - respondeu Kigbo.

 - Não queres? - admirou-se o pai. - Mas tu precisas de cultivar alimentos para ti e para a tua família. Agora és independente, Kigbo. Nem os teus pais nem os da Dolapo têm obrigação de sustentar-vos.

- O que eu quis dizer é que não quero arranjar um terreno nos arredores da aldeia, pois já está quase tudo tomado e, portanto, só conseguiríamos dispor de terra suficiente para um campo pequeno.

 - Mas tu só precisas de um campo pequeno - advertiu-o o pai. Há terra suficiente para todos.

 - Quero fazer uma plantação no mato - disse Kigbo.

 - No mato? - exclamou o pai, ficando de boca aberta. - Que perfeita loucura! Ninguém cultiva aí. O mato fica longe de casa e é perigoso!

 - Não ligo à distância e é exatamente porque ninguém cultiva lá que poderei desbravar um campo do tamanho que quiser - explicou Kigbo, sorrindo.

 - E o perigo... - lembrou-lhe o pai. Kigbo fitou o pai e respondeu:

 - Tu mesmo me puseste o nome de teimoso. Nada me fará mudar de ideias.

 Foi assim que Kigbo se pôs a caminho do mato por sua conta e risco. Começava a desbravar a terra quando um grupo de espíritos apareceu.

 - Nós somos os espíritos do mato - disseram. - Esta terra pertence-nos. Que fazes aqui?

 - Preparo um bocado de terra para plantar o meu milho - respondeu Kigbo teimosamente.

 Não queria permitir que um grupo de espíritos alterasse os seus planos.

- Nós somos os espíritos do mato - repetiu o grupo. - Esta terra pertence-nos. Fazemos o mesmo que tu.

Então os espíritos, em vez de expulsarem Kigbo, começaram a ajudá-lo na sua tarefa, daí que, passado pouco tempo, uma ampla clareira estava desbravada.

Satisfeito, Kigbo parou e os espíritos imitaram-no. A seguir, sem ao menos um «obrigado», voltou de novo para a aldeia.

Ao chegar a casa, encontrou o pai à sua espera, tendo a seu lado Dolapo.

- Estava muito preocupado contigo - disse-lhe o pai. - Receei que os espíritos te tivessem apanhado e feito coisas terríveis.

- Coisas terríveis? - riu-se Kigbo. - Quando comecei a dar conta de uns arbustos, eles apareceram e até ajudaram. O trabalho ficou feito num instante... Amanhã voltarei lá para revolver a terra.

- Será que não aprendeste nada comigo, grande teimoso? Já te avisei de que o mato é um sítio terrível, e que os espíritos não são para brincadeiras.

Quando, na manhã seguinte, Kigbo voltou, levando consigo um saco de milho, o grupo de espíritos do mato apareceu de novo.

- Nós somos os espíritos do mato. Esta terra pertence-nos. Que fazes aqui?

- Remexo o solo para plantar as minhas sementes - respondeu Kigbo.

- Nós somos os espíritos do mato - repetiram. - Esta terra pertence-nos. Fazemos o mesmo que tu.

Kigbo começou então a lavrar a terra, antes coberta de mato, e os espíritos ajudaram. Num instante, o solo ficou preparado para ser semeado. A seguir, Kigbo tirou do saco uma mão-cheia de grãos, que começou a espalhar.

- Nós somos os espíritos do mato - disse o coro. - Esta terra pertence-nos. Fazemos o mesmo que tu.

E começaram a semear. Depressa o trabalho estava terminado.

Satisfeito, Kigbo parou e os espíritos imitaram-no. Depois, uma vez mais sem agradecer, voltou para a aldeia.

O tempo passou e as estações mudaram. Depois do tempo de semear veio o de colher e Kigbo continuou a viver, à sua maneira egoísta e teimosa, sem se preocupar minimamente com os outros.

Todos os outros aldeões podiam vigiar facilmente as suas pequenas plantações, mesmo na orla da aldeia, para acompanhar o crescimento do milho. Kigbo, no entanto, era obrigado a percorrer uma grande distância até à beira do mato onde desbravara o seu campo de cultivo. Mas achava que valera a pena. Via-se, a perder de vista, um mar de milho a brilhar ao sol.

Kigbo pensava: «As pessoas acham que sou teimoso, mas vejam o que eu consegui com a minha esperteza. Todos têm plantações pequenas e precisam de trabalhar duramente nelas. Eu tenho este campo enorme e aqueles espíritos tolos fizeram a maior parte do trabalho duro por mim. Espero que me ajudem quando o milho estiver maduro e pronto a colher!»

O orgulho que Kigbo sentia no seu milho dourado era tão grande que resolveu ir buscar a mulher e o filho para o verem. Voltou então à aldeia.

Dolapo, entretanto, sentia remorsos.

«Kigbo pode ser teimoso», pensou, «mas é meu marido e eu amo-o... e, quando trabalha, faz com grande empenho.»

Resolveu então ir até lá para ver com os seus próprios olhos. Devem ter tomado caminhos diferentes, pois não se cruzaram. Quando, por fim, Dolapo chegou à plantação, não viu Kigbo em lado nenhum.

 Fora uma grande caminhada e Dolapo aborreceu-se com a teimosia dele. Porque não desbravara ele um campo mais pequeno perto da aldeia?

O filho de Dolapo começou a chorar.

- Tens fome, pequenino? - perguntou-lhe ela. - Não posso dar-te este milho, pois ainda não amadureceu.

Porém, como o filho não se calava, Dolapo arrancou uma maçaroca de milho - apesar de ainda não estar madura - e deu-lha a comer.

Nesse preciso momento, o grupo de espíritos apareceu e disse:

- Nós somos os espíritos do mato. Esta terra pertence-nos. Fazemos o mesmo que tu.

E, antes de Dolapo perceber o que estava a acontecer, os espíritos do mato cortaram as maçarocas de todo o milho. Não tardou que o solo ficasse juncado de maçarocas de milho verdes, estando assim irremediavelmente perdida toda a safra!

- Que foi que fizemos?! - exclamou Dolapo.

Sentou-se a chorar, e os seus queixumes, junto com os do bebé que também começara a fazer o mesmo, soaram tão alto que chegaram aos ouvidos de Kigbo, que ia a caminho de casa. Este ficou com uma cara preocupada.

- Este choro parece-me da Dolapo e do bebê - disse, cada vez mais receoso. - E vem do mato!

Voltou para trás e correu o mais depressa que pôde para a sua plantação. Que estaria Dolapo a fazer ali com o seu filho? O mato era um sítio muito perigoso. Quando lá chegou, ficou horrorizado perante o panorama com que deparou. Não havia uma única maçaroca de pé. A plantação ficara reduzida a um mar de hastes secas, sem qualquer préstimo!

- Que aconteceu? - perguntou Kigbo, embasbacado.

- O nosso filho chorava com fome, de modo que eu arranquei uma maçaroca e dei-lha - explicou-lhe a mulher.

- Criança estúpida! - gritou Kigbo, fazendo, em seguida, algo de terrível. Enraivecido, agarrou no menino e sacudiu-o.

Antes de ter tempo para se aperceber das consequências do seu ato, o grupo de espíritos apareceu e disse:

- Nós somos os espíritos do mato. Esta terra pertence-nos. Fazemos o mesmo que tu.

Então, antes de Kigbo poder detê-los, começaram todos a sacudir a pobre criança da mesma maneira.

Kigbo sentiu-se culpado e furioso com o que acontecera. Era horrível tratar alguém - sobretudo uma criança - daquela maneira, porém tentou convencer-se de que a culpa fora de Dolapo.

- Olha o que me obrigaste a fazer! - exclamou, cometendo novo erro, pois esbofeteou a mulher.

- Nós somos os espíritos do mato - disse o grupo, mais uma vez. Esta terra pertence-nos. Fazemos o mesmo que tu.

Depois começaram todos a dar bofetadas em Dolapo. Kigbo, dando-se conta de quão teimoso e louco fora, bateu com os punhos na cabeça.

- Que estúpido fui! - queixou-se. - Porque não ouvi o meu pai?

- Nós somos os espíritos do mato - repetiu o grupo, virando-se para ele. - Esta terra pertence-nos. Fazemos o mesmo que tu.

Começaram então a bater em Kigbo.

- Esta terra pertence-nos - repetiam, sem que ele percebesse uma palavra por causa das pancadas.
_____________________________
Esta lenda tem muitos fins. Um deles conta que Kigbo e Dolapo fugiram do mato levando o filho com eles e que o grande teimoso aprendeu a lição. Outro diz que os três foram mortos pelos espíritos. Um terceiro relata que Kigbo morreu nas mãos dos espíritos, mas Dolapo e o filho escaparam com vida.

Seja qual for o fim que tiveram, o certo é que o pai de Kigbo tinha razão. O mato é um lugar perigoso e não se pode brincar com os espíritos... por muito prestáveis que estes se possam mostrar ao princípio.


Fonte:
Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

domingo, 24 de março de 2019

Contos e Lendas do Mundo (África: Os Pequenos Acrobatas do Rio)


Na aldeia de Sakata, os meninos brincam à  volta da árvore. Mas isso não os impede de estarem atentos a qualquer pequeno ruído que venha do Congo, o grande rio que corre perto dali. Estão à  espera de que o barco passe.

- Ei! Olha o barco! Já lá vem o barco-correio! 

Para Kembo é um dia importante. Quando o barco que transporta tantas mercadorias maravilhosas abrandar a velocidade, ele vai aproximar-se e pôr as mãos no casco. Até há de subir a bordo. A manobra é arriscada, mas Kembo está decidido.

- Mido, Eloni, vamos! Temos de ser os primeiros a acostar! 

Enquanto Mido e Eloni pegam nos remos do pangaio, Kembo grita:

- Cuidado! A piroga vai meter água! Vejam que tem um buraco à frente!

Kembo tapa o buraco com um pouco de barro.

- Agora podemos ir. A minha mãe quer que lhe traga sabão e uma camiseta.

As folhas dos nenúfares agitam-se à passagem deles. Escondido debaixo da copa de um cogumelo, um sapo está quase a apanhar um inseto. Que sossego! Mas, de repente, o sapo esconde-se, e os pássaros levantam voo com grande alarido. O que terá causado toda aquela agitação, pregando um susto de morte às crianças? A serpente negra que assombra o rio. Ela acaba de escapulir por entre as ervas altas. Kembo começa então a entoar a canção de Sakata, a Nossa Aldeia, uma canção que dá coragem.

No rio agitado, eh! eh!
É preciso remar com força eh!
No rio agitado
É preciso remar com força.

Ao longe, outras crianças pescadoras retomam o refrão. Kembo e os amigos voltam a subir a corrente com mais vigor. Em breve, a piroga sai das águas calmas da floresta e entra nas do rio. No sítio em que os dois braços de água se encontram, as ondas fervilham, formam um turbilhão. Mido e Eloni gritam:

- Temos medo! Kembo, voltamos para trás!

- Nem pensar - diz Kembo. - Não vamos desistir!

Um vento forte arrasta a piroga. O pânico apodera-se dos amigos de Kembo. Mas Kembo sabe desviar-se dos perigos, ultrapassar as armadilhas da água, e diz:

- Quietos! Nada de fazer força. Temos de nos deixar levar pela corrente. 

A piroga é sacudida por todos os lados. E depois, de repente, ei-la que sai do turbilhão. Kembo e os amigos esperam com impaciência a aproximação do barco, que abranda mas não pára.

Os passageiros olham para as crianças, admirados. Alguns gritam:

- Afastai-vos! Os redemoinhos são perigosos

Á primeira onda, a piroga sobe até a crista. Os passageiros do barco ficam embasbacados perante a destreza de Kembo e dos amigos, que, certos do sucesso da sua proeza, cantam com toda a força.

Da margem, os pais seguem o espetáculo.

- Oh! Que habilidade! Que acrobatas corajosos! Será que vão conseguir encostar o barco? Eu nem me atrevo a olhar!

Alguns pais gritam, manifestando o seu medo.

- Os nossos filhos trazem os amuletos, consigo ver daqui as fitas vermelhas!

Os rapazes não conseguiram a acostagem. O choque contra o flanco do barco foi duro e a emoção forte quando as crianças ouviram rebentar o pedaço de barro que tapava o buraco da piroga. Mas Kembo e os amigos mantiveram o sangue-frio.

- Depressa, a outra piroga - grita Kembo.

A outra piroga pertence, seguramente, a um pescador que já entrou no barco-correio. Kembo salta para dentro, pega numa amarra e atira-a para as mãos que se agitam acima dele. De repente, a corda estica.

- Consegui! - grita Kembo, que já está a bordo.

Mas Eloni e Mido têm menos sorte, a piroga volta-se e ei-los na água. Falharam.

A bordo do barco-correio era um autêntico mercado. Vendia-se lá de tudo. Vê-se uma coisa amarela e preta a brilhar na penumbra. Será um brinquedo? Kembo aproxima-se. O produto à  venda é uma jiboia.

- Nioka! Nioka! (Serpente!Serpente!) - grita Kembo, cheio de medo. E foge a correr.

Cheira muito bem debaixo do telhadilho de madeira. Os passageiros saboreiam mandioca que as mulheres acabam de fritar em óleo de palma. Fazem-se trocas e conversa-se. Os habitantes ribeirinhos acabam de acostar, trazem peixe e banana para fritar. Mas Kembo não pode atrasar-se, tem compras a fazer. 

Kembo escapa-se por entre as mercadorias. Chega diante da exposição de conservas, de vestidos e de tangas, onde, finalmente encontra o que procurava. Enquanto espera que o sabão e a tee-shirt sejam embrulhados, Kembo vê, ao fundo do barco, um carro carregado de caixotes. São medicamentos para um hospital da Cruz-Vermelha, explica o comerciante.

- Pega! Aqui estão as compras para a tua mãe!

A sirene apitou. Rápido, rápido! Temos de sair depressa, que o barco vai ganhar velocidade! Kembo esconde o embrulhinho com segurança dentro do calção e, splash!, mergulha. Nada como um peixe até chegar junto de Eloni e Mido, que estão na água.

O barco afasta-se. Balançado pelo turbilhão dos redemoinhos, as crianças disputam entre si a agilidade para saltarem para a piroga virada. Mido e Eloni estão desiludidos. Mas não passa de uma oportunidade perdida. Da próxima vez que o barco-mercado passar, subirão a bordo com o Kembo. Dessa vez, é certo que vão conseguir.

Fonte: 

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Contos e Lendas do Mundo (África: A Corrida para ser Rei)


Existem muitos mitos africanos acerca de animais. Nalguns, eles têm um comportamento animal. Noutros, parecem pessoas. Em certos mitos, até, são meio animais, meio gente. Neste mito Alur, há um sapo e um lagarto que são príncipes irmãos.

 Lagarto e Sapo, seu irmão, estavam sentados a olhar um para o outro. Lagarto deleitava-se ao sol do meio-dia, absorvendo os raios solares. Sorria de contentamento. A pedra macia e negra sobre a qual se encontrava era tão bonita e estava tão quente que ele era obrigado a levantar uma pata de cada vez. Deste modo, as quatro patas podiam esfriar um pouco antes de voltarem a ficar deliciosamente aquecidas sobre a sua pedra preferida.

Sapo mantinha-se à sombra, meio dentro, meio fora da água. Gostava de umidade, de se manter fresco. Se permanecesse ao sol demasiado tempo, ficaria esturricado.

Sapo tinha os enormes olhos redondos fixos em Lagarto.

 - Em que pensas, irmão? - perguntou-lhe. - Pareces muito satisfeito contigo mesmo.

- Estava a pensar que, quando o rei, nosso pai, morrer, eu assumirei o seu lugar - respondeu Lagarto.

- Quem o decide é o nosso pai - retorquiu Sapo, fazendo tremular a superfície da água da poça com o sopro da sua voz roufenha.

- Certamente não te passa pela cabeça ser o escolhido para ocupar o trono, pois não? - perguntou Lagarto, levantando uma das patas traseiras da pedra escaldante.

- É a ele que cabe a escolha - lembrou-lhe Sapo. - Mas está a ficar velho e já não deve tardar a fazer essa comunicação.

- Eu sou belo, rápido e forte - declarou Lagarto, agitando a língua. A minha voz é calma mas firme. Tu, no entanto, não possuis nenhuma destas qualidades.

- Tanto tu como eu somos filhos do mesmo pai - lembrou Sapo -, e, escolha ele quem escolher para o substituir, eu respeitarei a sua decisão.

- Mas tu és feio, pegajoso e andas aos pulos! - protestou Lagarto. A tua voz de cana rachada é feia e irritante. Nunca poderias ser rei.

Nesse momento chegou um mensageiro.

- Príncipe Lagarto - cumprimentou, fazendo uma vênia e pestanejando para o lagarto que se encontrava sob o sol brilhante. - Príncipe Sapo acrescentou, com nova mesura, franzindo os olhos para a zona sombreada. Vosso pai convoca-vos para vos deslocardes ao palácio real.

- Para me proclamar seu sucessor, sem dúvida - observou Lagarto, sorrindo.

- A sua mensagem diz que o primeiro a chegar ao palácio será o rei sucessor - acrescentou o mensageiro, retirando-se em seguida.

- Ora aí está! - exclamou Lagarto saltando da pedra ensolarada com a rapidez fantástica que era comum à sua espécie. - Bem te disse, Sapo, que é a mim que o pai quer para lhe suceder. Eu serei o próximo rei desta terra!

Sapo mergulhou dentro de água, a fim de molhar a pele, vindo ao de cima logo a seguir.

- O que te leva a fazer essa suposição, irmão? - perguntou.

- Porque sou capaz de correr muito mais depressa do que tu, com essas pernas bamboleantes e esse corpanzil gorducho - troçou Lagarto.

Dito isto, correu a enfiar-se mato adentro, de modo a preparar algumas coisas para levar consigo na viagem para o palácio real.

Sapo mirou-se na superfície do lago. Seu irmão, Lagarto, tinha razão. Ele, que era um sapo, levaria muito mais tempo a chegar ao palácio real. Lagarto estava tão determinado em ser o primeiro que nada o desviaria desse objetivo.

 Nada, exceto um pouco de chuva, refletiu Sapo.

 Sapo, como era um animal que vivia tanto na terra como na água, sabia o dobro sobre o mundo, ao contrário de Lagarto, seu irmão. O que também significava que Sapo conhecia duas vezes mais tudo o que se relacionava com magia.

Sapo, em vez de se lançar na corrida para o palácio real - a qual, à partida, sabia que perderia -, foi à procura de uma árvore chamada yatkot.

Assim que encontrou a árvore, partiu-lhe um ramo e enterrou-o num pó mágico que depois regou com água. Enquanto isso, o príncipe Sapo foi murmurando umas palavras secretas e o feitiço começou imediatamente a fazer efeito.

Primeiro caiu um pingo de água numa folha em forma de coração, que tinha ao lado... depois outro... e outro... e mais outro. Não tardou que o tamborilar da chuva a cair enchesse o ar e começasse a cheirar a terra molhada. A seguir, o céu abriu-se e começou a chover torrencialmente.

- O tempo ideal para sapos - observou Sapo alegremente, iniciando a sua jornada, aos saltos, para o palácio real.

Entretanto, Lagarto sentia-se todo orgulhoso de si mesmo. Já ia bem adiantado no seu caminho para o palácio.

- Só não percebo por que razão meu pai não anunciou, simplesmente, o meu nome como seu sucessor - disse de si para si. - Para quê propor esta corrida para decidir a sua escolha? Todos sabem que o verde e repugnante do meu irmão Sapo jamais conseguirá competir comigo... além disso, morrerá esturricado com este calor infernal.

Nesse instante, uma enorme nuvem escura tapou o Sol, e a chuva começou a cair abundantemente. Lagarto correu a abrigar-se sob uma pedra alta.

 – “Esperarei aqui até a chuva parar”, pensou. “Nesta altura do ano não durará muito e como estou muito mais adiantado do que Sapo, ele nunca será capaz de me alcançar.”

Lagarto, porém, enganava-se, pois Sapo alcançou-o e até o ultrapassou. Claro que Lagarto não percebeu do fato, porque Sapo tomara outro caminho.

 A certa altura, a chuva parou e o Sol voltou a brilhar, quente, outra vez, pois o feitiço de um ramo de yatkot enterrado no chão dura pouco.

Lagarto apressou-se a sair debaixo da sua pedra e lançou-se, de novo, ao caminho.

- Em breve chegarei ao palácio real - disse, reparando na sua imagem refletida numa poça de água. - Que rei esplêndido darei com as minhas magníficas escamas de lindas cores.

 Mais à frente, o príncipe Sapo chegara já ao portão que dava acesso ao palácio real. À esquerda, sob o sol escaldante, via-se uma fila de lagartos de cores garridas. Eram os arautos de seu irmão, prontos para saudar a chegada de Lagarto com um toque de trombetas. À direita, na sombra fresca, estava uma fila de sapos, que eram os arautos de Sapo. Não precisavam de trombetas porque eram senhores de vozes fortes e coaxantes.

 Ao verem o seu senhor, ergueram a cabeça e anunciaram sonoramente a chegada do seu príncipe e o seu triunfo como vencedor da corrida.

O velho rei aproximou-se rapidamente do portão para saudar o filho.

 - Muito bem, Sapo - elogiou. - Vejo que deves ter usado a inteligência para ganhar esta corrida, e um bom rei está sempre a precisar de recorrer a ela. Quando eu morrer, ocuparás o meu lugar com brio.

 As palavras do rei foram abafadas pelas trombetas dos arautos lagartos a anunciar a chegada do seu senhor. Lagarto entrou no palácio com ar pomposo e de cabeça erguida.

 - Viestes saudar-me, senhor meu pai? - perguntou Lagarto, com ar vagamente convencido. - Estou certo de que ireis dar uma festa especial para celebrar a minha vitória. Além disso, acho que nem valerá a pena esperarmos pelo feioso daquele meu irmão. Nesta altura ainda só deve vir...

 Lagarto não pôde continuar a falar. Olhou, pestanejou e olhou de novo. Não, os seus olhos não o enganavam. Ali, na sombra refrescante do palácio real, estava o pegajoso e feio do seu irmão saltitante. Tal só poderia ter um significado: o de que o pegajoso e feio do seu irmão saltitante o vencera na corrida, o que queria dizer que... que o príncipe Sapo um dia seria o rei Sapo.

- Ora viva - cumprimentou-o Sapo. - Por onde tens andado?

E por essa razão que, sempre que ouvires sapos a coaxar, deves preparar-te para a chuva. Significará que Sapo saiu para fora dos portões do palácio real e anda a fazer a sua magia com os ramos de yatkot... Porque sabes bem como ele aprecia o tempo úmido!

Fonte:

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

Contos e Lendas do Mundo (África: A Batalha contra a Morte)

No Sul da África, a chuva pode significar a vida ou a morte. Sem ela, as plantações secam e morrem, deixando as pessoas com pouca ou nenhuma comida. Esta história, que se baseia num mito do povo Kói, fala da luta que um homem travou para salvar a sua tribo de morrer à fome.

 Em tempos idos, quando a terra foi dominada por uma fome terrível, viveu um homem cujo nome já foi, há muito, esquecido. Tornou-se conhecido por Tsui’goab, mas não era assim que se chamava quando a história começou.

 Tsui’goab andava preocupado com o futuro da sua aldeia.

 - Quando é que a chuva virá? - interrogava-se, preocupado, protegendo os olhos do sol enquanto procurava, desesperado, uma nuvem no céu límpido. - A maior parte do nosso gado já morreu, as nossas plantações não vingam e, a cada dia que passa, mais pessoas morrem de sede. Quando é que este pesadelo chegará ao fim?

 De todos os poços das redondezas, somente um ainda não secara, mas não se sabia até quando esse ficaria com água. A cada dia que passava, o balde tinha de descer mais fundo até encontrar água.

 Mas como deveriam os aldeões utilizar aquela porção preciosa? Se fossem eles mesmos a bebê-la, o pouco gado que restava morreria. Se a dessem a este, não poderiam regar as plantações. Sem gado nem colheitas não haveria comida, e eles próprios, sem água, morreriam numa questão de dias.

 Tsui’goab, ao olhar para o céu, perguntava a si mesmo como era possível algo tão belo ser tão mortífero...

 O Sol era um amigo que trazia calor e luz, fornecendo às plantas energia para crescer. No entanto, também podia transformar-se num inimigo, espalhando a morte sobre a terra. Sem nenhuma chuva, podia queimar o solo, transformando uma zona de terra arável num torrão seco.

 Até que, um dia, apareceu um desconhecido na aldeia. Recebeu guarida na casa dos mais velhos. Com ou sem seca, todo o forasteiro ainda era bem recebido. Apesar de ter a cabeça oculta por um capuz e o corpo disfarçado por uma capa, Tsui’goab - que, recorde-se, nesse tempo ainda não era tratado por esse nome - não teve dificuldade em reparar que era uma criatura saudável. Tinha os braços e as pernas musculosos, não se lhe viam ossos sob a pele, e esta, ao contrário do que acontecia com Tsui’goab e os outros aldeões, não tinha um aspecto encarquilhado e ressequido.

 - Vieste de muito longe? - perguntou-lhe Tsui’goab.

- De perto e de longe - respondeu o viajante.

- A seca está muito espalhada? Viste muita morte ao longo do caminho?  - quis saber Tsui’goab.

 - Deparei com a morte por todo o lado em que passei - retorquiu o viajante.

 - Mas pelo pouco que vejo em ti, pareces bastante saudável - observou Tsui’goab. - Qual é o teu segredo?

 - Segredo? - admirou-se o viajante. - Que queres dizer?

 - Creio que sabes do que falo - disse Tsui’goab, olhando-o atentamente.

 - Já alguma vez estiveste nesta aldeia?

 - Sim e não - respondeu o viajante num sussurro que mal se ouvia.

 - Tira o capuz - ordenou Tsui’goab. - Não vale a pena ocultares o rosto. Não admira que digas que és de perto e de longe, pois a morte está em todo o lado. Assim como não surpreende que a tenhas visto por onde quer que tenhas passado, pois tu és a Morte.

 O viajante tirou então a capa e o capuz.

 - Sim, sou Gaunab - admitiu. - Há quem me chame Morte.

 - Fico satisfeito por estares aqui em forma humana - disse Tsui’goab, vendo, finalmente, que talvez houvesse alguma possibilidade de tentar salvar o seu povo.

 - Satisfeito? - surpreendeu-se Gaunab. - Parece-me que a falta de água e alimento já começou a afetar a tua mente.

- Enganas-te - declarou Tsui’goab. - O meu povo é orgulhoso. Não temos medo de enfrentar a Morte cara a cara. No entanto, é a primeira vez que nos mostras um rosto humano.

- Achas o meu rosto belo? - quis saber Gaunab.

- O teu rosto tem a aparência de ventres vazios e inchados, de lábios ressequidos e de grande aglomeração de moscas - respondeu Tsui’goab. - É um rosto de sol ardente e poças de água secas. Como poderá semelhante rosto ser belo?

- Não tens medo de mim, pois não? - perguntou Gaunab.

- Não - respondeu Tsui’goab. - Se não tivesses vindo até aqui em forma humana, teria ido à tua procura.

- Desejas morrer? - admirou-se Gaunab. - Não acredito. Preocupas-te demasiado com aqueles que te cercam para desejares tal.

- O que eu quero é desafiar-te para um duelo - disse Tsui’goab. - Um duelo justo e leal que, se eu ganhar, fará com que prometas partir daqui para sempre e deixar o meu povo em paz.

- Pretendes banir-me? Queres banir a Morte?

- Quero - respondeu Tsui’goab.

- E se perderes? - perguntou Gaunab, depois de refletir um pouco.

 - Nesse caso, levarás contigo a minha vida e a daqueles que nos rodeiam - retorquiu Tsui’goab.

 - Não é grande prêmio, já que em breve ficarei com as vidas de todos vós - observou Gaunab.

 - Queres dizer que não aceitas o desafio que te lancei? - perguntou Tsui’goab.

 - Confias que lutarei com lealdade? - perguntou Gaunab.

 - Confio - assegurou Tsui’goab.

 - Porquê? - quis saber Gaunab.

 - Porque tu és a Morte, e o único adversário que tens é a Vida. És o que és - observou Tsui’goab. - Não existe aí nenhuma deslealdade. Não podes ser diferente.

 - Então, aceito o teu desafio! - acedeu Gaunab.

 Antes que Tsui’goab tivesse possibilidade de se preparar, Gaunab atirou-se a ele e os dois rolaram por terra, sob o sol abrasador.

Não tardou que a notícia se espalhasse pela aldeia.

 - Tsui’goab está a lutar pessoalmente com a Morte! - gritaram os aldeões, embora, convém não esquecer, não o tratassem por esse nome na altura.

 Os doentes e os moribundos foram tirados das suas cabanas pelos mais saudáveis, embora ninguém estivesse muito bem devido à seca terrível. Não houve aldeão, com força para tal, que não viesse lançar gritos e vivas de encorajamento a Tsui’goab, enquanto este media forças com a Morte. Sabiam que se batia pelas vidas deles, além da sua.

 Gaunab e Tsui’goab parecia igualarem-se em força. Gaunab estava mais bem preparado fisicamente, mas Tsui’goab era mais rápido nos seus golpes e parecia conhecer mais truques. A luta ora parecia pender para um lado, ora para o outro...

 Tsui’goab, no entanto, tinha razões mais fortes para lutar. Enquanto se debatia com Gaunab, recordou os seres amados que a morte já lhe levara no decorrer da vida e pensou naqueles que morreriam se perdesse, o que lhe deu forças para continuar, caso contrário seria derrotado.

 Ninguém se recorda do tempo que a luta durou. Uns dizem que levou muitas horas, outros, que foram muitos dias. Houve, ainda, quem afirmasse que se arrastou por semanas. No entanto, uma coisa é certa, ou seja, o desfecho final. Depois de uma luta acesa e violenta, Gaunab acabou por cair sobre a terra poeirenta e não se levantou.

 - Estou a morrer - disse, com uma expressão de espanto estampada no rosto. - Tu derrotaste a Morte.

Tsui’goab, exausto e coberto de pó e sangue, cambaleou até junto do seu adversário.

 - Isso só foi possível porque foste honesto e lutaste com lealdade disse. - Eu...

 Porém, Gaunab ainda não se considerava derrotado. Num golpe derradeiro, atirou um pontapé contra o joelho de Tsui’goab, partindo-lhe a rótula com um som terrível. Tsui’goab gritou com a dor e caiu por terra. Depois, desmaiou.

Quando Tsui’goab voltou a si, ouviu vozes mas deixou-se ficar mais um pouco de olhos fechados. Sentia-se muito esquisito.

- Tsui’goab pode ter derrotado Gaunab - disse uma voz -, mas o certo é que a morte tem muitas formas e ainda anda por aí a percorrer a Terra.

- Mas desta vez Tsui’goab salvou o seu povo - disse uma outra. Tsui’goab sentiu curiosidade em saber quem seria aquele «Tsui’goab» de quem falavam, pois ainda não sabia que passara a ser conhecido por outro nome.

- Mas nunca nenhum ser humano lutou com a Morte daquela maneira disse a primeira voz. - Mostrou a sua bravura, e as prendas que lhe daremos irão permitir-lhe salvar o seu povo.

Tsui’goab abriu os olhos. Estava sozinho, mas percebeu o que ouvira, pois não se encontrava deitado numa cama ou em chão firme, mas sim no céu. Ao longe, bem abaixo dele, via a sua aldeia. Estendeu os braços com energia renovada e, ao aproximar as mãos do corpo, dos dedos saiu-lhe água.

Viu, maravilhado e cheio de alegria, a cor do solo, lá em baixo, ficar cada vez mais escura, à medida que ia ensopando a terra com a chuva - chuva que ele próprio criara. Viu os aldeões - os seus aldeões - correrem para fora de suas casas e erguerem o rosto para o céu. O seu povo estava salvo!

Tsui’goab transformara-se num deus da chuva, passando a morar no céu. Como os deuses novos precisam de nomes novos, ele ficou a ser conhecido por Tsui’goab, o que significa «joelho ferido».

Fonte:

domingo, 23 de dezembro de 2018

Contos e Lendas do Mundo (Nigéria: O Desafio e o Mensageiro)


Segundo os mitos de alguns povos nigerianos, Olodumare é o deus supremo. O seu nome significa «majestade poderosa e eterna». Mas, segundo reza um mito dos Iorubas, houve tempos em que Olokum, o deus da água, quis esse título para si.

- Estou farto de fazer a vontade a Olodumare - queixou-se

Olokum um dia, enquanto passeava ao longo das margens do rio que tinha o seu nome, na companhia do seu servo humano. 

- Não serei eu um dos deuses mais amados e venerados? Não é o meu rio que enche os oceanos do mundo e mata a sede a todas as plantas, animais e humanos?

- Oh, sem dúvida, poderoso Olokum - respondeu o servo.

O deus e o seu servo detiveram-se e olharam para o outro lado do rio - também conhecido por Etíope - onde ficava a terra das almas. Era ali que as almas dos mortos iam repousar e as dos bebês por nascer iniciavam a sua jornada até ao mundo.

- Não serei eu o dador da vida? - perguntou Olokum.

Nesse momento, a alma de uma criança prestes a nascer numa aldeia próxima atravessou o rio e parou em frente do deus da água. Este abençoou a alma com palavras secretas e sagradas e fez-la seguir viagem cheia de esperança pela nova vida que estava prestes a iniciar.

 - Vós sois o deus mais amado e respeitado de todos - declarou o servo, fazendo-lhe uma vênia. - Os vossos templos são os mais coloridos. Enchem-nos os tecidos mais ricos e as estátuas mais belas. Muitas casas têm santuários dedicados a vós e todos os dias vos rezam.

- Basta! - exclamou Olokum. - Tudo o que dizes é verdade, mas Olodumare é o mais venerado. Continua a ser o deus supremo... dono e senhor de todos nós!

Olokum regressou ao seu palácio sob as águas, pensando numa maneira de retirar a supremacia a Olodumare. Olokum era um deus bom e compreensivo. Normalmente mostrava-se sábio e generoso e recorria aos seus poderes sem prejudicar os humanos, mas a única coisa que alterava o seu belo rosto com uma expressão de raiva era a posição respeitada que Olodumare ocupava.

O palácio submerso em que Olokum vivia era verdadeiramente espetacular: enchiam-no objetos de regalar a vista e que proporcionavam muito prazer. Era um lugar mágico e tinha no seu interior um cofre de tesouros cheio de oferendas para dar à humanidade. O cofre já não estava tão cheio como em tempos, pois Olokum já dera muitos presentes às pessoas.

- O que foi que Olodumare alguma vez fez pela humanidade além de controlar a vida das pessoas? - perguntou Olokum com um suspiro. Vidas que eu ajudo a tornar suportáveis e até bonitas. Não sou eu quem torna as mulheres belas? Não sou eu quem dá aos humanos os filhos por que anseiam e a boa sorte que merecem?

Nesse instante, o som de belos cânticos encheu os corredores e uma fila de bailarinas apareceu diante do deus.

- O que é que Olodumare pode oferecer e eu não?

- Que eu me lembre, pouca coisa - retorquiu o servo.

- Pouca coisa? - admirou-se Olokum.

- Quero dizer, nada - apressou-se o servo a acrescentar. - Não me lembro de nada.

- Nesse caso, desafiarei Olodumare a provar a sua supremacia perante mim. Veremos quem tem mais direito a ser o deus dos deuses! - exclamou Olokum que, tomada a decisão, se recostou, para desfrutar do resto da dança.

Assim, Olokum mandou o seu servo entregar uma mensagem ao deus supremo Olodumare, ordem à qual ele obedeceu, temeroso. Ao chegar diante do deus, o servo de Olokum tremeu.

- O que te fez vir até aqui? - perguntou Olodumare. - Porque mostras tanto medo de mim?

- Sabeis porquê, poderoso Senhor dos Céus - respondeu o servo.

- Sei? - admirou-se Olodumare, inclinando-se no seu enorme trono.

 - Vós tudo sabeis e tudo escutais - adiantou o servo.

- Mesmo assim, diz-me ao que vieste - disse o deus supremo.

- Olokum, meu senhor, desafia-vos a disputar o lugar de majestade poderosa e eterna - respondeu o servo, sentindo a boca secar-se-lhe de pavor.

- Achas que ele será bem sucedido no seu repto? - quis saber Olodumare, sorrindo.

- Não me compete dizer - respondeu o servo, de olhos fixos no chão.

- Aí está uma resposta sábia - observou o deus. - Admiro a tua lealdade a Olokum, mas será que não vês que o teu senhor está condenado ao fracasso?

- Deve achar que não será assim - retorquiu o servo.

- Quanta falta de modéstia da parte dele - riu-se Olodumare. Normalmente, Olokum é um deus ponderado. Deve realmente desejar o meu lugar... Diz-lhe que aceito o seu desafio.

- Aceitais, Criador? - gaguejou o servo de Olokum, espantado. Olokum pode vir aqui desafiar-vos?

Olodumare pôs-se, lentamente, de pé.

- Será que foi isso o que eu disse? - Sorriu. - Apenas respondi que aceitava o seu desafio, nada mais. Como é evidente, ando demasiado ocupado para aceitar o desafio de Olokum pessoalmente. Tenho assuntos mais importantes com que ocupar o tempo do que meter deuses invejosos no seu devido lugar... Diz ao teu senhor que mandarei um emissário responder ao seu desafio. - «Não lhe vai agradar nada», pensou o servo. - Terá de se contentar com isso - observou o deus supremo, lendo os pensamentos do servo. - Olokum deverá tratar o emissário com o mesmo respeito que eu próprio receberia. Agora vai e diz ao teu senhor que se prepare para receber a chegada do meu emissário.

- Um emissário! - indignou-se Olokum ao saber da resposta. - Então eu desafio Olodumare pelo direito a ocupar o seu lugar, e ele, em vez de vir pessoalmente, manda um emissário?

- Um emissário importante - esclareceu o servo. - Tão importante que vos pede que o trateis com o mesmo respeito como se fosse ele.

- Muito bem - declarou Olokum. - Olodumare envelheceu. Como sabe que o venceria em qualquer desafio, não tem coragem de me enfrentar. O servo achou mais cauteloso não fazer qualquer observação.

- Só me resta aguardar - disse Olokum. Bateu as palmas. - Quero música e dança! - ordenou.

De repente, gerou-se grande movimentação no palácio subaquático e foram informar Olokum de que o emissário chegara.

- Já cá está? - admirou-se Olokum perante o seu servo. - Primeiro vou mudar de roupa e depois recebê-lo-ei.

O servo pediu então ao emissário que se sentasse e esperasse por Olokum.

O seu senhor fez uma entrada triunfal, com as suas vestes a rodopiarem e a rasgarem o ar em seu torno como se fossem ondas do mar que ficava por cima. Quem poderia ficar indiferente a vestimentas tão suntuosas?

Ao ver o emissário que, delicadamente, se levantara quando da sua entrada, Olokum ficou de boca aberta. Então não era que ele envergava as mesmas vestes que ele próprio! E Olokum, que pusera vestes suntuosas para mostrar como era importante, reparava que, afinal, aquele humilde emissário trajava da mesma maneira!

- Perdoai-me, pois devo ir tirar estes andrajos miseráveis - disse Olokum. Saiu da sala e correu ao seu quarto em busca de roupa ainda mais rica.

Trajando vestes de tecidos requintados e coloridos, Olokum voltou para junto do emissário. Ao caminhar, garboso, pelo palácio, não houve servo, dançarino ou cantor que não ficasse pasmado diante da beleza do seu vestuário. Nunca tinham visto o seu senhor tão magnífico... Mas, ainda outra vez, a roupa do emissário era igual à dele!

Olokum, a espumar de raiva mas sem querer dar o braço a torcer, dirigiu-se ao emissário de Olodumare pela segunda vez.

- Perdoai-me - disse. - Pareceu-me detectar uma nódoa nesta minha modesta veste. Irei mudar-me mais uma vez, para depois vir para junto de vós.

Mal controlando a sua cólera, regressou apressadamente aos seus aposentos, onde envergou os trajos mais belos que possuía, os mesmos que tencionara vestir quando derrotasse Olodumare e assumisse o título de deus supremo.

Emissário algum poderia, sequer, sonhar com a existência de trajos tão belos. O de Olodumare ficaria, sem dúvida, assombrado...

Olokum, porém, enganava-se. Quando voltou à sala, as roupas do emissário igualavam a suntuosidade das de Olokum. Este sentiu-se desanimado e derrotado. Que esperança poderia ter em derrotar o próprio Olodumare quando o seu emissário era capaz de se antecipar a qualquer jogada sua?

De repente, Olokum deu-se conta de quão tolo fora. Porque não contentar-se em ser o mais amado e respeitado dos deuses? Ele trazia crianças e beleza ao mundo. Não precisava de ser o deus mais venerado, nem o mais poderoso.

Pousou a sua mão sobre o ombro do emissário.

- Ide e dizei a Olodumare que aprendi a lição - declarou calmamente. Contai-lhe que me haveis derrotado ainda antes de o desafio ser iniciado.

O emissário de Olodumare, sem proferir uma palavra sequer, abandonou o palácio debaixo do mar e regressou aos céus.

Olokum nunca o soube, mas foi enganado pela própria Natureza. O emissário era um camaleão - um animal capaz de mudar a cor e a aparência da sua pele de acordo com o que o rodeia. Matizara-se de acordo com as vestes de Olokum, igualando cada um dos trajos com que este aparecia.

Fonte:

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Poetas Africanos III

Fotos dos poetas deste número
Não foi encontrada foto de Orlando Mendes

AGOSTINHO NETO
Angola

  Com os olhos secos

Com os olhos secos
- estrelas de brilho inevitável
através do corpo através do espírito
sobre os corpos inanimados dos mortos
sobre a solidão das vontades inertes
nós voltamos

Nós estamos regressando África
e todo o mundo estará presente
no super-batuque festivo
sob as sombras do Maiombe
no carnaval grandioso
pelo Bailundo pela Lunda

Com os olhos secos
contra este medo da nossa África
que herdamos dos massacres e mentiras

Nós voltamos África
estrelas de brilho irresistível
com a palavra escrita nos olhos secos
- LIBERDADE.
____________________

ARMANDO ARTUR
Moçambique

    Pelo dever

    de resistir e caminhar
    pelos destroços da nossa utopia,
    eis-nos aqui de novo, acocorados,
    aqui onde o tempo para
    e as coisas mudam.

    E para que o nosso sonho renasça

    com a levitação do vento e do grão,
    eis-nos aqui de novo,
    passivos como os espelhos,
    no tear da nossa existência.

    Este sempre será

    O nosso amanhecer.
    E a nossa perseverança
    é como a da erva daninha
    que lentamente desponta na pedra nua."
____________________

DAVID MESTRE
Angola
  
Espera

 Existo acento de palavra, carapinha
 recordação áspera de monandengue,
 mapa de conversas na visitação da lua,
 grávida luena sentada no verso da fome.

 aqui esqueço África, permaneço
 rente ao tiroteio dialeto das mulheres
 negras, pasmadas na superfície do medo
 que bate oblíquo no quimbo quebrado.

 num gabinete da Europa, dois geógrafos
 vão assinalar a estranha posição
 dum poeta cruzado na esperança morosa
 das palavras africanas aguardarem acento.
____________________

TOMAZ VIEIRA DA CRUZ
Angola

Fruta

Quitanda de fruta verde,
dá-me um gomo de laranja
para matar a sede.

Ou, então, será melhor
dar-me um veneno qualquer
porque eu ando perturbado
e o meu sonho anda queimado
por uns olhos de mulher!

- Minha senhora, laranja,
limão, fresquinho, caju,
ananás ou abacate!...

E a quintandeira passou,
saudável, viva, graciosa,
com uma flor desfolhada
no seu sorriso escarlate.

E no ar um som de musica ficou
e um perfume de fruta
que não matou minha sede

Ó agridoce quitanda
da fruta verde!...
____________________

ORLANDO MENDES 
Moçambique

História
        
Diz a História que descendo
De celtas, mouros e visigodos.
Descendo e deles herdei todos
Os caracteres fundamentais
E talvez herdasse alguns mais
    Da mestiçagem de outras raças
    Que fizeram guerras, combatendo
    Conquistaram e perderam praças.
    Diz a História e não tenho
    Do contrario uma prova séria
    Em testamento que a revele.
    E admito pois que o tamanho,
    O rosto, o sangue, a cor da pele,
    A fria razão e o instinto,
    Adquiri em séculos de Ibéria
    Para ser o que penso e sinto
    O que mostro e o que oculto,
    Excitável carne e uma voz
    Memória de um país adulto
    Que se não cala por não trair-me
    No idioma de meus avós,
    Para ser a mão direita firme
    Que enche de palavras o papel,
    Perpétuo aprendiz que sou eu
    De velho ofício sem licença.
    Admito. E as datas festejo
    E retomo lutas que não venço
    E amo nas horas do desejo
    Com o mesmo requinte que deu
    Origem de mim à Criação
    E bebo o vinho e como o pão
    Da minha sede e da minha fome.
    Admito. E por isso, deponho.
    Contudo, nada herdei que dome
    A grandeza nova que transmito,
    Não apenas sede, fome e sonho
    De vinho, de pão ou de infinito,
    Desejo, posse e fecundidade
    Coragem forjada no segredo
    Medo que se chore ou se brade
    Guerra de amigo ou de inimigo,
    Não propriamente o enredo
    Mas esta seiva elementar
    De África nos versos que digo
    E os homens a saibam cantar.
____________________

NELSON SAUTE 
Moçambique

    A ignorância do poeta

    O poeta contempla o mar
    no agoniado tédio da tarde.
    Caminha ao som de seus passos
    ombros recurvos mãos nos bolsos
    perseguindo a sua sombra.
    O cão que lhe roça a solidão
    não tolhe o verso escrito da memória.
    Os namorados não o fitam.
    De esguelha admira a inocência
    dos gestos amorosos.
    À sombra de jacarandás
    percorre o trajeto
    sobre as folhas silenciadas.

    O poeta ignora, mas a direção
    leva-o ao coração dos homens.