sábado, 16 de março de 2013

Wagner Marques Lopes (MG) (Fábula: As duas fofoqueiras)

Duas inveteradas fofoqueiras se espetavam:

- Eu sou a maior fofoqueira do mundo!...

 - Você se engana. Você é minha referência. Assim sendo, procuro estar sempre na sua frente. Na sua falta, o que será de mim?!... Imagino o dia que eu partir e o mundo acabar à sua volta!... Com quem você há de fofocar?!... Acredito que você irá chamar o Tédio, e depois de arengar com ele sobre a falta de graça da existência, entrará no mundo do Aborrecimento e ali, desastradamente, você irá fofocar, com seus próprios ouvidos, sobre a aridez, a obtusidade e a estupidez da própria vida!...

- Chega!... Terei que passar por tudo isso?!...

- Sim... E tem mais: finalmente você conhecerá o Desgosto... O vazio, um vale psíquico difícil de ser atravessado!...

- Seu discurso está me causando enfado... Deixe-me ir.

- Enfado maior é o provocado pela fofoca – pensou a outra.

         O Dicionário Houaiss, com três acepções, assim faz referência ao tédio:

1    sensação de enfado produzida por algo lento, prolixo ou temporalmente prolongado demais.
2    sensação de aborrecimento ou cansaço, causada por algo árido, obtuso ou estúpido.
3    sensação de desgosto, ou vazio, sem causas objetivas claras.

           Moral

No seu destino cruel
de remanso traiçoeiro,
a fofoca tem papel
de engolir o fofoqueiro...

Fonte:
O Autor

João Martins de Athayde (As Proezas de João Grilo)

João Grilo foi um cristão
que nasceu antes do dia
criou-se sem formosura
mas tinha sabedoria
e morreu depois da hora
pelas artes que fazia.

E nasceu de sete meses
chorou no bucho da mãe
quando ela pegou um gato
ele gritou: não me arranhe
não jogue neste animal
que talvez você não ganhe.

Na noite que João nasceu
houve um eclipse na lua
e detonou um vulcão
que ainda continua
naquela noite correu
um lobisome na rua.

Porém João Grilo criou-se
pequeno, magro e sambudo
as pernas tortas e finas
e boca grande e beiçudo
no sítio onde morava
dava notícia de tudo.

João perdeu o seu pai
com sete anos de idade
morava perto de um rio
Ia pescar toda tarde
um dia fez uma cena
que admirou a cidade.

O rio estava de nado
vinha um vaqueiro de fora
perguntou: dará passagem?
João Grilo disse: inda agora
o gadinho do meu pai
passou com o lombo de fora.

O vaqueiro bota o cavalo
com uma braça deu nado
foi sair já muito embaixo
quase que morre afogado
voltou e disse ao menino:
você é um desgraçado.

João Grilo foi ver o gado
pra provar aquele ato
veio trazendo na frente
um bom rebanho de pato
os pássaros passaram n"água
João provou que era exato.

Um dia a mãe de João Grilo
foi buscar água à tardinha
deixando João Grilo em casa
e quando deu fé, lá vinha
um padre pedindo água
nessa ocasião não tinha

João disse; só tem garapa;
disse o padre; donde é?
João Grilo lhe respondeu;
é do engenho catolé;
disse o padre: pois eu quero;
João levou uma coité.

O padre bebeu e disse:
oh! que garapa boa!
João Grilo disse: quer mais?
o padre disse: e a patroa
não brigará com você?
João disse: tem uma canoa.

João trouxe uma coité
naquele mesmo momento
disse ao padre: beba mais
não precisa acanhamento
na garapa tinha um rato
tava podre e fedorento.

O padre disse: menino
tenha mais educação
e por que não me disseste?
oh! natureza do cão!
pegou a dita coité
arrebentou-a no chão.

João Grilo disse: danou-se!
misericórdia, São Bento!
com isto mamãe se dana
me pague mil e quinhentos
essa coité, seu vigário,
é de mamãe mijar dentro!

O padre deu uma popa
disse para o sacristão:
esse menino é o diabo
em figura de cristão!
meteu o dedo na goela
quase vomita um pulmão.

João Grilo ficou sorrindo
pela cilada que fez
dizendo: vou confessar-me
no dia sete do mês
ele nunca confessou-se
foi essa a primeira vez.

João Grilo tinha um costume
pra toda parte que ia
era alegre e satisfeito
no convívio de alegria
João Grilo fazia graça
que todo mundo sorria.

Num dia de sexta-feira
às cinco horas da tarde
João Grilo disse: hoje à noite
eu assombro aquele padre
se ele não perdoar-me
na igreja há novidade.

pegou uma lagartixa
amarrou pelo gogó
botou-a numa caixinha
no bolso do paletó
foi confessar-se João Grilo
com paciência de Jó.

Às sete horas da noite
foi ao confessionário
fez logo o pelo sinal
posto nos pés do vigário
o padre disse: acuse-se;
João disse o necessário.

Eu sou aquele menino
da garapa e do coité;
o padre disse: levante-se
que já sei você quem é;
João tirou a lagartixa
Soltou-a junto do pé.

A largatixa subiu
por debaixo da batina
entrou na perna da calça
tornou-se feia a buzina
o padre meteu os pés
arrebentou a cortina.

Jogou a batina fora
naquela grande fadiga
a lagartixa cascuda
arranhando na barriga
João Grilo de lá gritava:
Seu padre, Deus lhe castiga!

O padre impaciente
naquele turututu
saltava pra todo lado
que parecia um timbu
terminou tirando as calças
ficou o esqueleto nu.

João disse: padre é homem
pensei que fosse mulher
anda vestido de saia
não casa porque não quer
isso é que é ser caviloso
cara de matar bebê.

O padre disse João Grilo
vai-te daqui infeliz!
João Grilo disse bravo
ao vigário da matriz:
é assim que ele me paga
o benefício que fiz?

João Grilo foi embora
o padre ficou zangado
João Grilo disse: ora sebo
eu não aliso croado
vou vingar-me duma raiva
que eu tive ano passado.

No subúrbio da cidade
morava um português
vivia de vender ovos
justamente nesse mês
denunciou de João Grilo
pelas artes que ele fez.

João encontrou o português
com a égua carregada
com duas caixas de ovos
João disse-lhe: oh camarada
quero dizer à tua égua
Uma pequena charada.

o português disse: diga;
João chegou bem no ouvido
com a ponta do cigarro
soltou-a dentro escondido
a égua meteu os pés
foi temeroso estampido.

derrubou o português
foi ovos pra todo lado
arrebentou a cangalha
ficou o chão ensopado
o português levantou-se
tristonho e todo melado.

O português perguntou:
o que foi que tu disseste
que causou tanto desgosto
a este anima agreste?
- Eu disse que a mãe morreu;
o português respondeu:
Oh égua besta da peste!

João Grilo foi à escola
com sete anos de idade
com dez anos ele saiu
por espontânea vontade
todos perdiam pra ele
outro Grilo como aquele
perdeu-se a propriedade.

João Grilo em qualquer escola
chamava o povo atenção
passava quinau nos mestres
nunca faltou com a lição
era um tipo inteligente
no futuro e no presente
João dava interpretação.

um dia perguntou ao mestre:
o que é que Deus não vê
o homem vê a qualquer hora
disse ele: não pode ser
pois Deus vê tudo no mundo
em menos de um segundo
de tudo pode saber.

João Grilo disse: qual nada
que dê os elementos seus?
abra os olhos, mestre velho
que vou lhe mostrar os meus
seus estudos se consomem
um homem vê outro homem
só Deus não vê outro Deus.

João Grilo disse: seu mestre
me diga como se chama
a mãe de todas as mães
tenha cuidado no drama
o mestre coça a cabeça
disse: antes que me esqueça
vou resolver o programa.

- A mãe de todas as mães
é Maria Concebida;
João Grilo disse: eu protesto
antes dela ser nascida
já esta mãe existia
não foi a Virgem Maria
oh! que resposta perdida.

João Grilo disse depois
num bonito português;
a mãe de todas as mães
já disse e digo outra vez
como a escritura ensina
é a natureza divina
que tudo criou e fez.

- Me responde, professor
entre grandes e pequenos
quero que fique notável
por todos nossos terrenos
responda com rapidez
como se chama o mês
que a mulher fala menos?

Este mês eu não conheço
quem fez esta taboada?
João Grilo lhe respondeu:
ora sebo, camarada
pra mim perdeu o valor
tem nome de professor
mas não conhece de nada

- Este mês é fevereiro
por todos bem conhecido
só tem vinte e oito dias
o tempo mais resumido
entre grandes e pequenos
é o que a mulher fala menos
mestre, você tá perdido.

- Seu professor, me responda
se algum tempo estudou
quem serviu a Jesus Cristo
morreu e não se salvou
no dia em que ele morreu
seu corpo urubu comeu
e ninguém o sepultou?

- Não conheço quem é esse
porque nunca vi escrito;
João Grilo lhe respondeu:
foi o jumento, está dito
que a Jesus Cristo servia
na noite em que ele fugia
de Belém para o Egito.

João Grilo olhou para o lado
disse para o diretor
este mestre é um quadrado
fique sabendo o senhor
sem dúvida exame não fez
o aluno desta vez
ensinou ao professor.

João Grilo foi para casa
encontrou sua mãe chorando
ele então disse: mamãe
não está ouvindo eu cantando?
não chore, cante mais antes
pois o seu filho garante
pra isso vive estudando .

A mãe de João Grilo disse:
choro por necessidade
sou uma pobre viúva
e tu de menor idade
até da escola saíste...
João disse: ainda existe
o mesmo Deus de bondade.

- A senhora pensa em carne
de vinte mil réis o quilo
ou talvez no meu destino
que à força hei de segui-lo
não chore, fique bem certa
a senhora só se aperta
quando matarem João Grilo.

João então chegou no rio
às cinco horas da tarde
passou até nove horas
porém inda foi debalde
na noite triste e sombria
João Grilo sem companhia
voltava sem novidade.

Chegando dentro da mata
ouviu lá dentro um gemido
dois lobos devoradores
o caminho interrompido
e trepou-se num pinheiro
como era forasteiro
ficou ali escondido.

Os lobos foram embora
e João não quis descer
disse: eu dormirei aqui
suceda o que suceder
eu hoje imito arapuan
só vou embora amanhã
quando o dia amanhecer.

O Grilo ficou trepado
temendo lobos e leões
pensando na fatal sorte
e recordando as lições
que na escola estudou
quando de súbito chegou
uns quatro ou cinco ladrões.

Eram uns ladrões de Meca
que roubavam no Egito
se ocultavam na mata
naquele bosque esquisito
pois cada um de per si
que vinha juntar-se ali
pra ver quem era perito.

O capitão dos ladrões
disse: não fala ninguém?

um respondeu; não senhor
disse ele: muito bem
cuidado não roubem vã
vamos juntar-nos amanhã
na capela de Belém.

Lá partiremos o dinheiro
pois aqui tudo é graúdo
temos um roubo a fazer
desde ontem que estudo
mas já estou preparado;
e o Grilo lá trepado
calado escutando tudo.

Os ladrões foram embora
depois da conversação
João Grilo ficou ciente
dizendo a seu coração:
se Deus ajudar a mim
acabou-se o tempo ruim
sou eu quem ganho a questão.

João Grilo desceu da árvore
quando o dia amanheceu
mas quando chegou em casa
não contou o que se deu
furtou um roupão de malha
vestiu, fez uma mortalha
lá no mato se escondeu.

À noite foi pra capela
por detrás da sacristia
vestiu-se com a mortalha
pois na capela jazia
sempre com a porta aberta
João pensou na certa
colher o que pretendia.

Deitou-se lá num caixão
que enterravam defunto
João Grilo disse: eu aqui
vou ganhar um bom presunto;
os ladrões foram chegando
e João Grilo observando
sem pensar em outro assunto.

Acenderam um farol
penduraram numa cruz
foram contar o dinheiro
no claro deu uma luz
João Grilo de lá gritou:
esperem por mim que eu vou
com as ordens de Jesus!

Os ladrões dali fugiram
quando viram a alma em pé
João Grilo ficou com tudo
disse: já sei como é nada
no mundo me atrasa
agora vou para casa
tomar um rico café.

Chegou e disse: mamãe
morreu nossa precisão
o ladrão que rouba outro
tem cem anos de perdão;
contou o que tinha feito
disse a velha: está direito
vamos fazer refeição.

Bartolomeu do Egito
foi um rei de opinião
mandou convidar João Grilo
pra uma adivinhação
João Grilo disse: eu vou;
no outro dia embarcou
para saudar o sultão.

João Grilo chegou na corte
cumprimentou o sultão
disse: pronto, senhor rei
(deu-lhe um aperto de mão)
com calma e maneira doce
o sultão admirou-se
da sua disposição.

O sultão pergunta ao Grilo;
de onde você saiu?
aonde você nasceu?
João fitou ele e sorriu
- Sou deste mundo d"agora
nasci na ditosa hora
em que minha mãe me pariu.

- João Grilo, tu adivinha?
o Grilo respondeu: não
eu digo algumas coisas
conforme a ocasião
quem canta de graça é galo
cangalha só pra cavalo
e sêca só no sertão.

_ Eu tenho doze perguntas
pra você me responder
no prazo de 15 dias
escute o que vou dizer
veja lá como se arruma
é bastante faltar uma
tá condenado a morrer.

João Grilo disse: estou pronto
pode dizer a primeira
se acaso sair-me bem
venha a segunda e a terceira
venha a quarta e a quinta
talvez o Grilo não minta
diga até a derradeira.

Perguntou: qual o animal
que mostra mais rapidez
que anda de quatro pés
de manhã por sua vez
ao meio-dia com dois
passando disto depois
à tarde anda com três?

O Grilo disse: é o homem
que se arrasta pelo chão
no tempo que engatinha
depois toma posição
anda em pé e bem seguro
mas quando fica maduro
faz três pés com o bastão.

O sultão maravilhou-se
com sua resposta linda
João disse: pergunte outra
vou ver se respondo ainda;
a segunda o sultão fez
João Grilo daquela vez
celebrizou sua vinda.

- Grilo você me responda
em termos bem divididos
uma cova bem cavada
doze mortos estendidos
e todos mortos falando
cinco vicos passeando
trabalham com três sentidos.

- Esta cova é a viola
com primo, baixo e bordão
mortas são as doze cordas
quando canta um cidadão
canta, toca, faz um verso
cinco vicos num progresso
os cinco dedos da mão.

Houve uma salva de palmas
com vivas que retumbou
o sultão ficou suspenso
seu viva também bradou
e depois pediu silêncio
com outro desejo imenso
a terceira perguntou.

- João Grilo, qual é a coisa
que eu mandei carregar
primeiro dia e segundo
no terceiro fui olhar
quase dá-me a tiririca
se tirar, mais grande fica
não míngua, faz aumentar?

- Senhor rei, sua pergunta
parece me fazer guerra
um Grilo não tem saber
criado dentro da serra
mas digo pra quem conhece
o que tirando mais cresce
é um buraco na terra.

João Grilo vou terminar
as perguntas do tratado
o Grilo disse; pergunte
quero ficar descansado
disse o rei: é muito exato
o que é que vem do alto
cai em pé, corre deitado?

- Aquele que cai em pé
e sai correndo pelo chão
será uma grande chuva
nos barros de um sertão;
o rei disse: muito bem
no mundo inteiro não tem
outro Grilo como João.

- João Grilo, você bebe?
João disse: bebo um pouquinho
e disse; eu não sou filho
de Baco que fez o vinho
o meu pai morreu bebendo
e eu o que estou fazendo?
sigo no mesmo caminho.

O rei disse: João Grilo
beber é cousa ruim;
o Grilo respondeu: qual
o meu pai dizia assim:
na casa de seu Henrique
zelam bem um alambique
melhor do que um jardim.

O rei disse: João Grilo
tua fama é um estrondo
João Grilo disse: eu sabendo
o que perguntar respondo;
disse o rei enfurecido;
o que tem o pé comprido
e faz o rastro redondo?

- Senhor rei, tenho lembrança
do tempo da minha avó
que ela tinha um compasso
na caixa do bororó
como este eu também ando
fazendo o rastro redondo
andando com uma perna só.

- João, qual é o bicho
que passa pela campina
a qualquer hora da noite
andando de lamparina?
é um pequeno animal
tem luz artificial;
veja o que determina.

- Esse bicho eu já vi
pois eu tinha de costume
de brincar sempre com ele
minha mãe tinha ciúme
ele andava pelo campo
uns chamavam pirilampo
e outros de vagalume.

O rei já tinha esgotado
a sua imaginação
não achou uma pergunta
que interrompesse a João
disse: me responda agora
qual é o olho que chora
sem haver consolação?

O Grilo então respondeu:
lá muito perto da gente
tem um outeito importante
um moó muito doente
suas lágrimas têm paladar
quem não deixa de chorar
é olho d"água de vertente.

o rei inventou um truque
do jeito que lhe convinha
- Vou arrumar uma cilada
ver se João adivinha;
mandou vir um alçapão
fez outra adivinhação
escondeu uma bacurinha.

- João, o que é que tem
dentro desse alçapão?
se não disser o que é
é morto não tem perdão;
João Grilo lhe respondeu:
quem mata um como eu
não tem dó no coração.

João lhe disse: esse objeto
nem é manso nem é brabo
nem é grande nem pequeno
nem é santo nem é diabo
bem que mamãe me dizia
que eu ainda caía
onde a porca torce o rabo.

Trouxeram uma bandeja
ornada com muitas flores
dentro dela uma latinha
cheia de muitos fulgores
o rei lhe disse: João Grilo
é este o último estrilo
que rebenta tuas dores.

João Grilo desta vez
passou na última estica
adivinhar uma coisa
nojenta que se pratica
fugir da sorte mesquinha
pois dentro da lata tinha
um pouquinho de xinica.

O rei disse: João Grilo
veja se escapa da morte;
o que tem nessa latinha?
responda se tiver sorte;
toda aquela populaça
queria ver a desgraça
do Grilo franzino e forte.

Minha mãe profetizou
que o futuro é minha perda
"Dessas adivinhações
brevemente você herda;"
faz de conta que já vi
como está hoje aqui
parece que dá em merda.

O rei achou muita graça
nada teve o que fazer
João Grilo ficou na corte
com regozijo e prazer
gozando um bom paladar
foi comer sem trabalhar
desta data até morrer.

E todas as questões do reino
era João que deslindava
qualquer pergunta difícil
ele sempre decifrava
julgamentos delicados
problemas muito enrascados
era João que desmanchava.

Certa vez chegou na corte
um mendigo esfarrapado
com uma mochila nas costas
dois guardas de cada lado
seu rosto cheio de mágoa
os olhos vertendo água
fazia pena o coitado.

Junto dele estava um duque
que veio denunciar
dizendo que o mendigo
na prisão ia morar
por nãp pagar a despesa
que fizera com afoiteza
sem ninguém lhe convidar.

João Grilo disse ao mendigo:
e como é, pobretão
que se faz uma despesa
sem ter no bolso um tostão?
me conte todo o passado
depois de ter-lhe escutado
lhe darei razão ou nào.

Disse o mendigo: sou pobre
e fui pedir uma esmola
na casa do senhor duque
e levei minha sacola
quando cheguei na cozinha
vi cozinhando galinha
numa grande caçarola.

- Como a comida cheirava
eu tive apetite nela
tirei um taco de pão
e marchei prolado dela
e sem pensar na desgraça
botei o pão na fumaça
que saía da panela.

- O cozinheiro zangou-se
chamou logo seu senhor
dizendo que eu roubara
da comida seu d\sabor
só por eu ter colocado
um taco de pão mirrado
aproveitando o vapor.

- Por isso fui obrigado
a pagar esta quantia
como não tive dinheiro
o duque por tirania
mandou trazer-me escoltado
pra depois de ser julgado
ser posto na enxovia.

João Grilo disse: está bom
não precisa mais falar;
então pergunto ao duque:
quanto o homem vai pagar?
- Cinco coroas de prata
ou paga ou vai pra chibata
não lhe deve perdoar.

João Grilo tirou do bolso
a importância cobrada
na mochila do mendigo
deixou-a depositada
e disse para o mendigo:
balance a mochila, amigo
pro duque ouvir a zoada.

O mendigo sem demora
fez como o Grilo mandou
pegou sua mochilinha
com a prata balançou
sem compreender o truque
bem no ouvido do duque
o dinheiro tilintou.

Dise o duque enfurecido:
mas não recebi o meu;
diz o Grilo: sim senhor
e isto foi o que valeu
deixe de ser batoteiro
o tinido do dinheiro
o senhor já recebeu.

- Você diz que o mendigo
por ter provado o vapor
foi mesmo que ter comido
seu manjar e seu sabor
pois também é verdadeiro
que o tinir do dinheiro
represente seu valor.

Virou-se para o mendigo
e disse: estás perdoado
leva o dinheiro que dei-te
vai pra casa descansado;
o duque olhou para o Grilo
depois de dar um estrilo
saiu por ali danado.

A fama então de João Grilo
foi de nação em nação,
por sua sabedoria
e por seu bom coração
sem ser por ele esperado
um dia foi convidado
pra visitar um sultão.

O rei daquele país
quis o reino embandeirado
pra receber a visita
do ilustre convidado
o castelo estava em flores
cheios de grandes fulgores
ricamente engalanado.

As damas da alta côrte
trajavam decentemente
toda côrte imperial
esperava impaciente
ou por isso ou por aquilo
para conhecer João Grilo
figura tão eminente.

Afinal chegou João Grilo
no reinado do sultão
quando ele entrou na côrte
foi grande decepção
de paletó remendado
sapato velho furado
nas costas um matulão.

O rei disse: não é ele
pois assim já é demais!
João Grilo pediu licença
mostrou-lhe as credenciais
embora o rei não gostasse
mandou que ele ocupasse
os aposentos reais.

Só se ouvia cochichos
que vinham de todo lado
as damas então diziam
é esse o homem falado?
duma pobreza tamanha
e ele nem se acanha
de ser nosso convidado!

Até os membros da côrte
diziam num tom chocante:
pensava que o João Grilo
fosse um tipo elegante
mas nos manda um remendado
sem roupa esfarrapado
um maltrapilho ambulante.

E João Grilo ouvia tudo
mas sem dar demonstração
em toda a corte real
ninguém lhe dava atenção
por mostrar-se esmolambado
tinha sido desprezado
naquela rica nação.

Afinal veio um criado
e disse sem o fitar:
já preparei o banheiro
para o senhor se banhar
vista uma roupa minha
e depois vá na cozinha
na hora de almoçar.

João Grilo disse: está bem;
mas disse com seu botão:
roupas finas trouxe eu
dento do meu matulão
me apresentei rasgado
para ver nesse reinado
qual era a minha impressão.

João Grilo tomou um banho
vestiu uma roupa de gala
então muito bem vestido
apresentou-se na sala
ao ver seu traje tão belo
houve gente no castelo
que quase perdia a fala.

E então toda repulsa
transformou-se de repente
o rei chamou-o pra mesa
como homem competente
consigo dizia João:
na hora da refeição
vou ensinar essa gente.

O almoço foi servido
porém João não quis comer
despejou vinho na roupa
só para vê-lo escorrer
ante a côrte estarrecida
encheu os bolsos de comida
para todo mundo ver.

O rei muito aborrecido
perguntou para João:
por qual motivo o senhor
não come da refeição?
respondeu João com maldade:
tenha calma, majestade
digo já toda a razão.

- Esta mesa tão repleta
de tanta comida boa
não foi posta para mim
um ente vulgar à toa;
desde a sobremesa à sopa
foram postas à minha roupa
e não à minha pessoa.

Os comensais se olharam
o rei pergunta espantado:
por que o senhor diz isto
estando tão bem tratado?
disse João: isso se explica
por estar de roupa rica
não sou mais esmolambado.

Eu estando esmolambado
ia comer na cozinha
mas como troquei de roupa
como junto da rainha
vejo nisto um grande ultraje
homenagem ao meu traje
e não à pessoa minha.

Toda corte imperial
pediu desculpa a João
e muito tempo falou-se
naquela dura lição
e todo mundo dizia
que sua sabedoria
igualava a Salomão.

Ditados Populares do Brasil (Letra E)

É BOI sonso que arromba a cerca.
É COBRA engolindo cobra.
É DANDO que se recebe.
É DE CHEIRAR e guardar.
É DE NOVO que se acerta o galho.
É MELHOR adormecer sem ceia, a acordar com dívidas.
É MELHOR passar por ignorante do que ignorante ser.
É MUITA areia pro meu caminhão.
É ONDE a porca torce o rabo.
É PEIXE fora d’água.
É TEMPO de murici, cada um cuide de si.
EM BOCA fechada não entra mosca.
EM CADA cabeça uma sentença.
EM CASA de enforcado, não se fala em corda.
EM CASA de ferreiro, espeto de pau.
EM CIMA de queda, coice.
EM RIO de piranhas, jacaré nada de costa.
EM TERRA de cego quem tem um olho é rei.
EM TERRA de sapo, mosquito não dá rasante.
ENCHER lingüiça.
ENGANA-SE quem pensa que o céu é perto.
ENGOLIR um boi, e engasga-se com um mosquito.
ENQUANTO há vida, há esperança.
ENQUANTO não encontro a mulher certa… me divirto com as erradas.
ESTRELA dalva é minha guia.
É DE NOITE que a saudade aperta.
É DURO velório sem cachaça.
EM CIMA da morte, ganhando o pão da vida.
EM CIMA da morte procuro a sorte.
EM CIMA de quatro pneus cheios, um coração vazio.
É MELHOR perder do que não competir.
É MELHOR uma amiga na sombra do que uma sombra amiga.
É MELHOR a crítica do inimigo do que o elogio do falso amigo.
ENQUANTO eu vago pelo mundo um coração pulsa por mim.
ENQUANTO Maria reza, “Mercedes Benze???.
ENTRE, amigo, a casa é sua, mas se for pra fiado, é melhor ficar na rua…
ENTRE a morena e a loura prefiro as duas.
ENTROU porque quis; aqui não é garagem.
É PENSANDO ser rico que se fica pobre.
ERRAR é humano; persistir no erro é bigamia.
ESPELHO reflete sem falar, a mulher fala sem refletir.
ESQUENTA mas não ferve.
ÉS TÃO hipócrita que choras pelo olho de vidro.
ESTE mundo é a ante-sala do outro.
ESTE não geme na rampa.
É TRISTE cair; mais triste ainda é não tentar subir.
É TRISTE sonhar com o amor e acordar sozinho.
EU NÃO rejeito parada nem paro em beira de estrada.
EU QUERIA ser pobre um dia, porque ser pobre todo dia é duro.
EU QUERIA ser uma lágrima só pra rolar em tua face.
EU TE vejo com os olhos do coração.
EU VEJO a face, Deus o coração.
EU VI os seios da saudade no decote da ausência.
ENSINAR Padre-Nosso a vigário.
ENTRAR mudo e sair calado.
ENTRAR por um ouvido e sair pelo outro.
ENTRE duas pedras, só coco.
ENXUGAR gelo.
ERVAS daninhas crescem depressa.
ERVAS ruins, geadas não matam.
ESCREVEU não leu, o pau comeu.
ESMOLA grande, o cego desconfia.
ESTAR claro, como água.
ESTAR com a pulga atrás da orelha.
ESTAR com nó na garganta.
ESTAR em cima da carne-seca.
ESTAR em papos-de-aranha.
ESTAR entregue às moscas.
ESTAR na casa do sem jeito.
ESTAR no mato sem cachorro.

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 21. Rufina (5)

Tornei a ver a minha Rufina, afinal.

Corria eu os olhos pelos passageiros, com essa curiosidade vaga, sem garra nem asa, que nos resta nas horas de fadiga. Vi num banco de trás o prático de farmácia, com um livro de Allan Kardec sobre os joelhos e a fazer gracinhas a uma criança, cuja mãe era uma guapa mocetona. Vi o simpático Berredo, inimigo da Medicina, médico amador. Benzi-me em espírito com a canhota, e desviei os olhos: dei com eles num banco todo ocupado por mulheres idosas e feias, não sei se mais idosas do que feias, e tinham os cabelos entre o grisalho e o branco amarelado. Mas a velhice é uma coisa venerável. Contemplei aquelas caras a ver se conseguia extrair de alguma delas a imagem reconstituída de uma beleza decomposta. Não o consegui. Teriam talvez uma espécie de beleza interior. Mas por que então não se revelava cá fora ao menos como o lume vermelho e mortiço de um forno velho?

Pus-me a passear os olhos pelo tejadilho, pela rua, pelas pontas de meus dedos. De repente, quem havia de descobrir! Lá no fundo, sentadinha entre uma preta gorda e um bigodudo vendedor de loterias, Rufina! a própria, a autêntica, a única, a olhar para mim, sorrindo como antiga conhecida -a boa criatura! Toda ela era uma só imagem de lindeza una e vibrante como uma interjeição.

Trajava de branco e tinha uma gola alta que lhe dava ao pescoço, ao ombro e à cabecinha redonda um quê dessa graça aconchegada e sólida, que se encontra nas frutas perfeitas e nos legumes viçosos. Mergulhei-me na figura de Rufina.

Nisto, veio de lá o prático de farmácia, marinhando pelo estribo. Alegou que me queria cumprimentar, e de fato realizou esse rito com a mais intempestiva lentidão. Relanceava os olhos para Rufina, uns olhos de emplastro, sob cujas apalpadelas a moça baixava os seus. Depois, saltou. -Lamentei sinceramente que não tivesse caído. Senti ganas de lhe saltar no rasto como uma onça atrás de um quati, e meter-lhe a garra pelo gasnete, e batê-lo pelo chão e pelas paredes.

Quando o bonde chegava à primeira esquina, o condutor subiu ao meu banco, que era o da frente, para repor em zero o relógio de marcação das passagens. Incomodado pelo intruso, passei provisoriamente para o banco imediato, dando costas à linda criatura. Tão depressa o condutor se retirou, voltei para o meu primitivo posto. Mas a moça tinha desaparecido. Saltara na esquina, que já ia longe.

Precipitei-me para a rua, corri para trás, inspecionei tudo, barafustei; nada. Sacudiu-me então uma tal intensidade de desespero e de cólera, que me pus a rir e a rilhar os dentes.

Foi este o dia mais negro dos meus últimos dez anos. Dei ponto na repartição, e fui fazer um passeio de bêbedo por bairros distantes e ignorados.

Fonte:
Domínio Público

Aluísio Azevedo (O Esqueleto) Parte X – Para Vingar

O Satanás vivia infeliz nas suas pesquisas para descobrir o paradeiro de Branca. Por mais que se fizesse a sombra de d. Pedro, por mais que o seguisse em todas as costumeiras migrações noturnas, por mais que se lhe pusesse debruçado sobre o espírito a acompanhar-lhe a sucessiva eclosão de idéias, não conseguira nunca descortinar um bocadinho desse mistério, que ficava para além sepulto no abismo apavorante dos segredos.

Vinham-lhe por vezes dúvidas, suspeitas de que d. Bias tivesse mentido, vontade de sujeitá-lo a um novo inquérito, planos de prendê-lo e de arrancar-lhe a verdade até mesmo pela tortura.

Mas d. Bias desaparecera. Ninguém mais o encontrava, nem lá na bodega do Trancoso, nem pelos outros lugares por onde ele gostava antigamente de passear a sua longa durindana ferrugenta. Fizera-se caseiro. E, ali nos fundos do convento do Carmo, enlevava-se todo no amor da sua encarcerada, contente da vida, porque a Domitila nada resolvia sobre a infeliz louca, porque davam-lhe bom repasto, e porque estava a seguro de um encontro com o escultor.

Falto dessas informações, desse caminho único para a descoberta da verdade, o Satanás tinha também, por vezes, ímpetos de interpelar o príncipe, de ir diretamente a ele para a luta suprema das vinganças paternas. Aproveitaria o ensejo de uma alta noite, naquela hora em que os dous costumavam estar sozinhos, e em que o vinho e a mulher fazem a palavra expansiva e franca, volutuosamente escorregando pela língua para o diálogo amigável das confissões. E então seria brutal, violento como um pai ultrajado que se arma com a plenitude dos seus direitos e com o instinto das suas obrigações.

Oh! ele bem saberia ritmar a grande vibração sonora das suas reclamações e dos seus discursos, ele bem saberia como falar com a voz repassada de confrangimento, pontuada de gritos e de imprecações. Para isso bastava que deixasse transbordar toda inteira a dor sofrida que lhe ia na alma.

Mas não convinha. D. Pedro não se sujeitaria a ouvi-lo, e nem tinha remédios para curar-lhe o sofrimento, porque não há bálsamo que chegue para suavizar a ferida feita nesse amor de pai, imaculado e puro, divinal e casto.

Por isso, ele, Satanás, queria a vingança.

Os sucessos políticos, cuja confidência lhe era diariamente feita e em que andava completamente envolvido, vinham servir-lhe, a mais não ser, nessa obra sinistra de vinditas que estava longamente planejando. Eles eram a apoteose do príncipe que o povo aclamava; podiam tornar-se a derrota do seu orgulho e a morte para sempre da sua individualidade sepultada nas trevas de um cárcere.

E o Satanás sonhou primeiro com a reação portuguesa. As tropas lusitanas ainda estavam aqui, luzidias e valentes, bem afamadas na disciplina e respeitadas pelo povo.

Bem certo que Jorge de Avilez quietava-se irresoluto, não sabendo que partido eleger, receoso de optar entre as cortes e o príncipe herdeiro de Bragança. Para determiná-lo a uma reação pronta e imediata, o Pallingrini teve então uma dessas idéias diabólicas, que só a ele podiam acorrer. E numa carta incisiva que dirigiu ao general português, narrou a história de uns amores de d. Pedro, que tinha penetrado até a câmara nupcial do tíbio comandante lusitano.

Este, ferido em seus brios e em sua honra, louco de dores, preparou-se então para reagir. Mas abortou logo em princípio o movimento que projetara. A milícia, principalmente a milícia de Niterói, cercou a divisão lusa e obrigou-a a capitular e ir aquartelar-se na Armação, até que se aprestassem vapores para recambiá-la para a Europa.

O Satanás tratou então de aproveitar os elementos nacionais que se congregavam em torno da Sociedade Tenebrosa do Apostolado, e que desde o começo fundamentara o dogma do nativismo.

Aí iniciado, ele tornou-se um dos maiores propugnadores da idéia, tratando de aliciar adeptos e enredando o Rio de Janeiro numa vasta conspiração, a que faltava apenas um chefe, com coragem e audácia para fazer a Independência de uma só vez e completamente.

O seu principal trabalho, porém, trabalho surdo de alcoviteiro que intriga e sabe o segredo amoroso da alma humana, foi a rivalidade que estabeleceu entre a Domitila e a irmã. Dessa luta de mulheres que lutavam dentro do coração do príncipe, devia necessariamente resultar a devastação do campo de batalha.

E era isso o que ele queria, isso o que esperava como primeiro suplício na senda tormentosa de desgraças que estava preparando ao régio boêmio de Bragança.

D. Pedro era o Archonte Rei do Apostolado. Chefe supremo da poderosa sociedade, fora nela que encontrara o mais sólido apoio para as suas ambiciosas pretensões. E mal podia ele imaginar que dali mesmo partiria o primeiro golpe contra o seu poder.

Foi a própria Domitila quem o preveniu do perigo. D. Bias, que, temendo o Satanás, o considerava inimigo, começou também a freqüentar as sessões da Sociedade Tenebrosa e chegou ao conhecimento da trama que se urdia. A Domitila, possuidora do segredo, não hesitou: mais do que o seu despeito de amante enganada pôde o seu amor e pôde a sua ambição. Contou tudo ao príncipe.

Dai a dous dias, o Apostolado devia reunir-se em sessão magna.
O príncipe dispôs-se a golpear de morte nesse dia a instituição que o queria prender.

Foi numa segunda-feira. As sete horas da noite, ninguém diria, ao passar pelo velho quartel da Guarda Velha, que havia ali uma reunião de mais de quinhentas pessoas das mais altamente colocadas da política, do exército e do povo. A casa estava às escuras, com todas as janelas fechadas.

De quando em quando, um vulto chegava, embuçado, e batia três pancadas à porta. A porta abria-se, e o vulto entrava, perdendo-se no corredor escuro, depois das palavras sacramentais do santo e da senha.

- S. Pedro!

- Amor e Fidelidade!

A sala de sessão ficava ao fundo da casa. Chegava-se lá depois de percorrer três longos corredores, através do quartel.

Era uma enorme sala, toda forrada de tapeçaria negra e iluminada apenas por um enorme lustre negro que pendia do teto, e onde ardiam dezenas de velas. Ao fundo erguia-se um estrado, onde duas largas cadeiras e uma pequena mesa esperavam o Archonte Rei e o acólito. Sobre o estrado, no fundo negro da parede, destacava-se, bordado a vermelho, o símbolo da sociedade: um triângulo, cercado por uma facha, onde se lia - Soc. Ten. do Apos. - e em cujo centro ocultava o desenho de uma espada e de um machado, cruzando-se.

As cadeiras dos camaradas estendiam-se em quatro grandes semicírculos, pela sala negra, abafada, onde a voz ecoava longamente, não achando por onde sair. E reinava em tudo aquilo um pavor, que pesava na alma...

Já quase todas as cadeiras estavam ocupadas. Todos os camaradas vestiam túnica negra, com o símbolo vermelho ao peito.

Quando o Satanás entrou, a primeira pessoa que viu, foi d. Bias.

O fidalgo espanhol era a figura mais sinistra de toda a sala. Estava a um canto, encarapitado na cadeira, com os joelhos pontudos e salientando-se na túnica, e com um eterno movimento de queixos, como se estivesse murmurando uma oração. Quem o via, pensava que d. Bias estava rezando. Engano: d. Bias estava comendo biscoitos.

O Satanás parou e deixou cair pesadamente a mão sobre o ombro do carcereiro de Branca. D. Bias ficou pálido como um cadáver, batendo os dentes e unindo as mãos, num gesto de súplica. Mas, o Satanás fez-lhe um sinal de ameaça e foi sentar-se no seu lugar.

Ah! não tardava muito, não tardava muito! Em breve a porta se abriria, e ele apareceria, confiado e calmo, sem esperar que daquela casa partisse a sentença da sua condenação. E quando d. Pedro - o poderoso - se visse diante daquele oceano de quinhentas cabeças, todas agitadas de ódios, todas regularmente e implacavelmente sacudidas numa negação absoluta de apoio, ele, Satanás, o fraco, o vencido, o cão rafeiro, exultaria na sua fraqueza e na sua pequenez...

Mas a hora aproximava-se. O acólito - Máximo Régulo - fora tomar o seu lugar no estrado. Um sino vibrou três pancadas, agudas e rápidas. Todos se levantaram. Um grande silêncio pesou na sala. A porta abriu-se de par em par. E, só, vestido como os outros, na túnica negra e simples de camarada, d. Pedro entrou serenamente empunhando a sua insígnia de Archonte Rei - um bastão de marfim, marchetado de ouro. A fisionomia do príncipe não revelava a menor agitação interior. Caminhou até à mesa.

- Deus te guarde, camarada! elevou-se a voz do acólito.

- Leve-te o diabo, traidor ! - soou no grande silêncio da sala apavorada a voz soturna do príncipe.

E, antes que alguém tivesse tempo de voltar a si da surpresa, d. Pedro abriu a pasta que se achava sobre a mesa revolveu os papéis, guardou-os consigo.

E, erguendo o bastão, gritou:

- Saiam!
–––––––––––
continua

sexta-feira, 15 de março de 2013

Wagner Marques Lopes/MG (Fábula: A Águia Viajora e suas Companheiras)

Um bando de águias possuía seus ninhos nas altitudes médias de uma extensa cordilheira.

Certo dia, uma delas, causando estranhamento geral, resolveu voar em direção ao ponto culminante do maciço.

No momento de sua partida, ouviu este comentário:

- Quem já viu alguma caça lá no ponto mais alto?...

Nas grandes alturas, ela pôde apreciar todo o esplendor do sol e as brancas nuvens, que se tornavam diminutas quais farrapos de algodão... Abarcar numa visão abrangente toda a extensão do deserto, onde ela e as amigas diariamente caçavam. Assistir o panorama formado pelos rios e estradas que se perdiam à distância, com seus meandros sulcando a planície.    

Veio o entardecer e a Águia Viajora fez o seu retorno ao ninho.

    Voando com dificuldade, ela conduzia no bico uma enorme lasca    de gelo.

Tão logo ela chegou, suas companheiras passaram a alinhar palavras descaridosas, ante a inesperada novidade:

- Crás!... Demorou tanto, e ainda nos traz um pedaço de gelo!...

- Será que não são bastantes as muitas geleiras que nos cercam?!... 

- Além disso, eu acho que ela deveria ficar lá por cima em definitivo. Seria menos uma a respirar o nosso escasso ar...

As observações irônicas continuaram.

Ouviu-se um forte estrondo. O ocorrido foi numa montanha em frente. Uma grande geleira se partiu e desmoronou, anunciando, com bastante antecedência, a chegada de um rigoroso verão. As geleiras mais próximas estavam destinadas a derreter.

Todas as águias ficaram muito assustadas e foram dormir.  Com exceção da águia Viajora, que ficou ainda um bom tempo acordada; lembrando-se da explicação que ela não conseguiu transmitir às companheiras, antes do desabamento da geleira:

- Minhas amigas, o verão não tarda e as geleiras em torno irão desaparecer...  Esta lasca de gelo, dividida em muitos blocos, ao lado de outras que nós poderemos juntar, ajudarão a tornar mais amenas as temperaturas em nossos ninhos. Após as exaustivas caçadas lá no deserto, encontraremos por aqui um ambiente bem mais agradável...
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Moral em trova

Quando eu me apresso em julgar
sem ouvir o que é preciso,
a crise encontra lugar
e me apanha... Sem aviso!...

Fonte:
O Autor

Franklin Dória (Poemas Avulsos)

Libreria Fogola Pisa
SOL NASCENTE

O hálito de Deus o sol acende;
E o sol o manto de oiro presto estende
Sobre o éter azul e a terra e o mar:
Tudo luz, tudo brilha, tudo encanta,
Se espreguiça, se agita, se alevanta,
Ao seu ardente e penetrante olhar.

As nuvens são corcéis, que dispararam
Da arena afogueada que formaram
As faixas do horizonte em combustão:
Freios partidos, pelo ar galopam;
Sangue vivo escumando, ora se topam,
Ora em procura do infinito vão.

A branca estrela que o crepúsculo adorna,
E torrentes de amor lânguida entorna,
Nos trasflores celestes se sumiu:
Longa saia de malha coruscante
Do mar, que chora e ri no mesmo instante,
As entranhas geladas constringiu.

O orvalho transparente o chão prateia:
Aqui sobre uma flor trêmulo ondeia,
Sobre outra numa lágrima se esvai;
Aqui parece pedra preciosa,
Ali, bem como chuva luminosa,
Lento e suave do arvoredo cai.

Ave enorme, do chão voa a neblina!
Frouxo clarão de lâmpada ilumina
Do vale o solitário penetral,
- Página em flores que a sorrir se deixam,
E sobre a qual dois altos cerros fecham
Parênteses de pedra colossal.

Ali o monte de coroa erguida,
Que ao céu implora co’uma voz sumida,
Ao menos, uma gota de licor
Para a ferida, que lhe o raio abrira,
- Gládio que a nuvem da bainha tira
No campo da procela, todo horror...

Matas, que enche, à só noite, a fantasia
De abusões, de gemidos de agonia,
De pálidos lêmures infernais,
Do sol nascente aos raios purpurinos,
Entre a harmonia de singelos hinos,
Como tão majestosas acordais!

Vós sois um mundo nebuloso e vasto,
Em que apenas se imprime o leve rasto
Da avezinha, da fera, ou do réptil:
Em lugar de palácio altivo e nobre,
Que o oiro e a lama ao mesmo tempo cobre,
Simples ninho abrigais, rude covil.

Oh! eu irei um dia, eu o primeiro,
Vaguear, namorado e aventureiro,
Por vossos labirintos de cipó;
Ver a azul borboleta que esvoaça,
A suçuarana que raivada passa,
E a cobra de coral rojar no pó!

E voltarei co’a mente incendiada!
E sentirei a vida mais ousada,
Mais rubro o céu das minhas ilusões!
Colombo, cheio de riqueza imensa;
Homem, cheio de esp’ranças e de crença;
Poeta, cheio de mil inspirações!

É toda um paraíso agora a terra.
Abraçam-se colina, outeiro e serra,
Com a sua coroa cada qual:
Aquela tem penacho de esmeralda,
Esta de malmequer áurea grinalda,
O outeiro a choça, que atalaia o val.

Tudo agora começa seu caminho:
O verme sai do pó, a ave do ninho,
Da casinha de palha o pescador;
A abelha infatigável da colméia,
Da luz o brilho, da palavra a idéia,
O perfume do cálice da flor.

Que orquestra sobe ao céu! O mar vozeia.
Murmura a fonte, o pássaro gorjeia,
E a brisa da manhã voa a gemer;
Canta à viola a jovem camponesa,
O desditoso chora, o crente reza...
Destarte faz a dor eco ao prazer!

Quão belo é o sol nascente! Olhos abertos,
Penetra os pólos de cristal cobertos,
Devassa nunca vistos areais;
Farol do tempo, leão de áureas crinas,
Diz, topando nos crânios das ruínas:
- Aqui foram impérios colossais! -

Pêndula que se agita no infinito,
Que ouve talvez da eternidade o grito,
Atalaia de todas as ações,
Anelado, redoira na memória
Era feliz, que eternizou a glória,
Sempre amada dos grandes corações.

Quão belo é o sol nascente! Ele afugenta
Do ar a cerração grossa e cinzenta,
D’alma a tristeza e os pensamentos vis:
Aos homens todos ao lavor convida;
E dá força, e vigor, a alento, e vida
Ao que é desgraçado, ao que é feliz.

Ao mendigo, que fina-se, consola
Com a promessa de abundante esmola,
Ou de algum protetor bom, liberal;
Ao pobre manda um raio de ventura;
Ao órfão, desvalida criatura,
Faz sonhar doce afago maternal.

Ele diz ao que é forte: - Hoje clemência!
Ao fraco: - Mais um dia paciência!
Àquele que lamenta-se: - Esperai!
Aos tristes ele diz: - Sede contentes!
Ao meu influxo borbulhai, sementes!
Preciosas idéias, borbulhai!

Ele diz ao poeta: - Alevantai-vos!
Dos grandes pensamentos inspirai-vos!
Ide, correi, correi às multidões!
A fé levai-lhes no queimar dos hinos,
Como outrora os Apóstolos divinos
Levaram graça e luz a mil nações.

Aos lábios todos ele diz: - Sorri-vos!
A toda flor e coração: - Abri-vos!
Lançai perfumes, transbordai de amor!
Para tudo o que nasce e vive e sente
É belo, sempre belo o sol nascente,
Reverberando aos pés do Criador!

A FELICIDADE
Ser feliz não é ocioso
Passar dias festivais,
Nem ter cofre precioso
Pejado de cabedais;
Não, isto não é ventura;
Ao mesmo Creso tortura
A agonia do sofrer;
Vive o rico na opulência,
Mas desgostoso a existência
Não cessa de maldizer.

Ser feliz não é pujante
Conquistar cem regiões
Mostrar-se um vulto que espante
Pelo brilho das ações;
Acender em cada passo,
Seguro, de glória um traço
Indelével, imortal;
E por fim, co’a fronte erguida,
Tranqüilo perder a vida,
Tendo ganho um pedestal.

Não é, não. Da glória a estrada
De espinhos coberta jaz;
É árdua, longa a jornada,
Que, por seu trilho se faz.
A fama nos colhe o fruto;
O egoísmo corrupto
Faminto, impudente o rói:
O homem deificado
Foi antes martirizado,
Chame-se gênio ou herói.

Ser feliz é nesta vida
Ter um seio a estremecer,
Onde a alma beba insofrida
O frenesi do prazer;
Onde a fronte macilenta
Sinta o calor, que aviventa
Com suave languidez;
Onde perfumes aéreos
Embalsamem os mistérios
Da amorosa embriaguez.

Ser feliz é, deslembrado
Dos mundanos vaivéns,
Junto do ente adorado
Gozar inúmeros bens;
Levar tempo indefinido
Em seus olhos embebido,
Como quem atento lê;
Co’o peito que forte pulsa,
A mais pequena repulsa,
Dizer-lhe terno: Por quê?

Ser feliz é no retiro
Ter companheira fiel,
Que pague longo suspiro
Co’um beijo, que sabe a mel;
Com ela amar os luares,
As aragens salutares,
A sombra que envolve a chã,
As flores da sicupira,
E o hino de cada lira,
Que soa pela manhã.

Ser feliz é, nessas horas
De tédio e vaga aflição,
De lembranças opressoras,
De opressora inquietação,
Co’aquela que nos entrega,
Ébria de amor, de amor cega,
O fio do dias seus,
Procurar o santuário,
E bem ao pé do Calvário,
Orando, falar a Deus.

Não! tudo não é vaidade:
Não! tudo não é sofrer:
Existe a felicidade,
Logo que existe a mulher.
Amai-a, amai-a deveras;
O amor é das quimeras,
Se ele é quimera, a melhor:
Nutri um amor profundo,
Que há de encantar-vos o mundo.
A felicidade é o amor!

FADÁRIO

O poeta, primeiro, preludia
Sons fugitivos de um viver sem dor:
Colhe sonhos gentis na fantasia;
É o doce cantor.

Ama o céu, e o mar, e a natureza,
Essa eterna epopéia do Senhor;
Ama, sem escolher, qualquer beleza;
É o doce cantor.

Ao depois, o poeta se desprende
Do formoso jardim, no qual viveu:
Sua alma agora vivo lume acende;
É o cantor do céu.

Para o amor da mulher achou estreita
A terra, em que inocente adormeceu;
Para mundos etéreos se indireita;
É o cantor do céu.

Voltou depressa, que encontrou espinhos,
Julgando achar esplêndidos troféus:
Sentou-se sobre o marco dos caminhos;
É o cantor de Deus.

E, solitário, co’olhar aflito
Fitado lá na abóbada dos céus;
E nas faces o pranto do proscrito...
É o cantor de Deus.

(Enlevos, 1859.)

O POVO (excertos)

O povo é como o oceano
Se erguendo livre do chão
Majestoso e soberano
Como a cruz da Redenção (...)

O rei sem povo é paládio
Sem santuário e sem grei:
O povo é o primeiro dono:
O povo é quem molda o trono:
O povo é que faz o rei! (...)
O povo é como uma barca,

Que em alto mar se perdeu,
E sem farol, astro ou marca,
Luta co'o vento, o escarcéu:
Senhor Deus! olhai pra ela,
Não a deixeis, rota a vela,
Sobre as rochas se partir (...)
A idéia que agita o mundo
Afinal sazonará:
Como as colunas pesadas,
Por Sansão desmoronadas,
O patíb'lo cairá.

Fonte:
http://www.jayrus.art.br/Apostilas/LiteraturaBrasileira/Romantismo/Franklin_Doria.htm

Franklin Dória (1836 – 1906)

Franklin Dória
Franklin Dória (F. Américo de Menezes D., Barão de Loreto), advogado, político, orador, magistrado e poeta, nasceu na ilha dos Frades, Itaparica, BA, em 12 de julho de 1836, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 28 de outubro de 1906. Eleito pelos trinta membros que compareceram à sessão de instalação da Academia, em 28 de janeiro de 1897, para completar o quadro da Academia, Franklin Dória é o fundador da Cadeira nº. 25, que tem como patrono o poeta Junqueira Freire.

Era filho de José Inácio de Menezes Dória e de Águeda Clementina de Menezes Dória. Formou-se em Direito na Faculdade de Recife em 1859, tendo como colegas Aristides Lobo, Gusmão Lobo e Joaquim Medeiros e Albuquerque, pai de Medeiros e Albuquerque. No mesmo ano de sua formatura, aos 23 anos, publicou Enlevos, seu único volume de poesia, impregnado de lirismo, ao reproduzir estados de alma, e de caráter objetivo, nas descrições do cenário das belezas naturais da "ilha encantada" do poeta. Quase todas as poesias subordinam-se a esse caráter e ao estilo descritivo. Cedo abandonou o verso. E desde o aparecimento do seu primeiro livro só publicou, em poesia, um trabalho a tradução de Evangelina, de Longfellow.

Dedicou-se, desde então, à profissão de advogado e à política. Como advogado, tomou a si a defesa de causas importantes, como, por exemplo, a de Pontes Visgueiro, autor de um famoso crime no Maranhão. Exerceu as funções de promotor, delegado e juiz. Em 1863, foi eleito deputado provincial na Bahia. Em 1864, nomeado governador do Piauí; em 1866, governador do Maranhão, e em 1880, governador de Pernambuco. Em 1872, foi eleito para a Câmara Federal, sendo reeleito, em mandatos alternados, até 1885. Algumas de suas campanhas no Parlamento do Império a campanha pela instrução pública e a campanha pela eleição direta revelaram-no um grande parlamentar, tendo sido presidente da Câmara.

Foi ministro da Guerra no gabinete Saraiva (1881), quando fundou a Biblioteca do Exército, que perdura até hoje, e Ministro do Império no último gabinete da Monarquia, do Visconde de Ouro Preto (1889). Conselheiro do Império, recebeu o título de Barão de Loreto em 1888. Era ligado à Família Imperial, acompanhando-a no exílio. De volta ao Brasil, dedicou-se à advocacia e à literatura. Foi professor de literatura por concurso no Colégio Pedro II. Pertenceu ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Fonte:
http://www.jayrus.art.br/Apostilas/LiteraturaBrasileira/Romantismo/Franklin_Doria.htm

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 19. Boa Prosa

Boa prosa, o Antônio Palhares. É curioso como há indivíduos inteligentes, perspícuos e engraçados, perdidos na multidão que não aparecem nas crônicas impressas, nem nas volantes e sonantes da gente que se conhece. De repente, surde-nos um da obscuridade e da indeterminação do vasto mundo que desdenhamos e ignoramos, e é um bicho de compreensividade, de senso, de espírito! Palhares é assim.

Conversei com ele hoje pela manhã, e nem sei dizer como me divertiu. Valeu por um livro novo que eu abrisse e folheasse, vendo as gravuras, o índice, os títulos de alguns capítulos, alguns relances de páginas. Quanta novidade, quanta frescura, quanto inesperado, e também quanto sabor de sinceridade libérrima e despreocupada, nos seus dizeres de homem sem galeria presente nem futura!

Queixei-me a Palhares dos inconvenientes da notoriedade. Não por mim, que sou um obscuro chapado e contente, mas por um amigo meu, que é uma espécie de terça parte minha, o qual muito tem sofrido por via desse flagelo. O rapaz não pode mais isolar-se, meter-se consigo, perder-se na fecunda anonímia multitudinária que lhe permitiria o descanso, o recolhimento, a respiração livre, a remodelação dos hábitos, a cura das feridas sempre abertas pela esfregação mundana: é um escravo aflito e amarfanhado das relações, das amizades, dos compromissos, das idéias que outros formaram a seu respeito, das solicitações e dos estímulos que por isso lhe vêm de todos os lados; e então padece, e geme, e desespera, porque desejaria romper com o
seu passado, deixar de ser o homem frívolo, o homem vento, o homem-inundação que tem sido, para ser um homem concêntrico e dono de si.

Palhares ouviu-me, ouviu-me, e, afinal, perguntou:

-"Mas esse moço é deveras uma inteligência sagaz, ou é uma dessas grandes inteligências bobas que há por esse mundo?"

-"Sagacíssima."

-"Pois não parece. Seria tão fácil libertar-se, isolar-se!"

-"É o que se afigura à primeira vista."

-"Precisa dos outros, efetivamente, para viver?"

-"Não; isso, não; tem a sua independência material bem segura."

-"Então, não compreendo. Por que não se retira?"

-"Impossível. Relacionadíssimo. Cheio de laços, que não se dissolvem senão quando novos laços os submergem: um homem que se procura, se aprecia, se quer, se disputa, se admira. Encantador. Como romper? Como ter a energia de quebrar brutalmente esses laços? Como repelir, quando se tem um coração brando, uma revoada de carinhos e solicitudes que nos cerca e nos assalta?"

-"Não compreendo. Para um homem se isolar, não há necessidade de movimentos bruscos, nem de fuga. Para fazer o vácuo em redor de si, gradualmente, docemente, não há senão isto: ser bom."

-"Mas ele o é. E depois, ser bom é mais um motivo para criar afetos e dedicações em redor de si."

-"Espere. Distingo. Ser bom, de uma bondade pedestre e regular, de fato, é um meio de criar afetos e dedicações em redor de si. Não é dessa bondade prática e hábil que eu falo. Eu falo da bondade íntima, profunda, plena e sossegada, que procura o bem nas próprias raízes do pensamento e da vontade, de forma que o pensamento e a vontade, quando se manifestam, já se manifestam como conseqüências exteriores, mortiças, frias, aguadas e, dir-se-ia, indiferentes de uma grande realidade latente e central que não cura de exterioridades. Compreendeu?"

-"Mais ou menos. Quer dizer uma bondade sentida, consciente, feita de compreensão e de piedade, mas que não tenta esforços por se mostrar e por atuar cá fora. Porque sabe talvez que toda exteriorização é espetáculo e todo espetáculo perverte."

-"Mais ou menos isso!"

-"Mas por que pensa que aí estaria o meio de libertação?"

-"Ora, essa! meu amigo! Pelo que vejo, não conhece os homens. Os homens só nos avaliam, nos pesam, nos apreçam pelas nossas projeções exteriores. E essas projeções, para terem valor, se hão de articular com as necessidades, os desejos, as conveniências, as aspirações dos que nos rodeiam. Valem pela soma de utilidade e de cumplicidade que levam consigo.
Mas um indivíduo realmente e simplesmente bom é o mais desvalioso dos homens. É talvez uma árvore frutífera, mas que produz frutos quando é sazão, e fora disso não produz mais nada; ali está, no seu lugar, quieta, sem movimento, sem iniciativa, sem préstimo, sem solicitudes, sem graça.
Apenas dá sombra. Uma sombra igual para todos. Mas que importa aos homens uma árvore que dá sombra! A sombra aproveita-se, quando aderga, goza-se, saboreia-se, mas não se tem nenhuma gratidão para a planta equânime que não no-la reservou para nós, que a dará ao primeiro vagabundo que a procure. Assim, a árvore de boa sombra vive realmente isolada, cercada por uma densa muralha de impenetrabilidade própria e de alheia indiferença."

"Diga ao seu amigo que faça isso."

Palhares sorriu, pôs um confeito na língua e, a remexê-lo na boca, perguntou:

-"Quer jantar comigo?"

-"Obrigado."

- "Sem cerimônia. Temos hoje lá em casa um peixe que me mandaram do litoral, um esplêndido robalo. Presente de um amigo."

-"Tem amigos amáveis."

-"Mas, naturalmente. Prestei a esse um serviço de grande importância, que só eu estava em condições de prestar."

-"Gratidão, nesse caso."

-"Qual!"

-"Esperança de novo serviço..."

-"Talvez"

-"Afeto humano!"

-"Afetos verdadeiros e sólidos! Passam depressa, nada mais fugitivo, não há dúvida; mas verdadeiros e sólidos porque se firmam na realidade viva das relações úteis. Não há outra. Dentro da vida, da vida efetiva, da vida que se vive, não há outra. É isso. É assim. Mas quer ou não quer comer o bom peixe do meu amigo?"

Fonte:
Domínio Público

Cláudio Manuel da Costa (Fábula do Ribeirão do Carmo)

Cláudio Manuel da Costa
  SONETO

A vós, canoras ninfas, que no amado
Berço viveis do plácido Mondego,
Que sois da minha lira doce emprego,
Inda quando de vós mais apartado;

A vós do pátrio rio em vão cantado
O sucesso infeliz eu vos entrego;
E a vítima estrangeira, com que chego,
Em seus braços acolha o vosso agrado.

Vêde a história infeliz, que Amor ordena,
Jamais de fauno ou de pastor ouvida,
Jamais cantada na silvestre avena.

Se ela vos desagrada, por sentida,
Sabei, que outra mais feia em minha pena
Se vê entre estas serras escondida.
...........................................................

Aonde levantado Gigante, a quem tocara,
Por decreto fatal de Jove irado,
A parte extrema, e rara
Desta inculta região, vive Itamonte,
Parto da terra, transformado em monte;
De uma penha, que esposa
Foi do invicto Gigante,
Apagando Lucina a luminosa,
A lâmpada brilhante,
Nasci; tendo em meu mal logo tão dura,
Como em meu nascimento, a desventura.
Fui da florente idade
Pela cândida estrada
Os pés movendo com gentil vaidade;
E a pompa imaginada
De toda a minha glória num só dia
Trocou de meu destino a aleivosia.
Pela floresta, e prado
Bem polido mancebo,
Girava em meu poder tão confiado,
Que até do mesmo Febo
Imaginava o trono peregrino
Ajoelhado aos pés do meu destino.
Não ficou tronco, ou penha,
Que não desse tributo
A meu braço feliz; que já desdenha,
Despótico, absoluto,
As tenras flores, as mimosas plantas,
Em rendimentos mil, em glórias tantas.
Mas ah! Que Amor tirano
No tempo, em que a alegria
Se aproveitava mais do meu engano;
Por aleivosa via Introduziu cruel a desventura,
Que houve de ser mortal, por não ter cura.
Vizinho ao berço caro,
Aonde a pátria tive,
Vivia Eulina, esse prodígio raro,
Que não sei, se ainda vive,
Para brasão eterno da beleza,
Para injúria fatal da natureza.
Era Eulina de Aucolo
A mais prezada filha;
Aucolo tão feliz, que o mesmo
Apolo Se lhe prostra, se humilha
Na cópia da riqueza florescente,
Destro na lira, no cantar ciente.
De seus primeiros anos
Na beleza nativa,
Humilde Aucolo, em ritos não profanos,
A bela ninfa esquiva
Em voto ao sacro Apolo consagrara;
E dele em prêmio tantos dons herdara.
Três lustros, todos d’ouro,
A gentil formosura,
Vinha tocando apenas, quando o louro,
Brilhante Deus procura
Acreditar do pai o culto atento,
Na grata aceitação do rendimento.
Mais formosa de Eulina
Respirava a beleza;
De ouro a madeixa rica, e peregrina
Dos corações faz presa;
A cândida porção da neve bela
Entre as rosadas faces se congela.
Mas inda, que a ventura
Lhe foi tão generosa,
Permite o meu destino, que uma dura,
Condição rigorosa
Ou mais aumente enfim, ou mais ateie
Tanto esplendor; para que mais me enleie.
Não sabe o culto ardente
De tantos sacrifícios
Abrandar o seu nume: a dor veemente,
Tecendo precipícios,
Já quase me chegava a extremo tanto,
Que o menor mal era o mortal quebranto.
Vendo inútil o empenho
De render-lhe a fereza,
Busquei na minha indústria o meu despenho:
Com ingrata destreza
Fiei de um roubo (oh mísero delito!)
A ventura de um bem, que era infinito.
Sabia eu, como tinha Eulina por costume,
(Quando o maior planeta quase vinha
Já desmaiando o lume,
Para dourar de luz outro horizonte)
Banhar-se nas correntes de uma fonte.
A fugir destinado
Com o furto precioso,
Desde a pátria, onde tive o berço amado;
Recolhi numeroso
Tesouro, que roubara diligente
A meu pai, que de nada era ciente.
Assim pois prevenido
De um bosque à fonte perto,
Esperava o portento apetecido
Da ninfa; e descoberto
Me foi apenas, quando (oh dura empresa!)
Chego; abraço a mais rara gentileza.
Quis gritar; oprimida
A voz entre a garganta
Apolo? diz, Apol... a voz partida
Lhe nega forca tanta:
Mas ah! Eu não sei como, de repente
Densa nuvem me põe do bem ausente.
Inutilmente ao vento
Vou estendendo os braços:
Buscar nas sombras o meu bem intento:
Onde a meus ternos laços. . . !
Onte te escondes, digo, amada Eulina?
Quem tanto estrago contra mim fulmina?
Mas ia por diante;
Quando entre a nuvem densa
Aparecendo o corpo mais brilhante,
Eu vejo (oh dor imensa!)
Passar a bela ninfa, já roubada
Do Númen, a quem fora consagrada.
Em seus braços a tinha
O louro Apolo presa;
E já ludíbrio da fadiga minha,
Por amorosa empresa,
Era despojo da deidade ingrata
O bem, que de meus olhos me arrebata.
Então já da paciência
As rédeas desatadas,
Toco de meus delírios a inclemência:
E de todo apagadas
Do acerto as luzes, busco a morte ímpia,
De um agudo punhal na ponta fria.
As entranhas rasgando,
E sobre mim caindo,
Na funesta lembrança soluçando,
De todo confundindo
Vou a verde campina; e quase exangue
Entro a banhar as flores de meu sangue.
Inda não satisfeito
O Númen soberano,
Quer vingar ultrajado o seu respeito;
Permitindo em meu dano.
Que em pequena corrente convertido
Corra por estes campos estendido.
E para que a lembrança
De minha desventura
Triunfe sabre a trágica mudança
Dos anos, sempre pura,
Do sangue, que exalei, ó bela Eulina,
A cor inda conservo peregrina.
Porém o ódio triste
De Apolo mais se acende;
E sobre o mesmo estrago, que me assiste,
Maior ruína empreende:
Que chegando a ser ímpia uma deidade,
Excede toda a humana crueldade.
Por mais desgraça minha,
Dos tesouros preciosos
Chegou notícia, que eu roubado tinha,
Aos homens ambiciosos;
E crendo em mim riquezas tão estranhas,
Me estão rasgando as míseras entranhas.
Polido o ferro duro
Na abrasadora chama
Sobre os meus ombros bate tão seguro,
Quem nem a dor, que clama,
Nem o estéril desvelo da porfia
Desengana a ambiciosa tirania.
Ah mortais! Até quando
Vos cega o pensamento!
Que máquinas estais edificando
Sobre tão louco intento?
Como nem inda no seu reino imundo
Vive seguro o Báratro profundo!
Idolatrando a ruína
Lá penetrais o centro,
Que Apolo não banhou, nem viu Lucina;
E das entranhas dentro
Da profanada terra,
Buscais o desconcerto, a fúria, a guerra.
Que exemplos vos não dita
Do ambicioso empenho
De Polidoro a mísera desdita!
Que perigo o lenho,
Que entregastes primeiro ao mar salgado,
Que desenganos vos não tem custado!
Enfim sem esperança,
Que alívio me permita,
Aqui chorando estou minha mudança;
E a enganadora dita,
Para que eu viva sempre descontente,
Na muda fantasia está presente.
Um murmurar sonoro
Apenas se me escuta;
Que até das mesmas lágrimas, que choro,
A Deidade Absoluta
Não consente ao clamor, se esforce tanto,
Que mova à compaixão meu terno pranto.
Daqui vou descobrindo
A fábrica eminente
De uma grande cidade; aqui polindo
A desgrenhada frente,
Maior espaço ocupo dilatado,
Por dar mais desafogo a meu cuidado.
Competir não pretendo
Contigo, ó cristalino
Tejo, que mansamente vais correndo:
Meu ingrato destino
Me nega a prateada majestade,
Que os muros banha da maior cidade.
As ninfas generosas,
Que em tuas praias giram,
Ó plácido Mondego, rigorosas
De ouvir-me se retiram;
Que de sangue a corrente turva, e feia
Teme Ericina, Aglaura, e Deiopéia.
Não se escuta a harmonia
Da temperada avena
Nas margens minhas; que a fatal porfia
Da humana sede ordena,
Se atenda apenas o ruído horrendo
Do tosco ferro, que me vai rompendo.
Porém se Apolo ingrato
Foi causa deste enleio,
Que muito, que da Musa o belo trato
Se ausente de meu seio,
Se o deus, que o temperado coro tece,
Me foge, me castiga, e me aborrece!
Enfim sou, qual te digo,
O Ribeirão prezado,
De meus engenhos a fortuna sigo;
Comigo sepultado
Eu choro o meu despenho; eles sem cura
Choram também a sua desventura.

Ariano Suassuna (Romance da Pedra do Reino)

A caminho da bela e lendária Pedra do Reino

Inspirada no Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, de Ariano Suassuna, a tradicional cavalgada de São José do Belmonte chega à sexta edição prometendo atrair mais de 800 cavaleiros (sem falar nos turistas "preguiçosos" que fazem o percurso de carro). Este ano, o evento acontece entre os dias 29 e 31 deste mês, oferecendo aos participantes uma chance imperdível de conhecer um pouco mais sobre a "tragédia sebastianista" ocorrida em Pernambuco há 160 anos e conferir algumas das mais típicas manifestações da cultura popular.

Promovida pela Associação Cultural da Pedra do Reino, a Cavalgada relembra o movimento liderado por João Ferreira, em 1838, na chamada Pedra do Reino, na Serra do Catolé, em São José do Belmonte (na verdade composta por duas grandes formações rochosas, uma com 30 e outra com 33 metros de altura). No local, o auto proclamado Rei João Ferreira formou uma comunidade de fiéis prometendo um reino de justiça, liberdade e prosperidade, onde os pobres ficariam ricos e até os pretos renasceriam brancos.

Tudo isso aconteceria depois da ressurreição de Dom Sebastião, antigo Rei de Portugal, desaparecido na África durante a batalha do Alcácer-Quibir, no século 16. No começo, aos fiéis pedia-se apenas que acreditassem, aguardassem e vivessem segundo as leis do Rei João Ferreira (que incluíam o direito de passar a noite com cada noiva da comunidade, no dia do casamento delas!).

Chegou um ponto em que passaram a ser exigidos sacrifícios humanos. João Ferreira (chamado de Dom João II) pregava que Dom Sebastião só desencantaria se a Pedra do Reino fosse lavada com sangue. O resultado foi a morte de 11 mulheres, 12 homens e 30 crianças (sem falar em 14 cachorros). O próprio João Ferreira terminou sendo morto e outro rei assumiu o seu lugar, Pedro Antônio, que só passou um dia no poder.

A Guarda Nacional, integrada por fazendeiros da região, decidiu intervir e mais 22 pessoas morreram (entre sebastianistas e soldados). O então prefeito da comarca de Flores, Francisco Barbosa Paes, descreveu o episódio como "uma das maiores carnificinas acontecidas no Sertão Pernambucano. O caso mais extraordinário, mais terrível, nunca visto, quase incapaz de acreditar-se".

O EVENTO

A história é contada no romance de Ariano Suassuna e revivida anualmente na Cavalgada da Pedra do Reino (que este ano acontece no domingo, 31, precedida de outras celebrações a partir da sexta, 29). Os participantes, com trajes, armas e bandeiras de inspiração medieval, partem da praça central de São José do Belmonte, por volta de 05h da manhã, depois que tiros de bacamarte ecoam pela cidade e o padre abençoa os cavaleiros. Cinco horas depois, chegam à Pedra do Reino, onde é celebrada uma Missa com a presença de cantadores e violeiros, seguida por uma grande festa. Este ano, uma das atrações é a banda Comadre Florzinha.

Convidado especialíssimo, o escritor e secretário de cultura do estado de Pernambuco, Ariano Suassuna, lidera a comitiva com o título de Imperador da Pedra do Reino, concedido pela Associação. Junto a ele segue seu filho, o artista plástico Dantas Suassuna, Rei da Cavalgada, acompanhado da Rainha, Elizandra Carvalho, escolhida por concurso entre as garotas do município. Também na comitiva de frente, os membros da Ordem dos Cavaleiros da Pedra do Reino, em seis pares de vermelho e azul.

Um ritual um tanto mágico parece estar acontecendo, à medida em que os cavaleiros seguem até a Pedra do Reino, entoando tradicionais aboios (cantigas de vaqueiros), com trajes elaborados especialmente para a ocasião. Mais envolvente só mesmo o romance de Ariano sobre o tema, indispensável para quem quiser captar toda a essência do evento.

Para quem não tiver chance de lê-lo, vale ir se familiarizando com a história a parte do Memorial da Pedra do Reino, que será inaugurado no próximo domingo, dia 24, em Belmonte. No local, funcionará um museu com objetos, fotos e documentos sobre as mortes nas pedras e sobre a criação da festa. Uma das salas terá o nome do Imperador Ariano Suassuna.

A obra de Ariano Suassuna

“O assunto da obra esteia-se no mistério da decifração da morte de Sebastião Garcia-Barretto; afinal, é, aparentemente, por estar ligado a ela que o narrador se encontra preso e depondo num processo que constitui(rá) a narrativa. Essa morte é atribuída, pelo narrador, a motivos políticos que se relacionariam à sucessão do trono do Imperador do Brasil, da dinastia de João Ferreira, fanático que se proclamou rei do Brasil, em 1836, na comarca de Vila Bela.

No plano histórico, a década de 30 é marcada por confrontos políticos. Fundem-se o real e o imaginário, para surgimento da ficção, o que corresponde à proposta quadernesca de ajeitar o real para que possa ‘caber nas métricas da Poesia’.

Na verdade, a morte instaura apenas um enigma, gerador de um discurso sobre fatos mais relevantes: a genealogia de Quaderna, que lhe impõe um Destino, as atividades dessa personagem, o desaparecimento, no dia do crime, de Sinésio, filho de Sebastião Garcia-Barretto, e o posterior aparecimento do rapaz do cavalo branco.

Esse assunto apresenta características de epopéia: está em jogo o destino da Vila e, pela megalomania do narrador, o do Brasil; há a volta de um herói, tido por morto, depois responsável por grandes façanhas que incluem a vingança do pai assassinado e o estabelecimento de uma nova ordem (‘um reino de glória, justiça e paz’), condizente com os mais elevados destinos da Raça e da Nação brasileira, se amolda ao projeto de Quaderna.

(...)

O rapaz do cavalo branco e o próprio Quaderna são ‘assinalados’, isto é, devem cumprir um Destino como os heróis Ulisses, Enéias, Gama.”

(MICHELETTI, Guaraciaba. Na Confluência das Formas, ed.Clíper, 1997, p. 75-76)

“Para atingir seus objetivos, Quaderna, respaldando-se na sua tradição familiar, funda a religião Católica-Sertaneja, que toma de outras princípios básicos, refundindo-os, de acordo com seus propósitos.

Desta religião, essencialmente pragmática, nasce outra demanda: a política. As duas confundem-se no ‘rapaz do cavalo branco’, que se revela herdeiro do mito de D.Sebastião e da tradição cavaleiresca do Santo Graal. D.Sebastião é o casto guerreiro que, em seu cavalo branco, em Alcácer-Qibir, luta contra os mouros, me defesa dos ideais cristãos. Roberto do Diabo, depois pai de Ricarte da Normandia, um dos Doze Pares de França, purgou suas culpas, redimiu-se, quando montado em seu cavalo branco, que ‘era encantado’, livrou o reino de sua amada de um grande traidor. Ambos, mito e romance, partilham da crença de que os novos tempos são anunciados pela chegada do predestinado.”

(MICHELETTI, p. Cit., p. 66)

A PEDRA DO REINO

Publicado em 1970, A pedra do reino continua sendo considerado um romance completo, pois até hoje as duas outras partes da trilogia não vieram a público, pelo menos em edições comerciais. Em vista disso, a possibilidade de análise é um tanto precária, apesar de a obra oferecer, em suas mais de 600 páginas, matéria suficiente não apenas para ensaios como para livros inteiros.

De leitura um pouco árida na primeira centena de páginas, A pedra do reino, mesmo isolada da trilogia de que faz parte, é um verdadeiro monumento literário que se liga à cultura caboclo-sertaneja nordestina, muito marcada pelas tradições do mundo ibérico (Portugal e Espanha), trazidas pelos primeiros colonizadores europeus e transformadas ao longo dos séculos.

Em linhas gerais, A pedra do reino é a apresentação do memorial - obviamente em primeira pessoa - de D. Dinis Ferreira - Quaderna, que, preso em Taperoá, faz sua própria defesa perante o corregedor e, para tanto, conta a história de sua família, das desavenças, das lutas e das controvérsias políticas, literárias e filosóficas em que se vira envolvido. Como diz um crítico, na obra de Suassuna podem ser percebidas "duas distintas tradições a informarem a concepção de mundo do herói: a tradição mítico-sertaneja e a tradição erudita" (J. H. Weber). O que faz, como no caso de todas as demais obras da nova narrativa, com que A pedra do reino se diferencie claramente do romance brasileiro tradicional.

O Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta foi publicado no Rio de Janeiro em agosto de 1971. Seu sucesso foi imediato e as reedições traduzem o interesse dos leitores (janeiro de 1972, agosto de 1972).

Resumir A Pedra do Reino seria, sem dúvida, destruir uma obra composta de idas e vindas, de momentos líricos e cômicos, de debates políticos e filosóficos, de múltiplas citações, alusões e referências históricas e literárias. Basta esboçar o argumento narrativo para se convencer da dificuldade da empreitada : Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, poeta, humorista, memorialista e bibliotecário da Vila de Taperoá, no sertão da Paraíba, decide relatar os acontecimentos que o trouxeram onde se encontra no início do livro, ou seja na cadeia. Elabora assim um Memorial dirigido «aos magistrados e soldados, toda essa raça ilustre que tem o poder de julgar e prender os outros […] aos nobres Senhores e belas Damas de peitos brandos…» Após a evocação do fator determinante, isto é a chegada do Donzel Branco, seu primo, Sinesio o Alumioso, e o assassinado do tio de Quaderna, éste conta a história de sua família, ligada à proclamação de um reino, estabelecido sobre duas pedras «encantadas», situadas no Alto Sertão de Pernambuco. Descreve seu itinerário pessoal e até íntimo : sua infância, sua formação poética com um cantador, a descoberta do passado da família e do mundo da cavalaria, a tomada de consciência de herdeiro do reino, a longa viagem iniciática que lhe permite reencontrar este passado, seus mestres e os problemas filosóficos, literários e políticos que os ocupam, o espírito aventureiro que leva Quaderna a organizar a sua reconquista do Reino Perdido e lhe permitirá talvez, um dia, revelar a verdade sobre a morte rocambolesca do seu tio. A chegada do Rapaz do Cavalo Branco, misterioso e perigoso, será o início da grande aventura de Quaderna, sua "Demanda do Graal" : demanda da identidade do rapaz, busca da verdade, procura de um tesouro perdido mas, antes de mais nada, espera e procura da Revelação, do «Sacramento» que o tornará Imperador do Sertão e Gênio da Raça. A aventura de fato não começou : o romance inteiro não é senão preparação à aventura, relato mesclado de muitas histórias ou anedotas ligadas, direta ou indiretamente, à narrativa principal.

1. Uma Pedra movediça ou a constelação de variantes

Se o Auto da Compadecida foi imediatamente traduzido e representado em várias línguas no mundo inteiro, A Pedra do Reino, apesar do entusiasmo que desperta em críticos e leitores, assustou os editores estrangeiros pelas suas dimensões (625 páginas) tanto quanto pelo seu mundo denso de referências culturais brasileiras, eruditas e populares. As editoras alemãs tomaram a frente : a edição, em dois volumes reunidos numa caixinha, teve um formato semi-bolso, uma diagramação atraente e uma capa original.

Os editores franceses reagiram positivamente à leitura do romance mas pretenderam aplicar uma regra então quase generalizada para as obras volumosas de autores estrangeiros pouco conhecidos : a redução do volume por amputação de uma ou várias partes. Jorge Amado já tinha sido vítima deste procedimento e sua Tereza Batista só foi editada na sua integridade textual nos anos 90 : na primeira edição francesa, faltavam o primeiro e o último capítulos o que resultava num considerável empobrecimento do significado da obra.

1.1. Informado, Ariano Suassuna começou recusando mas reavaliou posteriormente a sua posição e entregou (à sua tradutora), em 1976, uma primeira tentativa de redução textual, uma variante do primeiro livro do Romance d’A Pedra do Reino, intitulada A Pedra do Reino, versão para Franceses e outros estrangeiros sensatos. Mas as negociações de edição foram suspensas e a reescritura parou neste ponto. Esta primeira versão reduzida foi vertida para o francês e figura, com autorização do autor, em anexo da minha tese de Doutoramento em Letras, na Universidade de Paris III , juntamente com poemas e textos de outros autores, membros do Movimento Armorial. Esta «Antologia Armorial» não saiu, até o presente momento, das páginas da tese.

Contudo, o trabalho de redução assim iniciado não restringiu somente o volume global de palavras por capítulo como atingiu aos poucos a própria estrutura do romance, obrigando o autor a uma re-visão de sua obra. Deste modo, Suassuna elabora uma variante que não se destina mais exclusivamente à tradução. A redução do texto implica corte de parte do volume inicial, as duas primeiras partes que relatam a infância e a formação literária do narrador-protagonista, Quaderna. Por outro lado, são suprimidas varias citações e alusões diretas ou indiretas a obras literárias, em particular a folhetos, cantigas ou quadras populares.

1.2. Quaderna, o Decifrador (tapuscrito com correções manuais, datado de 1978) reduziu-se de fato a um primeiro livro, A Pedra do Reino ou a Quarta-feira de Trevas. A matéria narrativa continua distribuída em partes, intituladas «Canto» e não «Livro» como na edição de 1971. Estas três partes são :

Canto I – Os Três Irmãos Sertanejos nas teias da sorte cega

Canto II – Os Gaviões Cegadores

Canto III – A Demanda do Sangral

Apesar da transformação do intitulado do segundo canto, podemos encontrar no conteúdo narrativo do livro bem como no intitulado dos «folhetos» ou capítulos, uma exata correspondência com o conteúdo dos Livros III, IV e V da versão editada em 1976.

Suassuna acaba por redistribuir os elementos de sua trilogia : este primeiro volume de Quaderna o Decifrador, A Pedra do Reino ou a Quarta-feira de Trevas, deveria ser seguido por um segundo volume, provavelmente intitulado As infâncias de Quaderna, que retomaria a matéria narrativa dos dois primeiros livros da edição de 1971, parte da História d’O Rei Degolado nas Catingas do Sertão, além dos folhetos publicados sob este título em forma de folhetins semanais no Diário de Pernambuco, de 2 de maio 1976 a 19 de junho de 1977.

Sem prazo para concluir estas transformações do segundo e do terceiro volume, Suassuna prefere manter inédita a nova versão para reeditar os três volumes de uma só vez ou com poucos mêses de distância. Contudo, em curto artigo, datado de 9 de agosto de 1981 e publicado no Diário de Pernambuco, Ariano Suassuna comunica a sua retirada da vida pública e da literatura. O aparente, e tão apressadamente comentado, fracasso do seu engajamento cultural [no Movimento Armorial] juntou-se às dúvidas e questionamentos de um escritor e de um homem que se declarou sempre «perturbado por sonhos, químeras e visões até utópicas da vida e do real».

1.3. Em 1994, antevendo a possibilidade concreta de traduzir A Pedra do Reino e tendo encontrado um editor francês decidido a publicá-la, submeti a proposta a Ariano. A aceitação foi seguida, dois mêses mais tarde, pela remessa de um tapuscrito intitulado A Pedra do Reino, versão para Europeus e Brasileiros sensatos. O título era evidentemente adaptado da primeira versão reduzida e destinada à tradução (a de 1976), contudo Ariano, ao incluir os «Brasileiros» entre os destinatários desta nova obra, manifestou claramente o caráter definitivo desta nova estrutura narrativa e que será algum dia publicada em português. Esta versão retoma o texto de Quaderna, o Decifrador, com muitas correções manuscritas, algumas supressões e alguns acréscimos4, e mantém a mesma estrutura em folhetos (capítulos) de mesmo título, suprimindo contudo a divisão em partes ou «cantos» da versão de 1978. Os folhetos apresentam-se portanto uns após os outros sem qualquer separação ou forma de estruturação.

Este livro, traduzido por mim, foi publicado pelas Editions Anne-Marie Métailié em fevereiro de 1998, poucos dias antes da realização do Salão do Livro de Paris, cujo convidado de honra era, naquele ano, o Brasil. A edição foi primorosa e reproduziu na capa uma xilogravura colorida de Gilvan Samico, intitulada «Alexandrino e o Pássaro de Fogo», escolhida pela editora entre as muitas sugestões apresentadas, sem saber que esta gravura tinha sido preferida por Ariano Suassuna para ilustrar a capa do primeiro disco LP do Quinteto Armorial (capa conservada na edição em CD).

Dispomos portanto de quatro textos distintos d’A Pedra do Reino :

A. O Romance d’A Pedra do Reino, de 1971, editado pela José Olympio, só se encontra hoje nos sebos e saiu há muito tempo do catálogo da editora. Desconfio que esta situação de «quase desaparecimento» seja aceita com certa satisfação pelo autor que deixa se criar um hiato antes da publicação da nova versão;

B. A Pedra do Reino, versão para Franceses e outros estrangeiros sensatos, de 1976, ensaio de redução do primeiro livro (ou parte) que foi interrompido. Foi traduzido para o francês e tornado público como anexo de uma tese (ou seja está inédito para o grande público!);

C. Quaderna, o Decifrador : Livro I – A Pedra do Reino ou a Quarta-feira de Trevas, de 1978, versão completa e inédita em português ;

D. A Pedra do Reino, versão para Europeus e Brasileiros sensatos, de 1994, versão corrigida do texto anterior, inédita em português e publicada em francês em tradução minha, com o título de La Pierre du Royaume, version pour Européens et Brésiliens de bon sens.

Eis o estado da questão em matéria textual : a Pedra do Reino continuará sem dúvida alguma a se mexer e esperamos que chegue a uma edição completa e satisfatória.

2. O processo de tradução de La Pierre du Royaume

Existem dois tipos de tradutores : os que traduzem por amor à língua e os que traduzem por amor a uma obra literária. Não considero evidentemente aqueles que traduzem por apego ao dinheiro porque geralmente desistem logo de ser tradutores! Na França, tradutor tem estatuto, tem tarifa sindical, tem associação representativa. Tradutor de português tem principalmente dificuldades para encontrar um editor que queira publicar obras da literatura portuguesa ou brasileira.

Eu me situo objetivamente entre os tradutores que traduzem por amor a uma obra literária : descobriram um autor ou um livro e querem fazer compartilhar aos seus compatriotas – que não têm a sorte de poder ler no original – o prazer desta leitura. A minha leitura d’A Pedra do Reino foi apaixonada e apaixonante. A tradução do livro tornou-se portanto um objetivo. Durante anos, andei nas editoras parisienses em cada viagem à França, deixava o livro, umas páginas traduzidas e esperava o diagnóstico. Ele sempre foi o mesmo : a obra era magnífica, a tradução de qualidade mas… e no «mas» entrava segundo os anos e as editoras : a crise da edição francesa, a falta de interesse para a literatura estrangeira, o tamanho do livro, o custo da tradução, a situação financeira da referida editora etc.

Em 1994, a França lia e a-do-ra-va um escritor brasileiro, que fazia um sucesso inacreditável e vendia até cinco edições paralelas de um mesmo livro. Precisa dizer o nome ? Pois era mesmo aquele que vocês imaginam : Paulo Coelho. Esta situação me deu força para ir à luta novamente. Resolvi procurar desta vez uma pequena casa editorial que tinha 15 anos de existência e um invejável catálogo de autores brasileiros : Machado de Assis, Euclydes da Cunha, Guimarães Rosa, Cornélio Penna e Raquel de Queiroz figuravam, entre outros, na sua «Biblioteca brasileira». Não precisei de nenhum esforço para convencer Anne-Marie Métailié da importância da Pedra do Reino : mencionei a Versão para Franceses e outros estrangeiros sensatos de 1976 e o Quaderna, o Decifrador, de 1978. Poucos mêses depois, o contrato estava assinado e Ariano me mandava a versão definitiva, corrigida e transformada em Versão para Europeus e Brasileiros sensatos.

O meu trabalho de tradução, correção, releitura e recorreção durou 3 anos, sem exclusiva, claro, porque tradutor, na França como em qualquer parte do mundo, dificilmente vive graças a suas traduções.

Eu pensava conhecer o livro : afinal tinha lido inúmeras vezes, consultado, anotado, fichado, tinha escrito uma dissertação de mestrado sobre A Pedra do Reino como novela de cavalaria e uma tese de doutorado sobre o Movimento Armorial em que a obra figurava e era analisada pormenorizadamente. Tinha feito comunicações, conferências, debates mas nunca havia experimentado esta relação íntima com o texto, este pisar no rasto do autor, este passar pelas próprias palavras as emoções, as dúvidas, as alegrias. A tradução me revelou dimensões da obra que a crítica e a análise não podiam alcançar mas, em compensação, sem este trabalho anterior de longos anos de pesquisa e aprofundamento não somente deste livro senão da obra completa de Suassuna e dos integrantes do Movimento Armorial, nunca teria ousado enfrentar tamanho desafio.

A Pedra do Reino é um livro oral, ele é dito, contado, por um narrador falante e mentiroso, que envolve o seu leitor em conversas, relatos e discursos brilhantes interrompidos por crises de sinceridade ou de medo. Eu traduzi este livro falando em voz alta, frente ao meu computador; revisava teatralizando e muitas vezes preferi tal palavra a tal outra simplesmente porque soava melhor. Esta busca do tom, do som, da justeza da conversa me levou freqüentemente a simplificar as formas verbais porque o subjuntivo, por exemplo, não tem o mesmo valor nem a mesma significação social em português e em francês.

Além da dimensão oral, A Pedra do Reino é um livro visual, com ilustrações reproduzidas na edição de 1971 em página inteira ou integrada no texto. Para a edição francesa, Ariano Suassuna retrabalhou seus desenhos a modo de vinhetas situadas na abertura de cada folheto, lembrando as iluminuras e iniciais ricamente ornamentadas dos manuscritos antigos. O efeito é surpreendente e belíssimo.

O léxico apresenta-se sempre como a dificuldade mais visível de uma tradução. A pesquisa lexicográfica representa sem dúvida uma parte importante do trabalho : alguns termos de geografia, culinária ou história foram mantidos no texto, sem nota quando se tratavam de termos já dicionarizados, como caatinga ou sertão, ou com nota de rodapé, retomados num glossário no final do livro, quando muito específicos como foi o caso de certas manifestações folclóricas ou plantas.

Por outro lado, o respeito do texto obriga a desconfiar do peso adquirido por certos termos na língua-meta : um dos meus leitores (foram vários) criticou minha tradução, aparentemente preguiçosa, de «um Negro meio sangue de Índio-Tapuia» (un Noir demi-sang d’Indien-Tapuia) e sugeriu «um Nègre métis d’Indien-Tapuia». Desprezando este «meio-sangue» que, em português como em francês, refere-se à mistura de sangue da raça eqüina, ignorou a paixão do narrador Quaderna pelos cavalos : as comparações entre homens e cavalos são freqüentes no romance e sempre positivas enquanto o termo «mestiço» conserva, em ambas as línguas, uma carga semântica negativa.

Outro objeto de debate, o nome do Estado, a Paraíba. A prática habitual dos geógrafos consistiria em traduzí-la por «la province du Paraïba», termo que me pareceu de imediato muito estreito para designar o que, para o narrador, representa um verdadeiro país e até o centro do Império do Sertão, seu território mítico. A estrutura federal do Brasil impõe, por outro lado, de não assimilar um Estado a uma simples província, que se define em relação a um centro, numa perspectiva centralizadora e jacobina inaceitável no Brasil. O Estado da Paraíba apresenta-se nesta obra como um país designado no feminino em razão do seu final em –a. Escrever-se-á portanto la Paraïba como se escreve la Louisiane ou la Californie. Le Paraïba, no entanto, continuou designando o rio Paraíba e Paraïba, «tout court», foi reservado à capital do Estado que mudou de nome em 1930 para escolher o nome do seu Presidente assassinado, João Pessoa.

La Pierre du Royaume, version pour Européens et Brésiliens de bon sens não obedece, portanto, a critérios acadêmicos : os famosos exercícios de aprendizagem de língua estrangeira, latim ou grego, version ou thème, que a universidade francesa continua valorizando ao extremo, para as línguas vivas tanto quanto para as mortas. Todos os anos, por ocasião da preparação dos concursos que dão acesso à carreira docente (Capes e Agrégation) as traduções das obras inscritas ao programa são analisadas, dissecadas e geralmente condenadas por professores universitários que perseguem o «faux-sens», o «contre-sens», o «solécisme» ou qualquer um destes graves pecados da vida docente. E propõem textos impecáveis, conservando todos os modos e pretéritos perfeitos e imperfeitos, mas geralmente textos mortos, destruídos pelas marteladas conjugadas da erudição e da gramática. Não estou defendendo o erro e muito menos a aproximação ou a falta de rigor mas, como no teatro, a tradução deve se tornar de algum modo interpretação para conseguir atingir a verossimilhança discursiva e a poética.

Assim, me atrevo a concluir esta reflexão com a ajuda de Samuel, personagem de A Pedra do Reino :

«[…] quando um Poeta brasileiro ou português traduz uma obra estrangeira, para mim, o original fica sendo o trabalho dele. Sou nacionalista, e, podendo, pilho os estrangeiros o mais que posso! Para mim, Manoel Odorico Mendes é o autor dos originais da Ilíada e da Eneida brasileira : Homero e Virgílio são, apenas, os tradutores gregos e latinos dessas obras dele! Castilho é o autor do Fausto e do Dom Quixote, assim como José Pedro Xavier Pinheiro é o verdadeiro autor da Divina Comédia que Dante traduziu para o italiano!»

Posso portanto com tranquilidade e orgulho assinar este texto :
Idelette Muzart Fonseca dos Santos
autora de La Pierre du Royaume,
Version pour Européens et Brésiliens de bon sens,
obra traduzida para o português por Ariano Suassuna.


Fontes:
http://educaterra.terra.com.br/literatura/litcont/litcont_6.htm)
http://www.geocities.com/ail_br/lapierreduroyaume.html)