sábado, 8 de agosto de 2015

Trovador Homenageado: Josué de Vargas Ferreira


A abelha até que se acabe
não para pra descansar!
Nem "fazer cera" ela sabe...
- logo pega a trabalhar!
À deriva, no caminho,
tanta saudade ajuntei,
que cismo, velho e sozinho:
- saudade... jamais deixei!
- A Madame, pelo exame,
foi mordida por "barbeiro"!
- Mas, Doutor... aquele infame
me disse que era banqueiro!
Após transpor as barreiras
com talento e dignidade,
restaram, por companheiras...
- a solidão e a saudade!
Bicho inteiro na goiaba
jamais me causa aperreio.
Mas dá nojo, fico braba,
se, comendo, vejo meio!
Como velho motorista
vou dar minha opinião:
- pior que animal na pista
é um burro na direção!
Dar aulas e gastar sola
é a vocação do Nogueira.
Corre de escola em escola...
- é professor de carreira!
Dar um sorriso é tão nobre
que o gesto nos engrandece,
quem dá não fica mais pobre
mas quem ganha se enriquece.
Diz o guarda ao namorado:
– Use também a outra mão!
Retruca o moço “avançado”:
- quem segura a direção?
Diz ser poço de virtude
o meu compadre Pacheco!
Tão magro, tão sem saúde...
só se for um poço seco!
Do jeito que anda o salário,
do jeito que as coisas vão,
é arroz pelo crediário
e consórcio de feijão!
É cômica a minha terra
e eu vivo rindo, aliás!
O doutor Armando Guerra
é nosso Juiz de Paz!
Ela tem sorte tamanha,
que bastou pedir divórcio
e logo seu carro ganha,
sem nem entrar em consórcio.
Entre e não seja apressada...
visita me dá prazer!
- Quando não for na chegada,
na despedida há de ser!
Era uma pensão pacata...
por vez, lembrava um cortiço!
A comida era barata...
- E bota "barata" nisso!
Grande poetisa! Porém,
do verso tão orgulhosa,
que não fala com ninguém!
-Dizem que detesta “prosa”!
- Meu bravo soldado, então
você pôs o outro a correr?
- Que corrida, Capitão...
mas não me deixei prender!
Minha fonte de ventura,
onde lavo o meu desgosto,
jorra em constante doçura
das covinhas do teu rosto!
Minha ventura retrata
pobre brinquedo distante:
- carrinho de velha lata,
puxado por um barbante!
Minha vida amiga e boa
deu-me a senda desejada:
– se canso de estar à toa,
depois não faço mais nada!
Não canso de gargalhar
das ironias da vida:
- como é fácil de se achar
a mulher que está perdida!
Não cedo livro emprestado!
Não o devolve, ninguém!
- Estes que eu tenho guardado,
pedi emprestado também!
Não te cases com mulher
entendida de finança.
Não te deixará sequer
passar a mão na poupança!
Não traz perene alegria
taça de cristal na mão!
Esse prazer não expia
as nódoas do coração!
- Na pinga que eu bebo, tento
a minha mágoa afogar!
- E consegues teu intento?
- Qual, ela sabe nadar!
Naquela manhã, no hospício,
houve incomum alarido.
- Junto ao lixo do edifício
estava um doido varrido!
No açougue faz alvoroço
este cartaz que contém:
- vendemos carne com osso...
e idem, sem idem, também!
O jovem de hoje, não nego,
tem muito tato e razão:
– de fato, sendo o amor cego,
só namora com a mão!
Ó Pai, dai-me mais saber
para entender meu patrão!
- Mais força nem vou querer,
porque nele eu taco a mão!
O pileque faz das suas!
Pra mim, porre nunca mais!
- Minha sogra virou duas...
castigo assim é demais!
O tempo bom já se foi!
Eu mesmo, sem ser patife,
pra não brigar, dava um boi!
- Hoje... brigo por um bife!
O tesouro do meu sonho,
que guardo no coração,
vem do sorriso que ponho
na face de cada irmão.
Pequena, três não comporta
a casa da Gabriela.
Marido entra pela porta,
alguém sai pela janela.
- Posso assentar-me ao teu lado,
meu anjo doce e gracioso?
- Detesto velho assanhado!
- Assanhado e... mentiroso!
- Quanto custou teu carrão?
- Só um beijinho, quase nada!
- Que deste no maridão?
- Não, que ele deu na empregada!
Quebra o cristal dessa taça,
que a bebida é falso conto!
Foge da alegre trapaça...
Por si só, quem bebe é tonto!
Quero buscar-te, Senhor,
mas meu barco é fraco até!
Por vez, ouço o teu clamor...
longe... à deriva, sem fé!
Que sentido pitoresco
deste termo incoerente!
O pão que achamos mais fresco
é justamente o mais quente!
Que vale fazer promessa,
rezando pra não chover,
se quando a chuva começa
queremos nos esconder?
Salve quem, entre o inimigo,
com talento e decisão,
insiste em lançar o trigo
e repartir o seu pão!
Se a gente cruzar minhoca
com macho de borboleta,
será que dá "borbonhoca"
ou dará "minhocoleta"?
Sempre foi franga avoada
e agora está mais travessa!
De tanto levar bicada,
só tem galo na cabeça!
Somou e multiplicou
mas a morte o subtraiu!
Depois que os pés ajuntou,
a família dividiu.
Sou, por fim, aposentada!
Trabalho?  Nem pensar nisso!
- Prefiro subir escada
a elevador de serviço!
Tu serás velho e paspalho
quando a coisa se inverter:
– o prazer te der trabalho
e o trabalho der prazer!
Vejam que vida mesquinha!
Conserto o mundo não tem!
A mulher que andou na linha
um dia, matou-a o trem!
Zebra, que belo animal,
de branco e preto pintado.
- Quem o pintou, por sinal,
entendia do riscado!

Aparício Fernandes (Trovas Curiosas)



Se pedissem ao trovador João Rangel Coelho um exemplo de trova curiosa, ele citaria esta, feita por um camarada cuja ignorância era tão grande quanto a sua vontade de ser trovador:
Na vida tudo se acaba,
na vida tudo tem fim:
– morre o cabo, morre a “caba”,
só quem não morre sou mim!…
Todavia, deixando de lado a galhofa, há trovas realmente interessantes, pelas particularidades curiosas que apresentam. Comecemos por uma trova-acróstico. As letras iniciais de cada verso lidas verticalmente, formam a palavra AMOR, que é o tema desenvolvido na quadrinha. É de autoria de Guaracy Lourenço Costa:
Amei alguém – que desdita!
Morri de         tanto sofrer.
Oh, Deus do amor, me permita
reviver, amar, morrer…
Homenageando nosso amigo J. G. de Araújo Jorge, fiz certa vez a seguinte quadrinha:
Amo esse eterno motivo!
– No meu céu interior,
com saudade, a sós, eu vivo
na minha espera de amor!…
Na trova acima, consegui incluir cinco títulos de livros do J. G., que são os seguintes: “Amo”, “Eterno Motivo”, “Meu Céu Interior”, “A Sós” e “Espera”.
Paulo Edson Macedo (ou Edson Macedo, como às vezes assina as suas produções) fez uma trova só de verbos, usando sempre a 1a. pessoa do singular:
Vivo, penso, sinto, falo;
temo, luto, venço, clamo;
vejo, creio, sonho, calo;
sofro, quero, choro, amo…
Curiosa também é esta trova, que um espírito ferino dedicou a Carlos Lacerda, então Governador da Guanabara, depois de uma violenta elevação de impostos:
 
Mais impostos ele aprova!
E por falar em Lacerda…
Ora, bolas! Esta trova
vai mesmo ficar sem rima!…
Nosso prezado amigo Félix Aires, que tem paixão pela originalidade, resolveu fazer uma mistura de trova e expressionismo gráfico, na qual os repetidos pontos de exclamação interpretam visualmente as velas acesas a que se refere o poeta:
No templo das ilusões
vejo uma flor no altar
e acendo as exclamações:
– minhas velas!!!!!!!! de sonhar.
Em nossa opinião, se o nosso caro Félix tivesse se lembrado de por as exclamações de cabeça para baixo, a imagem ficaria mais fiel…
O poeta santista Dilceu do Amaral, desejando adquirir nossa coletânea “Trovadores do Brasil”, enviou-nos certa vez a seguinte trova:
Caro Aparício Fernandes,
tu, que tens sido gentil,
peço, amigo, que me mandes
“Trovadores do Brasil”.
Usar nomes de pessoas numa trova quase sempre indica falta de recursos do autor, principalmente quando o nome próprio figura no fim do verso, para facilitar a rima. Fugindo à regra geral, Belmiro Braga, jogando com vários nomes próprios, escreveu uma trova muito bem feita e original:
Eu morro por Filomena,
Filomena por Joaquim,
o Joaquim por Madalena
e Madalena por mim.
Conheci também um trovador que mandou fazer um cartãozinho com esta trova-cantada, que “aplicava” sempre, nas ocasiões propícias:
Para que você aprove
nosso programa depois,
basta discar: quatro-nove,
zero-zero-cinco-dois.
Fonte: Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história & antologia. Rio de Janeiro/GB: Artenova, 1972

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Trovador Homenageado: Miguel Perrone Cione


A caridade deriva
e cresce do amor presente,
como a roseira nativa,
sem espinhos... certamente.
À deriva.. transportando
meus enlevos ao papel,
sou visionário sonhando
com rimas feitas de mel…
Ajoelhado no templo,
o cego fala a Jesus:
- Mesmo na treva eu contemplo
o clarão da Tua luz!
A lira dos meus amores,
de anseios e de alegrias,
também tange minhas dores,
nos serões das noites frias.
A saudade é uma goteira
que quando vem não se acalma.
Pinga quase a noite inteira
na solidão da minha alma.
Coração mau que se inflama
numa aventura qualquer,
deixa, às vezes, quem o ama,
para amar quem não lhe quer.
Criança, flor encantada,
luz clara de sol se abrindo,
que sorri por quase nada,
que chora quase sorrindo...
Da fé derivam caminhos,
onde Deus canta louvores,
podem ter muitos espinhos,
mas no final só têm flores.
Em que bola de cristal
eu vou ler nossos destinos,
neste mundo desigual,
neste mar de desatinos?…
Fonte amiga é o coração
de quem dá ao sofredor,
na ajuda de sua mão,
o amparo do seu amor.
Fonte clara - o nosso amor,
de esperanças refletidas,
quantos sonhos, quanto ardor
têm banhado as nossas vidas!
Já vi semblantes vestidos
de máscaras sorridentes
terem no olhar os gemidos
de corações descontentes
Maritaca tagarela...
Quer ave mais brasileira?
- Fez até a roupa dela
com as cores da bandeira.
Meus carnavais de criança...
máscaras... futilidades...
me deixaram na lembrança
mil confetes de saudade.
Minha lira anda ferida...
Como posso me inspirar,
vendo crianças na vida,
sem ter pão e sem ter lar?
Minha mãe, à luz dourada
do clarão da lamparina,
ilumina a santa amada,
em troca,a santa a ilumina…
Nas moendas milenares
que jamais podemos vê-las,
Deus fez a lua e os luares
com pó moído de estrelas.
Na sua imensa bondade,
a mãe traz do Criador,
um clarão da eternidade,
em cada instante de amor…
Nessa colheita de amores
tu e eu, pelos caminhos,
dividimos muitas flores,
mas, muito mais,os espinhos!
Nesta casinha singela,
sem luzes, sem esplendor,
basta o clarão de uma vela
para aquecer nosso amor…
No clarão de uma alvorada,
esperança... te esperei...
mas voltaste tão velada,
que quase não te encontrei…
No meu sonho o mundo gira,
tangendo a minha emoção...
O meu coração é a Lira,
a Trova... minha canção!…
No sofrer das minhas dores,
ou viver felicidade,
entre os espinhos e flores,
só me restou a saudade…
O amor sereno que passa
por nossa vida, florindo,
traz de Deus a essência e a graça,
no mesmo abraço se unindo.
O talento está na mente,
é inteligência e razão;
mas a razão nunca sente
as coisas do coração.
O verde mar se parece
com o destino da gente:
– em meio à paz se enfurece,
torna-se mau de repente.
Para uma trova ser pura,
ser mensageira do amor,
basta um sopro de ventura
no sonho do trovador.
Por levares com ternura,
teu apoio a quem tem dor,
terás na mão a ventura
de poder semear o amor.
Relembrando a tenra idade
na minha verde esperança,
sonhei com a felicidade,
como sonhava em criança.
Saudade, quando é de alguém
que nos deu ventura e amor,
dói como espinho, mas tem
perfumes como o da flor.
Se o bem tu podes fazer,
e não fazes coisa alguma,
tu não serás ao morrer
mais que uma bolha de espuma.
Talento, glória, riqueza,
tudo deixamos na Terra,
só levamos, com certeza,
a crença que em Deus se encerra.
Teus olhos verdes, sem sombras,
sem temores e embaraços,
são oásis, são alfombras
no caminho dos meus passos.
            Miguel Perrone Cione nasceu na cidade de Cravinhos/SP. Radicou-se em Ribeirão Preto/SP, na década de 1940. Foi analista clínico, biólogo, advogado.
            Membro da União Brasileira de Escritores (UBE), União Brasileira de Trovadores (UBT), Ordem dos Velhos Jornalistas do Estado de São Paulo, Centro Cultural de Filgueiras (Portugal), Academia Ribeirãopretana de Letras, Academia Goianense de Letras, Academia Internacional de Letras Três Fronteiras (Brasil - Argentina - Uruguai), International Academy of Letters of England (Londres), Casa do Poeta e do Escritor de Ribeirão Preto.
            Ecologista laureado pela Sociedade Geográfica Brasileira com a comenda relativa à preservação do meio ambiente, da flora, da fauna e do índio.
            Alguns livros publicados:
Elementos de Biologia (1952); Pequeno Dicionário Biológico (1953); Temas e Reflexões (1974); Galáxia Azul (Poesias - 1979); Ouropel (Trovas - 1979); Sombras Aladas (1993); Sol e Nuvens (1999); Espiral de Rimas (1999); Contos Esparsos (1999), etc.

Aparício Fernandes (Índios Trovadores)

  É sabido que a Trova já existia em Portugal, na época do descobrimento do Brasil. Vai daí, os portugueses trouxeram-na para nossa terra, onde encontrou um meio fertilíssimo para aprimoramento e expansão. Impõe-se, porém, uma pergunta fascinante: existiria a Trova no Brasil, antes de os portugueses aqui chegarem? Não estaria ela integrada à cultura artística dos nossos indígenas? A ser isto verdade, teríamos uma dupla origem da Trova no Brasil, justificando a inegável tendência do nosso povo pela quadrinha setissilábica. A este respeito, o Professor Faris Antônio S. Michaele, residente em Ponta Grossa, no Paraná, escreveu um interessantíssimo estudo intitulado “O Nosso Primeiro Trovador”, que foi publicado no n. 128 da revista santista Centro Português, em setembro de 1968. Eis um trecho do referido artigo, que submetemos à apreciação do leitor, sem maiores comentários:
“Os nosso primeiros trovadores foram, de fato, os índios, principalmente os tupis-guaranis.
É o que nos informam os cronistas, viajantes e missionários do Século XVI (Gabriel Soares de Souza, Fernão Cardim, Ambrósio F. Brandão, Magalhães Gandavo) e confirmam os estudiosos de séculos posteriores, até os dias atuais (Alexandre Rodrigues Ferreira, Couto de Magalhães, Barbosa Rodrigues, Batista Caetano, Batista Siqueira, Villa-Lobos, José Siqueira, Mário de Andrade, etc), não excluindo o alemão Von Martius, que tanto viajou e sofreu por este ilimitado continente.
Trovas amorosas, folclóricas e até de fundo animista são facilmente encontradas nas obras desses autores dos séculos XIX e XX. Mas o que nos faz pensar um bocado sobre a vivacidade mental do nosso irmão tupi-guarani é a mordacidade, que nada tem de primitiva,  das suas composições referentes às agruras da vida, aos contatos com o português (termo geralmente usado para caracterizar os brancos de todos os tipos), ou às contínuas perseguições, massacres e espoliações injustificáveis, num país tão vasto.
De Von Martius todos já conhecem as duas quadrinhas, adaptadas por Joaquim Norberto do seguinte modo:
Não quero mulher que tenha
as pernas bastante finas,
com medo que em mim se enrosquem
como feras viperinas.
Também não quero que tenha
o cabelo assaz comprido,
que em matos de tiririca
achar-me-ia perdido.
Da boca de dois tupi-guaçus, vindos de Aquidauana, Estado de Mato Grosso, ouvimos, há alguns anos, algumas trovas, que vamos reproduzir no original, com a respectiva adaptação ao português, por nós realizada.
São cantadas em nheengatu, ou tupi moderno:
1
Cariua, puxyuéra oikó,
Anhangá opinima  ahé;
Tatá opumun i pó,
Tiputy, i iurú popé.
Tradução:
Português é bicho mau,
foi pelo diabo pintado.
Sua mão vomita fogo,
tem boca em lugar errado.
2
Irara ou iané ira,
Iauraeté, capiuàra;
Ma, Caríua piá-puxy,
I mukáua-iucaçára.
Tradução:
Irara comeu o mel,
onça grande, a capivara;
porém é o branco cruel
que a espingarda nos dispara.
3
Caríua, ndê tinguaçú;
Caríua, macaca sáua.
Andirá ce py opitera:
– Ce manioca ndê reú.
Tradução:
Homem branco, nariz grande,
como o macaco, és peludo;
morcego, chupou meu pé,
comeste mandioca e tudo.
4
Macaca tuiué, paá,
Cuiambuca ahé Okuáu;
Amurupi, iané piá,
Mundé çui, nti oiauáu.
Tradução:
Dizem que macaco velho
nunca se deixa enganar;
ao contrário, o coração
nunca cessa de apanhar.
Como estão vendo os leitores, o indígena brasileiro, que produziu a maravilhosa cerâmica de Marajó; que como ninguém conhecia os astros e coisas do firmamento; e que ao branco ensinou mil e uma experiências úteis, até de fundo medicinal, era, igualmente, e é, ainda hoje, estupendo cultor da poesia e, com especialidade, da Trova.
Por isso, sem nenhuma reserva, merece, com os nossos agradecimentos, o título espetacular de o primeiro ou mais antigo trovador da terra de Santa Cruz.”
Fonte: Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história & antologia. Rio de Janeiro/GB: Artenova, 1972