quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

Contos e Lendas do Mundo (África: A Batalha contra a Morte)

No Sul da África, a chuva pode significar a vida ou a morte. Sem ela, as plantações secam e morrem, deixando as pessoas com pouca ou nenhuma comida. Esta história, que se baseia num mito do povo Kói, fala da luta que um homem travou para salvar a sua tribo de morrer à fome.

 Em tempos idos, quando a terra foi dominada por uma fome terrível, viveu um homem cujo nome já foi, há muito, esquecido. Tornou-se conhecido por Tsui’goab, mas não era assim que se chamava quando a história começou.

 Tsui’goab andava preocupado com o futuro da sua aldeia.

 - Quando é que a chuva virá? - interrogava-se, preocupado, protegendo os olhos do sol enquanto procurava, desesperado, uma nuvem no céu límpido. - A maior parte do nosso gado já morreu, as nossas plantações não vingam e, a cada dia que passa, mais pessoas morrem de sede. Quando é que este pesadelo chegará ao fim?

 De todos os poços das redondezas, somente um ainda não secara, mas não se sabia até quando esse ficaria com água. A cada dia que passava, o balde tinha de descer mais fundo até encontrar água.

 Mas como deveriam os aldeões utilizar aquela porção preciosa? Se fossem eles mesmos a bebê-la, o pouco gado que restava morreria. Se a dessem a este, não poderiam regar as plantações. Sem gado nem colheitas não haveria comida, e eles próprios, sem água, morreriam numa questão de dias.

 Tsui’goab, ao olhar para o céu, perguntava a si mesmo como era possível algo tão belo ser tão mortífero...

 O Sol era um amigo que trazia calor e luz, fornecendo às plantas energia para crescer. No entanto, também podia transformar-se num inimigo, espalhando a morte sobre a terra. Sem nenhuma chuva, podia queimar o solo, transformando uma zona de terra arável num torrão seco.

 Até que, um dia, apareceu um desconhecido na aldeia. Recebeu guarida na casa dos mais velhos. Com ou sem seca, todo o forasteiro ainda era bem recebido. Apesar de ter a cabeça oculta por um capuz e o corpo disfarçado por uma capa, Tsui’goab - que, recorde-se, nesse tempo ainda não era tratado por esse nome - não teve dificuldade em reparar que era uma criatura saudável. Tinha os braços e as pernas musculosos, não se lhe viam ossos sob a pele, e esta, ao contrário do que acontecia com Tsui’goab e os outros aldeões, não tinha um aspecto encarquilhado e ressequido.

 - Vieste de muito longe? - perguntou-lhe Tsui’goab.

- De perto e de longe - respondeu o viajante.

- A seca está muito espalhada? Viste muita morte ao longo do caminho?  - quis saber Tsui’goab.

 - Deparei com a morte por todo o lado em que passei - retorquiu o viajante.

 - Mas pelo pouco que vejo em ti, pareces bastante saudável - observou Tsui’goab. - Qual é o teu segredo?

 - Segredo? - admirou-se o viajante. - Que queres dizer?

 - Creio que sabes do que falo - disse Tsui’goab, olhando-o atentamente.

 - Já alguma vez estiveste nesta aldeia?

 - Sim e não - respondeu o viajante num sussurro que mal se ouvia.

 - Tira o capuz - ordenou Tsui’goab. - Não vale a pena ocultares o rosto. Não admira que digas que és de perto e de longe, pois a morte está em todo o lado. Assim como não surpreende que a tenhas visto por onde quer que tenhas passado, pois tu és a Morte.

 O viajante tirou então a capa e o capuz.

 - Sim, sou Gaunab - admitiu. - Há quem me chame Morte.

 - Fico satisfeito por estares aqui em forma humana - disse Tsui’goab, vendo, finalmente, que talvez houvesse alguma possibilidade de tentar salvar o seu povo.

 - Satisfeito? - surpreendeu-se Gaunab. - Parece-me que a falta de água e alimento já começou a afetar a tua mente.

- Enganas-te - declarou Tsui’goab. - O meu povo é orgulhoso. Não temos medo de enfrentar a Morte cara a cara. No entanto, é a primeira vez que nos mostras um rosto humano.

- Achas o meu rosto belo? - quis saber Gaunab.

- O teu rosto tem a aparência de ventres vazios e inchados, de lábios ressequidos e de grande aglomeração de moscas - respondeu Tsui’goab. - É um rosto de sol ardente e poças de água secas. Como poderá semelhante rosto ser belo?

- Não tens medo de mim, pois não? - perguntou Gaunab.

- Não - respondeu Tsui’goab. - Se não tivesses vindo até aqui em forma humana, teria ido à tua procura.

- Desejas morrer? - admirou-se Gaunab. - Não acredito. Preocupas-te demasiado com aqueles que te cercam para desejares tal.

- O que eu quero é desafiar-te para um duelo - disse Tsui’goab. - Um duelo justo e leal que, se eu ganhar, fará com que prometas partir daqui para sempre e deixar o meu povo em paz.

- Pretendes banir-me? Queres banir a Morte?

- Quero - respondeu Tsui’goab.

- E se perderes? - perguntou Gaunab, depois de refletir um pouco.

 - Nesse caso, levarás contigo a minha vida e a daqueles que nos rodeiam - retorquiu Tsui’goab.

 - Não é grande prêmio, já que em breve ficarei com as vidas de todos vós - observou Gaunab.

 - Queres dizer que não aceitas o desafio que te lancei? - perguntou Tsui’goab.

 - Confias que lutarei com lealdade? - perguntou Gaunab.

 - Confio - assegurou Tsui’goab.

 - Porquê? - quis saber Gaunab.

 - Porque tu és a Morte, e o único adversário que tens é a Vida. És o que és - observou Tsui’goab. - Não existe aí nenhuma deslealdade. Não podes ser diferente.

 - Então, aceito o teu desafio! - acedeu Gaunab.

 Antes que Tsui’goab tivesse possibilidade de se preparar, Gaunab atirou-se a ele e os dois rolaram por terra, sob o sol abrasador.

Não tardou que a notícia se espalhasse pela aldeia.

 - Tsui’goab está a lutar pessoalmente com a Morte! - gritaram os aldeões, embora, convém não esquecer, não o tratassem por esse nome na altura.

 Os doentes e os moribundos foram tirados das suas cabanas pelos mais saudáveis, embora ninguém estivesse muito bem devido à seca terrível. Não houve aldeão, com força para tal, que não viesse lançar gritos e vivas de encorajamento a Tsui’goab, enquanto este media forças com a Morte. Sabiam que se batia pelas vidas deles, além da sua.

 Gaunab e Tsui’goab parecia igualarem-se em força. Gaunab estava mais bem preparado fisicamente, mas Tsui’goab era mais rápido nos seus golpes e parecia conhecer mais truques. A luta ora parecia pender para um lado, ora para o outro...

 Tsui’goab, no entanto, tinha razões mais fortes para lutar. Enquanto se debatia com Gaunab, recordou os seres amados que a morte já lhe levara no decorrer da vida e pensou naqueles que morreriam se perdesse, o que lhe deu forças para continuar, caso contrário seria derrotado.

 Ninguém se recorda do tempo que a luta durou. Uns dizem que levou muitas horas, outros, que foram muitos dias. Houve, ainda, quem afirmasse que se arrastou por semanas. No entanto, uma coisa é certa, ou seja, o desfecho final. Depois de uma luta acesa e violenta, Gaunab acabou por cair sobre a terra poeirenta e não se levantou.

 - Estou a morrer - disse, com uma expressão de espanto estampada no rosto. - Tu derrotaste a Morte.

Tsui’goab, exausto e coberto de pó e sangue, cambaleou até junto do seu adversário.

 - Isso só foi possível porque foste honesto e lutaste com lealdade disse. - Eu...

 Porém, Gaunab ainda não se considerava derrotado. Num golpe derradeiro, atirou um pontapé contra o joelho de Tsui’goab, partindo-lhe a rótula com um som terrível. Tsui’goab gritou com a dor e caiu por terra. Depois, desmaiou.

Quando Tsui’goab voltou a si, ouviu vozes mas deixou-se ficar mais um pouco de olhos fechados. Sentia-se muito esquisito.

- Tsui’goab pode ter derrotado Gaunab - disse uma voz -, mas o certo é que a morte tem muitas formas e ainda anda por aí a percorrer a Terra.

- Mas desta vez Tsui’goab salvou o seu povo - disse uma outra. Tsui’goab sentiu curiosidade em saber quem seria aquele «Tsui’goab» de quem falavam, pois ainda não sabia que passara a ser conhecido por outro nome.

- Mas nunca nenhum ser humano lutou com a Morte daquela maneira disse a primeira voz. - Mostrou a sua bravura, e as prendas que lhe daremos irão permitir-lhe salvar o seu povo.

Tsui’goab abriu os olhos. Estava sozinho, mas percebeu o que ouvira, pois não se encontrava deitado numa cama ou em chão firme, mas sim no céu. Ao longe, bem abaixo dele, via a sua aldeia. Estendeu os braços com energia renovada e, ao aproximar as mãos do corpo, dos dedos saiu-lhe água.

Viu, maravilhado e cheio de alegria, a cor do solo, lá em baixo, ficar cada vez mais escura, à medida que ia ensopando a terra com a chuva - chuva que ele próprio criara. Viu os aldeões - os seus aldeões - correrem para fora de suas casas e erguerem o rosto para o céu. O seu povo estava salvo!

Tsui’goab transformara-se num deus da chuva, passando a morar no céu. Como os deuses novos precisam de nomes novos, ele ficou a ser conhecido por Tsui’goab, o que significa «joelho ferido».

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