domingo, 23 de maio de 2021

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 26, 27 e 28


COLEGUISMO


Dois assaltantes assaltaram-se mutuamente e foram separados por um terceiro assaltante, que exigiu deles o produto dos dois assaltos. Como eram dois contra um, acabaram subjugando o terceiro e reclamaram não só a devolução do que lhe haviam cedido como ainda o que ele já trazia no bolso.

Foram atendidos, mas continuou a pendência, pois o assaltante n. 1 queria de volta o que perdera e o que ganhara, o n. 2 pretendia o mesmo, e o n. 3 tentou acalmá-los, ao mesmo tempo que pleiteava a devolução do seu e mais cinquenta por cento do que pertencia a cada. Esclareceu que, desistindo do total, contribuía para a união e harmonia da classe.

Os outros não se mostraram persuadidos e, à falta de tribunal especializado que dirimisse a questão, acordaram em submetê-la ao julgamento de um passante que, pelo aspecto, merecesse fé. O senhor bem vestido, de roupa escura, que se aproximou e ouviu a exposição do caso, abanou a cabeça lamentando:

— Não posso decidir contra colegas. Também sou assaltante.

E deu no pé, antes que os três lhe reclamassem o dele.
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DESTA ÁGUA NÃO BEBERÁS

— Por que Demétrio não se casa? Era indagação geral. Demétrio namorava, noivava, não casava. Sete dias antes do casamento, olha aí Demétrio fugindo. As versões eram múltiplas. A noiva é que o despedira. Tiveram uma briga feia. Gênios incompatíveis. Mal secreto. Intrigas.

Demétrio continuava a namorar, noivar e não casar. Não lhe faltavam noivas, pois era agradável, tinha status. Quanto mais se desmanchavam os projetos de casamento, mais apareciam mulheres dispostas ao desafio, exclamando:

— A mim ele não deixa na porta do mosteiro de São Bento.

Deixava. E quanto mais deixava, mais seu prestígio crescia. Concluiu-se que era sua maneira de afirmar-se.

Então Livaniuska decidiu enfrentá-lo. Noivou com ele e, uma semana antes do casamento, deu-lhe um fora solene. Demétrio quis reagir, explicou à repórter social que ele é que tomara a iniciativa, mas a mentira foi patente. Livaniuska foi contratada como atriz por uma emissora de tv e ficou célebre.

Daí por diante ela repetiu a carreira de Demétrio, noivando e desmanchando com inúmeros cavalheiros. No fim de cinco anos, Livaniuska e Demétrio casaram-se para sempre, como era fácil de prever mas ninguém previu.
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DIÁLOGO DAS NOTAS

A nota de cinco mil cruzeiros estava preocupada. Anunciaram para breve a sua entrada em circulação, e já passavam muitos sóis sem que a retirassem do almoxarifado. No almoxarifado, chega-lhe o zum-zum de que continuamente as coisas sobem de preço e as notas baixam de valor.

Embora os algarismos continuem os mesmos, cada dia significam uma realidade menor. Quando chegar minha vez de andar por aí — receia a nota de cinco mil — quanto valerão meus cinco mil?

Ao ser desenhada, sentira-se toda garbosa, cheia de minhocas na cabeça. Iria suplantar as coleguinhas, dando a vera ideia de grandeza. Mas até agora nada, e a nota inquieta-se:

— Quando vejo o cruzeiro metálico passar do tamanho de medalha de chocolate ao de botão de manga de camisa (e amanhã ele chegará talvez a semente de tangerina), sinto que meu futuro não será nada fagueiro. Vão-me reduzir às proporções de ficha de ônibus, feita de papel, e servirei para pagar a passagem de um coletivo circular. No máximo.

Estava nessa tristeza quando lhe apareceu, ainda em forma de neblina futura, o projeto da nota de cinco milhões, com efígie de cabeça para baixo, e sussurrou-lhe:

— Maninha, depois de mim virá a cédula de cinco trilhões, e assim sucessivamente, pois infinito é o número dos números. Até que um dia o homem se cansará de escrever no papel grandezas que são insignificâncias, e passará a escrever insignificâncias que valham grandezas. Já pressinto no horizonte maravilhosa nota zero, que nos resumirá a todas e alcançará o máximo valor metafísico.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. 
Publicado em 1981.

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