sexta-feira, 7 de maio de 2021

Célio Simões (Lá vem o morto!...)

Dico era um caboclo prestativo, bem mandado, de fala mansa, que nasceu, se criou, viveu intensamente a sua época e finalmente morreu no Paraná de Baixo, uma região longínqua e desabitada do Baixo Amazonas.

Foi dessas criaturas por demais comuns, sem nada mesmo de especial, que acatava ordens sem obtemperar ou mesmo questionar se eram ou não justas ou se dadas por um adulto, uma criança, um conhecido ou desconhecido.

Era, enfim, como as brisas de verão, alma sem fel e sem malícia, dos que passam pela vida satisfeitos com sua própria desimportância, onde todos estão acima e além dele na escala social. Não tinha mulher, filhos ou parentes próximos e a maioria das criaturas que o conheciam nada sabiam contar a seu respeito, além de que era bem mandado, prestativo e de fala mansa...

Sem algo para marcar sua passagem por esta vida, o destino incumbiu-se de imortalizá-lo, com a confusão que involuntariamente armou por ocasião de seu próprio sepultamento.

Havia suspeitas generalizadas de que o Mundico (daí o apelido de “Dico”) não emplacava o ano seguinte, pois estava muito velho, doente e abandonado à própria sorte, na barraca de aspecto favelar que o abrigara por tanto tempo. E para consternação de todos, um dia chegou a esperada notícia de seu falecimento. Dois vizinhos mais próximos, condoídos pela sua extrema penúria, resolveram propiciar-lhe um enterro digno no cemitério da cidade e não no terreiro do sítio, prática muito comum naqueles tempos. Movidos por esse nobre sentimento, resolveram agir.

Arranjaram uma igarité, estivaram o morto ao fundo sobre umas tábuas, acenderam uma vela próxima à cabeça em sinal de respeito, cobriram o corpo com um lençol branco e... tome remo na direção de Óbidos, onde seria feita a inumação no cemitério local.

O esforço de vencer a brutal correnteza durou a manhã toda, sob um sol escaldante. O Amazonas é um rio de superlativos. É o maior do mundo, com seus 6.868 km de comprimento e mais de mil afluentes que o tornam a mais vasta bacia hidrográfica do planeta, superior a 7 milhões de km² que banha a floresta latifoliada. Seu gigantismo amedronta pelo volume e agitação de suas águas. A vazão rumo ao mar alcança 200.000 m³ por segundo, ficando a parte mais estreita e profunda em frente à cidade de Óbidos, no Estado do Pará.

Foi nesse universo líquido que a tarde chegou e os dois piedosos amigos do finado Dico, um remando na proa e outro na popa da embarcação, começaram a acusar o peso do esforço físico. O corpo latejava. Afinal não era nada mole vencer o remanso sob aquele calor descomunal e além de tudo levando a bordo um homem que já abotoara o paletó.

Na azáfama da saída, não tinham levado nada para a viagem e esse esquecimento haveria de complicar as coisas, sim, porque até a cachaça fora esquecida e com ela, o coió de piracuí e o peixe frito. Tangidos pela fome, ambos queriam parar um pouco, descansar daquela faina, tomar “umazinha para esquentar a mãe do corpo”, porém não ousavam sugerir esse desejo em voz alta, em respeito e comiseração pelo morto.

E tome remo... Lá pelas vinte horas, praticamente extenuados, passaram em frente a uma grande fazenda, onde de longe já vinham ouvindo alarido de festa, com gente rindo, muita música e estouro de rojão. Só então lembraram que o Nhozinho Caranguejo festejava seu aniversário todo ano em alto estilo, com muito churrasco, pinga da boa, mulherada disponível e dança na ramada que durava no mínimo três dias. Depois de pedirem perdão ao impassível defunto pelo abuso, resolveram mesmo parar e participar. O que vinha na proa avisou:

- Compadre, a demora é pouca. É só “matar o bicho” e voltar, senão o homem apodrece.

O da popa, que era o piloto, foi precavido: - Tudo bem. Mas vou esconder a canoa embaixo daquela touceira de capim, pra ninguém ver que o homem tá morto!...

Unindo palavra à ação, manobrou com habilidade e a igarité encalhou mansamente embaixo do improvisado esconderijo. Apagaram a vela e sem mais delongas rumaram para a casa da fazenda, onde a fuzarca fervilhava e a luz de carbureto ofuscava os olhos.

Chegando lá, não puderam evitar os cumprimentos dos amigos, que faziam questão de levá-los para o barzinho debaixo da frondosa mangueira para brindar o evento. Já quase todos “chumbados” pela maldita, contavam piadas, confraternizavam entre si, jogavam “porrinha” apostando dinheiro, enfim, fizeram de tudo para animar os dois recém-chegados sem lograr êxito – e muito menos desconfiarem o porquê de estarem tão cabisbaixos. Até que um deles resolveu puxar para dançar uma cabocla toda dengosa.

Foi a conta. O outro também arranjou vistosa parceira, o lundú comeu no centro, a música animou, a festança pegou fogo, veio a dança da desfeiteira, mais cachaça, mulher pra cá, mulher pra lá, o da proa foi imprensar a muquirana atrás das bananeiras, o da popa a esta altura já estava tocando banjo na orquestra, e assim os dois amigos, motivados por tão profanas alegrias, esqueceram por completo do dever de sepultar o amigo Dico, que jazia sem vida na canoa escondida no barranco.

Lá pelas tantas da madrugada, saiu do baile um sujeito que mal se aguentava em pé de tão bêbado que estava. Foi aos tropeços andando para o porto com intuito de localizar sua própria canoa, eis que desejava de imediato retornar à sua casa.

Procurou em vão... Além da completa escuridão, o barranco estava coalhado de dezenas de outras canoas dos que compareceram àquela festa. Sem saber o que fazer, resolveu dormir ali mesmo, para aguardar a claridade do dia seguinte e assim meio perdido embarcou na primeira que vislumbrou - exatamente aquela onde jazia o corpo sem vida do finado Dico. Deitou-se ao lado dele, puxou para cima de si uma parte do lençol branco e sem saber que o homem era um “defunto morto”, foi logo avisando:

- Arreda pra lá, que eu também vou dormir aqui... E ferrou em pesado sono.

Já eram quase três da manhã quando os dois farristas, saciados em todos os sentidos, resolveram voltar. Arrependidos, mas ainda cambaleantes, retornaram à realidade e decidiram que o que haviam feito era coisa de gente indigna. Afinal, o estimado Dico fôra em vida uma pessoa bondosa e prestativa e não merecia aquele desrespeito. Fazer farra levando um finado para o cemitério... essa não! Como puderam chegar a tanto?

Com esse sentimento de culpa roendo-lhes as entranhas, envergonhados de si próprios, rumaram direto para a canoa, empurraram-na para fora e meteram o remo para recuperar o tempo perdido. Nem prestaram atenção que o bêbado estava embaixo do lençol, desfrutando a aconchegante companhia do falecido.

Horas depois, quando as luzes da cidade já brilhavam à distância, decidiram atravessar o pavoroso Amazonas, de enormes vagalhões que atemorizam até o mais experiente navegador. Balança pra cá, balança pra lá, a canoa subia e descia em gangorra cavalgando a crista das maretas. O vento soprou mais forte, começou a respingar água dentro do barco, o frio e a umidade doeram no couro e o bêbado, não suportando mais aquele desconforto, sentou e falou:

- Pra onde estão me levando?...

Cada qual dos remadores deu um berro de pavor e se borrando nas calças pulou dentro d’água. O bêbado nada entendeu, mas quando no lusco fusco da aurora notou que seu “parceiro de sono” era um defunto, soltou outro grito medonho e saltou atrás dos dois primeiros, no que um avisou ao outro:

- Compadre!! O Dico pulou n’água atrás da gente!

O bêbado não sabia nadar e queria agarrar um deles para salvar a vida. Não deu. Único meio de defesa, um jogava água na cara do outro para enxotá-lo, quando ele se aproximava! E no tumulto que se seguiu, morreram os três sem atinar para o que estava acontecendo. É esquisito afirmar, mas nesse insólito episódio o único que escapou de perecer afogado foi justamente o defunto.

Fonte:
Texto enviado pelo autor, integrante de seu livro “UM POUCO DE MUITAS HISTÓRIAS” (Editora TrêsC, 1.ª edição, 2016, pg. 65/68).

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