domingo, 2 de maio de 2021

Oscar Wilde (O Milionário modelo)

Uma nota de admiração

A menos que seja rico, não há utilidade nenhuma em ser encantador. Romance é privilégio dos ricos, não a profissão dos desempregados. Pobres devem ser práticos e prosaicos.

É preferível ter uma renda permanente a ser fascinante. São essas as grandes verdades da vida moderna que Hughie Erskine nunca compreendeu. Pobre Hughie!

Intelectualmente, devemos admitir, não tinha muita importância. Nunca disse algo brilhante ou mesmo mordaz em toda a sua vida. Mas era magnificamente belo, com cabelos castanhos encaracolados, pele alva e olhos acinzentados. Era tão popular entre os homens quanto entre as mulheres, e tinha todos os talentos, menos o de conseguir dinheiro. O pai havia-lhe legado a espada de cavalaria e a “História da Guerra da Península”, em quinze volumes. A primeira, Hughie pendurou sobre o espelho, a segunda, acomodou numa estante, entre o “Guia Ruff” e a “Bailey’s Magazine”, vivendo com duzentas libras por ano, que uma velha tia lhe dava. Tinha tentado de tudo. Por seis meses estivera na Bolsa de Valores, mas o que tinha uma borboleta a fazer entre touros e ursos? Por algum tempo, comercializou chá, mas logo se cansou de pekoe e souchong (*). Em seguida tentou vender xerez seco, mas não obteve sucesso: o xerez era um pouco seco demais. Por fim transformou-se em um jovem maravilhoso e inútil, com um perfil perfeito e nenhuma profissão.

Para piorar as coisas, estava apaixonado. A moça a quem amava chamava-se Laura Merton, filha de um coronel aposentado, que na Índia tinha perdido a paciência e a boa digestão, e nunca mais as encontrou novamente. Laura adorava o rapaz, e ele estava sempre pronto para beijar-lhe os cordões dos sapatos. Formavam o casal mais belo de Londres e entre os dois não havia sequer um tostão. O coronel gostava muito de Hughie, mas não queria ouvir falar sobre noivado.

“Venha até mim, meu jovem, quando tiver conseguido dez mil libras por si mesmo, e falaremos a respeito”.

Nessas ocasiões, Hughie ficava muito deprimido e ia consolar-se com Laura.

Certa manhã estava a caminho de Holland Park, onde moravam os Merton, quando decidiu casualmente visitar um grande amigo, Alan Trevor. Trevor era pintor. Na verdade, poucas pessoas escapam de sê-lo, hoje em dia. Mas ele era também um artista, e artistas são bastante raros. Pessoalmente, era um amigo estranho e grosseiro, de rosto sardento e uma barba vermelha e desalinhada. Contudo, quando utilizava o pincel, era um verdadeiro mestre, e suas pinturas eram muito requisitadas.

No começo tinha se sentido muito atraído por Hughie, deve-se admitir, devido apenas ao encanto pessoal que possuía.

“As únicas pessoas que um pintor deve conhecer”, costumava dizer, “são as tolas e as belas, cuja contemplação constitui um prazer artístico, e a conversação, um repouso para o intelecto. Homens dandies e mulheres darlings governam o mundo, ou pelo menos deveriam fazê-lo”. Entretanto, depois de conhecer Hughie melhor, passou a gostar dele também pelo espírito vivaz e pelo bom humor, pela natureza imprudente e generosa, e deu-lhe passe livre para entrar no estúdio quando quisesse.

Ao chegar, Hughie encontrou Trevor dando os toques finais em uma maravilhosa pintura em tamanho natural de um mendigo. O próprio mendigo estava em pé numa plataforma no canto do estúdio. Era um velho enrugado, a face parecendo um pergaminho cheio de pregas e com uma expressão bastante cansada. Sobre os ombros pendurava-se um grosseiro manto castanho, puído e esfarrapado; as grossas botinas eram manchadas e remendadas e, em uma das mãos, segurava um cajado tosco e na outra, trazia um chapéu estragado, para as esmolas.

– “Que modelo surpreendente!”, sussurrou Hughie, ao apertar as mãos do amigo.

– “Modelo surpreendente?”, gritou Trevor o mais alto que podia; “Tenho certeza que sim! Mendigos como ele não são encontrados todos os dias. Um achado meu caro, um Velásquez vivo! Pelas estrelas! Que água-forte Rembrandt não teria feito com tal modelo!”

– “Pobre rosto de pele rachada e envelhecida!”, disse Hughie, “quão desgraçado ele parece! Mas suponho que, para vocês, pintores, essa face é uma grande sorte”.

– “Com certeza”, replicou Trevor, “você não espera que um mendigo pareça feliz, não é?”

– “Quanto recebe um modelo para posar?”, perguntou Hughie, sentado confortavelmente em um divã.

– “Um xelim por hora”.

– “E quanto consegue pela pintura, Alan?”

– “Ah, por isso eu recebo uns dois mil”.

– “De libras?”.

– “De guinéus. Pintores, poetas e médicos sempre recebem em guinéus”.

– “Bem, penso que o modelo deveria levar uma porcentagem”, exclamou Hughie, rindo: “eles trabalham tão duro quanto você”.

– “Bobagem, bobagem! Ora, repare na dificuldade de fazer a pintura e de passar o dia inteiro diante de um cavalete! Para você é muito fácil falar, Hughie, mas lhe asseguro que há momentos em que a arte quase atinge a dignidade do trabalho manual. Mas não deve ficar aí tagarelando, estou muito ocupado. Fume um cigarro e fique quieto”.

Depois de algum tempo entrou o criado, informando a Trevor que o fabricante de molduras queria falar-lhe.

– “Não fuja, Hughie”, disse ao sair, “voltarei em um instante”.

O velho mendigo aproveitou a ausência de Trevor para descansar por um instante em um banco de madeira que estava bem atrás. Parecia tão desamparado e infeliz que Hughie não pôde evitar de sentir pena dele e tateou os bolsos para ver quanto dinheiro tinha. Tudo o que pôde encontrar foram um soberano e alguns cobres.

“Pobre velho!”, pensou consigo mesmo, “ele precisa disto mais do que eu, mas terei que passar duas semanas andando a pé”. Cruzou o estúdio e deslizou o soberano nas mãos do mendigo.

O velho estremeceu, e um sorriso tênue passou rapidamente pelos lábios ressecados.

– “Obrigado, senhor”, disse, “Obrigado”.

Logo depois Trevor retornou e Hugie despediu-se, um pouco corado pelo que tinha feito. Passou o dia com Laura, recebeu uma encantadora repreensão por sua extravagância e voltou a pé para casa.

Naquela noite, foi passear no Pallete Club por volta das onze horas e encontrou Trevor sentado sozinho na sala de fumantes, tomando vinho do Reno com soda.

– “Então, Alan, conseguiu terminar o quadro?”, disse, acendendo um cigarro.

– “Terminado e emoldurado, meu rapaz!”, respondeu Trevor, “e, a propósito, você fez uma conquista. O velho modelo que você viu encontra-se completamente devotado a você. Tive que contar a ele tudo a seu respeito: quem você é, onde mora, quanto é sua renda, quais suas perspectivas...”

– “Meu caro Alan”, bradou Hughie, “provavelmente o encontrarei esperando por mim quando voltar para casa. Mas é claro que você está apenas brincando. Pobre velho infeliz! Espero poder fazer algo por ele. Penso ser horrível que alguém seja assim, tão miserável. Tenho montes de roupas velhas em casa, você acha que interessaria a ele? As dele estão caindo aos pedaços”.

– “Mas ele fica esplêndido nelas”, disse Trevor. “Não o pintaria de sobrecasaca por nada neste mundo. O que você chama de andrajos, eu chamo de romance. O que parece pobreza para você, para mim é pitoresco. Entretanto, direi a ele sobre sua oferta”.

– “Alan”, disse, com seriedade, “vocês pintores não têm coração!”

– “O coração de um artista é a mente”, replicou Trevor, “e além do mais, nosso trabalho é perceber o mundo como ele é, não reformá-lo com o que conhecemos dele. A cada um o seu ofício. E agora me diga como está Laura. O velho modelo está muito interessado nela”.

– “Você não está me dizendo que falou a respeito dela?”, disse Hughie.

– “Claro que sim. Ele sabe tudo a respeito do implacável coronel, a adorável Laura e as dez mil libras”.

– “Você contou ao velho mendigo tudo a respeito dos meus negócios particulares?”, bradou Hughie, vermelho de raiva.

– “Meu caro rapaz”, disse Trevor, sorrindo, “aquele velho mendigo, como você o chama, é um dos homens mais ricos da Europa. Ele poderia comprar Londres inteira amanhã sem esgotar o próprio saldo. Tem uma casa em cada capital, janta em pratos de ouro e pode impedir a Rússia de entrar em guerra quando quiser”.

– “O que você quer dizer?”, exclamou Hughie.

– “Apenas o que disse”, respondeu Trevor. “O velho que você viu hoje no estúdio é o Barão de Hausberg. É um grande amigo meu, compra todos os meus quadros e esse tipo de coisa, e deu-me uma comissão há um mês para pintá-lo como mendigo. O que quer? É a fantasia de um milionário! E devo dizer que ficou magnífico em seus andrajos, ou melhor, nos meus andrajos. É um traje velho que consegui na Espanha”.

– “Barão Hausberg!”, bradou Hughie. “Deus do céu! Dei a ele um soberano!”, e afundou na poltrona: era o retrato da desolação.

– “Deu a ele um soberano”, gritou Trevor, explodindo numa gargalhada ruidosa. “Meu caro jovem, jamais terá seu dinheiro de volta. Seu negócio é o dinheiro dos outros”.

– “Penso que você deveria ter-me dito, Alan”, disse Hughie, aborrecido, “e não ter me deixado fazer papel de tolo”.

– “Bem, para começar, Hughie”, disse Trevor, “nunca imaginei que você fosse sair por aí distribuindo esmolas desse modo afoito. Posso entender que você beije uma bela modelo, mas que dê um soberano a um modelo feio... por Júpiter, não! Além do mais, para todos os efeitos eu não estava em casa hoje. Quando você chegou, não sabia se Hausberg gostaria de ter o nome mencionado. Você sabe que ele não estava corretamente vestido”.

– “Que idiota ele deve ter pensado que sou!”, disse Hughie.

– “De jeito nenhum. Ele ficou extremamente bem humorado depois que você saiu. Ficou dando pancadinhas em si mesmo e esfregando as mãos enrugadas. Não pude entender por que ele tinha ficado tão interessado por saber tudo a seu respeito, mas agora compreendo. Ele vai investir seu soberano, Hughie, pagar-lhe os juros a cada seis meses e ter uma história interessantíssima para contar depois do jantar”.

– “Sou um pobre diabo sem sorte”, resmungou Hughie. “A melhor coisa que posso fazer é ir para casa dormir e, meu caro Alan, não conte nada a respeito. Eu não teria mais coragem de aparecer em público”.

– “Bobagem! Isso dará o mais alto crédito ao seu espírito filantrópico, Hughie. E não fuja. Fume outro cigarro e poderá falar de Laura o quanto quiser”.

Mesmo assim Hughie não se deteve, e caminhou para casa sentindo-se muito infeliz, deixando Alan Trevor rindo a solta.

Na manhã seguinte, enquanto tomava o desjejum, o criado trouxe-lhe um cartão em que estava escrito:

“Monsieur Gustave Naudin, da parte de M. Le Baron Hausberg”.

– “Suponho que tenha vindo exigir desculpas”, disse Hughie para si mesmo; e disse ao criado para deixar entrar o visitante.

Um cavalheiro idoso, de cabelos grisalhos e usando óculos de ouro, entrou na sala e disse, com um leve sotaque francês:

– “Tenho a honra de me dirigir ao Monsieur Erskine?”.

Hughie inclinou-se.

– “Venho em nome do Barão Hausberg”, prosseguiu. “O barão...”.

– “Eu rogo, sir, que ofereça a ele minhas mais sinceras apologias”, gaguejou Hughie.

– “O barão”, disse o cavalheiro idoso com um sorriso, “me encarregou de trazer-lhe esta carta”, e estendeu um envelope selado.

No exterior estava escrito:

“Um presente de casamento para Hughie Erskine e Laura Merton, de um velho mendigo”, e dentro havia um cheque de dez mil libras.

Alan Trevor foi o padrinho do casamento e o barão fez um discurso durante a recepção.

– “Modelos milionários”, observou Trevor, “são bastante raros; mas, por Júpiter, milionários modelos são ainda mais raros!”.
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*Variedade de chá preto.

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