segunda-feira, 31 de maio de 2021

Adega de Versos 25: Isabel Furini

 

Luiz Damo (As Faces da Trova) I

A chuva desce a galope,
vinda no lombo dos ventos,
sem cabresto, o ralo entope,
causando transbordamentos.
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A noite, tão devagar,
faz despertar a estrelinha,
que guia à luz do luar
os passos de quem caminha.
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Chove, calma e mansamente,
a água corre rumo ao mar,
fazendo toda a semente
em fruto se transformar.
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Como a "terra prometida"
que os ancestrais procuraram,
desde o porto de partida,
…os imigrantes buscaram.
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Dá mais luz à minha estrela,
ó Deus, fonte que a ilumina!
Porém se não merecê-la,
brilhe a minha lamparina.
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Decisões precipitadas,
requintadas e vistosas,
logo são decapitadas
por espadas enganosas.
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Deixe o mundo, ó ser pensante,
melhor do que o conheceu!
Ninguém muda o circundante
sem antes mudar o seu...
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Jamais a inveja assassina
se torne arma de batalha,
porque a justiça divina
pode tardar, mas não falha.
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Mal admite alguém chegar,
no desfecho da jornada
e ter que seus bens deixar
partindo daqui com nada.
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Na mesa, se o merecemos,
dai-nos, ó Deus, nosso pão
e às falhas que cometemos
vos pedimos o perdão.
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Não gere a imaturidade
conflitos de gerações
e a divergência de idade
não termine em agressões.
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Não lastimes teu passado
se não foste um vencedor.
() que ontem viste plantado
foi por outro semeador.
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Não pode alguém conquistar
seu sonho, sem atitudes,
tampouco, deve faltar
a ação dentro das virtudes.
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Não tem densa escuridão,
nem treva que se mantém,
quando a luz da gratidão
brilhar junto à fé que tem.
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No horizonte, um vasto véu,
abre à aurora, um palco lindo,
como se os portais do céu
também ficassem se abrindo.
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Nunca erige a paz na terra
quem difunde a luta insana,
transforma o lar numa guerra
e o mundo num mar de lama.
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O canto dos passarinhos
encanta as verdes florestas
e na sombra dos seus ninhos
os grilos fazem serestas.
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O homem, conspurcado, mente,
num mergulho à perversão,
porém tendo Deus presente,
nele encontra a conversão.
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O homem só escuta o que quer
pois, mal sabe ele escutar,
ouve demais e sequer
para um pouco a meditar.
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O tempo não corre, voa,
não posso seu fim prever,
se a vida não fosse boa
ninguém ousava viver.
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O tempo, um algoz horrendo,
cometendo atrocidades,
assusta ao vermos morrendo
entes com tenras idades.
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Para que ao sucesso flua
de uma forma natural,
é mister que contribua
com o esforço laboral.
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Pra que a veste fulgurante,
num Natal tão reluzente?
Se o próprio Aniversariante
do encontro estiver ausente!
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São tantas as soluções
existentes e possíveis,
mas, nenhuma, sem ações,
traz medidas previsíveis.
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Se as dores do corpo agridem,
a alma sofre a punição,
dois entes que se dividem
frente à mesma condição.
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Sendo opacos os sorrisos,
tende em pranto, a dor verter,
que em luz, rostos indecisos,
não conseguem reverter.
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Tal fogo que arde ligeiro,
às vezes, a dor não passa,
restam cinzas do braseiro
e das chamas a fumaça.
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Temos, no mundo dos vivos,
mortos, que vivem na mente,
uns por laços afetivos
e outros, lembrados, somente.
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Toda a barreira encontrada
o homem possa superar,
pondo na pedra da estrada
uma flor em seu lugar.
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Toda a criança de outrora,
com menos, se divertia,
tendo mais, hoje, ela implora,
por um pouco de harmonia.
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Toda a lágrima que escorre
de um rosto leve ou cansado,
lava o sinal que decorre
de algo alegre ou fracassado.
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Todos plantem esperanças
nos campos da humanidade,
para colher, das andanças,
bons frutos na eternidade.

Fonte:
Luiz Damo. As faces da trova. Caxias do Sul/RS: Ed. Do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

domingo, 30 de maio de 2021

Varal de Trovas 504

 


Milton Sebastião Souza (O Canto da Sereia)

Contam as lendas antigas que os marinheiros que escutavam o canto das sereias ficavam enfeitiçados pela maravilhosa melodia e terminavam perdendo os seus rumos e até colidindo os seus navios contra as ilhas onde moravam estas adoráveis criaturas. Estes belos seres, metade mulher e metade peixe, causavam as desgraças de tantos, que afundavam as suas embarcações e morriam nas armadilhas escondidas por trás daquele enfeitiçante canto. Verdadeiras ou não, as histórias das sereias aterrorizavam muitos homens do mar, que procuravam desviar das rotas onde, segundo as lendas, moravam as sereias.

No meio do oceano não deve ser difícil desviar de uma ilha onde tememos nos defrontar com perigos desconhecidos. Basta remar para outro lado, mudar a posição das velas ou, simplesmente, virar a roda do leme para outra direção. Acontece, porém, que ninguém consegue desviar do “canto da sereia moderno” dos nossos dias: a publicidade. E, por causa disso, tantas vidas naufragam no mar profundo do consumismo desenfreado. São poucas as pessoas que escapam dos apelos publicitários que invadem nossos olhos e nossos ouvidos desde o nascer do dia até o momento em que vamos dormir para refazer as energias. Antigamente, nossos filhos e netos rezavam: “Com Deus me deito e com Deus me levanto...”. Hoje a oração é outra: “Com a publicidade me deito e com a publicidade me levanto...”. A publicidade – sereia moderna – canta e encanta com suas “melodias” que prometem fama, beleza, riqueza e tantas outras “maravilhas” que todos nós sonhamos sempre conquistar.

As antigas sereias seduziam homens feitos e experimentados. A “sereias” atuais enfeitiçam seres humanos de todas as idades, desde o bebê que está apenas começando a caminhar e falar até o ancião que vegeta numa cama ou cadeiras de rodas. “Compre o talco tal, que perfuma melhor o seu bebê”; “Só o sabonete xis deixa a pele macia e sedosa”; “O melhor celular do mundo tira fotos, acessa a internet e ainda toca as suas músicas preferidas”; “Empréstimos para aposentados: basta apresentar a carteira de identidade e já sai com o dinheiro na mão”; “Crédito fácil para você comprar o que quiser...”. E por aí se vão os cantos das “sereias” que invadem as nossas vidas e nos fazem perder os rumos traçados pelo nosso orçamento pessoal.

Quem precisa de um talco que perfume melhor? Quem garante que o sabonete deixa a pele sedosa? Celular é para promover a comunicação ou para servir de máquina fotográfica? E será que a maioria dos empréstimos concedidos para os aposentados servem para melhorar as suas vidas ou apenas para livrar parentes espertos de dívidas que os próprios aposentados terão que pagar com o sacrifício do desconto em folha? Não é nada fácil escapar deste “canto das sereias” moderno. Compramos o que não precisamos. Gastamos fácil o dinheiro que ganhamos com tanta dificuldade. Afundamos em contas e prestações que só conseguiremos pagar através de novos empréstimos e de mais dívidas. Afundamos o nosso barco no seco, sem possibilidade de jogar qualquer âncora que possibilite a nossa salvação. O verbo “gastar” já está gasto de tanto ser usado nos dias atuais. E o pior é que, depois dele, teremos que conjugar o verbo “pagar”, bem mais difícil de ser conjugado no tempo certo...

Luciano Dídimo (Poemas Avulsos) – 2 –

A LUZ

A luz da Estrela Azul, que é tão brilhante
Adoça a roxa fé como um licor,
Abrindo os nossos olhos para a cor
Que apaga o tempo cinza já distante:

Do tão avermelhado Sol do Amor,
Do verde da esperança ali adiante.
A luz que resplandece radiante
Nos mostra um novo mundo e seu primor.

As águas cor de prata descem rio,
Varrendo a negra cor da noite escura
E dissipando a dor com cortesia.

A luz clareia tudo o que é sombrio,
Fazendo a paz mostrar sua brancura
E rebrilhar o ouro da poesia!
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A TEMPESTADE

Densas trevas cobriram nossas vidas
Enchendo-as de um silêncio que ensurdece
As almas temerosas e perdidas
Na tempestade elevam sua prece

As virtudes então adormecidas
Se mostram ao irmão que reconhece
Que as mãos no mesmo barco estão unidas
E a força da remada se engrandece

Ponhamos no farol a confiança
Na cruz também está nossa esperança
Sozinhos não podemos nos salvar

Precisamos seguir a mesma rota
Cada um contribui com a sua cota
Um dia as águas hão de se acalmar
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BELEZA FEMININA

Tudo começa com a depilação
Que lhes arranca os pelos com a cera
Depois descarnam unhas: pé e mão
E a pinça lhes arranca a sobrancelha

Progressiva com química agressiva
E que espicha o cabelo em ferro quente
É breve o efeito da definitiva
E ainda acham a escova inteligente

Chegou agora a vez da maquiagem
Base, blush, batom nessa caveira
E corretivo para a camuflagem

Acessórios no fim dessa jornada:
Salto, brinco, colar, anel, pulseira
E a bolsa que não cabe quase nada
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CASA DOS CONTOS

Nesta casa que o conto nasce e cresce
A arte vem pelo aroma das panelas
A narrativa sai pelas janelas
E a criatividade é o alicerce

As palavras se juntam no telhado
E as técnicas de escrita são paredes
Personagens dormindo em suas redes
Aguardam que o escritor use o teclado

Toda vez que um autor acende a brasa
A trama passa pela encanação
E aquece do leitor seu coração

Mas a imaginação: louca da casa
Não deixa ficar nada no lugar
Para que o texto possa se inovar
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RAMOS E ESPINHOS

Vou entrar na cidade, abram caminho
Vou armado com flores para a guerra
Vou em busca de paz para esta terra
Eu vou chegar montando um jumentinho

Derramo as minhas lágrimas sozinho
Pois eu sei muito bem o que me espera
Os ramos que me jogam em fé sincera
Trançarão a coroa com os espinhos

Recebo humilde os ramos e o chicote
Sou aclamado Rei, depois bandido
E por fim condenado à pior sorte

No amor todo o pecado é redimido
Pois na ressurreição eu venço a morte
Renovo em cada vida seu sentido
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VIDA NOVA

Vamos arar a terra para o plantio
Às vezes é nas trevas que se semeia
O amor na noite escura melhor permeia
Faz brotar a semente em cada vazio

O perdão sempre acaba com todo estio
Multiplicando paz como grão de areia
Já que a misericórdia desencandeia
Fazendo que o doente fique sadio

Do escuro se distingue melhor a luz
É preciso que a água seja fervida
É preciso que a prata seja fundida

O alívio é privilégio de quem tem cruz
Na fé a nossa dor será arrefecida
Da semente que morre é que nasce a vida

Jérson Brito (A Última estação)

Outro dia, numa estação de trem, deparei-me com um senhor absorto, reflexivo, provavelmente ruminando algumas mal-sucedidas empreitadas.

Com uma passagem na mão, ele não se dava conta de que várias composições ferroviárias já tinham passado. A última se aproximava.

Também não percebeu que, devido ao exíguo tempo, deveria desembarcar na próxima estação. Dezenas havia depois dela e ele tinha direito de conhecê-las caso embarcasse antes. A validade do bilhete só alcançava a seguinte, entretanto.

Ao consultar o relógio e perceber o céu escurecido, seus olhos marejaram.

Possivelmente, imaginou quantas aventuras e amores diferentes poderia ter vivido em cada parada.

Quantas paisagens e pessoas interessantes poderia ter conhecido.

Quantas conquistas poderia ter obtido.

Enfim, o que poderia ter feito se não ficasse ali, inerte, pensativo.

Nada disso era mais possível. O cenário que viu durante o dia inteiro foi o movimento daquele local. Passageiros que tocavam a vida em frente. Gente que ia, gente que chegava, despedidas, reencontros, coisas do gênero...

A ele, o que restava era uma estação. Apenas uma estação.

Trem derradeiro. Desembarque derradeiro.

Apito final. Fim de jornada.

* Qualquer semelhança com a nossa vida não é mera coincidência.

Estante de Livros (Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago)

Ensaio sobre a Cegueira é um romance publicado pela primeira vez em 1995, do escritor português José Saramago.

O romance é a mais famosa obra do português e três anos depois da publicação ganhou o Nobel de Literatura, em 1998.

Narra a história de uma epidemia de cegueira branca que se espalha por uma cidade e vai acometendo um por um, trazendo o caos e abalando as estruturas de uma sociedade civilizada.

É um romance que não apela pelo engraçado, não há alivio cômico. É uma obra que, mesmo sendo uma ficção, é bem detalhista e realista. Isto é, a amostra de uma possível realidade através da ficção.

De acordo com o próprio autor, é um livro terrível e com o intuito de fazer o leitor sofrer. Em uma apresentação pública sobre o romance, José Saramago disse:

Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso.

PERSONAGENS PRINCIPAIS

Em Ensaio sobre a Cegueira, José Saramago não identifica os personagens através de nomes, mas sim pelas características físicas, deficiências ou profissões que sejam consideradas marcantes.

O Primeiro Cego: o primeiro indivíduo que é acometido pela cegueira branca enquanto estava no trânsito.

O médico: é o oftalmologista, que é infectado após o contato com o Primeiro Cego.

A Mulher do Médico: a personagem mais relevante do romance e a única que consegue enxergar. Desta forma, é a orientadora e protetora dos infectados.

A mulher do Primeiro Cego: que vai reencontrar o marido no hospício.

O Cego Ladrão: morto pelos soldados ainda no manicômio.

O Velho da Venda Preta: era cego de um olho e paciente do Médico. A cegueira branca infectou o olho são.

Rapariga dos óculos escuros: prostituta, foi ao consultório do Médico devido a uma conjuntivite. No manicômio teve relações sexuais com ele.

O Rapazinho Estrábico: sem a mãe foi levado para o manicômio, e a Rapariga dos Óculos Escuros assume o papel materno.

O Cachorro das Lágrimas: animal de estimação adotado pela Mulher do Médico.

O cego da Pistola: comandante do grupo de cegos que causava terror dentro do manicômio.

O Cego da Contabilidade: o único que não foi infectado, pois já era cego antes da epidemia. Tinha vantagens sobre os outros, pois já sabia o alfabeto em braille e práticas de contabilidade.

Escritor: passa a morar no apartamento do Primeiro Cego, após ser expulso do seu. Mesmo com a cegueira branca não parou de escrever.

Resumo


Ensaio sobre a Cegueira começa com a narração de um homem em um sinal de trânsito, enquanto espera o sinal verde da sinaleira, e de repente uma nuvem branca começa a cobrir toda a sua visão. É o Primeiro Cego.

Contudo, não é uma cegueira tradicional, é uma cegueira branca, como se a visão tivesse sido acometida por um mar de leite. A sua mulher também contamina-se.

Tentando desvendar o problema da cegueira repentina, o Primeiro Cego vai a um oftalmologista buscar uma solução. Depois da consulta, o Médico também é acometido pela cegueira branca. Assim, a epidemia começa a se alastrar por toda a cidade.

Um Farmacêutico, uma Criança, um Ladrão, um Velho, um Médico. A cegueira se espalha como um vírus descontrolado que atinge qualquer pessoa, jovens e velhas, brancas e negras, pobre e ricas. A única que ficou isenta foi a Mulher do Médico.

Diante da epidemia, o governo decide colocar em quarentena, em um prédio que era um antigo manicômio, todas as pessoas que ficaram cegas .

Com recursos escassos e limitados, os instintos animais de sobrevivência começam à florar nas pessoas infectadas. A cada dia que passa mais pessoas vão sendo colocadas nesse ambiente, causando um caos cada vez maior.

Evitando o completo transtorno,  o Primeiro Cego, A mulher do Primeiro Cego, o Médico, a Mulher do Médico, o Velho e a Rapariga se juntam para tentar manter a organização e sobreviver em um ambiente em que as pessoas estavam se tornando irracionais.

Dentro do antigo hospício os infectados assumem um comportamento irracional de sobrevivência, exacerbando o instinto sexual, animal, social, ético, etc.

Isto é, fazem suas necessidades em qualquer lugar, matam sem motivo, estupram apenas pelo prazer de poder sobre o outro, comem a carne daqueles que estão mortos, etc. Enquanto isso, a epidemia atinge cada vez mais pessoas.

Os infectados ficaram presos em quarentena até que após um incêndio a Mulher do Médico, a única que não fora contaminada, percebe que não há mais guardas e que a epidemia tomou conta da cidade.

A Mulher do Médico descreve uma cena terrível do que se tornou a cidade. Corpos putrificados no meio da rua, cidade suja com fezes, ratos, lixos e urinas. Tudo junto, inclusive pessoas que ainda estavam vivas.

A partir de então, o desafio não é lutar por emprego, dinheiro ou sucesso, pois a cidade está toda destruída, mas sim conseguir abrigo, comida e sobrevida fora do manicômio.

Análise da obra

Ensaio sobre a Cegueira é contado em terceira pessoa, com narrador onisciente. O tipo de escrita é uma descrição fluida, com discurso direto mesclado com o indireto.

A escrita é típica do autor, sem recursos característicos do discurso direto, como parágrafo, travessão e aspas.

Além de não apresentar ponto de interrogação e exclamação, com os diálogos sendo identificados pelas letras maiúsculas para que o leitor não se confunda. Isto é, uma leitura marcada pela ausência de sinais de pontuação.

Ensaio sobre a Cegueira apresenta famosos ditados populares, como “Pior cego é aquele que não quer ver” e “Em terra de cego quem tem um olho é rei”.

O foco é fazer com que as pessoas passem a olhar para as outras, mas não com um olhar físico, mas olhar o interior, a essência do ser humano.

José Saramago foi muito resistente sobre a adaptação da obra para o cinema, mas, em 2008, um filme baseado no  foi lançado.

“Blindness” foi dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles, que recebeu elogios de José Saramago sobre o longa-metragem.

“Estar tão feliz de ter visto o filme como estava quando acabou de escrever o livro. Agora conhecia a cara de suas personagens”.

TRECHOS DA OBRA

    “Por que foi que cegamos, não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem.

    O medo cega, disse a rapariga dos óculos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegamos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos, Quem está a falar, perguntou o médico, Um cego, respondeu a voz, só um cego, é o que temos aqui.

    Lutar foi sempre, mais ou menos, uma forma de cegueira, Isto é diferente, Farás o que melhor te parecer, mas não te esqueças daquilo que nós somos aqui, cegos, simplesmente cegos, cegos sem retóricas nem comiserações, o mundo caridoso e pitoresco dos ceguinhos acabou, agora é o reino duro, cruel e implacável dos cegos, Se tu pudesses ver o que eu sou obrigada a ver, quererias estar cego, Acredito, mas não preciso, cego já estou, Perdoa-me, meu querido, se tu soubesses, Sei, sei, levei a minha vida a olhar para dentro dos olhos das pessoas, é o único lugar do corpo onde talvez ainda exista uma alma, e se eles se perderam”.


sexta-feira, 28 de maio de 2021

Carolina Ramos (Zéco)

Num sô Zeca porcaria nenhuma! Meu nome é Zéco! Zé... co! Tábom?!


Estrilava feio, cada vez que o chamavam de Zeca, E explicava:

- Zeca é nome prá muié! - conheço inté uma dona Zequinha, lá da loja da esquina, santa mãe do Serafim... garoto que de anjo... só tem o nome!

- Meu nome intêrinho é José Corifeu. - Zéco descia às minúcias:

- Zé de José, Pai do Minino e Esposo da Virge. E Co... de Corifeu... chefe de coisa nenhuma! - Zécooo!

Zéco sabia que corifeu queria dizer chefe disto ou daquilo, como lhe dissera o seu Pepe da farmácia, homem de "munto " estudo e "i munta curtura tamém!" E Zéco terminava o discurso com advertência inflamada:

- Quem me chamá de Zeca, vai tê di se havê cumigo! Vai tê mêmo!...

Contudo, quem menos ligava para tais ameaças era a molecada do bairro, irreverente... doidinha por fazer ferver a chaleira da paciência do Zéco:

- Zeca!... Zeca!... Lá vem o Zeca... boboca e careca... jogando peteca!

A melodia improvisada, a abusar da rima proibida, deixava em ebulição os brios do pivô da questão, que, indignado, apanhava um punhado de terra... Não raro, voavam mesmo algumas pedras em direção à corja atrevida. E era aquele atropelo! Pernas pra todo o lado!

- Eu sô Zéco, seus marditos! Zé - de José. Co - de Corifeu! — e as pedras choviam!

Raro o dia em que a porta do casebre, na qual vivia o pobre, não aparecia garatujada a giz! O nome escrito soava como palavrão, dispensando qualquer esforço para ser reconhecido. E enquanto as letras brancas gritavam ZECA, a chaleira da "reiva " apitava e Zéco esbravejava furioso, a esfregar a porta com pano encardido, molhado nas águas do ribeirão que corria próximo. E, então, ele apertava os olhos, fechava o punho e sibilava entre os dentes:

Ah! Se eu pego um desses marvados de jeito...eu mato! Ah, se mato!! Mato, sim, pra todo do mundo sabê di veiz quem é Zeca e quem é o Zéco! - Os olhos fuzilavam e o punho fechava-se ainda mais à altura do nariz. - Molecadinha sem-vergonha! Dêxa... quarqué dia pego um! Ah... si pego!...

Zeco sabia haver muito homem de verdade, macho mesmo, chamado Zeca, mas não queria nem saber! Sabia, isto sim, que ele era o Zéco... e de Zéco queria ser chamado! Era o dono do nome e pronto!... Ninguém tinha o direito de chamá-lo como bem entendesse... sem se havê com ele!

Naquele dia, Zéco não saíra para trabalhar na roça. Amanhecera de cabeça tinindo, a latejar como se o coração houvesse mudado para lá. A dor crescera, acabando em "pingação " de nariz. Gripe! Gripe daquelas de criar ninhada de gatos no peito! Nem precisava ser médico para fazer o diagnóstico! O corpo doía... Moído como se um trator tivesse passado por cima dele!

Sem ninguém para mimá-lo, sem mulher nem filhos - que sua Candinha se fora, sem deixar prole - Zéco arrastou-se até a garrafa de aguardente, como se a carcaça lhe pesasse uma tonelada. Gole generoso afogueou-lhe o rosto, ao descer como lixa pela garganta irritada.

A esperar pelo efeito, sentou-se no catre, cotovelos fincados nas coxas... testa aninhada nas mãos...

Não demorou para que o suor brotasse, farto, a lhe escorrer pelas costas.

De repente... aguçou o ouvido: - Ruído na porta. Alguém a arranhava, por fora. Ao espiar pela fresta da fechadura... Olho no olho! Surpresa dos dois lados!... E consequente fuga do garoto, apavorado... enquanto Zéco rugia, escancarando a porta com fúria:...

- Então é tu, coisa ruim! Anjinho de meia tigela! Péra aí que eu te pego!

Irmão do Serafim, Rafael, o caçula temporão de dona Zequinha, lívido de medo... não tinha asas para alçar voo, apesar do nome... mas provou ter boas pernas para enfrentar uma corrida!

Sorteado, daquela vez, para garatujar a porta do Zéco, passou de volta como um pé de vento, gritando à turma que o aguardava:

- Foge, gente! O home tá em casa!...

Debandada geral!

Zéco... mais febril que nunca, olhava a porta com desgosto, alheio à aragem fria que começara a soprar... e esquecido das próprias dores e mazelas.

Mais uma vez, lá estava o estigma! Incompleto, sim... apenas três letras. Faltava a principal - aquele A, no final - pivô de toda discórdia! O maroto não tivera tempo de completar o acinte, apenas – ZEC... é o que se lia. Mas... o acinte estava lá! Ah, se estava!... E as provas, também! - O giz jogado no chão, pisado pelos pés do susto... naquela fuga estabanada, bastava como prova indiscutível! - "Quem não deve... não teme!"

O intuito de provocação era explícito e sem deixar qualquer dúvida! Absorto pelas evidências e cego pela raiva, nem mesmo assim, Zéco deixou de ouvir a gritaria da meninada em alvoroço, à beira do rio de águas revoltas! Entendeu de pronto que alguém se afogava!

Sem perda de um minuto, Zéco sacudiu o peso da gripe, esquecido dela e da birra, correndo para a margem do ribeirão.

Era Rafael! O rosto do garoto estampava terror ao tentar agarrar-se à fragilidade da vegetação beira-rio. Perigo de todos os lados! Avolumada pelas chuvas, a correnteza que o arrastara após o resvalo do pé, na fuga às mãos justiceira, por cruel ironia o colocava, agora, ao alcance daquelas mesmas mãos ávidas de justiça!

O garoto, contudo, não hesitou. Entre ver-se tragado pelas águas turbulentas e o risco de ter o pescoço espremido pela ira do Zéco, não teve dúvidas: - atirou-se por inteiro à mão salvadora, que da margem lhe era estendida.

Os dedos do homem e os da criança tocaram-se de leve, antes que Zéco se lançasse às águas geladas que, implacáveis, arrastavam o menino para o meio do rio.

Rafael debatia-se em desespero, até ser alcançado, agarrado pela roupa e entregue à margem, entanguido... mas salvo!

A surpresa tomara conta da molecada, pasma, que a tudo presenciava com olhos de espanto. O homem durão, antes desacatado e temido, num segundo transformara-se em herói!

Naquela mesma noite, Zéco foi internado. Pneumonia dupla. Delirava! O dilema que o atormentava subia à tona, fortalecido pela febre:

- Eu sô Zéco!... ZÉ-CO! Zé – de José. Co – de Corifeu! Mato quem me chamá de ôtro jeito! Pode inté tê nome de anjo, que eu mato! E mato mêmo!

Ao pé da modesta sepultura, uma cruz agasalha nos braços um nome inexpressivo: - JOSÉ CORIFEU.

A complementação vem logo abaixo, desenhada a giz, por mão infantil, em letra irregular, mas bastante clara: - ZÉCO – definitiva autenticação do nome de um homem que o defendera, com unhas e dentes, até o final de sua vida!

E isto porque... na verdade, tal nome era tudo o que de realmente seu, aquele homem possuíra, ao longo de toda sua insignificante existência.

Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: Mônica 
Petroni Mathias, 2021. 
Capítulo 5: Contos rústicos, telúricos e outros mais.
Livro enviado pela autora.

Luiz Damo (Poemas Escolhidos) VII

ALMA SEDENTA


Nas profundezas duma alma sedenta
dormem inquietos os sonhos feridos,
porém das alturas, quem a sustenta,
são forças ocultas ou dons nutridos.

Frente às intempéries da convulsão
surgem desejos tão controvertidos,
que exigem proezas e precaução
numa seleção dos mais preferidos.

Pensas que fazes da vida uma flor?
Não peça um favor sem se consultar,
porque pode estar, em si, seu valor.

Jardins floridos, não deixem faltar,
o aroma que faz nascer terno amor
e nos campos da dor, vidas brotar.
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CAPELA

O velho sino na torre anuncia
e conclama o povo a se congregar,
em torno da prece que em harmonia
a todos permite assim celebrar.

A capela há tanto tempo não via
tanta gente ao mesmo tempo a rezar,
ser fonte de paz, embora vazia,
ficando aberta a quem quiser entrar.

Nunca haja na fé, seres rejeitados,
num mundo que poucos querem mandar
e muitos talvez, são desrespeitados.

Juntos no rumo que sonham trilhar,
todos os dons sejam manifestados
e os ocultos também possam brilhar.
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CELEIROS

Dos bons momentos outrora vividos
sempre nos restam as recordações,
restos de passos, quiçá interrompidos,
por tantos motivos ou frustrações.

Fartos celeiros tão bem protegidos
guardaram os frutos das plantações,
pra ser amanhã, talvez consumidos,
em outras mesas, distantes prisões,

Muitos passam pela vida encolhidos
no próprio casulo das ilusões,
sem nunca provar os dons recolhidos.

Ninguém sinta acabar as pretensões,
nem fique chorando os sonhos perdidos
nas longas noites das lamentações.
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GALOPEIOS

Às rédeas da xucra imaginação
no lombo do tempo vai cavalgar,
pelo horizonte sempre a repontar
nobres valores num outro galpão.

A galope descreve o entardecer
à sombra viril da noite serena,
reflete os matizes da bruma amena
que voltam a brilhar no amanhecer.

Cortando os campos do conhecimento
rasga as cortinas da sua existência,
para recobrá-la a todo momento.

Com brio frente à vida em reverência
traduz em canto o seu contentamento
nas longas jornadas com persistência.
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HOMENAGEM I
(Homenagem ao poeta e trovador Raul Poli)

Diversas vezes falaste da lua
e em muitas outras, paraste pra vê-la.
Mas hoje, Deus quis a presença tua,
para que sejas uma nova estrela.

Longos momentos passados na rua
à luz que tanto lutaste pra tê-la,
tendo às mãos o fruto que o perpetua
nesta vida, no dom de descrevê-la.

Que na cadeira pra ti reservada
possas de novo, poemas compor,
ou se o quiser outra trova rimada.

Pelo Supremo Patrono do amor
junto dos Anjos venha ser julgada,
tenha o seleto voto de louvor.
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HOMENAGEM II
(Homenagem ao poeta e trovador Raul Poli)

A natureza, seus campos e flores,
aves e tudo o que nela contém,
serviram de foco a tantos clamores
grafados em prosa e em versos também.

Os vastos campos repletos de cores
foram pedestais que a vida mantém,
muito mais que meros mantenedores
foram precursores da paz de alguém.

Cantos, cantigas, formaram um hino,
no alto dos ramos, deveras gentis,
transformando em grande o ser pequenino.

Canários, tico-ticos, bem-te-vis,
despertavam os olhos do menino
que o deixavam plenamente feliz.

Fonte:
Luiz Damo. Pétalas do Quotidiano. Caxias do Sul/RS: Lorigraf, 2012.
Livro enviado pelo autor.

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Walter, o gramático

Se me pedirem o nome de um grande gramático, é bem provável que o primeiro a brotar das minhas boas lembranças seja o do professor Walter Pelegrini, um dos mais respeitados pioneiros do ensino em Maringá. Tive a graça de conviver com vários outros notáveis conhecedores do nosso idioma, tais como Expedito Neme, Agostinho Baldin, Juliano Tamanini, Maria Céli Pazini, Leônidas Avelino. Porém Walter era realmente especial.

Nascido paulista em Gália (26-5-1940), formado em Letras e em Direito, veio bem jovem para Maringá. Poderia ter feito carreira brilhante como advogado, mas gostava mesmo era de ser professor, e como tal foi um dos mais competentes e admirados que a cidade já conheceu. Primeiro no Gastão e no Santa Cruz, depois como um dos primeiros docentes da UEM.

No dia em que ele precocemente faleceu (15-11-2003), senti um abalo muito forte. Fiquei pensando: puxa, que desperdício de talento e cultura. Um homem tão inteligente e que passou a vida inteira estudando e ensinando os mistérios e encantos da língua portuguesa... De repente... pufff... lá se foi o nosso Walter para a eternidade, levando uma riquíssima bagagem que poderia ter continuado a partilhar por muitos anos com milhares de alunos.

Certa vez ele enviou para a revista “”Aqui” um texto no qual usou a palavra “seriíssimo”. O revisor estranhou e amputou um “i”, reduzindo o elegante superlativo à sua variante informal: “seríssimo”. Walter telefonou explicando que a forma “seríssimo” também era aceita, porém ele preferia “seriíssimo”. Propuseram publicar novamente o texto na edição seguinte, dessa vez com os dois “ii” no devido lugar e com os respectivos pingos. Ele agradeceu, mas dispensou.

Dias após o querido mestre apareceu ao vivo na redação da “Aqui”. Pensaram que estava bravo. Não estava. Ria até. Mas a conversa com a rapaziada acabou virando uma “seriíssima” e proveitosa aula.

– Os adjetivos terminados em “io” – disse ele – formam o superlativo perdendo a vogal final e dobrando o ‘i’: precário–precariíssimo, sumário-sumariíssimo, sóbrio-sobriíssimo, macio-maciíssimo. Mas existem alguns casos interessantes: sábio, por exemplo, poderia ser “sabiíssimo”, no entanto superlativou-se como “sapientíssimo” (do latim sapiens, sapientis)... Quem sabe porque os sábios, em geral, sejam chegadões em línguas clássicas. E há o caso de “feiíssimo”, que, por ser difícil de pronunciar, no fim ficou sendo “feíssimo” mesmo...

Porém a paixão maior do professor Walter foi sempre o estudo da sintaxe. Relia com frequência longos trechos do bom Camões, só pelo prazer de caçar sujeitos, objetos e adjuntos em labirintos sintáticos geniais como este: “As armas e os barões assinalados que da ocidental praia lusitana por mares nunca dantes navegados passaram ainda além da Taprobana...

Grande Walter Pelegrini, um personagem inesquecível, sapientíssimo e seriíssimo professor de todos nós que tivemos a bênção de receber suas preciosas aulas. Até um dia.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 20-5-2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor

quinta-feira, 27 de maio de 2021

Adega de Versos 24: Miguel Russowsky

 


Júlia Lopes de Almeida (E os cisnes?)

A Batista Coelho

Procurando emoções, ou por uma curiosidade extravagante, a viscondessa de S. Roque lembrou-se um dia de ir ver o hospital de alienados do Dr. Aguilar.

Descendo do seu coupé* dentro do pátio do edifício, perguntou ao porteiro pelo diretor.

Não estava; mas como não devesse tardar, conduziram-na a um escritório ao rés do chão, cheio de armários e de aparelhos elétricos.

A viscondessa sentou-se e olhava para o chão reluzente, quando percebeu uma sombra a deslizar a seu lado. Voltou-se e viu junto a si uma mulher de uns trinta anos, baixa, clara e delgada, de rosto longo como o dos carneiros e olhos pardos, de expressão dulcíssima. Tinha o andar macio como o das freiras, as mãos delicadas, pequeninas e pálidas, e um sorriso que lhe iluminava a fisionomia triste e vaga...

– Deseja alguma coisa?

– Sim... vim pedir permissão ao Dr. Aguilar para ver o seu estabelecimento. Disseram-me que ele não tarda e mandaram-me esperar aqui...

– Se é só isso, não vale a pena cansar-se; ele virá... ou não virá. Em todo caso, prontifico-me a acompanhá-la.

– É enfermeira?

– Sim, minha senhora. O que lhe peço é que escreva aqui o seu nome.

A enfermeira apresentou, sobre a grande secretária de nogueira, o livro em que se inscreviam os visitantes.

A viscondessa tirou rapidamente a luva e, mesmo sem se sentar, apoiou o cotovelo na mesa e escreveu. Por trás dela a outra esticou muito o pescoço e leu-lhe o nome. Depois, com um sorriso:

– Podemos ir.

Saíram ambas, atravessaram corredores e subiram escadas. A enfermeira ia adiante, roçando sem bulha nos degraus o vestido mole, de riscadinho azul e branco, coberto na frente por um largo avental de linho pardo. As sedas da viscondessa farfalhavam.

– Por aqui... veja, esta é a sala dos doidos pacíficos, dizia a enfermeira. Passemos agora à escola das crianças. A senhora não receia impressionar-se?

– Não... respondeu a visitante, depois de uma pequena hesitação.

– É muito triste. Enfim, é bom ver tudo! concluiu a enfermeira.

– A senhora... – E a viscondessa interrompeu-se para perguntar: – Como hei de chamá-la?

A outra não respondeu logo e ficou pensativa, como se fizesse um esforço para se lembrar do seu nome; depois disse com um sorriso:

– Chame-me... irmã Serafina; não sou freira, mas fui educada num convento, e os meus irmãos, em casa, por brincadeira, davam--me esse nome. Acostumei-me.

– A irmã Serafina, voltou a viscondessa, prendendo o fio do seu pensamento partido, não tem medo de viver aqui?

– Às vezes... certamente que os doidos fazem-nos passar bocados perigosos!... mas tenho compaixão, dediquei-me a isto e já agora hei de envelhecer ao lado deles. Pobre gente!

Havia no olhar de irmã Serafina uma tamanha expressão de piedade e doçura, que a viscondessa sentiu-se comovida e murmurou:

– Que anjo!

Entraram na escola. Umas dez crianças, espalhadas por meia dúzia de bancos, levantaram os narizinhos curiosamente para a visitante. O mestre tinha sentado nos joelhos um pequenito, que se encaracolou todo, fazendo-se num novelo. Ao mesmo tempo surgiam da aula gritos e guinchos estranhos; um rapaz de dez anos quis fazer discurso, outro arremedou o miar dos gatos, de uma maneira tão justa e com uma careta tão dolorosa, que a viscondessa, arrepiada, voltou depressa para o corredor.

A irmã Serafina deixou-se ficar para trás e, curvando-se, beijou uma menina que, encostada à parede, contava os dedinhos incessantemente: um, dois, três...

Quando voltou para junto da visitante, ela disse com uma voz magoada:

– Não a avisei de que se havia de impressionar na escola das crianças? Pobres anjos! Eu ainda não me habituei a olhar sem lágrimas para aqueles entezinhos condenados, por uns pais sem consciência, a uma vida de agonias!

– Condenados pelos pais? murmurou com estranheza a visitante.

– Certamente. Quem pode dar uma herança tão desgraçada aos filhos, não se casa. Sabe que são vítimas da hereditariedade.

– Todos?!

– A maior parte. Que pecado! Deveria haver leis que proibissem certas uniões... O que estas crianças me têm feito chorar, só de pena! Algumas são más, mordem, batem, causam estragos de toda a ordem.
 
Umas ferazinhas inconscientes. Quanto piores elas são, mais as lamento. É preciso que haja alguém que as ame. Eu sou mais carinhosa para aquelas a quem ninguém quer bem... Afinal, boas e más correm para mim. Sabe que todas as crianças gostam das aves.

– Das aves?!

– Sim, que tenham asas que as agasalhem.

– Ah...

A voz da irmã Serafina era melíflua, escorregadia e branda; uma dessas vozes cantantes e claras, que uma vez ouvidas nunca mais se esquecem. Não há por certo mulher cuja harmonia seja tão completa no seu todo. Deveriam antes chamá-la irmã Suavíssima!

Atravessaram todo o edifício sem que uma palavra, um gesto da guia alterasse a sua expressão de candura. Todos os doentes lhe sorriam, e ela sorria a todos os doentes. Ia passando como uma bênção, branda como o perfume de um lírio. No chão encerado dos largos corredores só se ouviam os passos da viscondessa batendo o metal dos tacões num tic-tac sonoro. Aquele som regular caía-lhe no ouvido como um barulho profano. Envergonhava-se e temia atrair a atenção dos doidos. Repelia o desejo de descalçar-se para deslizar como a irmã Serafina pelo parquet**.

– Quer ver uma louca feliz?

– Sim... respondeu a viscondessa.

Impelindo a porta de um quarto, entraram. Ao pé de uma janela, aberta para o azul do espaço, e ao lado de um leito todo feito de branco, uma velhinha risonha cantarolava num delgado fio de voz, fazendo tricô. Os novelos bailavam-lhe no colo, sobre o zuarte limpo do vestido, e as mãos enrugadas e secas moviam as longas agulhas, ligeiras, ligeiras.

Sempre a cantar uma cantiga risonha, a doida cumprimentou a visita, com um movimento airoso de cabeça.

A enfermeira murmurou indicando-a: – É sempre assim.

Tornaram a sair e desceram uma escada larga de corrimão envernizado. Embaixo atravessaram um pátio cimentado, onde numa ordem simétrica se alinhavam grandes tinas verdes plantadas de azaleias. Os arbustos carregados pareciam buquês, mais flores do que folhas. Uns vermelhos, escuros como sangue pisado, outros róseos como o céu na aurora, e outros brancos como a neve casta. A viscondessa roçava por eles o vestido de seda que ia gemendo, no seu farfalhar, pela pressão nervosa com que ela o arregaçava.

A irmã Serafina colheu um galho das azaleias brancas, soprou delicadamente uma formiguinha que passeava numa das flores e entregou-o à viscondessa, murmurando:

– As brancas são as mais bonitas, as mais ingênuas; não acha?

A outra sorriu. Entraram num corredor que conduzia, direito e amplo, a uma alta porta de vidro azul.

Chegadas aí pararam; era a porta da saída. Através do vidro grosso da porta via-se o vestíbulo de ladrilho, aberto sobre o jardim.

O sol estava forte, de um ouro intenso; o azul acinzentado do vidro quebrava-o numa luz de crepúsculo outonal. Mármore da escada, areia do jardim, maciços de verdura, grupos de palmas de roseiras ou de crótons variados, tinha tudo o mesmo tom enfumado, uniforme e brando.

Ao centro do jardim, entre um relvado côncavo, um pequeno lago tinha a cor e a placidez de um espelho; e à beira dele, sobre a grama bem aparada, uma cegonha parecia de aço, não só pela cor, como pela imobilidade da atitude.

A viscondessa estendeu a mão à irmã Serafina, mas esta não lhe prestou atenção: tinha o rosto colado ao vidro da porta.

– Adeus... repetiu a viscondessa.

A outra então voltou-se e, suspendendo o busto para chegar a boca ao ouvido da viscondessa, disse com voz mal firme:

– E os cisnes?...

– Que cisnes? ia perguntar a viscondessa. Mas conteve-se. A irmã Serafina tinha o olhar branco de cólera, uma transformação súbita quebrara-lhe o encanto. Ela movia-se abrindo os cotovelos e esticando
o pescoço.

A viscondessa compreendeu a verdade e tateou a porta, sem poder abri-la; quis gritar – teve medo; e a outra, entretanto, volteava, volteava, repetindo cada vez com mais força:

– E os cisnes? E os cisnes?!
* *

Minutos depois a viscondessa ouvia do diretor do hospital que a loucura daquela mulher provinha de ter perdido uma filha afogada por causa de uns cisnes. A criança, debruçada no lago, quis agarrar as aves; as aves partiram e a pequenina mergulhou. Desde então a mãe finge-se de cisne, asseverou ele.

– Compreendo agora... Ela disse-me que tinha asas! Com quem eu andei!

– Andou com uma inofensiva que, mesmo quando grita, não faz mal a ninguém. Para mim, ela só tem uma curiosidade: a mania de se ter encarnado no inimigo. Foi um cisne que lhe motivou a loucura, ela quer ser cisne... Enfim, também acontece lá fora adorarmos às vezes a própria causa do nosso mal... As suas azaleias, minha senhora!

E o médico apanhou as flores que a viscondessa deixara cair ao entrar para o coupé, enquanto os gritos continuavam lá dentro, repetidos e chorosos:

– E os cisnes? e os cisnes?!
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* Coupé – Carruagem fechada.
** Parquet – Assoalho de placas de madeira assentadas em forma de mosaico.


Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

Laurindo Rabello (Poemas Escolhidos) VI

LEANDRO E HERO
SONETO I


Hei de, mártir de amor, morrer te amando.

O facho do Helesponto apaga o dia,
Sem que aos olhos de Hero o sono traga,
Que dentro de sua alma não se apaga
O fogo com que o facho se acendia.

Aflita o seu Leandro ao mar pedia,
Que abrandado por ela, a prece afaga,
E traz-lhe o morto amante numa vaga,
(Talvez vaga de amor, inda que fria).

Ao vê-lo pasma, e clama num transporte —
“Leandro!... és morto?!... Que destino infando
“Te conduz aos meus braços desta sorte?!!

“Morreste!... mas... (e às ondas se arrojando
Assim termina já sorvendo a morte)
“Hei de, mártir de amor, morrer te amando.”
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A UMA INCONSTANTE
SONETO II


É carpir, delirar, morrer por ela!
BOCAGE


De uma ingrata em troféu despedaçado
Meu coração devora amor cruento,
Trocando em fero e bárbaro tormento
Quantos prazeres concedeu-me o fado.

No seio d’alma, já dilacerado,
Negras fúrias do báratro apascento!
Filtra-me o delirante pensamento
De zelos negro fel envenenado.

Desprezo, ingratidão, fria esquivança
Da cruel por quem morro, em tal procela
Apagaram-me a estrela da esperança.

E eu (ao confessá-lo a dor me gela)
Humilhado a seus pés, minha vingança
É carpir, delirar, morrer por ela.
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A UM INFELIZ
SONETO III


Geme, geme, mortal infortunado,
É fado teu gemer continuamente:
Perante as leis do Fado és delinquente,
Sempre tirano algoz terás no Fado.

Mas para não ser mais envenenado
O fel que essa alma bebe, e o mal que sente,
Não te iluda o falaz riso aparente
De um futuro de rosas coroado.

Só males o presente te afiança:
Incrustado de vermes charco imundo
Se te volve o passado na lembrança.

Busca, pois, o da morte ermo profundo:
Despedaça a grinalda da esperança:
Crava os olhos na campa, e deixa o mundo.
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A UMA SENHORA
SONETO IV


Dos meus lares, dos meus que choro ausente,
Me vieste acordar saudade ímpia,
Tu, amada do Anjo d’Harmonia,
Que te fazes ouvir tão docemente.

Do piano o teclado obediente
Ao teu tocar encheu-se de magia,
E lá dos mortos na soidão* sombria
Operou-se um milagre de repente.

A morte sobre a foice, entristecida,
Amarguradas lágrimas verteu,
Talvez do fero ofício arrependida!

Bellini do sepulcro a pedra ergueu;
E, cheio de alegria desmedida,
C’um sorriso de glória um — bravo — deu.
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*Soidão – forma arcaica de solidão.
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À SRA. MARIETA LANDA
SONETO V
  
Por ocasião de cantar no teatro de S. João
da cidade da Bahia


Disseste a nota amena d’alegria,
E, arrebatado então nesse momento
De um doce, divinal contentamento,
Eu senti que minh’alma aos céus subia.

Disseste a nota da melancolia,
Negra nuvem toldou-me o pensamento;
Senti que agudo espinho virulento
Do coração as fibras me rompia.

És anjo ou nume, tu que desta sorte
Trazes o peito humano arrebatado
Em sucessivo e rápido transporte?!

Anjo ou nume não és; mas, se te é dado
No canto dar a vida, ou dar a morte,
Tens nas mãos teu Porvir, teu bem, teu fado.
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À MESMA SENHORA
SONETO VI


Tão doce como o som da doce avena
Modulada na clave da saudade;
Como a brisa a voar na soledade,
Branda, singela, límpida e serena;

Ora em notas de gozo, ora de pena,
Já cheia de solene majestade,
Já lânguida exprimindo piedade,
Sempre essa voz é bela, sempre amena.

Mulher, do canto teu no dom supremo
A dádiva descubro mais subida
Que de um Deus pode dar o amor paterno.

E minh’alma, num êxtase embebida,
Aos teus lábios deseja um canto eterno,
E, só para gozá-lo, eterna a vida.

Fonte:
Laurindo Rabelo. Poesias completas.

Luís da Câmara Cascudo (As mangas de jasmim de Itamaracá)

No ano de 1631, vivia na Capitania da Paraíba, Antônio Homem de Saldanha e Albuquerque, natural dessa mesma Capitania, que, encantado com a beleza e dotes de D. Sancha Coutinho, donzela de quinze anos, filha do abastado agricultor João Paulo Vaz Coutinho, senhor do "Engenho Andirobeira", situado a uma légua de distância da costa, aspirava a honra de a receber por esposa.

Dirigindo-se a seus pais, e solicitando a sua mão em casamento, eles a isso tenazmente se opuseram. Saldanha e Albuquerque, assim desenganado e desesperado pela recusa, que apagava todos os seus sonhos de felicidade e de amor, sem mais esperanças e ambições, alista-se no exército, e marcha para o campo da guerra, quando as forças holandesas invadiram as plagas de sua província natal.

Saldanha e Albuquerque foi um dos heróis do célebre ataque do forte do Cabedelo. Passou-se para Pernambuco, e em 1633, na gloriosa defesa do Arraial do Bom Jesus, caiu, como morto, ferido por uma bala.

Em 1646, anos depois de suas desventuras, reaparece Saldanha e Albuquerque nessa província, mas trajando o hábito de sacerdote, sob o nome de Aires Ivo Corrêa.

A chegada dele foi assim celebrada:

São treze anos passados,
E de Jesus ao mosteiro
Chega a Olinda em pobres trajes
Um sacerdote estrangeiro.

Traz o rosto macerado,
Que a dor o espr'ito lhe rende;
Nos olhos se lhe pagaram
As paixões que o mundo acende.

Em anéis d'ouro os cabelos
Pelos ombros se declinam;
Palavras que 'esse anjo solta
Só perdão e amor ensinam.

Dias depois, partiu o Padre Aires para a ilha de Itamaracá. Por esse tempo, já não existiam os pais de D. Sancha Coutinho; e ela, triste, abatida, e ralada de saudades, aí vivia então, em casa de seu irmão Nuno Coutinho, quando apareceu o padre em sua casa; reconhecendo naquele humilde sacerdote o seu desventurado amante, morreu subitamente.

Quis ser ela a derradeira
Em ver o santo varão,
Mal põe-lhe os olhos no rosto
"Ai, meu Deus!" e cai no chão.

Sobre o sepulcro de D. Sancha Coutinho, plantou o Padre Aires Ivo Corrêa uma mangueira, de cujos frutos provêm as mangas de jasmim, tão celebradas pelo seu aroma e delicado sabor.

E no lugar do sepulcro
Uma mangueira plantou,
Onde o hálito de Sancha
Até morrer aspirou.
Visões que ela Ih 'ofr'ecia
Não são d'humano juízo;
A sombra que ela lhe dava
Era a sombra do pr'aíso.

Inda em torno da mangueira
Se vê um lindo jardim;
E as mangas do Padre Aires
São as mangas de jasmim.

Fonte:
Luís da Câmara Cascudo. Lendas brasileiras para jovens. Projeto Livro para Todos.

Estante de Livros (O Coração das Trevas, de Joseph Conrad)

Sinopse:


O livro escrito em 1899 apresenta a narrativa de Charlie Marlow, um alter ego de Joseph Conrad, sobre suas experiências nos confins da África. Marlow descreve os sombrios horrores enfrentados no coração da selva africana, como a morte iminente e a bárbara selvageria dos nativos. O objetivo de Marlow nesse ambiente hostil é encontrar o Sr. Kurtz, personagem envolto em certo misticismo. No decorrer de sua jornada, os caracteres da personalidade de Kurtz são apresentados, alçando paulatinamente esse personagem à uma condição divina. Entretanto, quando o encontro entre os dois finalmente acontece sobra certa decepção com o desfecho, dadas às expectativas criadas no decorrer da viagem.

Comentários:
Trata-se de um clássico da literatura universal que vale a pena ser lido. O enredo do filme "Apocalypse Now" de Coppola é baseado nesse livro, trazendo Marlon Brando no papel correspondente ao do Sr. Kurtz, entretanto, o filme não substitui a leitura do livro.

Conrad sabia como ninguém que o “o sentido de um episódio não estava dentro, como uma amêndoa, mas fora, envolvendo a narrativa”. E é nesse periférico que se nos apresenta um clássico. Não tenho a pretensão de iniciá-lo em Conrad, seria uma empresa fadada, de antemão, ao fracasso, sabedor que sou que “não há iniciação para tais mistérios”, esta tem que se dar na descoberta de suas lendárias páginas de aventura humana “no meio do incompreensível, que é também detestável”, mas, ao final, nos coroa com o halo literário que só os grandes autores nos sabem ofertar. Em Conrad, somos salvos pela sua “devoção à eficiência”, nada falta ou transborda; tudo na medida certa, no tempo certo. Em algumas páginas, o romântico se nos impõe, e temos a beleza em estado primevo; em outros momentos, o drama surge, a emoção dita e domina.

Contexto

O livro possuiu similaridades com a vida de Conrad. Oito anos e meio antes de escrevê-lo, o autor fora designado por uma companhia de comércio belga para trabalhar como capitão de um navio no Rio Congo. Na chegada à estação no Congo, ele descobre que o navio que iria comandar sofrera danos e necessitava de reparos. No dia seguinte, ele sobe o rio em outro navio, comandado por outra pessoa. Durante a jornada, o capitão adoece e Conrad assume o comando. Eles buscavam Georges-Antoine Klein, o agente da estação mais longínqua da companhia, que acaba morrendo na viagem de volta. O próprio Conrad fica muito doente e retorna à Europa antes de completar os três anos de contrato que havia assinado com a companhia.

Interpretação da obra:

O prof. José Monir Nasser dizia que para compreender a obra de Joseph Conrad, é preciso saber interpretar os aspectos simbólicos fartamente utilizados por ele. Se você ler a obra dogmaticamente, não vai compreender nada.

Joseph Conrad usa a África como uma metáfora da condição humana, da qual não estão excluídos os abismos e os horrores. Ele penetra num mundo estranho, quase surrealista.

O que Joseph Conrad quer nos contar é o dilema moral do ser humano e o caos do mundo em que vivemos. Mostra-nos a sociedade enlouquecida criada por Kurtz, que assume, nesta sociedade que criou, o papel de Deus, decidindo quem deve e quem não deve morrer. Nos mostra, ainda, que o ser humano vive num mundo concreto, natural e contraditório, onde existem aspectos benignos e malignos, tal qual a natureza que é também potencialmente contraditória e onde se encontram forças de sustentação e forças de repúdio.

O homem não é 100% natureza. Há uma parte nele que não pertence à natureza e que não é humana, mas Divina (o espírito que corresponde ao intelecto, à sabedoria e ao conhecimento instantâneo da realidade). O intelecto (não é a razão) faz a ligação do homem com o mundo transcendente, onde está a verdade. E nós humanos somos prisioneiros dessa tensão que é a essência da vida humana. Platão dizia que o homem é o intermediário entre o animal e o anjo.

Quando Kurtz retorna para a “civilização”, à beira da morte, desvela um pouco mais do mistério de tudo e emite sua expressão final antes de se quedar sem vida: “O Horror! O Horror!”, ele prenuncia o julgamento de sua alma na Terra. Marlow já não é o mesmo, frente à iluminação final de Kurtz.

Personagens

Charles Marlow: O protagonista no romance. Marinheiro do Império Britânico durante o final do século XIX e início do século XX, durante o auge do imperialismo britânico.

Sr. Kurtz: O personagem onde a história é centrada. Um comerciante de marfim na África e comandante de um posto de troca, ele monopoliza sua posição como um semideus entre os africanos nativos. Kurtz reúne-se com o protagonista do romance, Charles Marlow, que o devolve à costa via barco a vapor. Kurtz, cuja reputação o precede, impressiona Marlow fortemente e, durante a viagem de regresso é testemunha dos seus momentos finais.

Adaptações e influência

Orson Welles adaptou e estrelou Heart of Darkness, em uma transmissão da CBS Radio em 6 de novembro de 1938, como parte de sua série, The Mercury Theatre on the Air. Em 1939, adaptou a história ao seu primeiro filme para a RKO Pictures, escrevendo um roteiro com John Houseman. O projeto nunca foi realizado. Welles esperava ainda produzir o filme quando ele apresentou outra adaptação de rádio da história como seu primeiro programa como produtor-estrela da série de rádio da CBS This Is My Best. Seu estudioso Bret Wood chamou a transmissão de 13 de março de 1945, de "a representação mais próxima do filme que Welles poderia ter feito, aleijada, é claro, pela ausência de elementos visuais da história (que foram tão meticulosamente projetados) e a duração de meia hora da transmissão."

Uma antologia de televisão da Playhouse 90 pela CBS foi ao ar com uma adaptação livre de 90 minutos em 1958. Esta versão, escrita por Stewart Stern, usa o encontro entre Marlow (Roddy McDowall) e Kurtz (Boris Karloff) como seu ato final, e adiciona uma história de fundo em que Marlow é o filho adotivo de Kurtz. O elenco inclui Inga Swenson e Eartha Kitt. 
 
A adaptação mais famosa do livro é a cinematografia de Francis Ford Coppola Apocalypse Now de 1979, que move a história do Congo para o Vietnã e no Camboja durante a Guerra do Vietnã. No filme, Martin Sheen interpreta o Capitão Benjamin L. Willard, um capitão do Exército dos Estados Unidos com a missão de "encerrar" o comando do coronel Walter E. Kurtz (Marlon Brando). No filme, Brando atua em um de seus papéis mais famosos. 
 
Um documentário de produção do filme, intitulado Hearts of Darkness: A Filmmaker's Apocalypse, expôs algumas das principais dificuldades que o diretor enfrentou ao produzir o filme até a sua conclusão. As dificuldades que Coppola e sua equipe enfrentaram espelhou alguns dos temas do livro. 
 
Em 1991, o autor e dramaturgo australiano Larry Buttrose escreveu e encenou uma produção teatral de Kurtz (baseado em Heart of Darkness), com a Crossroads Theatre Company, de Sydney. A história foi anunciada a ser transmitida como uma peça de rádio ao público australiano, em agosto de 2011 pela Vision Australia Radio, e também pela RPH – Radio Print Handicapped Network em toda a Austrália. 
 
Em 13 de março de 1993, foi ao ar pela TNT uma nova versão da história dirigida por Nicolas Roeg, estrelada por Tim Roth como Marlow e John Malkovich como Kurtz.

Em 2011, uma adaptação em ópera do compositor Tarik O'Regan e o libretista Tom Phillips foi estreada no Linbury Theatre da Royal Opera House, em Londres. Uma suite para orquestra e narrador foi posteriormente extrapolada a partir deste concerto.

Em 2012, o jogo de tiro em terceira pessoa, Spec Ops: The Line, mostra que se inspirou no livro para seu enredo, sendo considerado uma verão moderna de Coração das Trevas.

O livro também inspirou a banda britânica Iron Maiden em sua canção “The Edge Of Darkness” do álbum de 1995, “The X Factor”. 
 
Essa não é a única música do álbum inspirada em um grande clássico da literatura; “Sign Of The Cross” é inspirada na obra “O Nome da Rosa” de Umberto Eco e “Lord Of The Flies” inspirada na obra homônima do ganhador do Premio Nobel de literatura de 1983, o também britânico William Golding.

Conclusão:

Os mistérios em torno das personagens de Conrad simbolizam a impenetrabilidade misteriosa da alma humana, e as suas complicações.

"Vivemos como sonhamos - sozinhos"

“O objetivo que tento atingir, pelo poder da palavra escrita, é fazer você escutar, fazer você sentir e acima de tudo, fazer você ver. Isto, e nada mais, é tudo
”. Palavras de Joseph Conrad, talvez um dos mais vicerais escritores que a literatura ocidental já produziu.
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Jósef Teodor Konrad Korzeniowski nasceu em 1857, na cidade de Berdichev, na Ucrânia, uma região que foi parte da Polônia, mas na época estava sobre controle russo.

Nota: Alguns atribuem que Joseph Conrad nasceu em Berdyczow uma província ucraniana na Polônia daquela época. Hoje a cidade ucraniana Berdichev.

terça-feira, 25 de maio de 2021

Varal de Trovas 503

 

Edwaldo Camargo Rodrigues (Trapaça do além)

Desde que, naquela tarde na praia, em plenas férias do último verão, Elvira morrera abatida por um mal súbito fulminante e inesperado, amigos e mesmo a gente nem muito próxima ao casal começaram a reparar nos modos do marido, de ordinário introvertido e taciturno, uma esquisita transformação, ainda que discreta e gradual.

Pois nem se passara tanto tempo depois do trágico acontecimento, e o homem agia agora de maneira solta e desempenada, sorria-se em volta com frequência e parecia estar de bem com a vida. Segundo murmuravam línguas mais ferinas, como se tivesse acertado na sorte grande.

– Ó Gouveia, acaso viste passarinho verde, criatura? – brincou algo intrigado o Adelino, naquela tardinha tépida de fim de outono, enquanto espaireciam ambos a flanar muito preguiçosos pela praça da matriz.

E a estranheza não fora provocada por acaso: haviam parado junto à carrocinha de sorvetes e, enquanto tardavam a decidir qual sabor da guloseima escolheriam, de repente, sem que se notasse qualquer causa identificável para tanto, estampou-se no carão barbado do viúvo um sorriso alvar, aparvalhado mesmo, e que se lhe estendeu de um lóbulo ao outro das orelhas, estas um tanto despegadas para a frente, à feição de abanos.

Note-se que, muito unidos desde pequenos, os dois camaradas tratavam-se mutuamente com toda a liberdade, sem qualquer cerimônia, feito irmãos. E por isso entre si certamente não deixariam existir segredos.

Demorou um pouco o interpelado até que atinasse com o apelo do outro, que para tanto sacudia-lhe com energia o cotovelo pontudo. O semblante persistia embevecido, entretanto. O homem parecia encontrar-se em puro estado de contemplação beatífica. Virou-se finalmente, inclinou a cabeça a fim de ser ouvido (pois o companheiro, sujeito gorducho e prognata, era-lhe bem mais baixo em estatura) e confidenciou:

– Ela permitiu agorinha mesmo que eu lhe contasse tudo. Mas olhe lá, apenas para você, a mais ninguém, estamos entendidos?

– Ela quem, meu caro?

– A minha Virinha, claro! Quem mais poderia ser, ora essa?

– Está falando de... da dona Elvira, sua finada esposa? – fez confuso o Adelino.

– Ela mesma. E está a dizer que sente saudades e manda muitas lembranças: a você, à dona Leocádia e à pequena Amelinha. Ah, e também ao Torquato! Veja só quanta gentileza! Afeiçoou-se de tal modo ao danadinho que nem lá no Céu o pôde esquecer! Pobrezinha, sempre quis criar lá no quintalejo um cãozito lebréu, engraçado igual ao seu. Mas, que fazer? Deus não quis... Eu e mais as minhas alergias, como você bem sabe...

Diabos! Com certeza o infeliz andava mal da moleira. Culpa talvez da solidão, à qual ainda não se afizera! Foi imediatamente aconselhado a consultar-se com o doutor Coutinho; roupas mais leves e comida fresca, muitas saladas, nada de embutidos e pão de véspera. Ora essa! que deixasse de lado a sovinice e que se contratasse uma criada habilidosa com o cozinhado mais a limpeza da casa. A Leó conhecia uma, e das boas, ótimas referências, inda que  feiosa e gorda como ela só; e assim, sim, que era melhor, pois que o povo não havia de maldar. Mulher moça e bonita com homem sozinho na casa, nunca se sabe, é prato cheio para mexericos...

– Mas pra que tudo isso? – rebateu contrafeito o enlutado. – Arranjo-me muito bem do jeito que as coisas estão. Não preciso de nenhum estafermo a abalroar-me os móveis com as ancas, derrubando ao chão louças e cristais. Para sua informação, ontem mesmo, hora do almoço, apareceu-me a Elvira a repreender: “Homem”, disse ela, “esta cozinha está imunda. É uma vergonha! Isto jamais aconteceu, enquanto eu vivia”. Larguei imediatamente o que estava fazendo, e lá fui eu, balde na mão e esfregão embaixo do braço. E, seguindo à risca as instruções que ela me dava a cada passo, num instantinho, pus tudo limpo a brilhar igual um brinco! E nem é tão difícil quando se tem esse tipo de ajuda, pode acreditar em mim.

– Está de brincadeira comigo, não é mesmo? Quer que eu acredite que sua mulher, a dona Elvira, alma santa que sempre foi, em vez do merecido descanso junto a Deus e aos anjos do Céu, por dá-cá-aquela-palha, corre de volta ao mundo, a fim de ocupar-se com os desleixos domésticos do marido? Tenha dó, ó Gouveia! Não me faça piadas com assunto tão sério, rapaz, que não tem graça!

– Se está duvidando do que lhe digo, olhe lá – apontou o parceiro. – Está vendo ali adiante o carrossel do parquinho girando cheio de crianças?

– Estou, e daí?

– Pois lá está ela, neste exato momento, e acena em nossa direção! Seja educado e acene de volta também! – ordenou a erguer a manzorra cabeluda.

– Compadre – ponderou o parceiro –, sei que sua esposa, a vida toda, foi uma pessoa de gênio alegre e jovial. Ao contrário de você, que é um ranzinza antiquado, gostava de festas, de receber e fazer visitas e tudo mais. Contudo, enfiar-se junto a pirralhos numa minúscula carreta em forma de joaninha a rodopiar tolamente em torno de um eixo, aí já é demais para uma pessoa adulta.

– Lino, você é um pedaço d’asno, mesmo! – sobreveio áspera a resposta. – O que você diz é ridículo! Ela está pairando um pouco acima, não enxerga, não, criatura? De modo que, dali, cuida dos pequenos a que não se machuquem e, ao mesmo tempo, também de nós. Para tanto, nem é necessário que desça ao solo; adeja feito um beija-flor, com a vantagem de nem precisar de asas!

Pobre amigo! Sem dúvida, os miolos se-lhe haviam derretido, não se encontrava outra explicação. Saudades, com certeza. O jeito, por enquanto, era entregar os pontos e entrar no jogo, pois se conhecem casos em que, contrariado, o sujeito pode torna-se enfurecido e perigoso. Mais tarde relataria o episódio ao doutor Coutinho, tintim por tintim. Este deveria conhecer algum colega, bom alienista, que pudesse recomendar.
– Ah, é verdade! Agora sim, estou vendo! – resolveu fingir o Adelino. E, não lhe ocorrendo ideia melhor, tateou: – Já que é assim, pergunte a ela o que trago na algibeira de trás da minha calça.

O outro encarou-o enfezado: – Olhe o respeito, homem! Não se trata aqui de truque de mágica barata. Se um espírito abençoado se apresenta a nós, deve ser por razões muito sérias, que não podemos compreender direito.

– Sem ofensa, por favor, desculpe, meu camarada. É que sempre me contaram que as almas têm o dom de adivinhar qualquer coisa e, além disso, sabem de tudo o que pode acontecer, quer no presente, no passado ou no futuro.

– Quem lhe disse isso?

– Sei lá, não lembro direito – desconversou. – Muita gente, acho. A primeira vez que ouvi essa história, eu era ainda um garoto. Foi a amiga de mamã que disse, ela era espírita ou algo assim. Por sinal, um tremendo mulherão! – devaneou o baixinho, rolando os olhos com luxúria. – Chamava-se Betânia, como aquela da bíblia. Ah, e fazia defumação, andando pela casa toda. Um cheiro horroroso, aliás!

E decidiu insistir: – Vamos lá, pergunte a ela, não vai desrespeito nenhum nisto. Fazemos o teste, e tenho certeza de que tudo vai dar certo.

O maluco pareceu convencer-se. Cerrou os olhos com força, levando os indicadores às têmporas.

– Você não vai gritar? – quis saber o amigo. – Ela está um pouco longe, pode não ouvir.

– Ora, não seja tão estúpido, ó Adelino! No plano espiritual, tudo é silencioso. Não precisamos de orelhas, as conversas e tudo mais ressoam direto dentro da cabeça.

– Nossa, que chato! Nem uma musiquinha ambiente pra aninar? E aquela conversa de coro dos serafins e coisa e tal, de que a gente escuta falar sempre?

– Calado, por favor! Não me atrapalhe a concentração – foi a ordem impaciente. – E pouco depois: – Já transmiti a ela sua pergunta boba. Achou esquisito, é claro, mas garante que poderá responder, desde que você se vire de costas. Sabe-se lá – considerou, medindo de esguelha o interlocutor –, imagino que o poder da vidência também tenha lá suas limitações, vai saber. Talvez sejam necessários alguns procedimentos, como aqueles que são feitos nas radiografias, por exemplo. Reconheça que as suas nádegas são... ããã, digamos assim: um tanto fornidas demais. Tentar enxergar através delas deve exigir esforço excepcional, não concorda?

Ambos nessa toada, e bastaram apenas alguns minutos mais para que a esperta “aparição” se pronunciasse mediunicamente através do consorte, de forma a descobrir-se não só o que havia no bolso em questão, como também os respectivos números e séries!

Seguiu-se o assombro total. Os cavalheiros ficaram boquiabertos.

– E mais – informou o viúvo –, Virinha prevê que as frações não serão premiadas, quando correr o sorteio da loteria, sábado próximo.

– Diabos! – imprecou o apostador, muito frustrado, já saindo do estado de pasmaceira em que havia pouco se encontrava. – Eu que punha tanta fé, caramba! Cheguei a sonhar com esses malditos palpites, acreditas? Foi tão real: minha saudosa mãezinha sacudia os bilhetes na minha cara e dizia: “Vai, meu filho, ser milionário nesta vida!” A velhinha era lida, sabias?, gostava de Drummond, veja só.

E, sem mais delongas, com um gesto de desdém, deitou os cupons azarados na lixeira pública mais próxima. – ...e ainda me custaram uns bons trocados, os miseráveis – comentou despeitado.

Passadas algumas semanas, outra vez na fila da agência de apostas com uma nova fezinha na cabeça, lembrou-se do amigo e estranhou: já não se encontravam fazia um bom tempo. Teria o coitado enlouquecido de vez? Preocupado, resolveu então visitá-lo.

– O senhor tá procurando o doutor Gouveia? – fez admirado o jardineiro sem largar a tesoura, pois que aparava as sebes junto ao muro. – O senhor não ficou sabendo, não? Parece que se mudou de mala e cuia lá pras Europas... Até deixou a casa à venda.

E como o visitante pareceu não compreender direito, confidenciou:

– Homem sortudo, o patrão! Corre à boca pequena que, passeando ali na praça, encontrou uns bilhetes de loteria que estavam premiados, e jogados na lixeira! Dá pra acreditar? Quem teria sido o imbecil que botou fora a própria sorte desse jeito? Só pode ser algum retardado, mesmo! Desse nem mesmo Deus deve ter pena...

Fonte:
Texto enviado por João Líbero.

Therezinha Dieguez Brisolla (Trovas com Humor) 2

"A gente estudamo ingreis
e num é que nóis se gabe...
nóis num gosta de franceis
e portugueis... nóis já sabe!"
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A nova rica encarrega
o estilista, em plena rua,
de tirar-lhe o que for brega...
e ela foi pra casa... nua!
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À pergunta: – Qual andar?
Responde o pinguço, a esmo:
– Onde quiser me levar...
já errei de prédio mesmo!
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Chegou a sogra "querida"
e a desgraça aconteceu...
Veio o cão... com a mordida,
deu a raiva... e o cão morreu!
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Chora de fome o povão!!!
Pro aperto, depois dos censos,
dá o governo a solução:
- Distribui milhões... de lenços.
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"Crescei e multiplicai"
disse o padre... E, em confissão,
se explica o farrista: - Uai...
sigo à risca a religião.
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– Depressa!... A bolsa ou a vida.
– Mas que sufoco, senhor!...
diz a livreira polida.
Não sabe o nome do autor?
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Deram sumiço ao rateio
do mensalão... e, por zelo,
o ladrão, lá do correio,
diz que não aceita... sê-lo!
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Diz ao dançar, enfadonha:
– Você sua!!! e isso mexeu
com o caipira... e o "pamonha"
diz, baixinho: – Vô sê seu!!!
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Diz, já caduco: – Que tédio!...
E a esposa, sempre calminha:
– Quer jogar dama?... e, do prédio,
ele jogou a velhinha.
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– É o piloto... tô em perigo!...
Tem fumaça... e um fogaréu!!!
– É a torre... reze comigo:
Pai Nosso que estais no céu...
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– É sedentário, se nota...
precisa andar, companheiro!...
– Isso parece anedota...
seu doutor... eu sou carteiro!
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Nas Bodas de Ouro, ela encuca:
– Quer, meu bem, uma canjinha?
Grita o velho: – Tá caduca?!
Que culpa tem a galinha?
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No quarto trancado, os dois,
"pra que a aluna se concentre".
E, nove meses depois,
enfim... a dança do ventre!
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Num dos quadros se consterna...
Vê o pintor... "mete o bedelho":
– Que homem feio!!! Arte moderna?
– Não, meu senhor... é um espelho.
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Num pagode eu fui dançar,
diz o velho... e "aconteceu"
quando a moça eu fui tirar:
– Quer dar-me a honra?... E ela deu!
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Olhando seu sangue nobre,
passou momentos felizes!...
Mas, morreu plebeia e pobre...
Sangue azul?!... Eram varizes!
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O trovador tá empolgado
e até troféu quer ganhar!...
O tema é "Mar"... e eis o achado:
- És meu mar... mas não faz mar!
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"Padre, eu sei quem é Jesus"...
diz o caipira e dispara:
"Conheço o sinar da cruz...
num sei é espaiá na cara!"
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Para o carro ao ver a farda...
– Cadê a carta?... Quero ver...
– Mas que vergonha, seu guarda!...
Eu fiquei de lhe escrever?
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Pedir votos, não foi "canja"!
Um político safado
criou confusão na granja
e saiu "ovocionado"!
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"Pescar, pra mim, é mania
e é estranho que a esposa deixe"!...
Ele vai pra pescaria
e ela vai "vender seu peixe"!
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Pôs anúncios nas estradas:
– "Por um módico aluguel,
moitas limpas, bem cuidadas"...
e inaugurou... seu "Moitel"!
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Pra casar, fingiu carinho
e ao tornar-se sua herdeira,
encomendou pro velhinho
um "pijama de madeira".
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Quando a esposa entra no mato,
sem vergonha... toda afoita...
o Matos se faz de "pato"
e espera o flagra... "na moita"!
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"Que belo corpo!" ele exclama,
sem ver que tem namorado...
"Que vontade de ir pra cama!"
E foi... sozinho e engessado!
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– Que consulta milionária!!!
diz o velhinho... e diz mais:
– Se a doença é hereditária,
a dívida é dos meus pais!
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Sem grana, o povo suspeita;
– Quem tinha fome, tá morto!...
– Quem diz que "tudo endireita"
mora na Granja do Torto!!!
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"Sultão velho vende, urgente,
tendas sem uso, importadas.
No aperto, dá de presente,
odalisca e esposa... usadas".
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Tomou um "chá de cadeira"
lá na dança do cortiço
e ao ver o esposo, ligeira
tomou um "chá de sumiço"!
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Vendo a grana do "pamonha"
ela diz, baixando o olhar:
– Num motel?... Tenho vergonha...
só se for familiar...
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"Zerou" no vestibular!!!
Com vergonha, ela tremeu!
Disse ao pai, pra disfarçar:
– Sabe a última?... Sou eu!

Fonte:
Therezinha Dieguez Brisolla. À procura de estrelas.
Porto Alegre/RS: Odisséia, 2014.
Livro enviado pela trovadora.