José Pereira da Graça Aranha nasceu em São Luís do Maranhão a 21/06/1848, tendo sido juiz e diplomata. Uma influência intelectual decisiva em sua obra é a de Tobias Barreto, que conheceu em 1882 enquanto cursava Direito no Recife. Formou-se em direito seis anos depois e mais quatro anos após exerceu o caso de juiz em Porto do Cachoeiro/ES, onde tomou conhecimento dos fatos que inspiraram Canaã. Seu primeiro trabalho foi o prefácio de um livro em 1894, quando já morava no Rio de Janeiro. Dois anos depois, em 1896, participou da fundação da Academia Brasileira de Letras, mesmo nunca tendo publicado nenhuma obra literária; tal fato só foi possível porque seu amigo Joaquim Nabuco lhe foi 'fiador literário' até 1902, ano da publicação de Canaã. Partiu em 1899 com o mesmo Nabuco para Europa como diplomata. Em 1911 sua peça Malazarte foi encenada com sucesso em Paris. Aposentou-se da diplomacia em 1921, participou da Semana de Arte Moderna de 1922 e abandonou a ABL em 1924. Não é considerado modernista porque sua única obra 'modernista', A viagem maravilhosa, de 1939, é feita em um estilo extremamente artificial. Morreu logo antes de publicar sua autobiografia, “O meu próprio romance”, em 1931. Sua única obra de significado verdadeiro é Canaã.
RESUMO:
Milkau, alemão, recém-chegado, o a uma colônia de imigrantes europeus, no Espírito Santo, aluga um cavalo para ir do Queimado à cidade de Porto do Cachoeiro. Junto com ele vai o guia, um menino de 9 anos, filho de um alugador de animais, no Queimado.
O imigrante observa a paisagem e, ao passar por uma fazenda abandonada, entregue aos poucos e pobres escravos, nota o ritmo daquela gente desamparada. Finalmente, chega ao sobrado do comerciante alemão, Roberto Schultz, em Cachoeiro. Na parte inferior do edifício fica o armazém, onde é negociada toda sorte de produtos, desde fazenda até instrumentos agrícolas.
É apresentado a outro imigrante, Von Lentz, filho de um general alemão. Milkau deseja arrematar um lote de terra para se estabelecer. Schultz apresenta-lhe o agrimensor, Sr.Felicíssimo, que está para ir ao Rio Doce fazer medições de terra. Milkau, desejando aí se estabelecer, decide se juntar ao agrimensor e convida o indeciso Lentz para acompanhá-lo.
Pelo caminho, Lentz e Milkau discutem a paisagem e a raça brasileiras. Milkau crê que o progresso só se dá quando os povos se misturam. Vê, na fusão das raças adiantadas com as selvagens, o rejuvenescimento da civilização. Enquanto acredita na humanidade, pensa encontrar no Brasil Canaã, 'a terra prometida'. Lentz só se ocupa da superioridade germânica, ficando enaltecido com o triunfo dos alemães sobre os mestiços. Para ele, a mistura gera uma cultura inferior, uma civilização de mulatos que serão sempre escravos e viverão em meio a lutas e revoltas. Acrescenta que está no Brasil, porque o estava forçando a se casar com a filha de um general, amigo do pai. Preferiu começar vida nova, longe dos deveres e obrigações impostos por sua sociedade. Milkau conta-lhe que também não encontrava graça no viver, ansiava por uma vida mais independente, em que pudesse dar vazão à sua individualidade.
À noite, reúnem-se a Felicíssimo e ouvem de alguns homens da terra e dos trabalhadores alemães lendas, evocando o Reno e despertando saudades. Os planos dos dois imigrantes diferem; Milkau deseja manter seu pedaço de terra e anseia por uma justiça perfeita sem ganâncias ou lutas. Lentz está determinado a ampliar sua propriedade, ter muitos trabalhadores sob seu comando. Sonha com o domínio do branco sobre o mulato, numa confirmação de seu poder.
Após as medidas tomadas por Felicíssimo, Milkau pode levantar sua casa e Lentz deixa-se ficar, triste e angustiado, incapaz de abandonar o companheiro, dedicando-se às viagens e compras da casa. No trajeto, encontra-se sempre com um velho colono alemão taciturno, em companhia de seus cães ferozes, mas fiéis. Mais tarde, encontrará esse velho morto em casa, guardado pelos animais e devorado pelos urubus.
Um dia, ao retornar de Santa Teresa, Lentz traz a notícia de que, em Jequitibá, o novo pastor vai celebrar seu primeiro serviço. Os colonos preparam uma festa e Milkau resolve juntar-se a eles como forma de se familiarizar com os costumes do povo. Pelo caminho, os amigos encontram famílias inteiras de colonos. As mulheres se vestem com o modelo usado na partida para a nova terra, sendo possível fixar, pelo vestuário, a época de cada imigração.
Felicíssimo os convida para, depois do culto, festejarem no sobrado de Jacob Muller.
Ouvem música e veem o povo dançando. Milkau diz a Lentz que era isso o que buscava: uma vida simples em meio à gente simples, matando o ódio e esquecendo da dor. Os homens de outras terras estavam possuídos pelo demônio, devastando o mundo. Lentz vê em tudo aquilo uma existência vazia e inútil.
Milkau conhece, nesse dia, no sobrado de Muller, uma colona, Maria Perutz, que não consegue mais esquecer o encontro com o rapaz. A história de Maria é triste e solitária. O pai morreu antes que ela pudesse conhecê-lo. A mãe viúva, criada da casa do alemão Augusto Kraus, logo falece e Maria fica sob os cuidados de Augusto, seu verdadeiro amigo. Moravam com o velho, seu filho, a nora Ema e o neto, Moritz Kraus. Repentinamente, Kraus falece e a situação na casa de Maria se modifica.
Ema e o esposo decidem separar a moça do filho, temendo uma aproximação amorosa.
A família quer ver Moritz casado com a rica Emília Schenker e o enviam para longe de Jequitibá. O rapaz parte com certa alegria, deixando Maria desgostosa, pois os dois já eram amantes.
Franz Kraus é procurado por um Oficial de Justiça que, desejando saber porque a morte do velho não foi notificada, passa-lhe um documento sobre a necessidade de arrolamento dos bens de Augusto Kraus. Solicita que lhe prepare alojamento e comida para cinco pessoas, pois darão plantão em sua casa, recebendo todos os que estiverem na mesma situação de Franz.
O grupo se instala na casa e passa a chamar os colonos, amedrontando-os com extorsões e violências. Após a visita, cobram de Franz Kraus a alta importância de quatrocentos mil réis, além de demonstrarem certo interesse em Maria, notadamente o procurador Brederodes. Kraus sente-se ultrajado e roubado. A vida de Maria por essa época piora. Dia-a-dia, teme que seu estado se revele, por isso aguarda desesperadamente o retorno de Moritz para lhe contar sobre o filho que espera.
Os pais do rapaz não tardam perceber o que se passa. Vendo-a mover-se pela casa languidamente, sentem ódio e temem pelo casamento do filho. Passam o dia a cochichar, a tramar para se verem livres dela. Tratam-na com mais rigor, não lhe dão quase comida, dobram-lhe os trabalhos. Resignada, Maria resiste para desespero dos velhos. Uma manhã, trêmula e exausta deixa cair um prato. Encolerizada, Ema grita para que ela abandone a casa. O marido ameaça-lhe com um pedaço de madeira.
Amedrontada, arruma uma trouxa e sai. Pede auxílio ao pastor, mas esse, dominado pela cunhada, docemente afasta Maria que parte para a vila em busca de abrigo.
Ao verem a triste figura, os colonos tomam-na por louca, enxotando-a. Na floresta, seu único refúgio, cai prostrada e adormece. No dia seguinte, encontra uma estalagem, onde empenha a trouxa de roupa em troca de comida e abrigo. A dona do estabelecimento lhe dá dois dias para encontrar um emprego, mas a busca é em vão.
Certo dia, na hora do almoço, Milkau reconhece Maria na estalagem. Ao saber de sua história, prontifica-se a ajudá-la, levando-a para a casa de uns colonos. A moça é aceita, mas tratada com desdém.
Um dia, trabalhando, solitariamente, no cafezal, começa a sentir as dores do parto.
Temendo retornar a casa e ser maltratada, resiste até cair e, esvaindo-se em sangue, dá luz ao bebê. Alguns porcos, que estavam nas proximidades, correm para lambê-los, mordendo o bebê que falece. A filha dos patrões chega nesse instante e, sem nada perguntar, volta a casa, dizendo que Maria tinha matado o bebê e dado a criança aos porcos. Dois dias depois, Perutz estava presa na cadeia de Cachoeiro.
A população germânica, horrorizada com o crime de Maria, prepara-se para a vingança e o exemplo. Roberto Shultz procura os mesmos representantes da Justiça que amedrontaram e extorquiram os colonos, durante o arrolamento de bens.
Pede-lhes que deixem a punição da mãe assassina para os alemães. O procurador Brederodes, ignorado por Maria na época, insiste em puni-la para que aprenda a não ser tão orgulhosa. Chama todos os alemães de hipócritas e parte, deixando Shultz desmoralizado.
Milkau fica sabendo do destino de Perutz e o encontro com ela em Cachoeiro choca-o. Maria tinha a face lívida e os olhos cintilantes dançavam ao sabor da loucura. Volta a vê-la dias seguidos, passando a ser olhado com desprezo e desconfiança, pois, talvez, fosse o amante. Repelido pelos moradores, resigna-se com a condição de inimigo, permanecendo ao lado de Maria.
Certa manhã, estando em companhia de Felicíssimo, Milkau encontra Maria, sendo levada por dois soldados para o tribunal. Em cada fase do julgamento, é apontada culpada. Milkau acompanha todas as sessões, chegando a ficar amigo do juiz Paulo Maciel. Este lhe diz que o final não será feliz, pois os depoimentos não deixam brecha para a inocência. O imigrante e Maciel aproveitam os encontros para analisar a justiça brasileira, os brasileiros e seu patriotismo.
A avaliação não é das melhores. O juiz impossibilitado de fazer justiça por uma série de circunstâncias observa que a decadência ali existente é um 'misto doloroso de selvageria dos povos que despontam para o mundo, e do esgotamento das raças acabadas. Há uma confusão geral'. Milkau crê que se pode chegar a algo melhor.
Entretanto, à medida que acompanha o definhar da amiga, vai se deixando tomar pela tristeza.
Finalmente, numa noite, Milkau tira Maria da prisão e foge com ela, correndo pelos campos em busca de Canaã, 'a terra prometida', onde os homens vivem em harmonia.
ANÁLISE DA OBRA
Tendo sido lançado no mesmo ano de Os Sertões, de Euclides da Cunha (1902), poderíamos dizer que Canaã é o primeiro romance ideológico brasileiro em que se discute o destino histórico do Brasil. Ao mesmo tempo, Canaã representou uma ponte entre as correntes filosóficas e estéticas do final do século XIX (Realismo, Naturalismo, Simbolismo) e a revolução modernista da segunda década do século XX.
O pólo central de Canaã são os debates entre dois colonos alemães que se estabelecem no Espírito Santo: Milkau e Lentz.
O personagem Milkau
Milkau representa o otimismo, a confiança no futuro do Brasil e na força regeneradora do amor universal. A maneira de Tolstói, Milkau prega a integração harmônica de todos os povos na natureza-mãe, revelando um evolucionismo humanitário. É um humanista saudoso do gênio livre e individualista da Alemanha. Por isso deplora o desmoronamento da tradição da cidade brasileira invadida por colônias estrangeiras e sonha com a “ligação do homem ao homem” e com a realização da liberdade.
Milkau não se limita à defesa de ideias abstratas. Seu humanismo desdobra-se em ação quando passa a proteger Maria, jovem colona, expulsa pelos patrões quando estes a sabem grávida, vindo a dar à luz em trágica situação.
Após salvar Maria, libertando-a do cárcere onde estava por ter sido acusada de matar o próprio filho (na verdade Maria tem o filho devorado por uma vara de porcos), Milkau foge, juntamente com Maria, em direção a outros horizontes, numa “corrida no Infinito”, em busca da luminosa Canaã, a Terra Prometida, “onde as feras não fossem homens”, onde a vida não seja uma competição de ódios mas uma conquista de amor.
Visto desta maneira, Canaã é o poema das raças novas, da miscigenação das raças, de onde nascerá a perfeita harmonia universal.
O personagem Lentz
Lentz é um adepto das teorias racistas. Para ele, os brasileiros, por serem mestiços, estão condenados à dominação por parte de raças superiores. Lentz profetiza a vitória dos arianos, enérgicos e dominadores, sobre o brasileiro fraco e indolente. Suas ideias deixam entrever a filosofia de Nietzsche e o evolucionismo de Darwin.
Para Lentz, renovar o Brasil é cobri-lo com os corpos humanos da raça superior, demonstração representativa do colonialismo agressivo, ou seja, imperialismo, calorosamente discutido com alusões estéticas.
A lei do amor x A lei da força
Assim, podemos ver que Milkau e Lentz representam duas ideologias postas em debate. E o contraste entre o universalismo (Milkau) e o racismo (Lentz), entre a “lei do amor” (Milkau) e a “lei da força” (Lentz).
Justamente neste ponto, Canaã adquire maior importância para a Literatura Brasileira, pois o romance de confrontação ideológica era inédito entre nós, e antecipou a tomada de consciência dos modernistas.
Na verdade, Graça Aranha, com Canaã, apresenta tópicos que serão desenvolvidos mais tarde em A Estética da Vida, de 1921. O brasileiro terá de vencer o Terror Cósmico, superar o lírico individual e atingir a poesia do cosmos unitário, numa identificação de consciência e universo.
Graça Aranha toca, portanto, no ponto vital das discussões do início do século XX: a campanha por uma estética nacional assimilada na consciência universal, Este era o debate do dia-a-dia: a nacionalidade brasileira, vista e analisada profundamente, opondo-se ao ufanismo e ao patriotismo superficial.
A estrutura romanesca e a linguagem
Muitos têm afirmado que a extrema preocupação de Graça Aranha em discutir ideias (Canaã é, na verdade, um romance de ideias) prejudicou a composição ficcional (literária) propriamente dita. José Guilherme Merquior acusa a má intervenção do pensamento, da tese, na matéria narrada. A dimensão realista do livro é incompatível com a sua dimensão explicativa. Daí resultaria uma certa deficiência estrutural da obra. O ardente desejo de explicar o “objetivismo dinâmico” leva o autor a fazer “filosofia ficcionalizada” ou “ficção filosofante”. Formalmente, isto se revela na intervenção teórica do autor a cada momento do romance, através de digressões que interrompem o universo ficcional. Daí o esvaziamento das personagens (são praticamente ideias, e não pessoas), a desvalorização do enredo que serve apenas de pretexto para análises sociais ou psicológicas do Brasil. Mesmo o drama de Maria, a personagem trágica do romance, é entremeado de longas cenas que demonstram a lubricidade e a venalidade dos magistrados locais. Já no final, quando Milkau busca o juiz de direito para tentar uma solução para o processo em que Maria está envolvida, os dois acabam discutindo sobre a etnia brasileira, aproveitando Graça Aranha para tecer argumentos sobre o mulatismo.
Entretanto, se levado pela preocupação em discutir o Brasil, Graça Aranha não estruturou personagens ou enredo convincentes, algumas cenas de violência e instinto servem de relevo e interesse pela linguagem impressionista de que se revestem, assim como as descrições ricas da natureza brasileira. São cenas tipicamente naturalistas: o enterro do velho caçador, cujo cadáver é disputado aos coveiros por cães furiosos e urubus famintos; o rito bárbaro dos magiares, que fecundam a terra com o sangue de um cavalo açoitado até a morte; o pavor de Maria na estalagem em que se abriga, dormindo juntamente com uma velha criada que esconde pedaços de carne sob o colchão e, à noite, os ratos passeiam-lhe sobre o corpo; enfim o nascimento do filho de Maria em plena mata, entre porcos que acabam por devorar a criança diante do horror da mãe. Evidentemente, estas cenas vão além do realismo, mas não chegam a um naturalismo científico de um Zola. Este naturalismo é sensível ao nível da linguagem narrativa, tipicamente impressionista. De fato, natureza, ambiente, homens e coisas são apreendidos num enfoque impressionista, usando o narrador uma retórica declamatória com farta adjetivação, na qual dois ou três adjetivos ligam-se ao mesmo substantivo, ou até os substantivos adjetivam.
A descrição de Maria adormecida na mata, coberta pelos pirilampos, representa bem o impressionismo, filtrado de simbolismo. De fato, formas, cores, aspectos luminosos confundem-se numa descrição emocional do momento, através de períodos breves, geralmente no imperfeito do indicativo, sugerindo a ideia de continuidade.
Assim, Canaã revela-se uma obra sincrética. Do Realismo encontramos traços na fixação da paisagem humana da colônia, em prosa quase documental, com a simplicidade da vida laboriosa dos imigrantes ou as doenças da burocracia judiciária. Do Simbolismo encontramos a preocupação metafísica, a alegoria retórica, a associação das sensações do momento que faz com que o naturismo ultrapasse a simples observação da realidade. Note-se ainda a presença de mitos folclóricos indígenas e europeus, que ajudam no desenvolvimento da ideia de Milkau e na exaltação do Brasil.
RESUMO:
Milkau, alemão, recém-chegado, o a uma colônia de imigrantes europeus, no Espírito Santo, aluga um cavalo para ir do Queimado à cidade de Porto do Cachoeiro. Junto com ele vai o guia, um menino de 9 anos, filho de um alugador de animais, no Queimado.
O imigrante observa a paisagem e, ao passar por uma fazenda abandonada, entregue aos poucos e pobres escravos, nota o ritmo daquela gente desamparada. Finalmente, chega ao sobrado do comerciante alemão, Roberto Schultz, em Cachoeiro. Na parte inferior do edifício fica o armazém, onde é negociada toda sorte de produtos, desde fazenda até instrumentos agrícolas.
É apresentado a outro imigrante, Von Lentz, filho de um general alemão. Milkau deseja arrematar um lote de terra para se estabelecer. Schultz apresenta-lhe o agrimensor, Sr.Felicíssimo, que está para ir ao Rio Doce fazer medições de terra. Milkau, desejando aí se estabelecer, decide se juntar ao agrimensor e convida o indeciso Lentz para acompanhá-lo.
Pelo caminho, Lentz e Milkau discutem a paisagem e a raça brasileiras. Milkau crê que o progresso só se dá quando os povos se misturam. Vê, na fusão das raças adiantadas com as selvagens, o rejuvenescimento da civilização. Enquanto acredita na humanidade, pensa encontrar no Brasil Canaã, 'a terra prometida'. Lentz só se ocupa da superioridade germânica, ficando enaltecido com o triunfo dos alemães sobre os mestiços. Para ele, a mistura gera uma cultura inferior, uma civilização de mulatos que serão sempre escravos e viverão em meio a lutas e revoltas. Acrescenta que está no Brasil, porque o estava forçando a se casar com a filha de um general, amigo do pai. Preferiu começar vida nova, longe dos deveres e obrigações impostos por sua sociedade. Milkau conta-lhe que também não encontrava graça no viver, ansiava por uma vida mais independente, em que pudesse dar vazão à sua individualidade.
À noite, reúnem-se a Felicíssimo e ouvem de alguns homens da terra e dos trabalhadores alemães lendas, evocando o Reno e despertando saudades. Os planos dos dois imigrantes diferem; Milkau deseja manter seu pedaço de terra e anseia por uma justiça perfeita sem ganâncias ou lutas. Lentz está determinado a ampliar sua propriedade, ter muitos trabalhadores sob seu comando. Sonha com o domínio do branco sobre o mulato, numa confirmação de seu poder.
Após as medidas tomadas por Felicíssimo, Milkau pode levantar sua casa e Lentz deixa-se ficar, triste e angustiado, incapaz de abandonar o companheiro, dedicando-se às viagens e compras da casa. No trajeto, encontra-se sempre com um velho colono alemão taciturno, em companhia de seus cães ferozes, mas fiéis. Mais tarde, encontrará esse velho morto em casa, guardado pelos animais e devorado pelos urubus.
Um dia, ao retornar de Santa Teresa, Lentz traz a notícia de que, em Jequitibá, o novo pastor vai celebrar seu primeiro serviço. Os colonos preparam uma festa e Milkau resolve juntar-se a eles como forma de se familiarizar com os costumes do povo. Pelo caminho, os amigos encontram famílias inteiras de colonos. As mulheres se vestem com o modelo usado na partida para a nova terra, sendo possível fixar, pelo vestuário, a época de cada imigração.
Felicíssimo os convida para, depois do culto, festejarem no sobrado de Jacob Muller.
Ouvem música e veem o povo dançando. Milkau diz a Lentz que era isso o que buscava: uma vida simples em meio à gente simples, matando o ódio e esquecendo da dor. Os homens de outras terras estavam possuídos pelo demônio, devastando o mundo. Lentz vê em tudo aquilo uma existência vazia e inútil.
Milkau conhece, nesse dia, no sobrado de Muller, uma colona, Maria Perutz, que não consegue mais esquecer o encontro com o rapaz. A história de Maria é triste e solitária. O pai morreu antes que ela pudesse conhecê-lo. A mãe viúva, criada da casa do alemão Augusto Kraus, logo falece e Maria fica sob os cuidados de Augusto, seu verdadeiro amigo. Moravam com o velho, seu filho, a nora Ema e o neto, Moritz Kraus. Repentinamente, Kraus falece e a situação na casa de Maria se modifica.
Ema e o esposo decidem separar a moça do filho, temendo uma aproximação amorosa.
A família quer ver Moritz casado com a rica Emília Schenker e o enviam para longe de Jequitibá. O rapaz parte com certa alegria, deixando Maria desgostosa, pois os dois já eram amantes.
Franz Kraus é procurado por um Oficial de Justiça que, desejando saber porque a morte do velho não foi notificada, passa-lhe um documento sobre a necessidade de arrolamento dos bens de Augusto Kraus. Solicita que lhe prepare alojamento e comida para cinco pessoas, pois darão plantão em sua casa, recebendo todos os que estiverem na mesma situação de Franz.
O grupo se instala na casa e passa a chamar os colonos, amedrontando-os com extorsões e violências. Após a visita, cobram de Franz Kraus a alta importância de quatrocentos mil réis, além de demonstrarem certo interesse em Maria, notadamente o procurador Brederodes. Kraus sente-se ultrajado e roubado. A vida de Maria por essa época piora. Dia-a-dia, teme que seu estado se revele, por isso aguarda desesperadamente o retorno de Moritz para lhe contar sobre o filho que espera.
Os pais do rapaz não tardam perceber o que se passa. Vendo-a mover-se pela casa languidamente, sentem ódio e temem pelo casamento do filho. Passam o dia a cochichar, a tramar para se verem livres dela. Tratam-na com mais rigor, não lhe dão quase comida, dobram-lhe os trabalhos. Resignada, Maria resiste para desespero dos velhos. Uma manhã, trêmula e exausta deixa cair um prato. Encolerizada, Ema grita para que ela abandone a casa. O marido ameaça-lhe com um pedaço de madeira.
Amedrontada, arruma uma trouxa e sai. Pede auxílio ao pastor, mas esse, dominado pela cunhada, docemente afasta Maria que parte para a vila em busca de abrigo.
Ao verem a triste figura, os colonos tomam-na por louca, enxotando-a. Na floresta, seu único refúgio, cai prostrada e adormece. No dia seguinte, encontra uma estalagem, onde empenha a trouxa de roupa em troca de comida e abrigo. A dona do estabelecimento lhe dá dois dias para encontrar um emprego, mas a busca é em vão.
Certo dia, na hora do almoço, Milkau reconhece Maria na estalagem. Ao saber de sua história, prontifica-se a ajudá-la, levando-a para a casa de uns colonos. A moça é aceita, mas tratada com desdém.
Um dia, trabalhando, solitariamente, no cafezal, começa a sentir as dores do parto.
Temendo retornar a casa e ser maltratada, resiste até cair e, esvaindo-se em sangue, dá luz ao bebê. Alguns porcos, que estavam nas proximidades, correm para lambê-los, mordendo o bebê que falece. A filha dos patrões chega nesse instante e, sem nada perguntar, volta a casa, dizendo que Maria tinha matado o bebê e dado a criança aos porcos. Dois dias depois, Perutz estava presa na cadeia de Cachoeiro.
A população germânica, horrorizada com o crime de Maria, prepara-se para a vingança e o exemplo. Roberto Shultz procura os mesmos representantes da Justiça que amedrontaram e extorquiram os colonos, durante o arrolamento de bens.
Pede-lhes que deixem a punição da mãe assassina para os alemães. O procurador Brederodes, ignorado por Maria na época, insiste em puni-la para que aprenda a não ser tão orgulhosa. Chama todos os alemães de hipócritas e parte, deixando Shultz desmoralizado.
Milkau fica sabendo do destino de Perutz e o encontro com ela em Cachoeiro choca-o. Maria tinha a face lívida e os olhos cintilantes dançavam ao sabor da loucura. Volta a vê-la dias seguidos, passando a ser olhado com desprezo e desconfiança, pois, talvez, fosse o amante. Repelido pelos moradores, resigna-se com a condição de inimigo, permanecendo ao lado de Maria.
Certa manhã, estando em companhia de Felicíssimo, Milkau encontra Maria, sendo levada por dois soldados para o tribunal. Em cada fase do julgamento, é apontada culpada. Milkau acompanha todas as sessões, chegando a ficar amigo do juiz Paulo Maciel. Este lhe diz que o final não será feliz, pois os depoimentos não deixam brecha para a inocência. O imigrante e Maciel aproveitam os encontros para analisar a justiça brasileira, os brasileiros e seu patriotismo.
A avaliação não é das melhores. O juiz impossibilitado de fazer justiça por uma série de circunstâncias observa que a decadência ali existente é um 'misto doloroso de selvageria dos povos que despontam para o mundo, e do esgotamento das raças acabadas. Há uma confusão geral'. Milkau crê que se pode chegar a algo melhor.
Entretanto, à medida que acompanha o definhar da amiga, vai se deixando tomar pela tristeza.
Finalmente, numa noite, Milkau tira Maria da prisão e foge com ela, correndo pelos campos em busca de Canaã, 'a terra prometida', onde os homens vivem em harmonia.
ANÁLISE DA OBRA
Tendo sido lançado no mesmo ano de Os Sertões, de Euclides da Cunha (1902), poderíamos dizer que Canaã é o primeiro romance ideológico brasileiro em que se discute o destino histórico do Brasil. Ao mesmo tempo, Canaã representou uma ponte entre as correntes filosóficas e estéticas do final do século XIX (Realismo, Naturalismo, Simbolismo) e a revolução modernista da segunda década do século XX.
O pólo central de Canaã são os debates entre dois colonos alemães que se estabelecem no Espírito Santo: Milkau e Lentz.
O personagem Milkau
Milkau representa o otimismo, a confiança no futuro do Brasil e na força regeneradora do amor universal. A maneira de Tolstói, Milkau prega a integração harmônica de todos os povos na natureza-mãe, revelando um evolucionismo humanitário. É um humanista saudoso do gênio livre e individualista da Alemanha. Por isso deplora o desmoronamento da tradição da cidade brasileira invadida por colônias estrangeiras e sonha com a “ligação do homem ao homem” e com a realização da liberdade.
Milkau não se limita à defesa de ideias abstratas. Seu humanismo desdobra-se em ação quando passa a proteger Maria, jovem colona, expulsa pelos patrões quando estes a sabem grávida, vindo a dar à luz em trágica situação.
Após salvar Maria, libertando-a do cárcere onde estava por ter sido acusada de matar o próprio filho (na verdade Maria tem o filho devorado por uma vara de porcos), Milkau foge, juntamente com Maria, em direção a outros horizontes, numa “corrida no Infinito”, em busca da luminosa Canaã, a Terra Prometida, “onde as feras não fossem homens”, onde a vida não seja uma competição de ódios mas uma conquista de amor.
Visto desta maneira, Canaã é o poema das raças novas, da miscigenação das raças, de onde nascerá a perfeita harmonia universal.
O personagem Lentz
Lentz é um adepto das teorias racistas. Para ele, os brasileiros, por serem mestiços, estão condenados à dominação por parte de raças superiores. Lentz profetiza a vitória dos arianos, enérgicos e dominadores, sobre o brasileiro fraco e indolente. Suas ideias deixam entrever a filosofia de Nietzsche e o evolucionismo de Darwin.
Para Lentz, renovar o Brasil é cobri-lo com os corpos humanos da raça superior, demonstração representativa do colonialismo agressivo, ou seja, imperialismo, calorosamente discutido com alusões estéticas.
A lei do amor x A lei da força
Assim, podemos ver que Milkau e Lentz representam duas ideologias postas em debate. E o contraste entre o universalismo (Milkau) e o racismo (Lentz), entre a “lei do amor” (Milkau) e a “lei da força” (Lentz).
Justamente neste ponto, Canaã adquire maior importância para a Literatura Brasileira, pois o romance de confrontação ideológica era inédito entre nós, e antecipou a tomada de consciência dos modernistas.
Na verdade, Graça Aranha, com Canaã, apresenta tópicos que serão desenvolvidos mais tarde em A Estética da Vida, de 1921. O brasileiro terá de vencer o Terror Cósmico, superar o lírico individual e atingir a poesia do cosmos unitário, numa identificação de consciência e universo.
Graça Aranha toca, portanto, no ponto vital das discussões do início do século XX: a campanha por uma estética nacional assimilada na consciência universal, Este era o debate do dia-a-dia: a nacionalidade brasileira, vista e analisada profundamente, opondo-se ao ufanismo e ao patriotismo superficial.
A estrutura romanesca e a linguagem
Muitos têm afirmado que a extrema preocupação de Graça Aranha em discutir ideias (Canaã é, na verdade, um romance de ideias) prejudicou a composição ficcional (literária) propriamente dita. José Guilherme Merquior acusa a má intervenção do pensamento, da tese, na matéria narrada. A dimensão realista do livro é incompatível com a sua dimensão explicativa. Daí resultaria uma certa deficiência estrutural da obra. O ardente desejo de explicar o “objetivismo dinâmico” leva o autor a fazer “filosofia ficcionalizada” ou “ficção filosofante”. Formalmente, isto se revela na intervenção teórica do autor a cada momento do romance, através de digressões que interrompem o universo ficcional. Daí o esvaziamento das personagens (são praticamente ideias, e não pessoas), a desvalorização do enredo que serve apenas de pretexto para análises sociais ou psicológicas do Brasil. Mesmo o drama de Maria, a personagem trágica do romance, é entremeado de longas cenas que demonstram a lubricidade e a venalidade dos magistrados locais. Já no final, quando Milkau busca o juiz de direito para tentar uma solução para o processo em que Maria está envolvida, os dois acabam discutindo sobre a etnia brasileira, aproveitando Graça Aranha para tecer argumentos sobre o mulatismo.
Entretanto, se levado pela preocupação em discutir o Brasil, Graça Aranha não estruturou personagens ou enredo convincentes, algumas cenas de violência e instinto servem de relevo e interesse pela linguagem impressionista de que se revestem, assim como as descrições ricas da natureza brasileira. São cenas tipicamente naturalistas: o enterro do velho caçador, cujo cadáver é disputado aos coveiros por cães furiosos e urubus famintos; o rito bárbaro dos magiares, que fecundam a terra com o sangue de um cavalo açoitado até a morte; o pavor de Maria na estalagem em que se abriga, dormindo juntamente com uma velha criada que esconde pedaços de carne sob o colchão e, à noite, os ratos passeiam-lhe sobre o corpo; enfim o nascimento do filho de Maria em plena mata, entre porcos que acabam por devorar a criança diante do horror da mãe. Evidentemente, estas cenas vão além do realismo, mas não chegam a um naturalismo científico de um Zola. Este naturalismo é sensível ao nível da linguagem narrativa, tipicamente impressionista. De fato, natureza, ambiente, homens e coisas são apreendidos num enfoque impressionista, usando o narrador uma retórica declamatória com farta adjetivação, na qual dois ou três adjetivos ligam-se ao mesmo substantivo, ou até os substantivos adjetivam.
A descrição de Maria adormecida na mata, coberta pelos pirilampos, representa bem o impressionismo, filtrado de simbolismo. De fato, formas, cores, aspectos luminosos confundem-se numa descrição emocional do momento, através de períodos breves, geralmente no imperfeito do indicativo, sugerindo a ideia de continuidade.
Assim, Canaã revela-se uma obra sincrética. Do Realismo encontramos traços na fixação da paisagem humana da colônia, em prosa quase documental, com a simplicidade da vida laboriosa dos imigrantes ou as doenças da burocracia judiciária. Do Simbolismo encontramos a preocupação metafísica, a alegoria retórica, a associação das sensações do momento que faz com que o naturismo ultrapasse a simples observação da realidade. Note-se ainda a presença de mitos folclóricos indígenas e europeus, que ajudam no desenvolvimento da ideia de Milkau e na exaltação do Brasil.
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