sábado, 16 de março de 2013

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 21. Rufina (5)

Tornei a ver a minha Rufina, afinal.

Corria eu os olhos pelos passageiros, com essa curiosidade vaga, sem garra nem asa, que nos resta nas horas de fadiga. Vi num banco de trás o prático de farmácia, com um livro de Allan Kardec sobre os joelhos e a fazer gracinhas a uma criança, cuja mãe era uma guapa mocetona. Vi o simpático Berredo, inimigo da Medicina, médico amador. Benzi-me em espírito com a canhota, e desviei os olhos: dei com eles num banco todo ocupado por mulheres idosas e feias, não sei se mais idosas do que feias, e tinham os cabelos entre o grisalho e o branco amarelado. Mas a velhice é uma coisa venerável. Contemplei aquelas caras a ver se conseguia extrair de alguma delas a imagem reconstituída de uma beleza decomposta. Não o consegui. Teriam talvez uma espécie de beleza interior. Mas por que então não se revelava cá fora ao menos como o lume vermelho e mortiço de um forno velho?

Pus-me a passear os olhos pelo tejadilho, pela rua, pelas pontas de meus dedos. De repente, quem havia de descobrir! Lá no fundo, sentadinha entre uma preta gorda e um bigodudo vendedor de loterias, Rufina! a própria, a autêntica, a única, a olhar para mim, sorrindo como antiga conhecida -a boa criatura! Toda ela era uma só imagem de lindeza una e vibrante como uma interjeição.

Trajava de branco e tinha uma gola alta que lhe dava ao pescoço, ao ombro e à cabecinha redonda um quê dessa graça aconchegada e sólida, que se encontra nas frutas perfeitas e nos legumes viçosos. Mergulhei-me na figura de Rufina.

Nisto, veio de lá o prático de farmácia, marinhando pelo estribo. Alegou que me queria cumprimentar, e de fato realizou esse rito com a mais intempestiva lentidão. Relanceava os olhos para Rufina, uns olhos de emplastro, sob cujas apalpadelas a moça baixava os seus. Depois, saltou. -Lamentei sinceramente que não tivesse caído. Senti ganas de lhe saltar no rasto como uma onça atrás de um quati, e meter-lhe a garra pelo gasnete, e batê-lo pelo chão e pelas paredes.

Quando o bonde chegava à primeira esquina, o condutor subiu ao meu banco, que era o da frente, para repor em zero o relógio de marcação das passagens. Incomodado pelo intruso, passei provisoriamente para o banco imediato, dando costas à linda criatura. Tão depressa o condutor se retirou, voltei para o meu primitivo posto. Mas a moça tinha desaparecido. Saltara na esquina, que já ia longe.

Precipitei-me para a rua, corri para trás, inspecionei tudo, barafustei; nada. Sacudiu-me então uma tal intensidade de desespero e de cólera, que me pus a rir e a rilhar os dentes.

Foi este o dia mais negro dos meus últimos dez anos. Dei ponto na repartição, e fui fazer um passeio de bêbedo por bairros distantes e ignorados.

Fonte:
Domínio Público

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