UMA TRAGÉDIA MODERNA
Em junho de 1888, os livreiros portugueses começaram a vender os primeiros dos cinco mil exemplares da primeira edição de Os Maias. É tiragem que impressiona ainda hoje. O que dizer então naqueles tempos de um Portugal pouco habitado e não muito lido? Foi uma temeridade, mas à audácia dos editores correspondeu a curiosidade dos leitores e o interesse da crítica. E o livro do desconfiado Eça de Queiroz transformou-se, desde então, num sucesso de vendas.
E assim é [ou voltou a ser] hoje em dia. Andou uns tempos esquecido, é verdade, mas bastou que a televisão fosse buscar inspiração no velho romance, para que as novas reedições sumissem, recém-chegadas às livrarias, pouco antes do Natal, e fossem totalmente consumidas pouco antes do novo ano.
Eça de Queiroz foi impreciso e modesto ao dar a Os Maias o subtítulo 'episódios da vida romântica'. Na verdade, o seu mais famoso romance é uma tragédia, tal como a entendia Sófocles quando, já na maturidade, compôs o seu Édipo. Uma tragédia burguesa, mas apesar de tudo uma tragédia, pois que lá está a grave transgressão moral, cometida em completa inconsciência por seus dois personagens centrais — Carlos Eduardo e Maria Eduarda.
De Maia, ambos, irmãos, apaixonados e incestuosos ambos, e belos e trágicos.
Instigado pela minissérie, vai ler esse livro pela primeira vez. Terá prazer único e irreproduzível. As releituras que hão de vir, mais tarde, servirão de consolo, mas não de substituto. Esse prazer estará certamente na elegância barroca da forma e no desenvolvimento astucioso das entrelinhas. Mas estará também, ou principalmente, nos admiráveis retratos que Eça faz de seus tipos principais, com a elegância e a minúcia de um genial pintor romântico, mas com 'o seu olho à Balzac'.
A começar não por um tipo, mas por uma casa, mais exatamente a 'casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no outono de 1875', que surge, penumbrosa e prenunciadora, logo na primeira frase do livro, e que era conhecida como a casa do ramalhete 'ou, mais simplesmente, o Ramalhete'.
Então, lemos, já encantados:
“Apesar deste fresco nome de vivenda campestre, o Ramalhete, sombrio casarão de paredes severas, com um renque de estreitas janelas de ferro no primeiro andar, e por cima uma tímida fila de janelinhas abrigadas à beira do telhado, tinha o aspecto tristonho de residência eclesiástica que competia a uma edificação dos tempos da Sra. D. Maria I; com uma sineta e com uma cruz no topo, assemelhar-se-ia a um colégio de jesuítas”.
Ai está o cenário da tragédia. O Ramalhete é, pela ordem de entrada, o primeiro personagem em cena, com suas paredes sempre fatais àquela antiga família da Beira, tão rica e tão infeliz. E será no Ramalhete e em torno dele que vamos ser apresentados aos personagens nos quais Eça de Queirós se insinua, para nos falar através de suas muitas vozes.
Seus retratos eram sempre perfeitos e, ao longo da trama, coerentes. A única personagem que o confunde é Maria Eduarda, por sua beleza de deusa. Quando ela aparece — e como custa a aparecer! —, “é alta, loura, com um meio véu muito apertado e muito escuro que realçava o esplendor da sua carne”; algumas páginas adiante, Carlos a revê e nota que “os cabelos não eram louros, como julgara de longe, à claridade do sol, mas de dois tons, castanho-claro e castanho-escuro, espessos e ondeando ligeiramente sobre a testa”.
Falei de retratos e o mais correto é falar de auto-retratos.
Se Fernando Pessoa tinha seus heterônimos, Eça tinha os seus “eus”, como diz Beatriz Berrini, que eram muitos e muito se pareciam. Ele nos fala pela voz severa do velho Afonso da Maia, que “era um pouco baixo, maciço, de ombros quadrados e fortes...o cabelo branco todo cortado à escovinha, e a barba de neve, aguda e longa”, a reclamar melhores destinos para o seu lamentável país e a cobrar, do neto tão promissor, menos diletantismo e mais realizações.
Fala-nos também com as palavras cruéis e desassombradas do neto Carlos, “um formoso e magnífico moço, alto, bem-feito, de ombros largos, com uma testa de mármore sob os anéis de cabelos pretos, e os olhos dos Maias, aqueles irresistíveis olhos do pai, dum negro líquido, ternos como os dele e mais graves”, e que costumava vociferar: “A única coisa a fazer em Portugal é plantar legumes, enquanto não há uma revolução que faça subir à superfície alguns dos elementos originais, fortes, vivos, que isto ainda encerre lá no fundo”. Ao que o avô respondia, já impaciente com esse diletantismo do neto, como se falasse em nome do autor: “— Pois então façam vocês essa revolução. Mas pelo amor de Deus, façam alguma coisa!”
Mas nenhum de seus “eus” foi mais ele mesmo que João da Ega, ou João da Eça, ou o Ega de Queirós, que todos esses trocadilhos, embora fáceis, têm cabimento e justiça. Talvez só o Fradique Mendes se lhe possa comparar, mas esse não vem ao caso, agora, porque não é personagem d´Os Maias. Eram “eus” idealizados e muita vez caricaturados, mas que, no fundo, o reproduziam com verdade e o exprimiam com coerência.
Ao Ega, deu-lhe o Eça a existência que gostaria de ter tido: discutido e admirado, com a mãe devota, rica e viúva, a lhe garantir o presente e o futuro, permitindo-lhe desfrutar as sofisticações, as intimidades e os desvelos de uma família de aristocratas, como era a dos Maias; mais alguns amores ardentes e com saúde razoavelmente forte para gozar, sem medos nem cuidados, o prazer das boas comidas e dos bons vinhos, dos conhaques e das águas ardentes, das noitadas com espanholas e das devassidões vespertinas, com amantes de luxo.
É a conclusão que se chega no momento em que Eça retrata o Ega — e se auto-retrata: cheio de verve e de irreverência, de frases retumbantes e ditos irônicos, um talento amaldiçoado, temido e exaltado. Vejamos o Ega pelos olhos do Eça:
“O esforço da inteligência [...] terminou por lhe influenciar as maneiras e a fisionomia; e, com a sua figura esgrouviada e seca, os pelos arrebitados sob o nariz adunco, um quadrado de vidro entalado no olho direito — tinha alguma coisa de rebelde e de satânico”. Ora, se não é esse ou quase esse o retrato do próprio Eça, tal como captado na célebre caricatura que dele fez Rafael Bordalo Pinheiro, então já não sei ver nem distinguir.
É ainda o Ega que, em momento de impaciência com a mediocridade e a hipocrisia da sociedade burguesa, e como que falando em nome de seu criador, deixa Lisboa e corre para restaurar-se no interior, lançando a Carlos e a Craft, os dois grandes amigos que o foram acompanhar à diligência, esta frase aterradora:
“— Sinto-me como se a alma me tivesse caído a uma latrina! Preciso um banho por dentro.”
Tal como Carlos da Maia, também João da Ega era um diletante. Ambos têm revoltas pouco profundas e de pouca duração. As suas grandes promessas de realização pessoal e de transformação do mundo terminam por desmaiar no culto quase religioso do luxo e do tédio. Passam a representar o que mais incomodava o inconformado Eça: a renúncia e o conformismo.
É com mãos hábeis, orgulhosas e brilhantes que Eça os faz florescer em Coimbra, em tempos de sonho e de estudo, a prometer insubmissão e luta. É com olhar de desalento e pessimismo que Eça os deixa vencidos e melancólicos, a “correr desesperadamente pela rampa de Santos”, atrás de um bonde e de um jantar, “sob a primeira claridade do luar que subia”. Tal como o próprio Eça se sentia, Ega e Carlos eram, naquele momento, dois “vencidos da vida”.
E assim a tragédia se consuma e nos obriga a repensar o ser humano com inquietação e desconfiança.
Lisboa, 1875. A cidade não apenas como um cenário mas como uma personagem, viva, interveniente, testemunha e cúmplice dos acontecimentos. A cidade acorda, o movimento cresce.
De entre a multidão que circula vão-se destacando, anunciadas pela narradora, as principais personagens desta história. Mais tarde, ao serão, no interior da casa dos Maias, conhecida como o Ramalhete, reúnem-se alguns distintos representantes da sociedade da época: da intelligentsia à alta burguesia lisboeta, até alguns políticos do constitucionalismo regenerador. Lá estavam, entre outros, João da Ega, amigo incondicional de Carlos da Maia, sagaz e polêmico, sempre crítico da mediocridade nacional.
Ou ainda Craft, com quem, nessa mesma noite, Carlos da Maia acabaria por negociar uma quinta, nos Olivais. Ou ainda Dâmaso Salcede, pretensioso e burlesco que revelaria, eufórico, como uma das suas recentes conquistas, a aproximação de Maria Eduarda de Castro Gomes, o que não deixara de provocar uma ainda inexplicável irritação a Carlos da Maia. A sólida presença de Afonso da Maia, patriarca da família, constitui, para todos, um valor de referência. Na realidade, Carlos da Maia alimentava já por Maria Eduarda de Castro Gomes uma secreta paixão e não deixava de a visitar diariamente a pretexto de assistir clinicamente a sua governanta inglesa, Miss Sarah. Numa dessas visitas como médico à residência dos Castro Gomes, - na rua de S. Francisco - percebe-se claramente a existência de uma reciprocidade de sentimentos, da qual Dâmaso Salcede acabará inadvertidamente, por ser testemunha, não escondendo a sua surpresa e o seu despeito, que o levara a engendrar uma forma de vingança. Entretanto, Carlos e Maria Eduarda vivem já o seu romance na nova Quinta dos Olivais, comprada a Craft.
Assim corre o tempo dividido entre as apressadas idas ao Ramalhete e a clandestina vida nos Olivais. Certo dia, no Ramalhete, Carlos e Ega trocam algumas confidência sobre a vida atribulada do primeiro, que procura esconder do avô a situação familiar da sua amante, conhecida em Lisboa, como a senhora Castro Gomes. Será, pois, com a maior estupefação que Carlos receberá em sua casa o próprio Castro Gomes que lhe esclarece, com algum acinte, que aquela que todos dão como sua esposa não é senão a sua amante, com quem vive e a quem paga uma existência requintada em troca de companhia. Perante o desespero e a humilhação de Carlos, Ega sugere-lhe que usufrua, como vinha fazendo até aí, desse amor ilegítimo. Porém, a súbita chegada de Monsieur Guimarães vai precipitar o fim da história, ao trazer consigo num pequeno cofre, o espólio de Maria Monforte, mãe de Maria Eduarda, que morrera em Paris. Nesse espólio confirma-se que Maria Monforte fora a esposa que levara ao suicídio Pedro da Maia, pai de Carlos.
A tragédia precipita-se - os dois amantes eram, no final, irmãos.
Tal revelação levará à morte o velho Afonso da Maia, ao afastamento dos dois amantes, à partida de Carlos para o estrangeiro. Só dez anos depois Carlos voltará a Portugal, reencontrando-se com os amigos de sempre, e sobretudo com Ega, com quem fará um saldo do passado, carregado de ironia e ceticismo, uma síntese dos seus destinos pessoais e do destino coletivo do país, como nação. Vidas falhadas ou ainda a tempo de apanhar o futuro?
Principais personagens
Afonso da Maia: era um homem baixo, de cabelos e barbas brancas. Descrito como um homem culto, religioso e sem defeitos. Afonso é a síntese das tradições e virtudes portuguesas.
Pedro da Maia: é um homem frágil criado pela educação livresca e clerical do avô, Afonso da Maia. Ele era temperamental e instável emocionalmente. É movido pela moral do sentimento e como resultado, se suicida após a fuga da mulher.
Maria Monforte: filha de um negreiro, é uma mulher dominadora, descrita como dona de uma extrema beleza. Ela era alta, loira e sensual. Se casa com Pedro da Maia contra a vontade de Afonso da Maia. Tempos depois, foge com um príncipe napolitano e leva a filha.
Carlos da Maia: protagonista da história. fruto do casamento de Pedro da Maia e Maria Monforte. Descrito como um rapaz belo, alto, de olhos pretos e pele branca. O autor diz que ele parecia um “belo cavaleiro da Renascença”. Carlos é culto e bem-educado.
Maria Eduarda: filha de Maria Monforte e Pedro Maia e divide o protagonismo com o irmão, Carlos da Maia, com quem tem um relacionamento sem saber do parentesco.
Castro Gomes: brasileiro que se envolve com Maria Eduarda. Todos achavam que era casado com Maria Eduarda, mas na verdade, era sua amante e não se incomoda com a relação dela com Carlos da Maia.
João da Ega: amigo boêmio de Carlos da Maia e responsável pelo jantar que resulta em Carlos conhecendo Maria Eduarda. É descrito como um personagem contraditório, por ser romântico e sentimental, mas também progressista e crítico.
Vale ressaltar que diversos personagens são introduzidos na narrativa de “Os Maias”, e cada um possui seu papel na história. Contudo, focamos apenas nos personagens da narrativa principal entre Carlos da Maia e Maria Eduarda.
Análise da obra
“Os Maias” é dividido em dois planos narrativos: um se trata das três gerações da família, centrado no personagem do Carlos Maia e o segundo foca na crítica sobre a alta sociedade de Lisboa, em 1880.
Traz uma representação dos espaços sociais internos e externos onde situam os personagens.
Ao representar esses espaços, o autor exprime uma crítica a sociedade portuguesa, incidindo nos costumes e comportamentos da burguesia da época.
“Os Maias” ainda traz uma abordagem hereditária, ou seja, os comportamentos do personagem do Carlos, quando ele é descrito como um jovem de caráter fraco, herdado do avô e do próprio pai, e o desequilíbrio amoroso que herdou da mãe.
Além disso, envolve assuntos psicológicos. Por exemplo, Carlos mesmo sabendo que a mulher com quem tem uma relação amorosa é sua irmã, não deixa de se envolver com ela. O fato de descobrir que Maria Eduarda é sua irmã, não é suficiente para que ele a não deseje.
As personagens femininas são representadas sempre como o símbolo da luxúria, do pecado, da perdição. Esta é característica não somente da obra “Os Maias”, mas também presente em outras obras de Eça de Queiroz, como “O Primo Basílio” e “O Crime do Padre Amaro”.
Alguns estudiosos afirmam que essa forma de representar o papel da mulher em suas obras é reflexo da rejeição que o escritor recebeu da própria mãe.
Em “Os Maias”, várias mulheres mantêm relações adúlteras, isto é, fora do casamento. Por exemplo: a mãe de Carlos e Maria Eduarda, Maria Monforte que foge com Tancredo e abandona o filho e o marido.
José Maria de Eça de Queiroz foi um romancista, contista, poeta, advogado e diplomata português nascido em 24 de novembro de 1845, em Portugal, e falece aos 54 anos em 16 de agosto de 1900, na França.
O escritor que tem como tradição o romantismo e o realismo. E muitos consideram o romance “Os Maias” o melhor romance do Realismo em Portugal.
Eça de Queiroz nasceu de uma relação não-marital. Mesmo que seus pais tenham se casado, não há registro da sua mãe. Ele foi criado pela avó e depois com uma ama, e posteriormente foi para um colégio. Além disso, o incesto presente na obra “Os Maias” veio também de sua família, pois há registro de episódios incestuosos no diário de sua prima.
O livro está disponível para download no domínio público em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ph000181.pdf
Em junho de 1888, os livreiros portugueses começaram a vender os primeiros dos cinco mil exemplares da primeira edição de Os Maias. É tiragem que impressiona ainda hoje. O que dizer então naqueles tempos de um Portugal pouco habitado e não muito lido? Foi uma temeridade, mas à audácia dos editores correspondeu a curiosidade dos leitores e o interesse da crítica. E o livro do desconfiado Eça de Queiroz transformou-se, desde então, num sucesso de vendas.
E assim é [ou voltou a ser] hoje em dia. Andou uns tempos esquecido, é verdade, mas bastou que a televisão fosse buscar inspiração no velho romance, para que as novas reedições sumissem, recém-chegadas às livrarias, pouco antes do Natal, e fossem totalmente consumidas pouco antes do novo ano.
Eça de Queiroz foi impreciso e modesto ao dar a Os Maias o subtítulo 'episódios da vida romântica'. Na verdade, o seu mais famoso romance é uma tragédia, tal como a entendia Sófocles quando, já na maturidade, compôs o seu Édipo. Uma tragédia burguesa, mas apesar de tudo uma tragédia, pois que lá está a grave transgressão moral, cometida em completa inconsciência por seus dois personagens centrais — Carlos Eduardo e Maria Eduarda.
De Maia, ambos, irmãos, apaixonados e incestuosos ambos, e belos e trágicos.
Instigado pela minissérie, vai ler esse livro pela primeira vez. Terá prazer único e irreproduzível. As releituras que hão de vir, mais tarde, servirão de consolo, mas não de substituto. Esse prazer estará certamente na elegância barroca da forma e no desenvolvimento astucioso das entrelinhas. Mas estará também, ou principalmente, nos admiráveis retratos que Eça faz de seus tipos principais, com a elegância e a minúcia de um genial pintor romântico, mas com 'o seu olho à Balzac'.
A começar não por um tipo, mas por uma casa, mais exatamente a 'casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no outono de 1875', que surge, penumbrosa e prenunciadora, logo na primeira frase do livro, e que era conhecida como a casa do ramalhete 'ou, mais simplesmente, o Ramalhete'.
Então, lemos, já encantados:
“Apesar deste fresco nome de vivenda campestre, o Ramalhete, sombrio casarão de paredes severas, com um renque de estreitas janelas de ferro no primeiro andar, e por cima uma tímida fila de janelinhas abrigadas à beira do telhado, tinha o aspecto tristonho de residência eclesiástica que competia a uma edificação dos tempos da Sra. D. Maria I; com uma sineta e com uma cruz no topo, assemelhar-se-ia a um colégio de jesuítas”.
Ai está o cenário da tragédia. O Ramalhete é, pela ordem de entrada, o primeiro personagem em cena, com suas paredes sempre fatais àquela antiga família da Beira, tão rica e tão infeliz. E será no Ramalhete e em torno dele que vamos ser apresentados aos personagens nos quais Eça de Queirós se insinua, para nos falar através de suas muitas vozes.
Seus retratos eram sempre perfeitos e, ao longo da trama, coerentes. A única personagem que o confunde é Maria Eduarda, por sua beleza de deusa. Quando ela aparece — e como custa a aparecer! —, “é alta, loura, com um meio véu muito apertado e muito escuro que realçava o esplendor da sua carne”; algumas páginas adiante, Carlos a revê e nota que “os cabelos não eram louros, como julgara de longe, à claridade do sol, mas de dois tons, castanho-claro e castanho-escuro, espessos e ondeando ligeiramente sobre a testa”.
Falei de retratos e o mais correto é falar de auto-retratos.
Se Fernando Pessoa tinha seus heterônimos, Eça tinha os seus “eus”, como diz Beatriz Berrini, que eram muitos e muito se pareciam. Ele nos fala pela voz severa do velho Afonso da Maia, que “era um pouco baixo, maciço, de ombros quadrados e fortes...o cabelo branco todo cortado à escovinha, e a barba de neve, aguda e longa”, a reclamar melhores destinos para o seu lamentável país e a cobrar, do neto tão promissor, menos diletantismo e mais realizações.
Fala-nos também com as palavras cruéis e desassombradas do neto Carlos, “um formoso e magnífico moço, alto, bem-feito, de ombros largos, com uma testa de mármore sob os anéis de cabelos pretos, e os olhos dos Maias, aqueles irresistíveis olhos do pai, dum negro líquido, ternos como os dele e mais graves”, e que costumava vociferar: “A única coisa a fazer em Portugal é plantar legumes, enquanto não há uma revolução que faça subir à superfície alguns dos elementos originais, fortes, vivos, que isto ainda encerre lá no fundo”. Ao que o avô respondia, já impaciente com esse diletantismo do neto, como se falasse em nome do autor: “— Pois então façam vocês essa revolução. Mas pelo amor de Deus, façam alguma coisa!”
Mas nenhum de seus “eus” foi mais ele mesmo que João da Ega, ou João da Eça, ou o Ega de Queirós, que todos esses trocadilhos, embora fáceis, têm cabimento e justiça. Talvez só o Fradique Mendes se lhe possa comparar, mas esse não vem ao caso, agora, porque não é personagem d´Os Maias. Eram “eus” idealizados e muita vez caricaturados, mas que, no fundo, o reproduziam com verdade e o exprimiam com coerência.
Ao Ega, deu-lhe o Eça a existência que gostaria de ter tido: discutido e admirado, com a mãe devota, rica e viúva, a lhe garantir o presente e o futuro, permitindo-lhe desfrutar as sofisticações, as intimidades e os desvelos de uma família de aristocratas, como era a dos Maias; mais alguns amores ardentes e com saúde razoavelmente forte para gozar, sem medos nem cuidados, o prazer das boas comidas e dos bons vinhos, dos conhaques e das águas ardentes, das noitadas com espanholas e das devassidões vespertinas, com amantes de luxo.
É a conclusão que se chega no momento em que Eça retrata o Ega — e se auto-retrata: cheio de verve e de irreverência, de frases retumbantes e ditos irônicos, um talento amaldiçoado, temido e exaltado. Vejamos o Ega pelos olhos do Eça:
“O esforço da inteligência [...] terminou por lhe influenciar as maneiras e a fisionomia; e, com a sua figura esgrouviada e seca, os pelos arrebitados sob o nariz adunco, um quadrado de vidro entalado no olho direito — tinha alguma coisa de rebelde e de satânico”. Ora, se não é esse ou quase esse o retrato do próprio Eça, tal como captado na célebre caricatura que dele fez Rafael Bordalo Pinheiro, então já não sei ver nem distinguir.
É ainda o Ega que, em momento de impaciência com a mediocridade e a hipocrisia da sociedade burguesa, e como que falando em nome de seu criador, deixa Lisboa e corre para restaurar-se no interior, lançando a Carlos e a Craft, os dois grandes amigos que o foram acompanhar à diligência, esta frase aterradora:
“— Sinto-me como se a alma me tivesse caído a uma latrina! Preciso um banho por dentro.”
Tal como Carlos da Maia, também João da Ega era um diletante. Ambos têm revoltas pouco profundas e de pouca duração. As suas grandes promessas de realização pessoal e de transformação do mundo terminam por desmaiar no culto quase religioso do luxo e do tédio. Passam a representar o que mais incomodava o inconformado Eça: a renúncia e o conformismo.
É com mãos hábeis, orgulhosas e brilhantes que Eça os faz florescer em Coimbra, em tempos de sonho e de estudo, a prometer insubmissão e luta. É com olhar de desalento e pessimismo que Eça os deixa vencidos e melancólicos, a “correr desesperadamente pela rampa de Santos”, atrás de um bonde e de um jantar, “sob a primeira claridade do luar que subia”. Tal como o próprio Eça se sentia, Ega e Carlos eram, naquele momento, dois “vencidos da vida”.
E assim a tragédia se consuma e nos obriga a repensar o ser humano com inquietação e desconfiança.
Lisboa, 1875. A cidade não apenas como um cenário mas como uma personagem, viva, interveniente, testemunha e cúmplice dos acontecimentos. A cidade acorda, o movimento cresce.
De entre a multidão que circula vão-se destacando, anunciadas pela narradora, as principais personagens desta história. Mais tarde, ao serão, no interior da casa dos Maias, conhecida como o Ramalhete, reúnem-se alguns distintos representantes da sociedade da época: da intelligentsia à alta burguesia lisboeta, até alguns políticos do constitucionalismo regenerador. Lá estavam, entre outros, João da Ega, amigo incondicional de Carlos da Maia, sagaz e polêmico, sempre crítico da mediocridade nacional.
Ou ainda Craft, com quem, nessa mesma noite, Carlos da Maia acabaria por negociar uma quinta, nos Olivais. Ou ainda Dâmaso Salcede, pretensioso e burlesco que revelaria, eufórico, como uma das suas recentes conquistas, a aproximação de Maria Eduarda de Castro Gomes, o que não deixara de provocar uma ainda inexplicável irritação a Carlos da Maia. A sólida presença de Afonso da Maia, patriarca da família, constitui, para todos, um valor de referência. Na realidade, Carlos da Maia alimentava já por Maria Eduarda de Castro Gomes uma secreta paixão e não deixava de a visitar diariamente a pretexto de assistir clinicamente a sua governanta inglesa, Miss Sarah. Numa dessas visitas como médico à residência dos Castro Gomes, - na rua de S. Francisco - percebe-se claramente a existência de uma reciprocidade de sentimentos, da qual Dâmaso Salcede acabará inadvertidamente, por ser testemunha, não escondendo a sua surpresa e o seu despeito, que o levara a engendrar uma forma de vingança. Entretanto, Carlos e Maria Eduarda vivem já o seu romance na nova Quinta dos Olivais, comprada a Craft.
Assim corre o tempo dividido entre as apressadas idas ao Ramalhete e a clandestina vida nos Olivais. Certo dia, no Ramalhete, Carlos e Ega trocam algumas confidência sobre a vida atribulada do primeiro, que procura esconder do avô a situação familiar da sua amante, conhecida em Lisboa, como a senhora Castro Gomes. Será, pois, com a maior estupefação que Carlos receberá em sua casa o próprio Castro Gomes que lhe esclarece, com algum acinte, que aquela que todos dão como sua esposa não é senão a sua amante, com quem vive e a quem paga uma existência requintada em troca de companhia. Perante o desespero e a humilhação de Carlos, Ega sugere-lhe que usufrua, como vinha fazendo até aí, desse amor ilegítimo. Porém, a súbita chegada de Monsieur Guimarães vai precipitar o fim da história, ao trazer consigo num pequeno cofre, o espólio de Maria Monforte, mãe de Maria Eduarda, que morrera em Paris. Nesse espólio confirma-se que Maria Monforte fora a esposa que levara ao suicídio Pedro da Maia, pai de Carlos.
A tragédia precipita-se - os dois amantes eram, no final, irmãos.
Tal revelação levará à morte o velho Afonso da Maia, ao afastamento dos dois amantes, à partida de Carlos para o estrangeiro. Só dez anos depois Carlos voltará a Portugal, reencontrando-se com os amigos de sempre, e sobretudo com Ega, com quem fará um saldo do passado, carregado de ironia e ceticismo, uma síntese dos seus destinos pessoais e do destino coletivo do país, como nação. Vidas falhadas ou ainda a tempo de apanhar o futuro?
Principais personagens
Afonso da Maia: era um homem baixo, de cabelos e barbas brancas. Descrito como um homem culto, religioso e sem defeitos. Afonso é a síntese das tradições e virtudes portuguesas.
Pedro da Maia: é um homem frágil criado pela educação livresca e clerical do avô, Afonso da Maia. Ele era temperamental e instável emocionalmente. É movido pela moral do sentimento e como resultado, se suicida após a fuga da mulher.
Maria Monforte: filha de um negreiro, é uma mulher dominadora, descrita como dona de uma extrema beleza. Ela era alta, loira e sensual. Se casa com Pedro da Maia contra a vontade de Afonso da Maia. Tempos depois, foge com um príncipe napolitano e leva a filha.
Carlos da Maia: protagonista da história. fruto do casamento de Pedro da Maia e Maria Monforte. Descrito como um rapaz belo, alto, de olhos pretos e pele branca. O autor diz que ele parecia um “belo cavaleiro da Renascença”. Carlos é culto e bem-educado.
Maria Eduarda: filha de Maria Monforte e Pedro Maia e divide o protagonismo com o irmão, Carlos da Maia, com quem tem um relacionamento sem saber do parentesco.
Castro Gomes: brasileiro que se envolve com Maria Eduarda. Todos achavam que era casado com Maria Eduarda, mas na verdade, era sua amante e não se incomoda com a relação dela com Carlos da Maia.
João da Ega: amigo boêmio de Carlos da Maia e responsável pelo jantar que resulta em Carlos conhecendo Maria Eduarda. É descrito como um personagem contraditório, por ser romântico e sentimental, mas também progressista e crítico.
Vale ressaltar que diversos personagens são introduzidos na narrativa de “Os Maias”, e cada um possui seu papel na história. Contudo, focamos apenas nos personagens da narrativa principal entre Carlos da Maia e Maria Eduarda.
Análise da obra
“Os Maias” é dividido em dois planos narrativos: um se trata das três gerações da família, centrado no personagem do Carlos Maia e o segundo foca na crítica sobre a alta sociedade de Lisboa, em 1880.
Traz uma representação dos espaços sociais internos e externos onde situam os personagens.
Ao representar esses espaços, o autor exprime uma crítica a sociedade portuguesa, incidindo nos costumes e comportamentos da burguesia da época.
“Os Maias” ainda traz uma abordagem hereditária, ou seja, os comportamentos do personagem do Carlos, quando ele é descrito como um jovem de caráter fraco, herdado do avô e do próprio pai, e o desequilíbrio amoroso que herdou da mãe.
Além disso, envolve assuntos psicológicos. Por exemplo, Carlos mesmo sabendo que a mulher com quem tem uma relação amorosa é sua irmã, não deixa de se envolver com ela. O fato de descobrir que Maria Eduarda é sua irmã, não é suficiente para que ele a não deseje.
As personagens femininas são representadas sempre como o símbolo da luxúria, do pecado, da perdição. Esta é característica não somente da obra “Os Maias”, mas também presente em outras obras de Eça de Queiroz, como “O Primo Basílio” e “O Crime do Padre Amaro”.
Alguns estudiosos afirmam que essa forma de representar o papel da mulher em suas obras é reflexo da rejeição que o escritor recebeu da própria mãe.
Em “Os Maias”, várias mulheres mantêm relações adúlteras, isto é, fora do casamento. Por exemplo: a mãe de Carlos e Maria Eduarda, Maria Monforte que foge com Tancredo e abandona o filho e o marido.
José Maria de Eça de Queiroz foi um romancista, contista, poeta, advogado e diplomata português nascido em 24 de novembro de 1845, em Portugal, e falece aos 54 anos em 16 de agosto de 1900, na França.
O escritor que tem como tradição o romantismo e o realismo. E muitos consideram o romance “Os Maias” o melhor romance do Realismo em Portugal.
Eça de Queiroz nasceu de uma relação não-marital. Mesmo que seus pais tenham se casado, não há registro da sua mãe. Ele foi criado pela avó e depois com uma ama, e posteriormente foi para um colégio. Além disso, o incesto presente na obra “Os Maias” veio também de sua família, pois há registro de episódios incestuosos no diário de sua prima.
O livro está disponível para download no domínio público em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ph000181.pdf
Fontes:
Algo Sobre
Algo Sobre
Os Maias. Disponível em Guia Estudo. Acesso em 01 de maio de 2021.
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