A Presciliana Duarte de Almeida
Cabelos brancos, finos, em bandós; rosto redondo, amolecido, sulcado por muitas linhas fundas; olhos azuis, cariciosos e transparentes como as pupilas das crianças; corpo pesado, grosso, baixo e curvado; pés e mãos inchados, pernas paralíticas – tal era a velhinha cuja vida deslizara entre sacrifícios, que ela, na sua crença de religiosa, espera ver transformados em flores no céu!
Muito surda, mas extraordinariamente bondosa e ativa, ela não parava de trabalhar, na sua grande cadeira de rodas, recortando papéis para as confeitarias. Os recursos eram minguados: o irmão, desde que se mudara para aquele sobrado da rua do Hospício, não lhe dava vintém, e ainda se queixava de ter de sustentar tantas bocas.
Só filhas quatro, de mais a mais doentes e pouco jeitosas. Só uma bonita, a última, e essa era também a de melhor gênio, talvez por mais esperançada no futuro. Mãe não tinham, e fora a velha, tia Amanda, quem tivera com elas todo o trabalho da criação, bem como já tinha tido com o irmão. Estava afeita. Afeita mas cansada.
O irmão, empregado público, era viúvo, mal-humorado e envelhecido precocemente. A esse tinha ela criado nos braços, desde os mais tenros meses; fora para ele uma segunda mãe. Quantas vezes contava às sobrinhas as travessuras do seu pequeno Luciano, que aí estava agora tristonho, achacado e impertinente! E ela gozava relatando os episódios da meninice dele: os caprichos que lhe satisfazia para o não ver chorar, as horas que perdia de sono para o embalar nos braços, os sustos com as doenças e as quedas, e uma noite que passara em claro para fazer um trajo de anjo com que Lucianinho foi à procissão do Corpo de Deus.
– Nesse tempo o vigário do Engenho...
Mas as sobrinhas interrompiam-na: queriam saber como era o vestido, esforçando-se por imaginar a figura do pai, agora tão enrugado e taciturno, com seis anos apenas e vestidinho de anjo!
A velha satisfazia-lhes a curiosidade com um sorriso de gosto: era um vestidinho salpicado de lantejoulas e guarnecido de rendas.
Nada faltou ao irmão – nem a cabeleira em cachos, com o seu grande diadema cheio de pedrarias, alto na frente, em bico; nem as asas de penas brancas, entre as quais pusera um ramo de flores do campo, em tufos de filó; nem as meias arrendadas, e os sapatos de cetim branco com uma roseta azul, nem as pulseiras, o colar, o lenço guarnecido de rendas, cuja extremidade ele oferecera graciosamente a outro anjo que ia a seu lado, no mesmo passo. As sobrinhas ouviam-na rindo e faziam-na repetir certas travessuras do pai, a que elas achavam muita graça, mas que lhes pareciam absurdas. Custava-lhes a crer que o pai, tão sisudo, tivesse feito aquilo; mas a tia afirmava-lhes tudo com segurança, mesmo diante dele, que não protestava, e elas ficavam satisfeitas, tendo com as antigas maldades do pai como que uma desculpa para as suas.
Entretanto, tia Amanda não parava de trabalhar; cosia as meias de toda a gente de casa, cortava papéis de balas para uma vizinha doceira e rendas para os pudins das confeitarias.
Ganhava pouco, e esse pouco dava-o, tão habituada estava desde moça a trabalhar para os outros.
A pouco e pouco a pobre velhinha foi também perdendo a memória: confundia datas, relatava atrapalhadamente os fatos; a sua tesourinha já se não movia com tanta delicadeza, as mãos tornaram-se-lhe mais pesadas, a vista enfraqueceu; os pontos nas meias já não formavam o mesmo xadrezinho chato e igual, e o serviço das confeitarias começou a escassear até que lhe faltou completamente.
Nesse dia a pobrezinha chorou. O irmão não lhe dava nada... como poderia ela socorrer as desgraçadas que até então protegera?
No fim do mês lá foram ter com ela a viúva pobre dos sete filhos e a comadre tísica. A velha não teve coragem de lhes contar a verdade; corou... e prometeu mandar-lhes no outro dia alguma coisa. E no outro dia mandava o que a casa de penhores lhe dera pelo seu relógio antigo, e que ela tinha destinado para a primeira sobrinha que casasse.
Mas a história do relógio foi depressa sabida pela gente de casa. As filhas de Luciano contaram ao pai, indignadas, que a tia o expunha ao ridículo, mandando empenhar coisas, como se não tivesse que comer em casa! O Luciano ouviu-as, mordendo o bigode branco, com a indignação das filhas a refletir-se-lhe nos olhos. Foi imediatamente falar à irmã. Achou-a cosendo na sua cadeira de rodas, os óculos caídos sobre o nariz, a cabeça pendida.
Vendo-o, ela sorriu. Ele perguntou-lhe num tom azedado pelo seu mau fígado:
– Então? é verdade que você mandou empenhar o seu relógio de ouro?
– É, respondeu ela na sua costumada placidez.
– Mas eu não quero isso! Hão de pensar lá fora que não lhe dou de comer! Tome cuidado!
A velha estremeceu, e nos seus olhos azuis brilhou, fugitiva, uma expressão dolorosa.
Tome cuidado! Quantas vezes dissera ela aquelas mesmas palavras ao Lucianinho, nos velhos tempos! Dizia-lhas com meiguice, alisando--lhe os cabelos, ou entre dois beijos:
– “Olha, meu filho, toma cuidado! não te exponhas ao sol... não comas frutas verdes! estuda bem as lições... Toma cuidado contigo, meu amor!”
E eram quase súplicas aqueles conselhos!
E aí estava agora o Luciano a dizer-lhe colérico e brutalmente as mesmas palavras! E ela curvava a cabeça ao irmão, e obedecia-lhe, e temia-o! ela, que o criara desde pequenino, que por causa dele perdera um casamento, que por causa dele se tinha sempre sacrificado! Era duro, mas era assim. Há sempre mais paciência para as maldades de uma criança do que para as rabugices de um velho! Reconhecia isso e calava-se. “Luciano é doente, pensava ela, e é por isso que me trata com tão mau humor! é doença, não é ruindade de coração... Se ele foi sempre tão bom! Aquilo há de passar.”
No fim do mês a questão estava esquecida, e a velha recebeu a visita da comadre tísica e da viúva pobre. Não tinha um vintém, e resolvera dizer isso mesmo às suas protegidas; mas exatamente nessa ocasião a tísica mostrou-lhe uma receita do médico, tossindo a cada palavra, com a mão espalmada no peito; e a viúva levou-lhe pela primeira vez o filho mais novo, um lindo menino de olhos azuis e de cabelos loiros.
A velha enterneceu-se e prometeu mandar no dia seguinte alguma coisa, tanto a uma como a outra.
Nessa mesma tarde disse ao Luciano, muito constrangida:
– Hoje vieram cá aquelas pobres... Coitadas! custa-me tanto não lhes dar esmola... se você me pudesse emprestar... é pouca coisa, bem vê...
– Acha muito o que eu ganho? não se lembra que mal me dá o ordenado para sustentar as quatros filhas e nós?
E como ela lhe explicasse a precária situação das duas mulheres:
– Ora, a viúva que empregue os filhos mais velhos e ponha os outros em asilos; e quanto à tísica...
– Se eu tivesse vinte anos de menos, não te pediria isto, Luciano! Lembra-te bem!
Mas o Luciano não se lembrou!
Ela quis referir-se ao tempo em que o ajudava trabalhando para fora, cuidando-lhe dos filhos, indo muitas vezes para a cozinha, e deitando-se fora de horas para lhe engomar as camisas... quis referir--se, mas envergonhou-se, e disse de si para si:
– Aquilo é doença; não é ruindade de coração!
No entanto, o seu bom Lucianinho e as filhas comentavam entre si a caduquice da velha. E, realmente, desde aquele dia, a paralítica decaiu muito; incomodava toda a gente. Era preciso levá-la ao colo para a cama, despi-la, vesti-la, lavá-la, levar-lhe a comida à boca. Ela impacientava-se quando lhe tardavam com o almoço; gritava de lá que a queriam matar à fome, que era melhor enterrarem-na de uma vez. E a criada, a quem ela dera outrora presentes, ria-se; e as sobrinhas, que ela tantas vezes carregara ao colo, levantavam os ombros, enfadadas. Luciano repreendia--as, mas ia dizendo que efetivamente a irmã era insuportável!
Apesar de muitíssimo idosa, a pobre senhora tinha apego à vida; já muito confusa das ideias, completamente inerte, tinha impertinências, ralhava lá da sua cadeira de rodas com toda a gente: esta porque não lhe dava água, aquela porque lhe apertara de propósito o cós da saia, aquela outra porque lhe deitava veneno na comida...
Deslizavam assim amargamente os meses quando, um dia, uma criada, muito pálida, com os olhos esgazeados e os cabelos hirtos, entrou aos gritos na sala de jantar, exclamando:
– Fogo! fogo! há fogo em casa!
Levantaram-se todos da mesa.
Por uma janela aberta entrou uma lufada de fumo; viu-se brilhar a chama. A porta estava tomada pelo fogo.
– Fujam pelo telhado! gritou o Luciano.
E ouviam-se vozes lá fora, dizendo como um eco:
– Fujam pelo telhado!
Na sua grande cadeira de rodas, a velha presenciava aquela cena, sem se poder mover, aterrorizada e sem voz. O irmão empurrava as filhas, atava num guardanapo as joias tiradas à pressa de uma cômoda, punha na mão da criada os talheres de prata, olhava para trás, para o fogo que vinha lambendo a parede, impelido pelo vento; corria, atirava para o telhado os móveis mais leves, pressurosamente, abria e fechava gavetas, e saltava por fim também pela janela, para o telhado, o único meio de salvação que a Providência lhe oferecia!
A velha ficou só. Tentou mexer-se, tentou gritar: debalde.
Pior que o incêndio e que o medo foi a impressão deixada pela fugida do irmão.
O seu espírito cansado como que se esclareceu nesse momento.
E dessa vez não disse de si para si, para desculpá-lo: “Aquilo é doença, não é ruindade de coração!...”
O calor afogueava-lhe as faces, onde há muito não subia o sangue; no meio daquela solidão pavorosa, ouvindo o crepitar da madeira nuns estalidos secos, a bulha surda de uma ou de outra viga que se desmoronava, o luf-luf da chama que subia, a velha sorria com ironia,
lembrando-se da precaução do Luciano em arrecadar as coisas que ela, a irmã abandonada, lhe ajudara a ganhar...
E voltou de novo o olhar para a janela; então, entre o fumo já espesso, viu desenhar-se ali uma figura de homem.
O coração bateu-lhe com alegria.
– É Luciano que se lembrou de mim!...
Era um bombeiro que lhe estendia a mão, chamando-a. A velha fez-lhe um gesto – que se retirasse!
Nisso, um rolo de fumo negro interpôs-se entre ambos, como um véu de crepe. Perderam-se de vista. O bombeiro voltou para fora, quase asfixiado. A velha fechou os olhos e esperou a morte.
Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev.
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev.
Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.
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