segunda-feira, 17 de maio de 2021

Sammis Reachers (Rivaldo e o tour infernal no Morro do Céu)

Toda empresa de ônibus que tenha uma quantidade boa de linhas, tem aquela(s) linha(s) em que quase ninguém quer trabalhar. A Ingá não foge à regra.

Talvez a pior das linhas, na opinião de uma maioria de rodoviários, seja a linha 26-A (Morro do Céu x Terminal). É a linha do "castigo". Embora não admitam, quando querem castigar algum profissional que tem vacilado bastante, eles o enviam para lá, seja como efetivo, seja para trabalhar apenas um dia. Os motivos de a linha ser detestada por muitos? Basicamente há dois principais: Primeiro porque a carona rola solta. Isso mesmo, praticamente ninguém paga passagem lá dentro do bairro. Mas há também o outro problema: a bandidagem. O bairro {ou "complexo") do Caramujo (e em especial o sub-bairro do Morro do Céu) é simplesmente o maior reduto do Comando Vermelho em Niterói, e um dos maiores do estado do Rio. Depara-se com homens e até crianças armadas a todo momento por lá. E encontrar-se em meio a um tiroteio entre policiais e bandidos não é coisa rara.

E é aqui que entra o nosso Rivaldo. Funcionário antigo, fala mansa e gente fina, curtidor de um bom pagode e bom mulherengo, a história de vida de Rivaldo já daria por si só um livro: Mesmo ainda jovem, sobreviveu a um infarto que o deixou literalmente entre a vida e a morte; após cirurgia de ponte de safena, voltou à ativa, e alguns anos depois envolveu-se num trágico e grave acidente, ao chocar-se o ônibus que dirigia contra uma das pilastras de sustentação da Ponte Rio-Niterói, na altura do Moinho Atlântico. E mais uma vez, embora tenha ficado preso nas ferragens, Rivaldo sobreviveu.

Em seu início na Ingá, Rivaldo passou diversos anos como cobrador, até que resolveu partir para a direção. Após o período regulamentar na escolinha, Rivaldo foi finalmente promovido. Mas sua carreira em inícios foi sofrida: Rivaldo pegava sempre os piores horários. Com o passar do tempo, isso foi gerando uma revolta natural no coração do amigo. E essa revolta o levou a dar alguns "vacilos" propositais com a chefia da empresa, de tão aborrecido que Rivaldo estava.

Pois bem: em mais um belo dia (e o leitor já percebeu como este livro é cheio de "belos dias"), a chance que certo despachante queria para castigar o bom Rivaldo surgiu.

Ele iria tirar um carro no turno da manhã, e o despachante lhe empurrou para dirigir um micro-ônibus, justamente no malfadado Morro do Céu. Briga daqui, regateia dali, e sem ter outra opção e precisando trabalhar, lá vai o nosso Rivaldo, ainda de madrugada, em direção ao Morrão.

Chegando ao local, na área conhecida como lixão, onde ele aprendera, no tempo de cobrador, ser o ponto final daquela linha, o cidadão Rivaldo, cabreiro com a escuridão do lugar, deu meia-volta e, tranquilamente, se pôs a manobrar o veículo em direção à descida do morro.

De repente, aquela freada. Saído de lugar nenhum, um marginal brotara em frente ao ônibus, com um detalhe: um fuzil apontado para a cara de Rivaldo! O malandro parecia que ia pra uma guerra, além do fuzil nas mãos, tinha uma pistola e uma granada penduradas na cintura.

- Ei! Ei! Tem que ir lá dentro! - Berrou o marginal.

Rivaldo, assustado, gaguejou:

- Lá dentro? Lá dentro aonde? Aqui á o ponto final, estou descendo para fazer linha.

- Descendo o caramba! Tem que ir lá dentro, lá na "balança". Pode dar a volta e ir lá que lá tem passageiro te esperando.

Ao perceber a confusão de Rivaldo, o malandro aliviou e perguntou;

- É a sua primeira vez aqui? Se é, fica sabendo que tem ponto lá no final - e apontou para mais acima no morro.

Assim, após manobrar lá se foi Rivaldo morro acima, numa direção em que ele imaginava que nem casas havia. Chegando a certa altura, ele percebeu que realmente haviam passageiros por lá: oito pessoas esperavam aquele que era o primeiro carro do dia.

Mas todo castigo pra rebelde é pouco, já diziam os opressores do trabalhador, e os perrengues de Rivaldo estavam só começando. Somente após o embarque dos passageiros foi que ele percebeu que o espaço para manobrar o ônibus e voltar para baixo era absurdamente pequeno. E, um tantinho além do pequeno espaço de manobra, havia nada mais nada menos que um despenhadeiro, uma encosta altíssima. Um erro do motorista e o veículo poderia cair lá embaixo.

Rivaldo, assustado, disse aos passageiros que não teria como manobrar ali, num espaço mínimo, no escuro e ainda por cima numa área que ele não conhecia. Mas os passageiros insistiram que todos os motoristas da linha manobravam ali, e um deles se prontificou a descer do veículo para ajudar Rivaldo a manobrar. Assim, depois de muito sufoco, mudanças de marchas à frente e à ré, nosso amigo conseguiu manobrar o veículo.

As viagens seguiram-se naquele mesmo ritmo, caronas, bandidos e sustos. Lá pelo meio dos trabalhos, estando no morro do Céu, um elemento grita:

- Ôòôuuu, espera aí motô!!!

Rivaldo para, e ao olhar para a direção de onde gritara o "passageiro", vê que era de dentro de um bar, uma birosca de beira de estrada. Assim que o veículo parou, o cidadão do grito apanhou dois engradados de cerveja, de cascos vazios, e entrou no ônibus. Ao colocá-los no corredor do pequeno veículo, disse simplesmente:

- Espera aí que tem mais.

E assim foi trazendo, de dois em dois, até somar oito engradados. Após colocar tudo no corredor, desceu.

- Tem mais ainda? - perguntou Rivaldo.

- Não, é só isso. Pode ir. Ah, um cara está te esperando lá embaixo, na pracinha, e vai pegar as caixas.

Após dizer isso, o elemento simplesmente virou as costas e entrou tranquilamente no bar. Rivaldo, entre confuso e irritado com o abuso do cidadão, que além de não ir levar a própria mercadoria, nem pediu o favor e nem sequer agradeceu, desceu com a frágil carga que se apertava entre os passageiros.

O caminho de descida é tortuoso, o famoso "só vai um", e lá desceu Rivaldo, tendo que ir relativamente rápido pois precisava fazer o horário, mas preocupado com aquela carga balançando devido aos solavancos que o veículo dava, sendo segurada pelos passageiros.

Lá    embaixo    realmente    um    indivíduo    esperava. Apanhou as caixas e tudo que disse foi um "Valeu". Nem um beijinho, nem um Guaravita nosso Rivaldo recebeu...

Já lá pelas doze horas, finalmente Rivaldo esperava que iria largar. Ufa! Que dia! Ao chegar no Terminal Rodoviário, ele falou para o despachante;

– Essa é a 'boa' (a última viagem), finalmente! Não aguentava mais!

– Ué, a boa? Não te avisaram na garagem não?

– Avisaram o quê?

– Esse carro dá uma viagem extra, amiguinho. Sua largada deve ser lá pelas 13h20...

Fulo da vida, lá foi Rivaldo de volta ao Morro do Céu, sabendo que teria uma outra viagem. Foi vendo os outros carros que pegaram num horário depois do dele largando, e ele ainda tendo que dar mais uma volta - e isso o fez ferver ainda mais de raiva. Do Morro do Céu ele desceu novamente em direção ao Terminal, e, agora sim, na volta sabia que iria largar.

Mas todo bolo que se preze, precisa ter uma cereja em cima. E a cereja do bolo estava esperando por Rivaldo, rechonchudinha, num dos acessos ao Caramujo, ali perto do Morro do Bumba (sim, aquele mesmo da tragédia dos deslizamentos em 2010).

Um cidadão com pinta de matuto de roça, as roupas bastante sujas e segurando um saco enorme, desses de farinha de trigo, deu sinal. Rivaldo foi encostando e já logo abrindo a porta do meio, pois ali já era área das caronas, e com um saco imenso daqueles o indivíduo não iria conseguir passar na roleta mesmo. Mas somente quando o Jeca Tatu entrou foi que Rivaldo percebeu do que se tratava a "carga": Naquele saco enorme, muito mal acondicionado, o camarada estava levando um enorme e fedorento porco, e vivo! Assim que ele entrou o porco começou a gritar e a se debater, e o cheiro rapidamente dominou todo o veículo.

– Isso aí é um porco?!!!!

– É sim, mas tá seguro.

– Pô, meu amigo, mas ele está fedendo e cheio de lama...

– Não esquenta não, lá em cima eu jogo uma água no ônibus.

E assim Rivaldo completou os trabalhos do dia, ouvindo  os altos grunhidos e sentindo aquela catinga de porco insuportável.

Quanto ao dono do suíno, ah: ao chegar no Morrão, já perto do Morro do Céu, ele desceu sem nem fazer menção de jogar água em nada...

Rivaldo manobrou no Morrão, desceu e largou o ônibus no ponto final do Caramujo. Saiu sem falar nada com ninguém e avoado, aliviado por passar aquela pesada cruz para outro sofredor!

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do 
dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

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