Quando certa manhã Wesley acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado em um exímio pianista.
Não se deu conta de imediato, afinal nunca gostara muito de música, sequer violão, nos tempos de adolescente, conseguira aprender. Mas foi só sentar-se à mesa com a fatia de pão em frente que sentiu seus dedos se movimentarem e logo percebeu estar dedilhando na toalha. Deve ter permanecido ali por alguns instantes, pois quando se deu conta a mulher gritava: presta atenção, traste, tô atrasada e hoje é teu dia de levar as crianças!
Wesley ergueu as mãos, olhou seus dedos, depois virou-se para a esposa e assentiu com a cabeça. Ela, antes de sair, ainda perguntou alguma coisa sobre o irmão de Wesley, se ele já tinha aparecido, mas agora um assobio melódico saía dos lábios do homem, que irritou-se menos com a porta batendo do que com o grito estridente e desafinado da mulher.
Caminhou até a escola das crianças assobiando, e elas se divertiram, ainda que não conhecessem as músicas ou as melodias. Bom não terem perguntado: nem Wesley saberia responder. Seguiu da escola para a parada de ônibus, e agora eram ambas as mãos se movendo pelo espaço, como a seguir um maestro invisível e nervoso.
No caminho para o trabalho, deparou-se com uma loja de instrumentos musicais. Ficou pensando se ela sempre estivera ali e ele nunca notara, mas o fato é que dessa vez as teclas brancas e pretas o atraíram de forma irresistível, e quando se deu conta estava sofregamente executando uma bela e difícil sinfonia, ouvindo os acordes de olhos fechados, suor na testa. A mão esquerda alternava com energia as notas, enquanto a direita dedilhava com elegância. Sequer notou que o teclado estava desligado da tomada, ali exposto por alguns dinheiros. E só voltou a si quando um enorme segurança lhe deu um safanão, e depois, com a ajuda de um vendedor, o tirou carregado da loja. Ouviu alguma ameaça sobre chamar a polícia, pensou até ter ouvido alguém chamá-lo de macaco. Mas preferiu virar as costas para aquelas teclas brancas e pretas, em êxtase pela brilhante apresentação feita só para si, em si.
Já no trabalho, sua desconcentração era evidente. Ao invés de ficar parado com braços cruzados e cara de mau, sorria para quem entrasse no prédio, virava-se a qualquer assobio e por vezes não conseguia evitar seus próprios assobios e o movimento dos dedos. Não demorou para o supervisor o fazer de posto, e ele foi para a frente do monitor. Depois de alguns minutos olhando aquela tela dividida em 12 pequenas imagens, Wesley esfregou os olhos, esfregou mais uma vez: via teclas no lugar do movimento ritmado dos que entravam e saíam, não distinguiu a senhora entrando com um cachorro, o rapaz com um skate. O tal supervisor chamou Wesley para conversar: são as normas, são as normas, você não tá bem, vai pra casa descansar hoje, mas se amanhã fizer isso de novo vai ser difícil segurar os caras, é capaz de te botarem na rua que nem fizeram com o Zé.
No caminho de volta, aproveitou o ônibus quase vazio para escolher um toque melhor para seu celular. Nunca se incomodara com os estridentes toques padrões, mas agora analisava com calma cada uma das opções e, sem saber, optou por uma versão eletrônica da As quatro estações.
O caminho até a casa fez pensando em quanto custaria um daqueles pianos com tomada. Não chegou a reparar no preço, mas sabia não ser esse tipo de coisa para homens como ele. Talvez para o irmão, que tinha ar-condicionado e computador. Mas não para ele.
Chegou em casa ainda antes das crianças e da mulher, foi até a cozinha, abriu gavetas, escolheu garfos, colheres, facas, alinhou-os sobre a mesa e experimentou o dedilhar no cabo dos talheres. Gostou da sensação dos dedos encontrando as teclas, mas achou o som abafado e estava tirando a toalha da mesa quando ouviu batidas fortes na porta. Ficou com medo de que sua música estivesse repercutindo fora da casa, atrapalhando a sesta de algum vizinho nervoso. Mas a voz era inconfundível: porra, mano, eu vi que tu tá sozinho aí, abre a porta pelamordedeus.
Wesley suspirou, olhou para os talheres alinhados na mesa sem toalha e foi abrir a porta. Dessa vez iria reclamar do irmão, sempre aprontando das suas. Mas não teve tempo: mal girou a maçaneta e ouviu um ranger de pneus arrastado, cinco estouros secos e ritmados e um grito agudo da voz inconfundível. Num impulso, Wesley escancarou a porta e abraçou o corpo do irmão, observando o carro preto se afastar roncando o motor. Mas depois viu o mesmo carro preto parar, dois homens olharem para trás e o carro dar ré até parar diante de si, sem dó.
Eu juro não falar nada, não vi nada, eu juro, Wesley dizia e as mãos nervosas, erguidas sobre a cabeça, dedilhavam.
Olhos fechados, não viu quando o homem ergueu a pistola e, jurando voltar se alguém fosse atrás deles, deu um tiro em cada mão de Wesley, acertando em cheio a palma da enérgica mão esquerda e os elegantes dedos da mão direita.
Não se deu conta de imediato, afinal nunca gostara muito de música, sequer violão, nos tempos de adolescente, conseguira aprender. Mas foi só sentar-se à mesa com a fatia de pão em frente que sentiu seus dedos se movimentarem e logo percebeu estar dedilhando na toalha. Deve ter permanecido ali por alguns instantes, pois quando se deu conta a mulher gritava: presta atenção, traste, tô atrasada e hoje é teu dia de levar as crianças!
Wesley ergueu as mãos, olhou seus dedos, depois virou-se para a esposa e assentiu com a cabeça. Ela, antes de sair, ainda perguntou alguma coisa sobre o irmão de Wesley, se ele já tinha aparecido, mas agora um assobio melódico saía dos lábios do homem, que irritou-se menos com a porta batendo do que com o grito estridente e desafinado da mulher.
Caminhou até a escola das crianças assobiando, e elas se divertiram, ainda que não conhecessem as músicas ou as melodias. Bom não terem perguntado: nem Wesley saberia responder. Seguiu da escola para a parada de ônibus, e agora eram ambas as mãos se movendo pelo espaço, como a seguir um maestro invisível e nervoso.
No caminho para o trabalho, deparou-se com uma loja de instrumentos musicais. Ficou pensando se ela sempre estivera ali e ele nunca notara, mas o fato é que dessa vez as teclas brancas e pretas o atraíram de forma irresistível, e quando se deu conta estava sofregamente executando uma bela e difícil sinfonia, ouvindo os acordes de olhos fechados, suor na testa. A mão esquerda alternava com energia as notas, enquanto a direita dedilhava com elegância. Sequer notou que o teclado estava desligado da tomada, ali exposto por alguns dinheiros. E só voltou a si quando um enorme segurança lhe deu um safanão, e depois, com a ajuda de um vendedor, o tirou carregado da loja. Ouviu alguma ameaça sobre chamar a polícia, pensou até ter ouvido alguém chamá-lo de macaco. Mas preferiu virar as costas para aquelas teclas brancas e pretas, em êxtase pela brilhante apresentação feita só para si, em si.
Já no trabalho, sua desconcentração era evidente. Ao invés de ficar parado com braços cruzados e cara de mau, sorria para quem entrasse no prédio, virava-se a qualquer assobio e por vezes não conseguia evitar seus próprios assobios e o movimento dos dedos. Não demorou para o supervisor o fazer de posto, e ele foi para a frente do monitor. Depois de alguns minutos olhando aquela tela dividida em 12 pequenas imagens, Wesley esfregou os olhos, esfregou mais uma vez: via teclas no lugar do movimento ritmado dos que entravam e saíam, não distinguiu a senhora entrando com um cachorro, o rapaz com um skate. O tal supervisor chamou Wesley para conversar: são as normas, são as normas, você não tá bem, vai pra casa descansar hoje, mas se amanhã fizer isso de novo vai ser difícil segurar os caras, é capaz de te botarem na rua que nem fizeram com o Zé.
No caminho de volta, aproveitou o ônibus quase vazio para escolher um toque melhor para seu celular. Nunca se incomodara com os estridentes toques padrões, mas agora analisava com calma cada uma das opções e, sem saber, optou por uma versão eletrônica da As quatro estações.
O caminho até a casa fez pensando em quanto custaria um daqueles pianos com tomada. Não chegou a reparar no preço, mas sabia não ser esse tipo de coisa para homens como ele. Talvez para o irmão, que tinha ar-condicionado e computador. Mas não para ele.
Chegou em casa ainda antes das crianças e da mulher, foi até a cozinha, abriu gavetas, escolheu garfos, colheres, facas, alinhou-os sobre a mesa e experimentou o dedilhar no cabo dos talheres. Gostou da sensação dos dedos encontrando as teclas, mas achou o som abafado e estava tirando a toalha da mesa quando ouviu batidas fortes na porta. Ficou com medo de que sua música estivesse repercutindo fora da casa, atrapalhando a sesta de algum vizinho nervoso. Mas a voz era inconfundível: porra, mano, eu vi que tu tá sozinho aí, abre a porta pelamordedeus.
Wesley suspirou, olhou para os talheres alinhados na mesa sem toalha e foi abrir a porta. Dessa vez iria reclamar do irmão, sempre aprontando das suas. Mas não teve tempo: mal girou a maçaneta e ouviu um ranger de pneus arrastado, cinco estouros secos e ritmados e um grito agudo da voz inconfundível. Num impulso, Wesley escancarou a porta e abraçou o corpo do irmão, observando o carro preto se afastar roncando o motor. Mas depois viu o mesmo carro preto parar, dois homens olharem para trás e o carro dar ré até parar diante de si, sem dó.
Eu juro não falar nada, não vi nada, eu juro, Wesley dizia e as mãos nervosas, erguidas sobre a cabeça, dedilhavam.
Olhos fechados, não viu quando o homem ergueu a pistola e, jurando voltar se alguém fosse atrás deles, deu um tiro em cada mão de Wesley, acertando em cheio a palma da enérgica mão esquerda e os elegantes dedos da mão direita.
Fonte:
Escrita Criativa
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