Desde que, naquela tarde na praia, em plenas férias do último verão, Elvira morrera abatida por um mal súbito fulminante e inesperado, amigos e mesmo a gente nem muito próxima ao casal começaram a reparar nos modos do marido, de ordinário introvertido e taciturno, uma esquisita transformação, ainda que discreta e gradual.
Pois nem se passara tanto tempo depois do trágico acontecimento, e o homem agia agora de maneira solta e desempenada, sorria-se em volta com frequência e parecia estar de bem com a vida. Segundo murmuravam línguas mais ferinas, como se tivesse acertado na sorte grande.
– Ó Gouveia, acaso viste passarinho verde, criatura? – brincou algo intrigado o Adelino, naquela tardinha tépida de fim de outono, enquanto espaireciam ambos a flanar muito preguiçosos pela praça da matriz.
E a estranheza não fora provocada por acaso: haviam parado junto à carrocinha de sorvetes e, enquanto tardavam a decidir qual sabor da guloseima escolheriam, de repente, sem que se notasse qualquer causa identificável para tanto, estampou-se no carão barbado do viúvo um sorriso alvar, aparvalhado mesmo, e que se lhe estendeu de um lóbulo ao outro das orelhas, estas um tanto despegadas para a frente, à feição de abanos.
Note-se que, muito unidos desde pequenos, os dois camaradas tratavam-se mutuamente com toda a liberdade, sem qualquer cerimônia, feito irmãos. E por isso entre si certamente não deixariam existir segredos.
Demorou um pouco o interpelado até que atinasse com o apelo do outro, que para tanto sacudia-lhe com energia o cotovelo pontudo. O semblante persistia embevecido, entretanto. O homem parecia encontrar-se em puro estado de contemplação beatífica. Virou-se finalmente, inclinou a cabeça a fim de ser ouvido (pois o companheiro, sujeito gorducho e prognata, era-lhe bem mais baixo em estatura) e confidenciou:
– Ela permitiu agorinha mesmo que eu lhe contasse tudo. Mas olhe lá, apenas para você, a mais ninguém, estamos entendidos?
– Ela quem, meu caro?
– A minha Virinha, claro! Quem mais poderia ser, ora essa?
– Está falando de... da dona Elvira, sua finada esposa? – fez confuso o Adelino.
– Ela mesma. E está a dizer que sente saudades e manda muitas lembranças: a você, à dona Leocádia e à pequena Amelinha. Ah, e também ao Torquato! Veja só quanta gentileza! Afeiçoou-se de tal modo ao danadinho que nem lá no Céu o pôde esquecer! Pobrezinha, sempre quis criar lá no quintalejo um cãozito lebréu, engraçado igual ao seu. Mas, que fazer? Deus não quis... Eu e mais as minhas alergias, como você bem sabe...
Diabos! Com certeza o infeliz andava mal da moleira. Culpa talvez da solidão, à qual ainda não se afizera! Foi imediatamente aconselhado a consultar-se com o doutor Coutinho; roupas mais leves e comida fresca, muitas saladas, nada de embutidos e pão de véspera. Ora essa! que deixasse de lado a sovinice e que se contratasse uma criada habilidosa com o cozinhado mais a limpeza da casa. A Leó conhecia uma, e das boas, ótimas referências, inda que feiosa e gorda como ela só; e assim, sim, que era melhor, pois que o povo não havia de maldar. Mulher moça e bonita com homem sozinho na casa, nunca se sabe, é prato cheio para mexericos...
– Mas pra que tudo isso? – rebateu contrafeito o enlutado. – Arranjo-me muito bem do jeito que as coisas estão. Não preciso de nenhum estafermo a abalroar-me os móveis com as ancas, derrubando ao chão louças e cristais. Para sua informação, ontem mesmo, hora do almoço, apareceu-me a Elvira a repreender: “Homem”, disse ela, “esta cozinha está imunda. É uma vergonha! Isto jamais aconteceu, enquanto eu vivia”. Larguei imediatamente o que estava fazendo, e lá fui eu, balde na mão e esfregão embaixo do braço. E, seguindo à risca as instruções que ela me dava a cada passo, num instantinho, pus tudo limpo a brilhar igual um brinco! E nem é tão difícil quando se tem esse tipo de ajuda, pode acreditar em mim.
– Está de brincadeira comigo, não é mesmo? Quer que eu acredite que sua mulher, a dona Elvira, alma santa que sempre foi, em vez do merecido descanso junto a Deus e aos anjos do Céu, por dá-cá-aquela-palha, corre de volta ao mundo, a fim de ocupar-se com os desleixos domésticos do marido? Tenha dó, ó Gouveia! Não me faça piadas com assunto tão sério, rapaz, que não tem graça!
– Se está duvidando do que lhe digo, olhe lá – apontou o parceiro. – Está vendo ali adiante o carrossel do parquinho girando cheio de crianças?
– Estou, e daí?
– Pois lá está ela, neste exato momento, e acena em nossa direção! Seja educado e acene de volta também! – ordenou a erguer a manzorra cabeluda.
– Compadre – ponderou o parceiro –, sei que sua esposa, a vida toda, foi uma pessoa de gênio alegre e jovial. Ao contrário de você, que é um ranzinza antiquado, gostava de festas, de receber e fazer visitas e tudo mais. Contudo, enfiar-se junto a pirralhos numa minúscula carreta em forma de joaninha a rodopiar tolamente em torno de um eixo, aí já é demais para uma pessoa adulta.
– Lino, você é um pedaço d’asno, mesmo! – sobreveio áspera a resposta. – O que você diz é ridículo! Ela está pairando um pouco acima, não enxerga, não, criatura? De modo que, dali, cuida dos pequenos a que não se machuquem e, ao mesmo tempo, também de nós. Para tanto, nem é necessário que desça ao solo; adeja feito um beija-flor, com a vantagem de nem precisar de asas!
Pobre amigo! Sem dúvida, os miolos se-lhe haviam derretido, não se encontrava outra explicação. Saudades, com certeza. O jeito, por enquanto, era entregar os pontos e entrar no jogo, pois se conhecem casos em que, contrariado, o sujeito pode torna-se enfurecido e perigoso. Mais tarde relataria o episódio ao doutor Coutinho, tintim por tintim. Este deveria conhecer algum colega, bom alienista, que pudesse recomendar.
– Ah, é verdade! Agora sim, estou vendo! – resolveu fingir o Adelino. E, não lhe ocorrendo ideia melhor, tateou: – Já que é assim, pergunte a ela o que trago na algibeira de trás da minha calça.
O outro encarou-o enfezado: – Olhe o respeito, homem! Não se trata aqui de truque de mágica barata. Se um espírito abençoado se apresenta a nós, deve ser por razões muito sérias, que não podemos compreender direito.
– Sem ofensa, por favor, desculpe, meu camarada. É que sempre me contaram que as almas têm o dom de adivinhar qualquer coisa e, além disso, sabem de tudo o que pode acontecer, quer no presente, no passado ou no futuro.
– Quem lhe disse isso?
– Sei lá, não lembro direito – desconversou. – Muita gente, acho. A primeira vez que ouvi essa história, eu era ainda um garoto. Foi a amiga de mamã que disse, ela era espírita ou algo assim. Por sinal, um tremendo mulherão! – devaneou o baixinho, rolando os olhos com luxúria. – Chamava-se Betânia, como aquela da bíblia. Ah, e fazia defumação, andando pela casa toda. Um cheiro horroroso, aliás!
E decidiu insistir: – Vamos lá, pergunte a ela, não vai desrespeito nenhum nisto. Fazemos o teste, e tenho certeza de que tudo vai dar certo.
O maluco pareceu convencer-se. Cerrou os olhos com força, levando os indicadores às têmporas.
– Você não vai gritar? – quis saber o amigo. – Ela está um pouco longe, pode não ouvir.
– Ora, não seja tão estúpido, ó Adelino! No plano espiritual, tudo é silencioso. Não precisamos de orelhas, as conversas e tudo mais ressoam direto dentro da cabeça.
– Nossa, que chato! Nem uma musiquinha ambiente pra aninar? E aquela conversa de coro dos serafins e coisa e tal, de que a gente escuta falar sempre?
– Calado, por favor! Não me atrapalhe a concentração – foi a ordem impaciente. – E pouco depois: – Já transmiti a ela sua pergunta boba. Achou esquisito, é claro, mas garante que poderá responder, desde que você se vire de costas. Sabe-se lá – considerou, medindo de esguelha o interlocutor –, imagino que o poder da vidência também tenha lá suas limitações, vai saber. Talvez sejam necessários alguns procedimentos, como aqueles que são feitos nas radiografias, por exemplo. Reconheça que as suas nádegas são... ããã, digamos assim: um tanto fornidas demais. Tentar enxergar através delas deve exigir esforço excepcional, não concorda?
Ambos nessa toada, e bastaram apenas alguns minutos mais para que a esperta “aparição” se pronunciasse mediunicamente através do consorte, de forma a descobrir-se não só o que havia no bolso em questão, como também os respectivos números e séries!
Seguiu-se o assombro total. Os cavalheiros ficaram boquiabertos.
– E mais – informou o viúvo –, Virinha prevê que as frações não serão premiadas, quando correr o sorteio da loteria, sábado próximo.
– Diabos! – imprecou o apostador, muito frustrado, já saindo do estado de pasmaceira em que havia pouco se encontrava. – Eu que punha tanta fé, caramba! Cheguei a sonhar com esses malditos palpites, acreditas? Foi tão real: minha saudosa mãezinha sacudia os bilhetes na minha cara e dizia: “Vai, meu filho, ser milionário nesta vida!” A velhinha era lida, sabias?, gostava de Drummond, veja só.
E, sem mais delongas, com um gesto de desdém, deitou os cupons azarados na lixeira pública mais próxima. – ...e ainda me custaram uns bons trocados, os miseráveis – comentou despeitado.
Passadas algumas semanas, outra vez na fila da agência de apostas com uma nova fezinha na cabeça, lembrou-se do amigo e estranhou: já não se encontravam fazia um bom tempo. Teria o coitado enlouquecido de vez? Preocupado, resolveu então visitá-lo.
– O senhor tá procurando o doutor Gouveia? – fez admirado o jardineiro sem largar a tesoura, pois que aparava as sebes junto ao muro. – O senhor não ficou sabendo, não? Parece que se mudou de mala e cuia lá pras Europas... Até deixou a casa à venda.
E como o visitante pareceu não compreender direito, confidenciou:
– Homem sortudo, o patrão! Corre à boca pequena que, passeando ali na praça, encontrou uns bilhetes de loteria que estavam premiados, e jogados na lixeira! Dá pra acreditar? Quem teria sido o imbecil que botou fora a própria sorte desse jeito? Só pode ser algum retardado, mesmo! Desse nem mesmo Deus deve ter pena...
Pois nem se passara tanto tempo depois do trágico acontecimento, e o homem agia agora de maneira solta e desempenada, sorria-se em volta com frequência e parecia estar de bem com a vida. Segundo murmuravam línguas mais ferinas, como se tivesse acertado na sorte grande.
– Ó Gouveia, acaso viste passarinho verde, criatura? – brincou algo intrigado o Adelino, naquela tardinha tépida de fim de outono, enquanto espaireciam ambos a flanar muito preguiçosos pela praça da matriz.
E a estranheza não fora provocada por acaso: haviam parado junto à carrocinha de sorvetes e, enquanto tardavam a decidir qual sabor da guloseima escolheriam, de repente, sem que se notasse qualquer causa identificável para tanto, estampou-se no carão barbado do viúvo um sorriso alvar, aparvalhado mesmo, e que se lhe estendeu de um lóbulo ao outro das orelhas, estas um tanto despegadas para a frente, à feição de abanos.
Note-se que, muito unidos desde pequenos, os dois camaradas tratavam-se mutuamente com toda a liberdade, sem qualquer cerimônia, feito irmãos. E por isso entre si certamente não deixariam existir segredos.
Demorou um pouco o interpelado até que atinasse com o apelo do outro, que para tanto sacudia-lhe com energia o cotovelo pontudo. O semblante persistia embevecido, entretanto. O homem parecia encontrar-se em puro estado de contemplação beatífica. Virou-se finalmente, inclinou a cabeça a fim de ser ouvido (pois o companheiro, sujeito gorducho e prognata, era-lhe bem mais baixo em estatura) e confidenciou:
– Ela permitiu agorinha mesmo que eu lhe contasse tudo. Mas olhe lá, apenas para você, a mais ninguém, estamos entendidos?
– Ela quem, meu caro?
– A minha Virinha, claro! Quem mais poderia ser, ora essa?
– Está falando de... da dona Elvira, sua finada esposa? – fez confuso o Adelino.
– Ela mesma. E está a dizer que sente saudades e manda muitas lembranças: a você, à dona Leocádia e à pequena Amelinha. Ah, e também ao Torquato! Veja só quanta gentileza! Afeiçoou-se de tal modo ao danadinho que nem lá no Céu o pôde esquecer! Pobrezinha, sempre quis criar lá no quintalejo um cãozito lebréu, engraçado igual ao seu. Mas, que fazer? Deus não quis... Eu e mais as minhas alergias, como você bem sabe...
Diabos! Com certeza o infeliz andava mal da moleira. Culpa talvez da solidão, à qual ainda não se afizera! Foi imediatamente aconselhado a consultar-se com o doutor Coutinho; roupas mais leves e comida fresca, muitas saladas, nada de embutidos e pão de véspera. Ora essa! que deixasse de lado a sovinice e que se contratasse uma criada habilidosa com o cozinhado mais a limpeza da casa. A Leó conhecia uma, e das boas, ótimas referências, inda que feiosa e gorda como ela só; e assim, sim, que era melhor, pois que o povo não havia de maldar. Mulher moça e bonita com homem sozinho na casa, nunca se sabe, é prato cheio para mexericos...
– Mas pra que tudo isso? – rebateu contrafeito o enlutado. – Arranjo-me muito bem do jeito que as coisas estão. Não preciso de nenhum estafermo a abalroar-me os móveis com as ancas, derrubando ao chão louças e cristais. Para sua informação, ontem mesmo, hora do almoço, apareceu-me a Elvira a repreender: “Homem”, disse ela, “esta cozinha está imunda. É uma vergonha! Isto jamais aconteceu, enquanto eu vivia”. Larguei imediatamente o que estava fazendo, e lá fui eu, balde na mão e esfregão embaixo do braço. E, seguindo à risca as instruções que ela me dava a cada passo, num instantinho, pus tudo limpo a brilhar igual um brinco! E nem é tão difícil quando se tem esse tipo de ajuda, pode acreditar em mim.
– Está de brincadeira comigo, não é mesmo? Quer que eu acredite que sua mulher, a dona Elvira, alma santa que sempre foi, em vez do merecido descanso junto a Deus e aos anjos do Céu, por dá-cá-aquela-palha, corre de volta ao mundo, a fim de ocupar-se com os desleixos domésticos do marido? Tenha dó, ó Gouveia! Não me faça piadas com assunto tão sério, rapaz, que não tem graça!
– Se está duvidando do que lhe digo, olhe lá – apontou o parceiro. – Está vendo ali adiante o carrossel do parquinho girando cheio de crianças?
– Estou, e daí?
– Pois lá está ela, neste exato momento, e acena em nossa direção! Seja educado e acene de volta também! – ordenou a erguer a manzorra cabeluda.
– Compadre – ponderou o parceiro –, sei que sua esposa, a vida toda, foi uma pessoa de gênio alegre e jovial. Ao contrário de você, que é um ranzinza antiquado, gostava de festas, de receber e fazer visitas e tudo mais. Contudo, enfiar-se junto a pirralhos numa minúscula carreta em forma de joaninha a rodopiar tolamente em torno de um eixo, aí já é demais para uma pessoa adulta.
– Lino, você é um pedaço d’asno, mesmo! – sobreveio áspera a resposta. – O que você diz é ridículo! Ela está pairando um pouco acima, não enxerga, não, criatura? De modo que, dali, cuida dos pequenos a que não se machuquem e, ao mesmo tempo, também de nós. Para tanto, nem é necessário que desça ao solo; adeja feito um beija-flor, com a vantagem de nem precisar de asas!
Pobre amigo! Sem dúvida, os miolos se-lhe haviam derretido, não se encontrava outra explicação. Saudades, com certeza. O jeito, por enquanto, era entregar os pontos e entrar no jogo, pois se conhecem casos em que, contrariado, o sujeito pode torna-se enfurecido e perigoso. Mais tarde relataria o episódio ao doutor Coutinho, tintim por tintim. Este deveria conhecer algum colega, bom alienista, que pudesse recomendar.
– Ah, é verdade! Agora sim, estou vendo! – resolveu fingir o Adelino. E, não lhe ocorrendo ideia melhor, tateou: – Já que é assim, pergunte a ela o que trago na algibeira de trás da minha calça.
O outro encarou-o enfezado: – Olhe o respeito, homem! Não se trata aqui de truque de mágica barata. Se um espírito abençoado se apresenta a nós, deve ser por razões muito sérias, que não podemos compreender direito.
– Sem ofensa, por favor, desculpe, meu camarada. É que sempre me contaram que as almas têm o dom de adivinhar qualquer coisa e, além disso, sabem de tudo o que pode acontecer, quer no presente, no passado ou no futuro.
– Quem lhe disse isso?
– Sei lá, não lembro direito – desconversou. – Muita gente, acho. A primeira vez que ouvi essa história, eu era ainda um garoto. Foi a amiga de mamã que disse, ela era espírita ou algo assim. Por sinal, um tremendo mulherão! – devaneou o baixinho, rolando os olhos com luxúria. – Chamava-se Betânia, como aquela da bíblia. Ah, e fazia defumação, andando pela casa toda. Um cheiro horroroso, aliás!
E decidiu insistir: – Vamos lá, pergunte a ela, não vai desrespeito nenhum nisto. Fazemos o teste, e tenho certeza de que tudo vai dar certo.
O maluco pareceu convencer-se. Cerrou os olhos com força, levando os indicadores às têmporas.
– Você não vai gritar? – quis saber o amigo. – Ela está um pouco longe, pode não ouvir.
– Ora, não seja tão estúpido, ó Adelino! No plano espiritual, tudo é silencioso. Não precisamos de orelhas, as conversas e tudo mais ressoam direto dentro da cabeça.
– Nossa, que chato! Nem uma musiquinha ambiente pra aninar? E aquela conversa de coro dos serafins e coisa e tal, de que a gente escuta falar sempre?
– Calado, por favor! Não me atrapalhe a concentração – foi a ordem impaciente. – E pouco depois: – Já transmiti a ela sua pergunta boba. Achou esquisito, é claro, mas garante que poderá responder, desde que você se vire de costas. Sabe-se lá – considerou, medindo de esguelha o interlocutor –, imagino que o poder da vidência também tenha lá suas limitações, vai saber. Talvez sejam necessários alguns procedimentos, como aqueles que são feitos nas radiografias, por exemplo. Reconheça que as suas nádegas são... ããã, digamos assim: um tanto fornidas demais. Tentar enxergar através delas deve exigir esforço excepcional, não concorda?
Ambos nessa toada, e bastaram apenas alguns minutos mais para que a esperta “aparição” se pronunciasse mediunicamente através do consorte, de forma a descobrir-se não só o que havia no bolso em questão, como também os respectivos números e séries!
Seguiu-se o assombro total. Os cavalheiros ficaram boquiabertos.
– E mais – informou o viúvo –, Virinha prevê que as frações não serão premiadas, quando correr o sorteio da loteria, sábado próximo.
– Diabos! – imprecou o apostador, muito frustrado, já saindo do estado de pasmaceira em que havia pouco se encontrava. – Eu que punha tanta fé, caramba! Cheguei a sonhar com esses malditos palpites, acreditas? Foi tão real: minha saudosa mãezinha sacudia os bilhetes na minha cara e dizia: “Vai, meu filho, ser milionário nesta vida!” A velhinha era lida, sabias?, gostava de Drummond, veja só.
E, sem mais delongas, com um gesto de desdém, deitou os cupons azarados na lixeira pública mais próxima. – ...e ainda me custaram uns bons trocados, os miseráveis – comentou despeitado.
Passadas algumas semanas, outra vez na fila da agência de apostas com uma nova fezinha na cabeça, lembrou-se do amigo e estranhou: já não se encontravam fazia um bom tempo. Teria o coitado enlouquecido de vez? Preocupado, resolveu então visitá-lo.
– O senhor tá procurando o doutor Gouveia? – fez admirado o jardineiro sem largar a tesoura, pois que aparava as sebes junto ao muro. – O senhor não ficou sabendo, não? Parece que se mudou de mala e cuia lá pras Europas... Até deixou a casa à venda.
E como o visitante pareceu não compreender direito, confidenciou:
– Homem sortudo, o patrão! Corre à boca pequena que, passeando ali na praça, encontrou uns bilhetes de loteria que estavam premiados, e jogados na lixeira! Dá pra acreditar? Quem teria sido o imbecil que botou fora a própria sorte desse jeito? Só pode ser algum retardado, mesmo! Desse nem mesmo Deus deve ter pena...
Fonte:
Texto enviado por João Líbero.
Texto enviado por João Líbero.
Nenhum comentário:
Postar um comentário