quarta-feira, 31 de julho de 2013

A. A. de Assis (Revista Virtual de Trovas "Trovia" - n.164 - agosto de 2013)




Para mantê-los me empenho,
porque penso sempre assim:
tendo os amigos que tenho,
eu nem preciso de mim!
Izo Goldman
 

Nascemos irmãos comuns,
mas a ambição e os engodos
puseram nas mãos de alguns
o mundo que era de todos!
José Maria M. de Araújo

Digo tudo sem receio…
Sei, amor, que não aprovas.
Meu coração retalhei-o
e, dos pedaços, fiz trovas…
Luiz Otávio

É tanto o amor que me invade
quando em teus braços estou,
que cada instante é saudade
do instante que já passou!
Newton Meyer
 

Dona Saudade, velhinha,
bordadeira paciente,
não tem agulha nem linha,
mas borda os sonhos da gente!
Onildo de Campos

Meu coração, hoje em dia,
desfeito, cansado e mudo,
lembra uma feira vazia,
depois que venderam tudo!
Pe. Celso de Carvalho

 

Tem muita trova que choca,
e é natural que aborreça...
Exemplo: a trova-minhoca,
que não tem pé nem cabeça!
Antônio da Serra – PR

No verão ela anuncia
que o nudismo é a sensação
e o que só o marido via,
agora todos verão!
Arlindo Tadeu Hagen – MG

“Há fantasma”, alguém dizia,
“neste beco”, e com razão.
– Era contramão de dia,
mas à noite... quanta mão!
Clenir Neves Ribeiro – Austrália

Chaminelar... chaminilo!
Você lembra o que é que é?
É poder fazer aquilo
em cima da chaminé!
Gislaine Canales – RS

Chega da farra na boa,
como quem acha que pode.
No escuro, beija a “patroa”...
sente na boca um bigode...
Jaime Pina da Silveira – SP

Ao homem muito ciumento
há um dilema que aperreia:
ou esquece o casamento,
ou casa com mulher feia!
Josa Jásper – RJ

Certa mocinha atrevida,
com seus namoros no mato,
sempre aparece mordida
por “dentes” de carrapato...
Thereza Costa Val

 
Dentre os bens que o filho espera
receber por transmissão,
tesouro nenhum supera
o exemplo que os pais lhe dão.
A. A. de Assis – PR

Esta lágrima que escorre,
deixando marcas no rosto,
é água que me socorre,
purificando o desgosto.
Adélia Woelllner – PR
 

Num jogo de sombra e luz
fui tomado de emoção,
ante a porta que conduz
o meu ao teu coração.
Agostinho Rodrigues – RJ

Tuas recusas sem jeito
mostram, de modo evidente,
que tens meu corpo em teu leito,
com outra imagem na mente.
Almerinda Liporage – RJ

Entre as escolhas que fiz,
eu sofri e sei por quê:
uma só me fez feliz,
foi essa de amar você!
Almir Pinto de Azevedo – RJ

Há um farol em teu olhar
que ilumina a minha vida;
sem ele (estou a cismar),
ficarei cego, querida!
Amilton Maciel – SP

Uma vida de alegria
eu precisava buscar;
e encontrei na poesia
meu eterno e doce lar.
Angela Stefanelli – RJ
 

Quero, por tudo e por nada,
esquecer-te a qualquer preço
mas a distância danada
já sabe o meu endereço!
Antonio Colavite Filho – SP
 

Se receber uma ofensa
só tente ficar calado...
Terá como recompensa
nosso respeito dobrado!
Arlene Lima – PR

Não se faz mais amizade
como dantes se fazia...
– Hoje até felicidade
anda assim: meio vazia.
Ari Santos de Campos – SC

Não há guarda no portão
nenhum trinco ou cadeado;
mas não me faça invasão,
só entre se for chamado.
Cida Vilhena – PB

Por te amar, tenho sofrido,
mas não me arrependo: Vem!
– Quem ama as rosas, querido,
ama os espinhos também!
Carolina Ramos – SP
 

A vida é dura, renhida,
porém tem muita poesia.
Faço parte da torcida
da esperança a cada dia.
Cônego Telles – PR

No silêncio do meu grito
ouço a voz da solidão...
Nos meus versos deixo escrito
como está meu coração.
Dáguima Verônica – MG

Sem vitupérios e afrontas,
cerra às ofensas teus lábios,
que, em muito acerto de contas,
vence o silêncio dos sábios!
Darly O. Barros – SP
 

Cem vezes tu repetiste
que me amavas loucamente...
Cem vezes tu me mentiste
e cem vezes eu fui crente!
Delcy Canalles – RS
 

Na mesma rede embalados...
Porém a vida é tão dura!
– No que pensam namorados
se não na vida futura?!
Diamantino Ferreira – RJ

Desamarrando a fitinha
das lembranças, tenho medo
de que dentro da caixinha
não seja eu... teu segredo!
Dilva Moraes – RJ

Foste embora e, na saudade,
a ofensa se fez lição:
descobri que o amor-verdade
se alicerça no perdão!
Domitilla B. Beltrame – SP

Trem-de-ferro, o teu apito
lembra-me um sino plangente:
tanta mágoa no teu grito,
tanta saudade na gente!
Dorothy Jansson Moretti – SP

Corre o rio em harmonia,
sem saber que mais à frente
a ganância humana, fria,
devasta o meio ambiente.
Eliana Jimenez – SC

Tataravó dos poemas,
a toda hora se inova.
– Não importa quais os temas,
todos cabem numa trova.
Eliana Palma – PR

Minhas mãos... venho trazê-las,
até parecem vazias,
mas são repletas de estrelas
que eu colho todos os dias...
Elisabeth Souza Cruz – RJ
 

Memória é um caderno aberto
aos olhos do coração,
com registros que, por certo,
nunca mais se apagarão…
Ercy Marques de Faria – SP

Toda tarde o passarinho
bate as asas, quando canta.
Quanto mais longe do ninho,
mais afinada a garganta!
Francisco Garcia – RN

Em nossas carícias quentes,
não pesa a idade, nem nada,
porque somos dois poentes
que explodem numa alvorada!
Héron Patrício – SP
 

As flores que o ipê espalha
refletem a luz da lua.
Beleza não atrapalha;
ao contrário: enfeita a rua.
Hulda Ramos – PR
 

A beleza da poesia
– eu vou contar pra você –
não vem da mente que cria
e,sim, d’alma de quem lê!
JB Xavier – SP
 

Por mais poder e dinheiro,
muitos homens, desalmados,
expõem Jesus no madeiro...
e escondem bolsos recheados...
Jeanette De Cnop – PR

Terra de tanta riqueza,
fertilidade, alimento;
eu canto tua beleza,
choro teu desmatamento.
Jessé Nascimento – RJ
 

Pensamento ao mar, areia,
tarde sonora, quimera...
em leves ondas vagueia
na solidão de uma espera!
João Batista X. Oliveira – SP
 

Depois de arrastar a cruz,
que pesa mais na subida,
feliz de quem vê a luz
no fim do túnel da vida!
José Lucas de Barros – RN

Pôr do sol... em frente ao mar,
na rede os jovens, sentados,
num cenário singular,
trocam segredos e agrados.
Jessé Nascimento – RJ
 

Cultivemos o jardim
do amor, com perseverança,
para que seja o estopim
de um futuro de esperança.
José Feldman – PR
 

Ante a dor que me espezinha,
a esperança se evapora...
Até a saudade que eu tinha
não quis ficar... foi embora!
José Messias Braz – MG
Que saudade, Mestre Izo Goldman. Você será sempre reverenciado pelas suas belas trovas e por tudo de bom que pela trova fez.

No sótão da alma vazia,
com tanta saudade em jogo,
se a ausência atira água fria,
a lembrança aviva o fogo!
José Ouverney – SP

Nada consigo de graça,
mas batalho pra valer,
pois somente a vida abraça
quem gostar de seu viver.
José Roberto P. de Souza – SP

Jamais busco o falso atalho
da glória não merecida…
É no suor do trabalho
que se constrói uma vida!
José Valdez – SP

Sou guerreira, sou versada,
venha a luta que vier;
minha paz é conquistada
na força de ser mulher.
Karla Bitencourt – PR

Nesse exílio que me imponho,
não senti que era miragem
e dos pedaços de sonho
eu recompus tua imagem.
Luiz Carlos Abritta – MG
 

Quisera que o mundo visse
meu ar de felicidade
assim que você me disse:
“Namoro” – e não: “Amizade”.
Luiz Hélio Friedrich – PR
 

Árvore... da terra abrigo,
que insensato o homem destrói,
pondo a vida ao desabrigo...
desatino, que corrói.
Mª Conceição Fagundes – PR

Meu bem, chegue aqui pertinho,
tenho um segredo a contar:
o teu amor e carinho,
lamento, não vou guardar!
Mª Luiza Walendowsky – SC

Num lugar do coração
habita sempre o menino
que faz bolhas de sabão
para iludir seu destino...
Mª Thereza Cavalheiro – SP
A trova é muito mais que um poema de quatro versos; principalmente quando traz mensagem útil no seu bojo.

Sonho um mundo colorido,
flores perfumando a estrada,
sem um ai, sem um gemido
de criança abandonada.
Marina Valente – SP
 

A grande, a maior virtude
é de quem pode mostrar
que sendo apenas açude
tem a grandeza do mar!
Marta Paes de Barros – SP

As medalhas com que cobre
o seu peito de vaidade
mostram que falta a mais nobre:
– a medalha da humildade.
Maurício Cavalheiro – SP

Plácido, corres no leito,
às margens, onde nasci;
ó Iguaçu, trago em meu peito
a água que é parte de ti.
Maurício Friedrich – PR
 

Numa insônia persistente
sinto a alma espedaçada,
a imprimir na noite em frente
fria e longa madrugada.
Mifori – SP
 

Ao buscar o que ela quer,
na luta por seu direito,
é no labor que a mulher
vence qualquer preconceito.
Nei Garcez – PR

O maior dos desamparos
que se impõe a um trovador
é ver seus versos tão caros
julgados por amador.
Nilsa Melo – PR

Viajei pelo mundo inteiro
e nunca mais pude achar
o que no instante primeiro
encontrei em seu olhar.
Olga Agulhon – PR
 

Planto o grão com uma meta:
 – gerar vida em profusão...
E este ciclo se completa
quando o trigo vira pão.
Renato Alves – RJ

Mais fraternidade. Mais criatividade. Menos competição.

Cada vez em que é agredida
na sua obra e beleza,
cai uma gota, sofrida,
dos olhos da natureza.
Roberto Acruche – RJ
 

A natureza hoje chora
a cruel devastação
que faz o verde ir embora
e veste de cinza o chão !...
Sônia Ditzel Martelo – PR
 

Bravura é viver sorrindo
embora seja evidente
que a vida é dor insistindo
em ser mais forte que a gente.
Thalma Tavares – SP
 

Por mágoas que me consomem,
hoje eu culpo os erros meus.
Ele era apenas um homem...
fui eu que fiz dele um deus!
Therezinha Dieguez Brisolla – SP.

O mendigo solitário,
perambula pela rua.
Ao redor só o cenário
de uma imensa e fria lua.
Vanda Alves da Silva – PR
 

A minha alma adolescente,
de braços dados com a vida,
parece nem ser parente
desta face envelhecida.
Vanda Fagundes Queiroz – PR

Água límpida é preciosa
para o planeta, vital;
pura, líquida ou gasosa,
tesouro fundamental.
Vânia Ennes – PR
 

Lago azul – trecho do céu,
encravado na vertente:
os cisnes – nuvens ao léu;
a barca – lua crescente.
Wagner Marques Lopes – MG
 

A realidade transponho
e vivo em mundo ideal...
Quero as mentiras do sonho,
não as da vida real!
Wanda Mourthé – MG
 

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terça-feira, 30 de julho de 2013

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 18

CAPÍTULO X

Só no dia seguinte, as 2 horas da tarde, foi que ele saiu da casa de Leonília. Sentia-se aborrecido e como que importunado por uma espécie de remorso: afigurava-se-lhe que em torno daquele seu desleixo pela vida girava um mundo de atividade dos que trabalham para comer, dos que labutam desde pela manhã.

Pungia-lhe a idéia de haver-se deixado arrastar por uma mulher, cujo amor seria para ela uma virtude, mas para ele nada menos do que uma depravação moral. Ao chegar ao centro da cidade, o movimento comercial das ruas, o vaivém das classes laboriosas, ainda mais lhe agravaram a consciência da sua inutilidade e da sua inércia.

— Por que, perguntava consigo, não pertenço ao número desses que trabalham, desses que sabem ganhar a vida?

E arrependia-se de ter ido ao Lírico, de haver oferecido de beber a Leonília, em vez de a tratar com frieza, o que afinal seria digno de sua parte. E vinham-lhe de novo os ímpetos de reação e um grande desejo de atirar-se a qualquer trabalho produtivo e honesto.

— Mas, por onde principiar? Onde e em que descobrir ocupação? Fazer-se professor? Isso, porém, era tão precário, tão maçante e tão subalterno... Empregar-se na redação de um jornal? Mas em qual? E como? A quem devia dirigir-se?

E daí não passavam as íntimas reclamações do seu caráter.

Às vezes, à mesa dos cafés, dizia ele aos companheiros:

— Homem! Vejam se me arranjam um emprego!... Eu preciso trabalhar! É preciso viver, que diabo!

Mas estas palavras caiam por terra, sem aparecer quem as erguesse. O que aparecia eram novos e novos convites para tomar alguma coisa — para jantar em companhia de mulheres suspeitas e para assistir a espetáculos bufos. O Aguiar, principalmente nunca o a abandonara com as suas franquezas de moço rico e com os seus eternos protestos de estima e admiração.

E Teobaldo topava a tudo, considerando interior mente, para se desculpar, "que não seria metido em casa que ele havia de descobrir arranjo; precisava furar, ir de um lado para outro, até achar o que desejava".

E, visto que aceitava esses obséquios, apressava-se a retribui-los, quando porventura lhe caía de Minas algum dinheiro, sem reservar nenhum para os seus credores.

Por várias vezes, em ceias fora de horas, depois de enxutas algumas garrafinhas de Chiante e Malvasia, que eram os seus vinhos prediletos, os amigos de Teobaldo, na febre dos brindes, faziam-lhe grandes elogios ao talento e à educação; e ele, coitado ouvia tudo isso já com uma certa amargura, porque ia cada vez mais se convencendo de que lhe faltava a competência para ganhar a vida. E, quando, pelas três ou quatro da manhã conseguia chegar à casa tinha a cabeça em vertigem e o coração estrangulado por um desgosto profundo.

A casa! Que suplício para ele... Como tudo aquilo que respirava a presença do Coruja lhe exprobrava silenciosamente as suas culpas. Era aí que Teobaldo mais sentia o  peso brutal de própria nulidade; era aí, já recolhido aos lençóis, que ele considerava, um por um, todos os seus passos na vida. E excitado, cheio de revolta contra si mesmo, levava longo tempo a virar-se de um para outro lado da cama, antes de conseguir pegar no sono.

Na manhã seguinte acordava muito prostrado, sem ânimo de deixar o colchão e, ainda de olhos fechados, chamava pelo moleque. Quase sempre, em vez do Sabino, era o fiel Caetano quem acudia ao seu primeiro chamado, e, enquanto Teobaldo se preparava defronte do toucador, o pobre velho o observava com um profundo olhar de comiseração. Depois, meneava a cabeça, suspirando, e punha-se a escovar a roupa que o rapaz tinha de vestir.

Teobaldo às vezes batia-lhe carinhosamente ao ombro, dizendo:

— Como tudo isto mudou, hein, meu velho amigo?... Como tudo isto é tão diverso dos nossos bons tempos!...

O criado então levava os olhos à manga de sua velha libré, que nunca mais fora reformada depois da morte do barão e entre lágrimas falava neste para desabafar.

Teobaldo perguntava sempre a que horas saíra o Coruja.

— Às seis da manhã, respondia invariavelmente o criado.

E os dois conversavam um pouco; depois Teobaldo descia ao banheiro, que era no primeiro andar. Banho, café, vestir e leitura dos jornais nunca se liquidava antes do meio-dia. Por almoço tomava em geral dois ovos quentes, um cálice de vinho; feito o que, saia logo, sem destino, à procura de tal colocação.

No dia imediato ao em que ele esteve com Leonília, acordou mais cedo do que de costume, vestiu-se com certa presteza, foi à secretária e escreveu a seguinte carta:

"Querida — Não voltarei a ter contigo e peço-te que não dês o menor passo com o fim de fazer-me mudar de resolução, porque perderias o tempo. Aceita a insignificante lembrança que com esta te envio, e esquece-te, para sempre, do mais infeliz Teobaldo que há no mundo."

Fechada a carta, meteu-a no bolso e saiu.

Na véspera, antes de dormir, havia deliberado o que agora punha em prática. Era preciso, era indispensável, não tornar à casa de Leonília, ainda que para isso fosse necessário que ele se fizesse mal e grosseiro. E, neste propósito, chegou à rua dos Ourives, à loja de um joalheiro, a quem vendera as jóias de Santa, escolheu uma medalha de ouro, com um pequeno brilhante no centro e perguntou quanto custava.

— Cem mil réis, respondeu o joalheiro.

— Do que tenho comigo posso apenas dispor de cinqüenta. Consente que lhe fique devendo o resto?

O dono da casa fez um ligeiro ar de hesitação, mas disse em seguida:

— Pois leve.

— Já não quero! Exclamou Teobaldo, empurrando de defronte de si o escrínio onde estava a jóia. Pode guardá-la!

— Não, doutor, leve-a! Peço-lhe que a leve!

E, por suas próprias mãos, introduziu o estojo no bolso do rapaz.

Este passou-lhe os cinqüenta mil réis e correu logo para a casa de Leonília. Entrou, bateu, entregou ao criado a carta e mais o estojo e, sem esperar pela resposta, saiu apressado.

À noite desse mesmo dia, atravessava a rua do Ouvidor, quando o Aguiar foi ao encontro dele e disse-lhe, estendendo-lhe o braço pelas costas:

— Amanhã faço anos e quero que jantes comigo. Serás o único rapaz que terei ao meu lado! Prometes ir?

— Pois bem, respondeu Teobaldo. Mas onde é o jantar?

— No Pharaoux.

— A que horas?

— Às cinco...

— Lá estarei.

No outro dia, quando Teobaldo chegou ao hotel, não lhe passou despercebido certo cupê, que estacionava à porta; mas não fez caso e subiu a escada.

— É aqui, disse-lhe um criado discretamente, mal o viu, e fê-lo entrar para um gabinete particular.

Teobaldo ficou surpreso ao dar com Leonília, que estava à cabeceira da mesa.

— Ah! Fez o Aguiar, como em resposta ao gesto do amigo, convidei esta dama para te ser agradável, sabendo que a companhia dela só poderia dar-te gosto...

— Oh! Certamente, certamente! Exclamou o filho do barão, puxando uma cadeira e assentando-se ao lado de Leonília, a quem cercou de galanteios.

— E esta outra senhora?... Perguntou ele depois, apertando a mão a uma rapariga de pouca idade, que se quedava assentada à esquerda de Leonília.

— Ah! Essa convidei para ser agradável a mim mesmo, respondeu o Aguiar, por sua vez tomando assento junto da tal rapariga.

— É uma amiga das minhas, explicou a outra, que parecia muito empenhada no jantar.

E, voltando-se diretamente para Teobaldo:

— Só desta forma conseguiríamos pilhá-lo hoje! Com efeito! O senhor faz-se agora de manto de seda!...

— É que às vezes a gente pretende dar valor às coisas, exigindo por elas muito mais do que valem...

— Bravo! Gritou Aguiar. Eis uma teoria comercial na boca de Teobaldo! Estou encantado! Não te fazia capaz de tanto!...

— Ah! Respondeu o outro, a rir; o comércio é toda a minha vocação!...

— E não digas brincando... Quem sabe se algum dia não serás meu colega no comércio?...

— Pode ser! E que todo o meu mal fosse esse!...

— Eu... Queres que te diga?... Eu, pelo menos, continuou o Aguiar, derramando Madeira nos cálices, nunca me arrependi de haver entrado para o comércio. Verdade é que nada fiz por mim e que não estaria na posição em que me acho, se não fosse meu pai, mas nem por isso sou menos feliz, verdadeiramente feliz! Que diabo! Ganhar sem sentir, às vezes sem trabalhar!... Pode haver coisa melhor? Passo semanas e semanas inteiras na pândega, gasto por vinte e, quando julgo que os negócios vão mal, diz-me o guarda-livros que ganhei mais do que nunca! Ah! Nada há como o comércio para fazer dinheiro! E hoje, deixem falar quem fala, o dinheiro é tudo! Com ele tudo se obtém: — Glórias, honras, prazeres, consideração, amor! Tudo! Tudo!

— É exato! Confirmou Teobaldo, sorrindo amargamente e no íntimo arrependido de ter aceitado o convite do Aguiar. É exato!

— Ah! Disse a rapariga, que este convidara para ser agradável a si mesmo. Quem pode negar a grande superioridade do dinheiro sobre todas as coisas?

— Eu! Acudiu Leonília, que acabava de observar os gestos de Teobaldo. Protesto contra as teorias de Aguiar e juro que o dinheiro não representa para mim a menor sedução... Gosto dele, não nego, mas nos outros, não por ele, mas pelo gostinho de o extrair gota a gota, beijo a beijo, e tanto assim que, mal o apanho, lanço-o à rua pela primeira janela que encontro aberta. Nunca depenei um ricaço por amor ao seu dinheiro, mas tão somente pelo gostinho de o deixar depenado. É uma paixão comparável à dos jogadores ricos, uma paixão de glória, uma febre de querer vencer, de querer derrotar, ainda com o sacrifício dos próprios interesses.

E erguendo o copo:

— Dinheiro! Dinheiro! Rio-me dele! O dinheiro, quanto a mim, é a mais triste recomendação que um homem pode ter! Quais seriam os milhões que valeriam, por exemplo, o amor deste demônio?

E, dizendo isto, levava as mãos ao cabelo de Teobaldo e chamava a atenção dos outros para a cabeça dele, como quem mostra um objeto de arte.

— Que dinheiro vale a doçura aveludada destes olhos mais belos que os diamantes?... Que dinheiro vale toda esta riqueza? esta boca, este sorriso desdenhoso, estes dentes, esta palidez de estátua e este ar de senhor que mata de amores as suas escravas? Sim! Que me digam as mulheres qual é o dinheiro que paga tudo isto, sem contar ainda com o que há escondido neste tesouro — O talento, o caráter, a educação e a energia!

— Olha a Leonília apaixonada! Exclamou o Aguiar rindo muito.

— E por que não? Perguntou ele a encará-lo firme. Por que não? Julgas que sou incapaz de um sentimento nobre e desinteressado?... Pois olha, filho, queres que te diga? No dia em que abandonei o meu banqueiro estava em véspera de receber das mãos dele alguma coisa que eqüivale a tanto como o que possuis, e não foi por isso que não o mandei passear, logo que entendi que o devia fazer!

— Ah! Todos sabem que tu és mulher caprichosa...

— Caprichosa, não! Sou apenas mulher! Tenho coração, tenho nervos! Quando adoro um homem, sou capaz de tudo por ele, de tudo! Compreendem? De tudo! Ainda que tivesse de quebrar todas as conveniências como quem quebra isto!

Assim dizendo, tinha arrancado do pescoço o seu colar e arremessava-o partido sobre a mesa.

Teobaldo compreendeu a intenção com que isso fora feito, e lançou sobre ela um olhar de ameaça.

— Que significa esse olhar? Perguntou a cortesã. Não o compreendo.

— Tanto melhor para mim! Disse o moço esvaziando o copo — porque não tenho a menor necessidade de ser compreendido por quem não o merece!

— Sempre o mesmo orgulho e a mesma vaidade! Replicou Leonília.

— Ah! Volveu aquele, rindo com desprezo. Estás à beira da praia e julgas-te em pleno oceano! Meu orgulho! Conhecê-lo-ás depois, se te passar pela fantasia a idéia de experimentá-lo!

— Então! Então! Reclamou o Aguiar, nós não estamos aqui para discutir questões dessa ordem. Perante a pândega somos todos iguais. Faço anos e exijo que se lembrem um pouco de mim! Ainda não me fizeram um só brinde!

Leonília soltou uma risada e disse voltando-se para o festejado:

— Desculpa, filho, mas já não me lembrava que te devo o obséquio de teres feito anos hoje.

— Não repares, acrescentou Teobaldo, batendo com o seu copo no do outro rapaz. E — Bebamos à tua saúde! — Para que nunca te arrependas de tuas teorias sobre o dinheiro!...

— Obrigado! Respondeu Aguiar, mas consente que eu te diga uma coisa com franqueza: Eu não faço anos hoje!

— Como assim?

— Perdoa-me, mais tarde o saberás!

Teobaldo olhou para o amigo, depois para Leonília e afinal sacudiu os ombros.

Já haviam comido a sobremesa e dispunham-se a tomar café, quando aquele deu por falta do Aguiar e da rapariga que este convidara para seu recreio.

— Para onde teriam ido? Perguntou ele a Leonília.

— Foram-se embora. Chega-te mais para mim e ouve o que te vou dizer.

Teobaldo obedeceu.

— Sabes? Disse da. Este jantar foi uma cilada que te armei; eu, só eu, podia fazer com que o Aguiar se achasse na intimidade em que o viste com aquela rapariga; em troca, ele empregou os meios para te arrastar até aqui.

— De sorte que eu servi de divertimento a vocês ambos?... Servi para objeto de especulação, fui negociado!

— É exato, respondeu ela, e creio que não levarás a tua birra ao ponto de me deixares aqui sozinha, em um hotel!...

— Mas por que não procederam de outro modo?

— Porque já te conheço e tenho plena certeza de que só assim havias de vir.

— E, se por gosto eu não teria vindo, para que obrigar-me então a vir à força?

— Porque antes assim do que nada. Para o amor todos os meios são bons.

— Pois saiba que errou nos seus cálculos, disse Teobaldo, indo buscar o chapéu; estou disposto a acompanhá-la até à casa, mas não subirei um só degrau de sua escada.

— Por quê?

— Porque, para fazer da senhora a minha amante — Sou pobre demais, e para ser o seu amant de coeur — Sou muito rico e muito orgulhoso.

— Eu então só posso pertencer a um homem rico?

— De certo, porque é preciso muito dinheiro para comprar o luxo com que a senhora se habituou.

— Bem, volveu ela; já não precisa vir comigo. Adeus, Só lhe peço um obséquio...

— Qual?

— Vá amanhã à minha casa depois do meio-dia

— Fazer o que?

— Buscar a resposta do que acabou de me dizer agora. Vai?

— Vou. Adeus.

Leonília saiu. meteu-se no carro e Teobaldo ainda ficou no hotel, a fumar charutos e a beber, multo enfastiado de sua vida.
–––––––-
continua…

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 17

CAPÍTULO IX

Passadas as primeiras épocas depois da morte dos pais de Teobaldo, o verdadeiro temperamento deste, aquele temperamento herdado do velho cavalheiro português paraense, aquele temperamento mestiço agravado por uma educação de mimos e liberdades sem limites, começou a ressurgir como o sol depois de uma tempestade. Reapareceu-lhe o gênio alegre e petulante e com este voltaram também as suas propensões, os seus gostos, os seus hábitos e as suas amantes; só as antigas posses é que não voltaram.

A princípio, acordando pouco a pouco do desânimo em que caíra parecia resolvido a vencer, fosse como fosse, todos os obstáculos que se lhe antolhassem no caminho; dizia-se disposto a tudo suportar com energia; disposto a passar por cima dos maus modos e da impertinência dos ricos até galgar uma posição social. E já o inconsolável Caetano ouvia-o cantarolar ao descer de manhã para o banheiro, já procurava sorrir às suas pilhérias quando ele servia o almoço e já o via aprontar-se alegremente para sair, acender o charuto e ganhar a rua, muito ativo, em busca de um emprego. Mas Teobaldo, ao dobrar a primeira esquina, encontrava logo um conhecido dos bons tempos e, sem poder evitá-lo e sem coragem para lhe expor francamente a sua posição, fingia-se feliz e falava dos seus extintos prazeres como se ainda os desfrutasse.

O amigo convidava-o a beber, depois iam jantar a um hotel, depois metiamse no teatro, e afinal Teobaldo só voltava para casa às duas horas da manhã, arrependido daquele dia e fazendo protestos de regeneração para o dia seguinte. Mas no dia seguinte, quando dava por si, estava já em qualquer confeitaria, a beber, a conversar com os amigos, sem mais pensar nos seus protestos da véspera. E assim se foi habituando a essa fictícia existência, que no Rio de Janeiro levam muitos rapazes: entrada franca nos teatros, contas abertas em toda a parte, um amigo em cada canto e um credor a cada passo. Devia ao alfaiate, devia ao chapeleiro, ao sapateiro, ao hotel, mas andava sempre com a mesma elegância e bebia dos mesmos vinhos.

— Que diabo! As coisas haviam de endireitar, e ele então pagaria tudo!

De vez em quando recebia algum dinheiro de antigos devedores de seu pai; nessas ocasiões gastava como se ainda fosse rico; não porque não compreendesse o mal que fazia, mas por uma fatalidade de seu temperamento e de sua educação. Em uma dessas vezes, acabava ele de assentar-se à mesa do botequim do teatro lírico, quando sentiu baterem-lhe de leve com um leque nas costas. Voltou-se e viu Leonília defronte dele. Ela havia chegado da Europa dois ou três dias antes; fora passear em companhia de um banqueiro rico e voltara carregada de jóias e dinheiro. E só, livre; o banqueiro, depois de insistir em querer dete-la na Itália, ameaçou-a com uma separação, mas no dia seguinte, em vez da amante, encontrou sobre a cama este bilhete: "Meu caro banqueiro, a uma mulher de minha ordem, nunca se deve ameaçar com o abandono — Abandona-se logo, para não suceder como lhe acontece agora. — Fujo! Adeus, até outra vez!”

Tudo isso ela contou a Teobaldo em menos de três minutos, assentando-se defronte dele. Estava agora mais bonita e incontestavelmente mais elegante. Vestia-se cor de cana, tinha os ombros e os braços nus, a cabeça constelada de diamantes.

— Tomas alguma coisa? Perguntou-lhe o rapaz.

— Um gole de champanha.

Teobaldo pediu uma garrafa, e os dois antigos amantes continuaram a conversar, sem que durante toda a palestra se tocasse, nem de leve, no atual estado de pobreza a que se via aquele reduzido.

— Naturalmente ela ignora tudo... pensou ele. Afinal vieram de parte a parte as recordações; lembraram-se as cenas de ciúme, as tolices que os dois fizeram por tanto tempo.

— Recordas-te ainda aquela ceia que engendramos em casa do teu cocheiro? Perguntou Leonília, rindo.

— Quando voltávamos de um passeio à Cascatinha?... Reforçou ele; não, não me lembro, nem devo lembrar-me.

— E daquele baile carnavalesco, em que me obrigaste fingir um ataque de nervos por causa do velho Moscoso?…

— Bom tempo aquele!... Resmungou Teobaldo, ferrando o olhar no chão e tornando-se triste. Ah! Bom tempo!…

— Queres saber de urna coisa?... Segredou-lhe a moça, erguendo-se; vamos fugir para casa; tenho lá um marreco assado. Vai ao camarote buscar a minha capa, n. 8. primeira ordem.

Teobaldo quis recusar-se e confessar com franqueza a sua posição; mas, ou porque lhe faltasse a coragem para isso, ou porque aqueles ombros e aqueles braços lhe trouxessem irresistíveis lembranças. ou porque Leonília se mostrava tão empenhada em levá-lo consigo para casa ou porque os olhos dela o prendiam com tanto desejo e acordavam nele adormecidas paixões, ou porque depois de algumas taças de champanha ninguém resiste a uma mulher formosa, o fato é que o rapaz não o se deteve um segundo e correu ao camarote.

Ela, ao vê-lo tornar à mesa, entregou-lhe os ombros, e Teobaldo envolveu-a na capa, uma grande capa alvadia e orlada de arminhos; em seguida pagou a garrafa e conduziu a bela mulher para um cupê que a esperava à porta do teatro. Seriam onze e meia da noite quando chegavam os dois à casa dela. Veio recebe-los um criado inglês, que os fez entrar para uma pequena sala, caprichosamente mobiliada.

— Espera um pouco por mim, disse Leonília ao rapaz, fugindo para o interior da casa.

Teobaldo atirou-se em um divã e pôs-se a fazer íntimas considerações sobre o ato que acabava de praticar:

— Não seria uma baixeza de sua parte, interrogou a si mesmo, conservar aquela mulher no engano em que se achava a respeito dele?... Porventura seria possível deixar-se ficar ali nas circunstâncias precárias em que ele se via, sem com isso humilhar-se aos seus próprios olhos?... Poderia acaso sustentar aquelas relações no mesmo pé de superioridade em que as mantinha dantes?... E, uma vez que aceitasse qualquer concessão da parte daquela mulher, uma vez que não tivesse como qualquer de corresponder a peso de ouro com o amor que ela lhe dava, não ficaria ele obrigado a respeitá-la com a submissão de um obsequiado; não ficaria ele devendo em gratidão, em finezas e em considerações aquilo que não pudesse pagar a dinheiro?…

— Sim! Deliberou Teobaldo, nem por forma alguma devo iludir me a este respeito! Não posso ficar!

E, afastando do pensamento toda a idéia de hesitação, procurado arrancar da memória a imagem daqueles ombros e daqueles braços nus, ergueu-se resolutamente, tirou um cartão o do bolso e ia a escrever algumas palavras, com a intenção de retirar-se depois, quando se abriu uma porta, que comunicava com o interior da casa, e Leonília reapareceu já em trajes domésticos: um belo penteador de renda, os cabelos a meio despenteados e os pés em chinelas turcas.

Teobaldo suspendeu o seu movimento, franzindo ligeiramente o sobrolho.

— Que é isso? Perguntou ela. Ias escrever?...

— Sim, a tua presença poupa-me esse trabalho. Senta-te aqui comigo e ouve com atenção o que te vou dizer.

Leonília, com um gesto que a tornava mais engraçada, deixou-se cair ao lado dele no divã.

— Sabes? Eu não posso cear contigo e é natural que não volte à tua casa.

— Por quê?

— Porque tenho sérios motivos que mo impedem. Mais tarde sem que seja necessária a minha intervenção, hás de saber de tudo. É só esperar mais alguns dias.

— Não preciso esperar! Já sei: é porque estás pobre…

Teobaldo fez-se vermelho, como que se aquela última palavra fosse uma bofetada. Ergueu-se, sem dizer palavra, tomou o chapéu e estendeu a mão à rapariga:

— Adeus.

Ela, em vez de apertar-lhe a mão, passou-lhe os braços em volta do pescoço e alongou os lábios suplicando um beijo em silêncio.

E depois, em resposta a uma nova menção de Teobaldo:

— É inútil tentar sair, porque as portas estão fechadas... Dei ordem para que não as abrissem a ninguém.

O rapaz fez um gesto de contrariedade e disse, tornando-se sério:

— Creio que terás bastante espírito para não me colocares em uma posição ridícula…

— Ridículo serias tu se me abandonasses agora...

— Paciência. Dos males o menor!...

— Mas, nesse caso, ao menos ceia comigo. O fato de estares pobre não te desobriga dos teus deveres de cavalheiro. Serias o mais incivil dos homens se me obrigasse a ir sozinha para a mesa.

Ele respondeu largando o chapéu e o sobretudo, que tinha ido tomar.

— Ainda bem! Disse Leonília. Passemos para a sala de jantar.

E acrescentou, puxando-o pelo braço:

— Entra por aqui mesmo.

Os dois atravessaram uma pequena antecâmara, depois uma grande alcova, que Teobaldo considerou de relance, e afinal, tendo ainda atravessado um quarto de toucador, acharam-se na sala de jantar.

— Estamos completamente a sós, observou a rapariga, mostrando a ceia já servida; dei ordem ao copeiro que se recolhesse, e disse à criada que podia dormir à vontade.

— Está bom...

— Temos tudo à mão. Não precisamos de ninguém.

E, assentando-se ao lado de Teobaldo:

— Sabes? A primeira pessoa de quem pedi notícias, ao chegar aqui, foste tu...

— Muito obrigado.

 — Oh! Não calculas o prazer que tive quando me disseram que estavas totalmente arruinado!

— É bondade tua!

— E, olha, se não fosse isso, eu talvez não tivesse te prendido hoje.

— Orgulho! Compreende-se.

— E é exato. Nós, mulheres, quando gostamos deveras de um homem, sentimos dessa espécie de orgulho.

— Caprichos do amor... Queres uma fatia de presunto?

— Aceito. Vocês, homens, são os bichos mais pretensiosos que o céu cobre. Querem ter sobre as pobres das mulheres todas as superioridades!... Enquanto nós nos sentimos felizes em depender do homem que amamos, vocês, vaidosos, sentem-se humilhados em dar ternura em troca de ternura que lhe damos. Súcia de egoístas!

— Não, filha, isso depende também da qualidade da mulher.

— Que gentileza!

— Pois não! Há certas mulheres, cuja ternura não é lícito pagar só com ternura…

— Não. O amor só com o amor se paga! Passa a mostarda.

— Oh! Mas é que há tanta espécie de amor...

— Protesto! O amor, o verdadeiro amor, e um só, insolúvel e eterno! E por ele tudo se explica e tudo se perdoa! É preciso não enxovalhar esse nome sagrado emprestando-o a outro qualquer sentimento; eu quando te falo em amor, não me refiro ao amor fingido... Toma um pouco de Borgonha.

— Sim, mas também há mulheres, das quais seria tolice esperar o tal amor genuíno de que falas...

— Ora, dize-me uma coisa, Teobaldo; quantas espécies de mulheres conheces tu?

— Eu? Duas.

— Quais são elas?

— A mulher virtuosa e a mulher que não é virtuosa.

— Só?

— Só.

— Ora bem, dize-me ainda: que diabo entendes tu pela tal mulher virtuosa?

— A mulher casta.

— E pela outra entendes naturalmente a que não é casta. Para aquela tens tudo que há de bom em ti — o respeito, o amor, a confiança; e para esta, guardas o contrário de tudo isso: — desconfias dela, não a estimas sinceramente e não lhe dedicas a menor consideração, porque a infeliz nada te merece!

— Não é uma lei criada por mim…

— Bem sei, e nem tenho a pretensão de destruí-la com as minhas palavras; apenas quero provar-te que vocês, homens, no juízo que formam das mulheres, são os entes mais injustos e mais tolos que se pode imaginar!

— Vamos ver isso.

— Quero provar-te que esse desprezo a que condenam a mulher perdida é nada menos do que a condenação de todas as mulheres em geral.

— Como assim?

— Vou ver se me explico. Toda a mulher é capaz ser honesta ou deixar de ser, conforme as circunstâncias que determinam a sua vida; não é exato? Todas elas estão sujeitas às mesmas leis fisiológicas e aos mesmos irreparáveis descuidos, pelos quais, confessemos, são sempre as responsáveis e dos quais muito raras vezes tem a culpa. Apenas acontece que umas são espertas e outras são eternamente ingênuas. Daí a divisão da mulher em duas ordens — a mulher maliciosa e a mulher simples; pois bem, em casos de sedução — a maliciosa resiste, a inocente sucumbe. Não achas que é muito mais fácil perder uma menina verdadeiramente ingênua do que uma outra que não o seja?

— Sim, mas isso nada prova.

— Bem. Admitindo que é mais difícil seduzir a mulher velhaca do que a mulher inocente; e visto que a classe das perdidas compõe-se em geral destas últimas, segue-se que toda a mulher é má, umas por natureza e outras à força de circunstâncias; dai a condenação de todas elas!

— Isso é uma filosofia muito apaixonada!.

— Não, é simplesmente verdadeira. Ora, dize-me se, em vez de me teres agora ao teu lado, tivesses uma rapariga de minha idade, casada aí com qualquer sujeito e mãe de um pequeno que ela tivesse ao colo e de mais três que lhe subissem pelas pernas; dize-me, que impressão te produziria no espírito essa mulher?

— Uma impressão toda de respeito e acatamento.

— Pois bem; agora imagina tu por outro lado que essa mesma rapariga, antes de conhecer o homem que havia de casar com ela, era uma criatura inocente ao ponto de ignorar o valor da própria virgindade, e crédula ao ponto de não supor o seu noivo capaz de a enganar; imagina ainda que esse noivo é nada menos do que um sedutor; imagina que ele a abandona depois de desvirtuá-la e que à infeliz se fecham, como é de costume, todas as portas, menos, está claro, a de um sujeito que se propõe substituir o primeiro, não com o casamento, que vocês são incapazes disso, mas substitui-lo amancebando-se com ela…

— Bem.

— Pois, feito isto, meu amigo, está feita a grande viagem de perdição, porque depois desses dois degraus é só escorregar, e escorregar fatalmente, sem esperança de apoio. Se do primeiro ao segundo amante mediou um ano, do segundo ao terceiro vai só um mês, do terceiro ao quarto uma semana, e os outros contam-se pelos dias e afinal pelas horas. E agora, imagina tu, meu orgulhoso, que, em vez de mim, tivesses a teu lado uma dessas desgraçadas que tem amantes por hora, uma dessas mártires que, por inocência e por credulidade, se deixaram arrastar à última degradação; imagina essa mulher ao teu lado e dize-me depois que sentimentos ela te inspiraria.

— O da compaixão; está claro.

— O da compaixão! Mas que espécie de compaixão é essa, que só se veste de desprezo e desdém?... Para os entes que nos inspiram compaixão entendo que deve haver palavras consoladoras e cheias de caridade, deve haver ternura e carinhos e não o abandono e a maldição!

— Mas... Ia a dizer Teobaldo.

— Espera. Disseste ainda há pouco que só conheces duas espécies de mulheres E declaraste que uma te inspira respeito e outra compaixão; pois quero saber agora a qual dessas duas espécies pertenço eu.

— Ora, que exigência de mau gosto!... Voltaste do passeio à Europa com uma dialética bem esquisita!…

— Não! Responde!

— Mas, filha, não há que saber... Pertences à segunda espécie…

— E assim é... disse Leonília, meneando a cabeça. Todos nós merecemos ou devemos merecer compaixão. Ontem a inocência e a perseguição; hoje a vergonha e o desprezo; amanhã a miséria e talvez o hospital!

— Para que pensar nisso, observou Teobaldo, já aborrecido com as palavras da rapariga. Mudemos de assunto.

— Causo-te lástima, não é verdade? Dize-me com franqueza!

— É.

— E sabes, meu adorado, qual é o único meio de socorrer uma mulher que nos causa compaixão?

— Qual é?

— Amando-a.

— Oh!

— Não te sentes capaz de tanto?

— Não.

— Nem se eu para isso empregar todos os meios?... Se eu me fizer tua escrava, tua amiga e tua amante, só tua?

— Impossível.

— E se nisso estiver empenhada a minha vida, a minha felicidade e talvez a minha reabilitação?

— Paciência!

— É a tua última palavra!

— E peço-te licença para sair.

— Não dou.

— Mas é preciso.

— Não quero. Aqui mando eu!

Teobaldo experimentou as portas; estavam todas fechadas por fora.

— É então uma violência? Perguntou ele, afetando bom humor.

— É, respondeu a cortesã.

E, tornando a direção da alcova, acrescentou com um sorriso:

— Vem.
–––––––––––––––
continua…

sábado, 27 de julho de 2013

Carlos Lúcio Gontijo (Literariamente, a vida!)

Libreria Fogolla Pisa
Ando meio cansado, desgastado pelo tempo que a tudo leva e consome. Incomoda-me a ignorância, sempre atrevida e agressora. Para descansar, desejo uma esteira de vime, feita com fibras de versos do poeta Bueno de Rivera, mineiro de Santo Antônio do Monte.

Neste instante, ser-me-ia exponencial contar com um horizonte banhado na luz da sensualidade dos temas de Vinícius de Moraes. De bom alvitre, consolar-me-ia a aplicação de providencial argamassa nas paredes, pintadas com as cores da rica prosa brejeira de Guimarães Rosa.

As janelas da minha casa podem ser em madeira de lei, ao mesmo tempo rija e suave, como texto de Machado de Assis. A porta descorada deve ser repintada com leves tons de voo, ao sabor de palavras de Clarice Lispector, magicamente misturadas à metafórica tinta pé no chão de Cecília Meireles.

Vir-me-ia a calhar um teto na cor alinhavada no verdor de montanha, ao feitio de versos tecidos por Carlos Drummond de Andrade, para que eu possa rolar morro abaixo as pedras que atravancarem o caminho de liberdade dos meus sonhos, nos quais me cabe mergulhar de corpo inteiro e pessoalmente, sem os heterônimos de Fernando Pessoa.

Para dar-me segurança, ergam muros em formato de ponte – segundo a natureza humana coletada pelo olhar escafandrista de Sigmund Freud, sob cuja lente reveladora nos é permitido assistir ao eclodir tanto de homens de abraço e afago quanto de seres humanos de desabraço e punhal nas mãos –, utilizando a engenharia filosófica de Dostoievsky e Tolstói, com majestosa vista voltada para o som do mestre Cartola, ensinando-nos os moinhos deste mundo, que é povoado de jardins repletos de Vênus de Milo, onde em tudo falta um pedaço, em meio a rostos perdidos nos espinhos de gigantescos cactos, tornando realidade a arte de Tarsila do Amaral, estendida no varal de nossos corpos, à espera de um verso concreto e lapidar de Ferreira Gullar, a descrever o apagar da chama da vida de cada um de nós.

Fonte:
O Autor

Thalma Tavares (O Trovador e a Trova)

           
O objetivo neste pequeno ensaio, que dedico aos novos irmãos Trovadores, não é tanto dizer trovas, quanto falar da Trova e daquele que a faz. 

            Se fôssemos buscar nos tratados a definição da palavra TROVADOR, certamente eles nos levariam de volta à Idade Média onde a figura daquele cavalheiro medieval pouco tem a haver com este cidadão de hoje, tão comum quanto qualquer de nós, mas que possui o dom poético de fazer Trovas. Daquele medieval cavalheiro, o Trovador de hoje herdou mais o nome do que o status e a condição. Ao nome acrescentou o seu talento pessoal, a sua capacidade criadora. Mas o seu relacionamento com a Trova, diferentemente daquele, não se resume apenas ao ato de compô-las e dizê-las publicamente. Os Trovadores de agora pensam, sentem e amam ao compasso da Trova. E quem nos confirma isto é LUIZ OTÁVIO quando nos diz:

            “Tirem-me tudo o que tenho,
            neguem-me todo o valor!...
            Numa glória só me empenho:
            - a de humilde Trovador!”

            Mas CAROLINA RAMOS também confirma nossa opinião com esta linda Trova:

             “Trovador, quando padece
            ao enfrentar duras provas,
            guarda a angústia numa prece
            e reza... fazendo Trovas.”


             No limite dos quatro versos de uma Trova, os Trovadores empreendem viagens maravilhosas ao nosso desconhecido mundo interior e a todos os imagináveis mundos da fantasia humana. Faz da Trova uma profissão de fé, um eloqüente atestado de suas crenças, de suas convicções, assim como faz SARA MARIANY KANTER nesta Trova:

            “Por ser poeta acredito
            em dias menos sombrios;
            Meu sonho, quase infinito,
            cabe em meus bolsos vazios.”


            Enquanto lá fora os poderosos se digladiam semeando a descrença, a violência, o ódio e o ceticismo no coração das criaturas, os Trovadores seguem destilando amor, acreditando no semelhante, sonhando e colocando o coração bem acima das torpezas humanas. E neste contexto insere-se perfeitamente esta Trova de nosso irmão da UBT-Belém do Pará, ANTÔNIO JURACY SIQUEIRA:

            “Canta Trovador! Teu canto
            alvissareiro e fecundo
            é uma canção de acalanto
ninando as mágoas do mundo!”


De fato, “ninar as mágoas do mundo” é atributo sublime e só poderia ser dado aos poetas. E assim dizendo, o autor os elege consoladores das queixas universais. Mas, para reforçar a idéia de Antônio Juracy, temos esta outra Trova de LUIZ OTÁVIO:

“Bendigo a Deus ter me dado
a sorte de Trovador.
Pois o mal quando é cantado,
diminui o seu rigor...”


Para o bom Trovador, em termos de criatividade, a Trova é sempre uma expectativa do inusitado e ele, Trovador, o intérprete das esperanças da humanidade, o paladino do amor, da paz, da justiça e da fraternidade. É também, quando necessário, o crítico, o cronista do cotidiano, o  humorista  alegre  e  refinado,  o  observador  arguto. E  trovas  existem  aos  milhares que nos mostram toda essa gama de virtudes. São incontáveis e passaríamos aqui um tempo enorme dizendo apenas diminuta parcela de um todo difícil de registrar. Nos limitaremos, pois, a dar apenas uma ligeira mostra do gênio dessa estirpe iluminada chamada TROVADORES. 

            Iniciaremos a mostra com uma observação triste de ABGAIL RIZZINI, nesta sua Trova do tema Esperança:

            “Olhar triste é o da criança
            que olha a vitrina, e em segredo,
            chora a morte da esperança
            ante o preço de um brinquedo!”


             Uma Trova de infância na saudade de NEY DAMASCENO:

             “Num velocípede antigo
            que tem quase a minha idade,
            passeia a infância comigo
            pelas ruas da saudade”


             Um alerta de CÉLIO GRUNEVALD nesta Trova do tema Justiça:

             “Quando a Justiça nos choca
            e a verdade é inconsistente,
            há sempre um sino que toca
            na consciência da gente...”


            Uma exaltação à Liberdade nesta vibrante Trova de WALDIR NEVES:

            “A glória dos homens brilha
            com fulgor de eternidade,
            toda vez que uma Bastilha
            tomba aos pés da Liberdade!”


            Uma dissertação sobre o amor e a morte nesta Trova de CLEÓMENES CAMPOS:

             “O amor e a morte, a rigor,
            são faces da mesma sorte:
            no fim da palavra amor
            começa a palavra morte!”


             Eis aqui uma Trova onde a ambigüidade de sentidos, inteligentemente arquitetada por CLÓVIS MAIA, enriquece o gênero humorístico:

             “Quando a Dinha está acamada
            eu agradeço à vizinha
            que passa a noite acordada
            e faz tudo pela Dinha...”


             Uma Trova em que o saudoso JOSÉ MARIA MACHADO DE ARAUJO evoca, lírica e tristemente, a lembrança materna e se confessa publicamente:

             “Minha mãe chorou mais pranto
            que a mãe de Nosso Senhor.
            A Virgem chorou um Santo;
            Minha mãe – um pecador!”


    Uma constatação do mais puro lirismo nesta Trova de despedida de JOUBERT DE ARAUJO SILVA:

            “De  todas as despedidas,
            esta é a mais triste, suponho:
            - duas almas comovidas
            chorando a morte de um sonho!”


             Outra Trova de despedida na inteligente e fatalista conclusão do saudoso CARLOS GUIMARÃES:

             “De despedidas, apenas,
            compõe-se, afinal, a vida:
            - mil despedidas pequenas
            e uma Grande despedida!”


             O Trovador DIAS MONTEIRO, extasiado ante a beleza noturna do firmamento, nos faz uma ousada afirmação poética nesta Trova repleta de lirismo:

             “Duvidar ninguém se atreve,
            de que as estrelas que eu fito
            são Trovas que Deus escreve
            no livro azul do Infinito!...”


             E, por fim, do tema Tempestade, uma Trova em que CIPRIANO FERREIRA GOMES nos mostra o seu poder de criatividade na beleza desta comparação inusitada a qual se dá o nome de “ACHADO”:

             “Tempestade!... E o mar erguido
            é um cavalo em movimento
            que tendo o dorso ferido,
            desfere coices no vento!...”


             Habituado a trovar sobre qualquer tema, o bom Trovador desconhece assuntos que a Trova não consiga abordar de modo sutil e convincente, para não dizer inteligente e original. É o caso de palavras  e temas considerados esdrúxulos e antipoéticos. CAROLINA RAMOS nos dá o exemplo, utilizando numa Trova a palavra CEBOLA que muitos consideram poeticamente inaceitável. Provando o contrário, ela fez de improviso, durante uma reunião da UBT-São Paulo, a seguinte Trova lírica:

             “Na feirinha da amizade,
            de produtos desiguais,
            a CEBOLA da saudade
            já me fez chorar demais.”


             E eis aqui, também, como o Trovador IZO GOLDMAN, vencendo um desafio, encontrou saída para rimar numa Trova a palavra CINZA com a sua única rima natural:

             “Papai do Céu tá RANZINZA!
            - diz meu netinho assustado:
            Pintou todinho de CINZA
            o lindo céu azulado!”  


             E vejam o que fez o príncipe LUIZ OTÁVIO com as palavras RADAR e BISTURI nestas duas Trovas: 

 “O coração de mãe tem
            um RADAR de tal pujança,
            que vê melhor, vê além
            do que a própria vista alcança.”

             “O trem, cansado e sedento,
            subindo a nublada serra,
            é um BISTURI barulhento
            rasgando o seio da terra...”


             Mais do que um simples exercício intelectual ou um passatempo, como querem alguns, a Trova é um sentimento, é um estado de amor e muitas vezes uma bênção, porque acaba sempre por preencher lacunas existenciais na vida daqueles que a cultivam no seu cotidiano.

            E vale a pena a gente citar outras Trovas inteligentes que eu chamaria de produto do senso de oportunidade e que fazem parte também das chamadas Trovas Circunstanciais:

            Vejamos, por exemplo, como o Trovador ARLINDO TADEU HAGEN soube aproveitar com oportunismo e bom senso, a perfeita identidade de seus ideais com os ideais de um amigo, construindo uma Trova singela, significativa e convincente:

             “Existe tanta união,
            entre os meus sonhos e os teus,
            que só não és meu irmão
            por um descuido de Deus.”


             CONCHITA MOUTINHO DE ALMEIDA, saudosa Trovadora da UBT-São Paulo, referindo-se à sua alma de sonhadora e por extensão à alma de seus irmãos Trovadores, soube explorar com inteligência a dualidade quixotesca da natureza humana, enfocando as antíteses: sonho e realidade, corpo e espírito;  nesta Trova que nos enviou numa carta:

             “De sonhar jamais se cansa
            - este é o seu supremo dote –
            meu corpo de Sancho Pança
            tem alma de D. Quixote!”


             E de novo citamos WALDIR NEVES, para uma outra mostra de senso de oportunidade. Ele obteve menção honrosa no Concurso Paralelo aos XXXV Florais de Nova Friburgo, em homenagem à saudosíssima NYDIA IAGGI MARTINS, com esta Trova:

             “De esposa e mãe, nos misteres,
            de alma e corpo ela se deu
            e foi “todas as mulheres”
            na mulher que prometeu.”


             WALDIR soube aproveitar com oportunidade o “achado” primoroso desta conhecidíssima Trova de NYDIA:

             “No dia em que tu quiseres
            ser meu senhor e meu rei,
            serei todas as mulheres
            na mulher que te darei!”


             Vejam como DURVAL MENDONÇA, soube fugir do lugar comum nesta trova do tema “Farol”:

            “Noite escura!... De repente,
            dois faróis surgem na estrada...
            E a escuridão sai da frente
            como quem foge, assustada.” 


            O Trovador PEDRO ORNELLAS, satirizando uma situação crítica, venceu um concurso relâmpago da UBT-São Paulo, tema “Fumaça”, com esta ótima Trova humorística:

             “A situação tá tão feia,
            minha grana tão escassa,
            que o vizinho “churrasqueia”
            e eu passo o pão na fumaça.”


             O Trovador fluminense VILMAR LASSENCE, foi vencedor de um concurso com uma das mais belas trovas do tema “Luz”. Ei-la:

             “Da mais funda escuridão,
pergunta um cego: - O que é Luz?
E alguém, por definição,
lhe põe nas mãos uma cruz.”


           A origem da Trova perde-se na Idade Média. Serviu aos troveiros e trovadores provençais para comporem e cantarem, na língua d’oc e língua d’oil, as suas cantigas d’amigo, cantigas d’escarneo ou de maldizer. A Trova nem sempre teve a mesma forma. Ao longo do tempo, desde a França até a Península Ibérica, ela sofreu várias modificações até transformar-se na deliciosa “Quadrinha Popular Portuguesa” que, por sua vez, deu origem à Trova como hoje a conhecemos e como é praticada nos concursos da UBT e, atualmente, através da Internet. Tudo graças ao idealismo do fundador da UBT, LUIZ OTÁVIO, o Príncipe dos Trovadores Brasileiros.

 Para que a Trova continuasse como arte aprimorada, como veículo dos mais elevados sentimentos do homem, foi necessário o apoio e o patrocínio de entidades associativas, beneficentes e governamentais que, ao lado da UBT, têm contribuído para a sua divulgação em todo o país e no exterior, através de concursos e jogos florais que hoje somam mais de quarenta eventos anuais, considerando-se os realizados através da Internet. Não obstante esse apoio, a UBT e a Trova são ainda órfãs do interesse das entidades culturais do país e sobrevivem como fontes de cultura, graças à boa vontade, ao amor que alguns Trovadores, abnegados idealistas, têm pelo movimento trovadoresco.

 Assim, meus irmãos, o TROVADOR E A TROVA, apesar de todos os percalços que têm encontrado no curso dos acontecimentos, neste país que ainda não firmou idealmente suas raízes culturais e não aprendeu a valorizar a cultura, a Trova vem cumprindo o seu papel; vem alimentando os nossos sonhos, alavancando as nossas esperanças, reavivando a nossa fé e a nossa crença num mundo melhor. E enquanto houver no coração das pessoas sensíveis um espaço para a poesia, aí a Trova terá encontrado sua morada e jamais perderá o seu encanto. E, com esta certeza, eu posso lhes confiar um segredo:

 Se o destino desaprova
minha ilusão desmedida,
eu ponho ilusões na Trova
e sigo iludindo a vida...


Fonte:
Thalma Tavares, palestra aos novos trovadores, 1994.

Joana D’arc da Veiga (Horinhas de Descuido)

Joana é de Nova Friburgo/RJ
(3o. Lugar no VI Concurso Literário “Cidade de Maringá” 2013, modalidade Cronica, Troféu Lucilla Maria Simas de Assis)
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“Felicidade se acha é em horinhas de descuido”

    Atarefado leitor, que em sua horinha de descuido lê o meu texto: o labor é semelhante ao açúcar que tem de ser usado na medida; trabalhar demais, por uma ansiedade descabida, torna a vida enjoada, pois sufoca o gosto da alegria; entretanto, trabalhar de menos deixa a vida sem energia, o que pode provocar desgosto.

    Devo dizer-lhe que este pequeno, mas importante ensinamento entrou em mim através de uma conversa que ouvi, sem ser notada, entre dois refinados colaboradores que moram em nossa casa. Vou contar-lhe o diálogo na íntegra, mas não tome isto como fofoca, é apenas a ilustração da afirmativa inicial.

    - Hoje você parece mais frio e sem vontade para o trabalho, meu amigo pano!

    - Desculpe-me, vassoura, você sabe que não estou no comando, sou jogado na liquidez “baldeante” e forçado ao labor por mãos alheias; gostaria eu, neste momento, de estar ao relento, desdobrado de sentidos, com o sol a percorrer em raios, a trama do meu tecido e, então, adormecido, esticar-me em vida.

    - Entendo bem você e digo que gostaria, meu amigo, de espreguiçar-me no canto de um armário, ao sabor do descuido da patroa, plantar-me em bananeira tal qual uma criança em tempos de brincadeira. Seria isso felicidade, meu amigo pano?

    - Sim. E, ainda, enxugo o dito de João Guimarães Rosa: “A felicidade se acha é em horinhas de descuido”. E é verdade, pois nelas sinto melhor o meu trançado e, na falta delas, o cansaço encharcado da vida.

    - Com excessos de cuidados, continuou a vassoura, a vida nos impõe esta rotina de quase inutilidade, nos grãos de superfície, em farelos de vida, nas sobras de nada acumuladas no chão das coisas. Entretanto, meu amigo pano, eu poderia aos poucos juntar os grãos, recolher o pó sem desgastar-me demais.

    - Concordo, pois, embora retorcido, eu retiro gotas, elimino os líquidos que impedem o circular da vida e, então, penso ser o labor, neste momento, açucarado.

    Nesta altura da conversa, a minha esposa chegou, pegou a vassoura envolveu-a no pano, expulsou-me do meu canto, afastou de mim a horinha de descuido e interrompeu, num afã, a maravilhosa conversa daqueles que sabem adocicar o labor com colherinhas de descanso.

Fonte:
Livro dos Concursos

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) Problemas

Hoje, o bonde vinha cheio, e tive de ceder o meu lugar a uma senhora. Esta, ao invés de me agradecer, parece que ficou ligeiramente arrufada com a minha gentileza.

Creio que a ética do bonde manda que, ao ceder o lugar, o passageiro não dê a isso a mais ligeira aparência de um ato de cortesia faça-o friamente, como por uma obrigação regulamentar. Deve ser isso.

Mas será? Eis aí um dos inumeráveis problemas psicológicos que o bonde depara. O bonde é um saco de víspora: é só meter a mão, remexer, pegar, lá vem o problema psicológico.

Infelizmente, esses problemas vão ficando cada vez mais obscuros, à medida que cresce o número dos psicologistas, número infinito, hoje em dia, só comparável ao dos sociólogos. Se o futuro do Brasil dependesse da psicologia da sociologia, estava garantido; e só nos restava lamentar que não pudéssemos viver mais uns cinqüenta ou cem anos, para assistir ao grande fogo de vistas dos resultados. Estupenda coisa a ciência!

Há dias, vi o Sr. João Cesário a conversar atentamente com um mocinho sisudo e altivo. Este falava em coisas difíceis: mentalidade primitiva -formação alógena -metabolismo racial camadas de aluvião -idealismo hipocondríaco -teorias de Comte e Spencer -obras de Le Play, Fouillet, Tarde, Novicow, Pareto, memórias de Schwaartzemberg e Perikowski, de Astrinaieffe e Dragobsen. De repente, despediu-se e desapareceu veloz, como uma motocicleta.

Corria, provavelmente, a endireitar algum erro perigoso de técnica social, que estivesse para desabar sobre nós. Digno bombeiro da Ciência!

Neste ínterim, perguntei assombrado ao Sr. Cesário:

-"Quem é este menino? Que sábio!"

-"Nem tanto. Muito estudioso, isso sim. Especializou-se - não sabe? É apenas sociólogo".

Senti-me absolutamente acalcanhando com ver um menino que, ainda longe dos trinta anos já havia conseguido ser um sociólogo, apenas. Senti necessidade de esquecer aquilo.

Montesquieu disse que não havia aborrecimentos que não lhe passassem com meia hora de leitura. Não sei se isto provará a virtude da leitura ou antes de Montesquieu. A mim, muitos aborrecimentos me desaparecem com a decifração de problemas ou com jogos de paciência. Armei logo uma série de dificuldades através dos miolos, e depois mergulhei em cogitações para as desmanchar uma por uma.

Foi o que fiz hoje. Não tendo mais em que me ocupar, comecei a extrair e remexer os problemas que o bonde me oferecia, abundante corno pedreira.

Por que é que os nossos conhecidos sempre nos aparecem nos bancos de trás à hora da cobrança das passagens?

Por que é que as senhoras apeiam voltadas para o lado traseiro do carro?

Por que é que os condutores, quando recebem as passagens, vêm com cara de cobradores de contas atrasadas?

Por que é que não se pode tirar um lenço ou abrir uma cigarreira sem despertar a atenção vigilante do vizinhos?

Por que é que, ao contrário, se a gente sofre e tosse com o fumo de um cigarro alheio isso não é percebido nem pelo vizinho fumante?

Por que é que, quando lemos, há sempre um passageiro a querer por força descobrir o que vamos lendo?

Por que é que os homens, quando pedem licença para passar, são mais atenciosos à entrada do que à saída?

Por que é que o lavador de pratos ou o vendedor de bananas trata os condutores como se estes fossem os trintanários de seus coches?

Por que é que o passageiro acha graça nas grosserias ou desaforos do condutor, desde que não são com ele?

Por que é que, encontrando um amigo distraído e pagando-lhe a passagem, ele imediatamente nos pergunta como vai a família?

Por que é que só assobiam no bonde indivíduos inteiramente desprovidos de memória musical?

Por que é que, se chove, há sempre, ao nosso lado ou à nossa frente, um passageiro que não tolera cortinas arriadas?

Por que é que tantas senhoras gordas, não permitindo que se lhes toque de leve com o dedo, não fazem contudo nenhuma cerimônia para se amesendar em cima de nossa perna?

Por que é que há tanta comoção no bonde, se este pega uma galinha, e não há nenhuma por causa do homem enfermo, aleijado e decrépito que vai no carro?

Por que é que os moços bonitos e os célebres ficam sentados de viés?

Por que é que temos tanta paciência para perder duas horas numa pane difícil de automóvel, e nenhuma para sofrer dois minutos de parada do bonde num desvio?

Por que é que as senhoras, ao pagar a passagem, custam tanto a encontrar o dinheiro na bolsa?

Por que é que o bonde estimula em certos indivíduos a vontade de comer amendoim torrado e tremoços?

Por que é que as pessoas mais desocupadas e mais pachorrentas se tomam de pressa e de nervos quando o bonde vai chegando ao ponto final?

Por que é que nos dói mais termos perdido o nosso bonde do que o ter um amigo perdido o trem - ou mesmo uma perna?

Fonte:
Domínio Público

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 16

CAPÍTULO VIII
 
Os últimos acontecimentos vieram perturbar de todo a vida dos dois rapazes. Coruja tinha de guardar um pouco mais a companhia de Teobaldo, cuja inquietação de espírito lhe trazia agora sérios receios. Cobertos ambos de luto, pareciam eternamente fechados a qualquer consolação mundana; Teobaldo caíra em uma espécie de abatimento moral, de cujo estado não conseguiam arrancá-lo as palavras do companheiro.

E preciso que também não te deixe levar assim pelo desgosto, dizia-lhe este, procurando meter-lhe ânimo. — A vida não se compõe só de coisas agradáveis! Concordo em que não estejas habituado a certas provações e que por isso as sintas mais do que qualquer; mas, valha-me Deus! Um homem deve antes de tudo ser um homem!

— Do que me serve a vida?... respondia o outro; do que me serve a vida, se já não tenho as pessoas que mais me amaram?...

— E então eu?! Reclamava André. — Eu não estou ainda a teu lado?... É uma injustiça o que acabas de dizer!...

— Tens razão, é uma injustiça não pensar em ti; mas imagina que será de mim agora, sem recurso e sem o hábito de trabalhar?...

— Ora! Deixa-te disso! Não pareces um rapaz de 20 anos... Que diabo! com o teu talento e com os teus recursos só quem de todo não quer subir!... Tens um enorme futuro diante de ti.

— Ah! Falas assim porque te coube em sorte a inestimável ventura de dar no mundo os teus primeiros passos pelo teu próprio pé e não tiveste, como eu, de entrar na vida carregado ao colo de meus pais! Ah! O trabalho é a alegria e a consolação dos filhos da pobreza, mas é também o castigo e o suplício dos que nasceram ricos e mais tarde se acham no estado em que me vejo!...

— Teobaldo! Essas idéias são indignas de ti!

— Não! Tudo que eu dissesse ao contrário disto, seria hipocrisia!

— É porque estão ainda muito abertos os dois tremendos golpes que acabas de receber tão em seguida um do outro; tenho plena certeza de que em breve a tua coragem se erguerá mais altiva e mais forte do que nunca e que, à força de talento, conseguirás uma invejável posição. Enquanto assim não suceder, cá estou eu ao teu lado para amparar-te; e com isto, não tens que te envergonhar, porque nada mais faço do que seguir os exemplos aprendidos em casa de teus pais, quando me socorreram. Eu te pertenço, meu amigo!

Teobaldo, sinceramente comovido, agradeceu aquela dedicação e prometeu que se faria digno dela. Mas pelo espaço de um ano quase inteiro a sua mágoa absorvia-lhe todos os instantes, não lhe deixando tempo nem forças para coisa alguma. Descuidou-se de obter os meios de ganhar a vida e, depois de comido o último dinheiro, teve de lançar mão de algumas jóias das que foram de sua mãe, para vender. Agora, com o correr do tempo por cima da sua desgraça, vinham-lhe já, de quando em quando, alguns rebotes de energia; então falava em trabalhar muito, fazer-se independente e forte por meio do próprio esforço. E neste delírio de boas intenções, lembrava-se de tudo conjuntamente e sonhava com o comércio, com as indústrias, com as artes e com a literatura.

Qual não foi, porém, a sua decepção, quando, levando trabalho a um jornal, ouvia essas palavras daqueles mesmos que dantes o elogiavam:

— Homem! Deixe ficar isso... Havemos de ver, mas o senhor bem sabe que o público vai e tornando exigente: é preciso dar-lhe coisas boas!.

Teobaldo compreendeu então o alcance de certas palavras de seu pai: "Esconde o mais que puderes a tua necessidade; ela só por si é o pior estorvo que se pede levantar defronte de ti, quando precisares de dinheiro..."

E com eleito: dantes, Teobaldo mal apresentava algum trabalho nas redações, só ouvia em torno de si elogios e palavras de entusiasmo. É que sabiam perfeitamente que ele não precisava ganhar a vida; agora era um necessitado como qualquer e então viravam-lhe as costas, porque a necessidade é sempre ridícula e importuna

O mesmo justamente lhe sucedera com os teatros. Dantes, quando Teobaldo freqüentava a caixa dos teatros nas horas de ensaio, pagando champanha aos artistas e levando-os depois do espetáculo a cear nos melhores hotéis; dantes, quando ele os presenteava nos benefícios e lhes emprestava dinheiro, muita vez perguntaram-lhe os empresários por que razão, dispondo de tanto talento e de tanto espírito, não escrevia ele alguma coisa para ser levada à cena. Havia por força de fazer sucesso!... Teobaldo que experimentasse!

E agora, quando a necessidade lhe invadira a casa, rapaz, lembrando-se de tão repetidas solicitações feitas ao seu talento, tornou de um romance inglês e extraiu daí um drama que, se não era um primor de arte, estava ao menos no gosto do público e podia dar lucro ,aqueles mesmos empresários o receberam com frieza, dizendo-lhe secamente que deixasse ficar o trabalho e aparecesse depois. E, mais tarde, talvez sem terem lido a obra, acrescentaram-lhe com meias palavras e dando-lhe o pretensioso tratamento de "filho" que ele fosse cuidar de outro ofício e perdesse as esperanças de arranjar alguma coisa por aquele modo.

Com o seu gênio altivo, com a educação que tivera, Teobaldo não podia insistir em tais pretensões. Era bastante perceber um gesto de má vontade ou de pouco caso para lhe subir o sangue às faces, e muito fazia já conseguindo reprimir a cólera que se assanhava dentro dele, sôfrega por escapar em frases violentas. Depois dessas lutas e dessas tentativas estéreis, voltava para casa desanimado e furioso contra tudo e contra todos, encerrando-se no quarto e fechando-se por dentro para chorar à vontade. Vinha-lhe então quase sempre a idéia do suicídio, mas não vinha com ela a resolução, e o desgraçado continuava a viver.

Todavia o tempo ia-se passando e o círculo das necessidades apertava-se cada vez mais.  Coruja era agora o único sustentáculo da casa, era quem pagava o aluguel, a pensão de comida para Teobaldo que ele continuava a almoçar e jantar no colégio, era quem lhe pagava a lavadeira, e quem lhe fornecia dinheiro. Mas tudo isso era feito com tamanha delicadeza, com tanto amor, que Teobaldo, quando lhe aparecia qualquer revolta do caráter, ficava mais envergonhado de seu orgulho do que com receber aqueles obséquios. E nunca o André andou tão satisfeito, tão alegre de sua vida; dir-se-ia que ele, praticando aqueles sacrifícios, alcançava enfim a realização dos seus melhores sonhos.

Era comum vê-lo chegar a casa com uma caixa de charutos debaixo do braço e depo-la ao lado do amigo, dizendo quase envergonhado:

— Olha! Como estavam a acabar estes charutos e sei que são dos que mais gostas, trouxe-os, porque depois quando fosses procurá-los, já não os encontrarias a venda.

E tinha sempre uma desculpa a apresentar, uma razão para disfarçar os seus benefícios. Teobaldo quis privar-se do vinho à mesa; Coruja, que aliás não bebia nunca, opôs-se-lhe fortemente.

— Não! Disse ele — Estás muito acostumado com o vinho à comida e, por uma miserável economia de alguns tostões, não vale a pena fazeres um sacrifício!.

A maior dificuldade era, porém, quando precisava passar-lhe dinheiro, sem lhe ferir, nem de leve, o amor próprio. A princípio tinha para isso uma boa desculpa — os quinhentos mil réis; mas esta quantia não podia durar eternamente e, já por último, dizia o Coruja:

— Sabes? Quando eu tinha em meu poder aquele teu dinheiro, servi-me de tanto e esqueci-me de repor o que tirei; por conseguinte, se precisares agora receber algum por conta, eu posso pagar.

Um dia ele apareceu em casa com um grande rolo de papéis, e disse ao companheiro que o diretor do colégio o havia encarregado de organizar uma seleta muito especial, destinada ao estudo da sintaxe portuguesa.

— A coisa não é má... Acrescentou o Coruja, abaixando a voz, como quem conspira. — Eles pagam 300$ pelo trabalho...

— Bom, fez Teobaldo.

— Eu estive a recusar, porque me falta talento; lembrei-me, porém, de que tu, se quisesses... Podias encarregar-te disso... A coisa é maçante, é, mas enfim... sempre é um achego... Além de que, eu te posso ajudar, sim, quer dizer que... — Ah! Para ajudar não te falta talento! Hipócrita! Respondeu Teobaldo abraçando-o.

— E se precisares durante a obra de algum dinheiro adiantado... É do contrato! Sabes!

Esta situação tinha para o Coruja apenas um ponto de desgosto e vinha a ser este, o seguinte: desde que D. Margarida lhe falou em casamento com a filha, André resolveu ir fazendo as suas economias para poder em breve realizá-lo; mas, com o amigo na difícil posição em que se achava, não lhe era permitido por de parte um só vintém, e o projeto ia ficando adiado para mais tarde.

E D. Margarida a perguntar-lhe como iam os negócios dele e a pedir-lhe com insistência que marcasse o dia das núpcias. Ora o Coruja, que era tão incapaz de mentir, quanto era incapaz de confessar o verdadeiro motivo da sua demora, via-se deveras atrapalhado e desculpava-se como melhor podia.

Entretanto, D. mezinha concluíra afinal os estudos, fizera exame e estava preparada para reger uma cadeira de primeiras letras.

A mãe resplandecia com isso.

— Assim desembuchasse por uma vez aquele demônio do Coruja!... Exclamava ela às amigas, quando lhe falavam na filha.

E tão impaciente se fez com as reservas e meias palavras do futuro genro, que afinal disparatou e disse-lhe às claras:

— Homem? Você se não tenciona casar com a pequena, é melhor dizer logo, porque não faltará quem a queira! Estas coisas, meu caro, quando não são ditas e feitas, servem apenas para atrapalhar o capítulo!

— Oh, minha senhora, respondeu André, se eu não tivesse a intenção de casar com sua filha, há muito tempo que já o teria declarado!...

— Pois então!?...

— Mas é que ainda não me é possível! Estas coisas não se realizam só com o desejo!

— Ora! Com boa vontade tudo se faz!

— Nem tudo; entretanto, se a senhora entende que sua filha não pode esperar por mim, é casá-la com outro; não serei eu quem a isso se oponha!...

Estimo-a muito, desejo fazer dela a minha esposa, mas não quero de forma alguma prejudicar-lhe o futuro. Se há mais quem a deseje, e se ela acha que deve aproveitar a ocasião, aproveite; porque eu me darei por muito feliz em vê-la satisfeita e contente de sua vida!.

— O senhor diz isso porque sabe que ela está disposta a esperar.

— Tanto melhor, porque nesse caso realizarei o que desejo.

— Mas, se o seu desejo é casar com ela, case-se logo por uma vez! Tanto vive o pobre como vive o rico!

E por este caminho a impertinência de D. Margarida foi subindo a tal ponto, que o Coruja, para tranqüilizá-la um pouco, deixou escapar um segredo que a ninguém tinha ainda revelado. Era a idéia de montar um colégio seu, perfeitamente seu, feito como ele entendia uma casa de educação; um colégio sem castigos corporais, sem terrores; um colégio enfim talhado por sua alma compassiva e casta; um colégio, onde as crianças bebessem instrução com a mesma voluptuosidade e com o mesmo gosto com que em pequeninas bebiam o leite materno.

Sem ser um espírito reformador, o Coruja sentiu, logo que tomou conta de seus discípulos, a necessidade urgente de substituir os velhos processos adotados no ensino primário do Brasil por um sistema todo baseado em observações psicológicas e que tratasse principalmente da educação moral das crianças; sistema como o entendeu Pestallozzi, a quem ele mal conhecia de nome.

Froebel foi quem veio afinal acentuar no seu espírito essas vagas idéias, que até aí não passavam de meros pressentimentos.

Mas não era essa a única preocupação de sua inteligência: ainda havia uma outra que não lhe parecia menos desvelos, a de fazer um epítome da história do Brasil, em que se expusessem os fatos pela sua ordem cronológica.

Nesse trabalho de paciente investigação revelava-se aquele mesmo cabeçudo organizador do catálogo do colégio; continuava o Coruja a pertencer a essa ordem de espíritos, incapazes de qualquer produção original, mas poderosíssimos para desenvolver e aperfeiçoar o que os outros inventam; espíritos formados de perseverança, de dedicação e de modéstia, e para os quais uma só idéia chega às vezes a encher toda a existência.
–––––––-
continua…