domingo, 10 de março de 2013

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia XV)

Primeiro Fausto

Dois Diálogos

I
— Febre! Febre! Estou trêmulo de febre
E de delírio...]
Ancião, não podes tu
Arranjar-me um remédio para a vida?
Quero vivê-la sem saber que a vivo
Como tu vives.
Atordoar-me-á isto a alma toda,
Toda, até dentro, muito dentro, velho?
— Não teentendo], mas se é esquecer
Que queres, bebe...
— Quero, quero, vamos....
Esqueçamos-nos. Tens algo de mais forte
P'ra] mais do que esquecer? depressa, diz...
— Mal te compreendo, mas não tenho.
(FAUSTO bebe sofregamente)
Estranha e horrível criatura!
Não é vício
Nem crime, nem tristeza, nem pavor
Propriamente pavor, o que obscurece
Como uma escuridão de dentro d'alma
Toda a vida e expressão de sua face.
E essas palavras de que usou — "esquecer
A vida"; "mais do que esquecer"; "em mim
Acabará então parte de mim" —
Que significam?
Não sei, mas sinto
Que condizem, secreta e intimamente,
Com esse íntimo ser que eu não conheço;
Qualquer que seja essa desgraça, estranho,
Dorme e ou esquece ou aconteça em ti
Isso que semelhante ao esquecer
Desordenadamente me disseste
Desejar no teu íntimo...
Dorme, e que o filtro opere no silêncio
Da tua alma obra interior de paz
E ao descerrares para mim os olhos
Eu lhes veja a expressão já transmudada
Para compreensível e humana
Expressão de um humano sentimento.
Te adormeça a existência intimamente
E ao escuro desejo que tu tens.
(Vai para o levantar mais retrai-se)
Não; dorme onde caíste
Eu sou outro que os homens, ó ancião,
O teu filtro de paz e esquecimento
Não me faz esquecer e só a sombra
De uma possível paz me entrou na alma.
Para a paz que eu queria, isto que tenho
É como archote para a luz do sol.
Intimamente nada se passou.
Paralisaste em mim a engrenagem
Do pensamento e sentimento antigos
Não tornaria, eu sinto-o, a sentir
O que sentia antigamente. Foi-se
Não sei como o interior do meu ser
Com suas intuições, mas não se foi
A memória terrível do horror
Da minha vida antiga...]
Não fales mais. Eu vou...
(pondo-se em pé)
Eu vou, não sei aonde ... Como...] treme,
Com que debilidade e sentimento
De estarmudado] o corpo todo. Velho,
Adeus; quisera ter achado em ti
podia ter achado. nada valem. Eu
Deveria ao pedir tê-lo sabido;
Mas... Não tens outro, diz-me... Tu que filtras
venenos mais subtis
Para a existência?
— Há um filtro
Diferente daquele que tomaste;
Diverso na intenção com que obra n'alma,
Mas parecido no fazer esquecer.
— Como diverso na intenção?
— Em vez
De apagar extinguir], adormecer,
Faz — com terrível excitar de vida —
Nascer n'alma um conflito de desejos
Um desejo de tudo possuir,
De tudo ser, de tudo ver, amar,
Gozar, odiar, querer e não querer,
Reunir vícios e virtudes — tudo
Como que na ânsia férvida dum trago
Da taça do existir.
— Tu vendes-mo... Ah! não, que eu nada tenho
Nem sei se tive ou poderia ter.
Tu dás-mo, velho. Não te servirá
De nada ...]
Quem o fez?
Por que o fez? Onde o tens? Repete mesmo
O que de seus efeitos me disseste...
Que me decida ou não a beber dele,
Esse filtroque a ti] de nada serve
Dá-mo, pois.
— Não to dou.
— O filtro, velho.
Não me enfureças, vá; o filtro!
— Não to dou.
— O filtro!
— Não to posso dar.
— O filtro...
— Para que avanças? Eu que mal te fiz?
— O filtro; dá-me o filtro.
— Mas não posso
— Velho, repara em mim. Há na minh'alma
Uma ira calma e fria! Foge que ela
Na ação te mostre o que é.
— Não posso dar-te.
Em verdade to digo, o filtro. Eu
Fiz-te o bem que pude; porque então
Avançando assim calmo para mim
No horror de qualquer outra intenção
Te vejo o mesmo sempre. Poupa-me isso
Terrível que há em ti e que não trais
Em movimento ou vaga intimidade
Do olhar... Piedade, piedade...
Piedade, senhor!, Eu dou-te o filtro,
Eu dou-te o filtro. Piedade, eu dou...
(FAUSTO estrangula-o ...])
(após matar)
Nem sinto horror, nem medo, ou dor, ou ânsia,
Nem qualquerforma] de estranheza sinto
Pelo que fiz por mais que tente querer
Sentir ...]
É uma alma morta ante um corpo morto
Compreendo bem o que sentir eu devo
Mas não consigo mesmo imaginar-me
Sentindo-o ...]
quanto é de horror
A morte, um ente morto, e o mistério
Disto tudo. Sim, sinto-lhe o mistério...
Mas este sentimento de mistério
Não se me liga a um sentimento
Queuna] esse corpo a mim, que fiz
O que de misterioso está ali.
Tremo ao sentir quanto é mistério a morte...
Procuremos o filtro...]

II

Reza por mim, Maria, e eu sentirei
Uma calma d'amor...] sobre o meu ser,
Como o luar sobre um lago estagnado...
Dize: Fazei feliz a quem eu amo,
Cujos olhos não choram por não ter
Na alma já lágrimas para chorar;
Que tendo erguido o seu pensar ao cume
Do humano pensar.... Não, não importa,
Não digas nada, reza e que a tua alma,
Compadecendo-se de mim, encontre
Os termos, as palavras que na prece
Murmurará... Choras? Fiz-te chorar?
— Sim... Não... Eu choro apenas de te ver
Triste ...], sem que eu compreenda
Tua tristeza, meu amor. Vem ela
De alguma dor — oh, dize-me! partilha
Comigo a tua dor, que eu te darei
O meu carinho, porque te amo tanto...
— Tu amas-me, tu amas-me, Maria?
— Ah, tu duvidas? Meu amor, duvidas?
Se te amo, por que hás de
Tu duvidar de mim? Ah, se palavras
Podem levar a alma nelas, Fausto;
Se o amor, este amor como eu o sinto
Pode dizer-se sem o duvidar;
Se o que eu sinto em minh'alma se] te vejo,
Se sinto o teu pavor, quando penso
Em ti, amor, em ti; se olhares, beijos,
Podem mostrar o amor, todo o amor —
Crê, que as minhas palavras, os meus beijos,
O meu olhar têm esse amor.
Eu não sei dizer mais; não aprendi
Como o amor falar, não ...] aprendi
Porque o amor não fala e] não pode
Dizer-se todo, senão não seria
Amor...]
Mas eu amo-te, Fausto! Ah, como te amo!
(à parte)
— Aquilo é amor... eu, pois, nunca amarei
Não posso
Fazer erguer em mim um sentimento
Que dê as mãos àquele. E, de o não poder,
Eu mais frio me sinto, mais pesado
N'alma, na minha desconsolarão.
Como me sinto falso, falso a mim...]
Falso à existência, falso à vida, ao amor!
(alto)
Perdoa, amor...
(à parte)
Amor! Como me amarga
De vazia em meu ser esta palavra
Como de isso assim ser me encolerizo!
(alto)
Perdoa, meu amor!
Cedo aprendi a duvidar de tudo
Por duvidar e mim, sem o querer,
Sem razão de o querer ou de o pensar
Mas eu creio em ti, Maria,
Eu creio em ti... Como és bela!
Não, não chores
Quero falar ternura e não o sei.

Fonte:
Fernando Pessoa . Primeiro Fausto. http://www.cfh.ufsc.br/~magno/fausto.htm

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