sábado, 4 de março de 2023

Ademar Macedo (Ramalhete de Trovas) 1

 

Milton S. Souza (Ainda existe poesia)

Poetas do Brasil inteiro comemoraram em 14 de março o Dia Nacional da Poesia. Através da internet, choveram mensagens poéticas de todos os cantos, colorindo os olhos e os corações daqueles que ainda cultivam a arte de fazer poesias ou que possuem a sensibilidade para ler e saborear os encantos de um poema.

Algumas pessoas menos sensíveis chegam a perguntar como pode alguém pensar em fazer poesias vivendo neste mundo onde as notícias horríveis ganham todos os espaços, invadindo as almas e os corações e, praticamente, liquidando com todas as possibilidades de inspiração. Pode até parecer impossível. Mas nos corações dos poetas a inspiração é uma fonte inesgotável e todos os acontecimentos – alegres ou tristes – servem como desafios para mostrar que ainda existe poesia.

Existe poesia no gesto de ofertar uma flor para a pessoa que a gente ama ou até mesmo para aquela pessoa que a gente ainda não teve coragem para amar de verdade.

Existe poesia em cada carícia trocada entre dois amantes naqueles momentos em que os lábios calam porque as palavras não conseguem expressar as belezas que brotam dos corações.

Existe poesia em cada gesto de amizade que serve para aproximar as pessoas e perpetuar a crença de que um mundo melhor só será construído através do entendimento.

Existe poesia na doação dos pais e das mães pelos filhos que colocaram no mundo ou que Deus colocou nas suas mãos.

Existe poesia na solidariedade, na mão estendida, no ouvido atento para o problema alheio e nas ações concretas para semear sementes de amor.

Existe poesia sobrando, para tudo e para todos, até mesmo para aqueles que ainda não acreditam na poesia.

Mas para que serve a poesia? Eu respondo esta pergunta com outra pergunta: para que servem as flores? Ora, as flores servem para enfeitar jardins, colorir vidas e repassar para os corações aquelas mensagens que as nossas palavras não conseguem traduzir nas horas alegres ou tristes. Um mundo sem flores não passaria de um grande deserto. Um coração sem poesia também fica muito parecido com um deserto. Com a diferença de que é muito difícil fazer florir um deserto. Mas é muito fácil colocar as belezas da poesia dentro de um coração, por mais árido que ele seja.

E como para nós, poetas, todo o dia é Dia da Poesia, fica aqui o meu apelo para os leitores: façam a poesia chegar até os corações daquelas pessoas que vocês mais amam ou com quem vocês repartem amizade. Provem, com um gesto de carinho, a doação de uma flor ou até mesmo a entrega de um poema, que ainda existe poesia e que ela é fundamental para quem acredita no amor e tenta viver semeando amor pelos caminhos da vida.

Fonte:
https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/123904

Baú de Trovas LXI


Regresso e de peito aberto,
dás-me perdão às mancheias:
- quem anda no rumo certo
entende as culpas alheias…
Carlos Guimarães
Rio de Janeiro/RJ, 1915 – 1997
= = = = = = = = =

Não quero morrer agora,
quero contigo viver;
quero ver chegar a hora
desse sonho acontecer!
Dalvina Fagundes Ebling
Cruz Alta/RS (?? – 2020)
= = = = = = = = =

Sofrem tantos na agonia
do delírio, dito "amor";
isso tudo acaba um dia:
faz frio após o calor…
Diamantino Ferreira
Campos dos Goytacazes/RJ
= = = = = = = = =

Quando a tarde abre seus braços
ao dia que vai morrer,
mata a vida os seus cansaços
para outra vez renascer…
Domingos Freire Cardoso
Ilhavo/Portugal
= = = = = = = = =

O desencanto magoa,
ás vezes sem compaixão,
quando a saudade agulhoa
bem fundo no coração!
Dorothy Miranda
Salvador/BA
= = = = = = = = =

Despedimos no portão,
senti seu beijo gelado...
Descobri, sem ilusão,
que estava tudo acabado.
Ed Louzi
= = = = = = = = =

Em sua inspirada prece
com muita serenidade
é que São Francisco tece
toda a trilha da verdade!
Eduardo Domingos Bottallo
São Paulo/SP
= = = = = = = = =

Minha identidade eu vejo
no teu olhar refletida,
e tudo o que mais desejo
é ser teu amor, na vida!
Eleandra Bonatto
Santiago/RS
= = = = = = = = =

Com o mais lindo sorriso
e aquele olhar da ternura,
me levaste ao paraíso
quase cheguei à loucura.
Gledis Tissot
Balneário Camboriú/SC
= = = = = = = = =

Quero só o que mereço,
pelos princípios morais;
fazer festa a qualquer preço,
é sempre caro demais!
Hélio Castro
São Paulo/SP
= = = = = = = = =

Por minhas inúteis fugas,
entre tormentos medonhos,
deu-me a Vida, nestas rugas,
todo o prêmio dos meus sonhos.
Helvécio Barros
Macau/RN, 1909 – 1995, Bauru/SP
= = = = = = = = =

Feito o sol da madrugada,
tu chegaste de mansinho,
e minha alma enamorada
aqueceu-se em teu carinho!
Ieda Marini de Souza Oliveira
Belo Horizonte/MG
= = = = = = = = =

Se encontrei tudo na vida,
acho que posso falar:
você é tudo querida,
o que eu queria encontrar!
Isaías Teves
Amparo/SP
= = = = = = = = =

O poeta voa leve...
Além da vida e da mente,
mas teima em dizer que escreve
bem menos do que ele sente.
Jair Sales de Almeida
Tomé Açú/PA
= = = = = = = = =

Num mar de pura magia
o umbral do tempo transponho,
rumo ao reino da utopia,
na caravela do sonho.
João Costa
Saquarema/RJ
= = = = = = = = =

Unindo-me a ti pensei
"união de eternos laços"…
Hoje eu vivo como um rei
enlaçado em teus abraços!...
José Manuel Veloso Galvão
São Paulo/SP
= = = = = = = = =

Até podes dizer não
mas não te esqueças, jamais,
de que, na vida, é o perdão
que faz que sejamos mais.
José Roberto Pereira de Souza
= = = = = = = = =

As rugas são, com certeza,
se grande for o desgosto,
as estradas que a tristeza
vai abrindo em cada rosto!
Lavinio Gomes de Almeida
Barra do Piraí/RJ, ?? – 2009
= = = = = = = = =

Pelas vias pedregosas,
com sacrifício eu subia...
mas, ao descer, colhi rosas
que me encheram de alegria!
Lourdes Borelli
= = = = = = = = =

O barco dos meus desejos,
vencendo tempos e espaços,
entre carícias e beijos,
ancorou-se nos teus braços.
Luiz Machado Stabile
Uruguaiana/RS
= = = = = = = = =

Coração que canta e chora,
coração tão desigual,
que não tem, até agora,
um parecido ou igual.
Maria Aparecida Pires
Curitiba/PR
= = = = = = = = =

Se é virtude, ou se é defeito,
sei não... Sei que ages assim:
da mansidão do meu peito
tiras proveito de mim...
Maria de Fátima S. Oliveira
Juiz de Fora/MG
= = = = = = = = =

Paixões, eu digo e sustento,
pela inconstância da forma
são dunas de sentimento
que o tempo varre e transforma!
Maria Helena O. Costa
Ponta Grossa/PR
= = = = = = = = =

Alvorada, em teu regaço,
de encantos indescritíveis,
eu vejo ampliar-se o espaço
em que os tenho - são possíveis!
Marlê Beatriz Araújo
Viamão/RS
= = = = = = = = =

É feliz quem faz na vida,
sem, em troca, pedir nada,
da fé — ponto de partida -
do amor - meta de chegada!
Nádia Huguenin
Nova Friburgo/RJ, 1946 -2008
= = = = = = = = =

Se a amizade for além
demais, entre o gato e o rato;
sobra ao dono do armazém
um prejuízo de fato!
Roberto Nini
= = = = = = = = =

A vida é um mar de rosas
legando beleza e olor,
às criaturas bondosas,
que sabem semear o amor,
Sara Furquim
Rio Branco do Sul/PR, 1918 – 2020
= = = = = = = = =

Feliz quem, olhos sem pranto,
viu-se, alegre, envelhecer,
tanto amando e amando tanto
que se esqueceu de morrer.
Trigueiro Lins
Santos/SP
= = = = = = = = =

Na infância, o sumo interesse;
- calças longas, sem demora!…
(Ah, se a vida devolvesse
as calças curtas de outrora!…)
Waldir Neves
Rio de Janeiro/RJ, 1924 – 2007
= = = = = = = = =

Qual uma fonte de luz,
o sorriso resplandece
e tira da alma o capuz
da tristeza, que a fenece...
Wildman dos Santos Cestari
Taubaté/SP

Lima Barreto (Babá)

Por aqueles tempos, eu era interino no hospital da Misericórdia e, embora não fosse naturalmente mau e frio, era do meu grau cético ser um pouco indiferente ao sofrer das muitas criaturas que se achavam na minha enfermaria.

Mas não sei por que, ao entrar aquela nova doente, a minha habitual indiferença de profissional afeito à dor ficou esquecida e comecei a me inteirar pelo seu martírio e sofrimento.

Era uma preta velha, velha de mais de cem anos, africana que, ferida por um achaque próprio da sua alta velhice, vinha morrer ali aos meus olhos e aos meus cuidados. Era de ver a sua cabecinha pequena empastada de cabelos brancos, tecidos como uma rama de algodão, alvejando tristemente no fundo negro de seu rosto, encavado, chupado, esteiriçado, onde dois olhinhos castanhos quase sem brilho passeavam languidamente, dolorosamente.

No começo fiz-lhe perguntas. Indaguei-lhe de sua idade, de sua origem, se não possuía prole. E ela vagarosamente, aos pingos, deixava escorrer fracas respostas na sua meia língua, agora muito enfraquecida pela moléstia e pela idade.

Era da África, soube, de Moçambique, viera ainda rapariguinha para aqui, onde tivera por seu primeiro senhor os Carvalhos de São Gonçalo; conhecera d. João VI e, sobre ele, desconexamente, contava uma ou outra coisa avaramente guardada naquela estragada memória. Tivera filhos e dizia-me ela, pitorescamente, de várias cores.

Uns morreram e outros, me informava a Quirina (era seu nome), se foram por este mundo de Cristo, não havendo mais deles, nem novas nem mandadas, pois que as vicissitudes do cativeiro os transportava aos quatro cantos do Brasil.

Já há muitos anos, ela vivia encostada numa velha senhora, viúva de seu último senhor, a quem há poucos dias ela vira morrer trocando antes a última apólice que restava.

E quando, naquele dia, ao saber aquilo, eu fui à noite repousar no meu quarto, não me saía da imaginação aquela figura doida, cheia de sofrimento e de resignação, que, durante um longo prazo de seu século fornecera aos que lhe cercavam ternura, amor e trabalho e que agora, como um esquife vivo, já sem memória e quase sem viver, vinha morrer sem uma lágrima, sem um ai de alguém, de alguma criatura deste enorme planeta sublunar.

Estranho destino o daquela mulher. A raça lhe dava a doentia resignação para morrer miserável, na mesma terra que o sangue dera o que havia de requerer para amar e de humildade para obedecer e trabalhar.

E estas considerações fizeram-me ficar, olhos no teto, parados e presos, a fumar nervosamente, sonhando na ventura dos bons, dos mesquinhos e dos oprimidos.

Nada lhes dava a terra, o resto dos seus semelhantes, como naquela pobre negra, chupava-lhes, sugava-lhes avidamente, constantemente, reavivamente durante uma longa existência a doçura afetuosa do coração e, arrancava-lhe, até o último dia da existência, a réstia fraquíssima de energia que restasse porventura aos músculos, para depois atirar-lhes o corpo a morrer num hospital, tal como um delicioso fruto gozado que se atira depois o bagaço ao lixo. E eu pensava assim, quando, tomado de um cuidado estranho, levantei-me e fui, atravessando salas e leitos, salas de um ar soturno de catacumbas e leitos semelhantes a campas mortuárias, fui até a cama da mãe Quirina, levado até ela irresistivelmente por uma força rara, que me impelia doidamente, furiosamente.

E como era tudo em volta seu catre e, delicadamente, nos bicos dos pés, eu, em poucos instantes, me acerquei dele. O seu corpo magro saía lividamente do aconchego dos lençóis, ali, a meus olhos, placidamente dormindo, tinha na quietude de morto, naquela sua velhice venerável, o aspecto de uma múmia. Aquele fardel de carnes magras, de peles enrugadas, coladas aos ossos, embrulhada no linho dos lençóis, me pareceu ser o cadáver embalsamado de uma antiga rainha da Núbia que a curiosidade moderna houvesse trazido, de aventura em aventura, de escambo em escambo, até a estas remotas plagas da Guanabara.

Logo que cheguei ao leito ela dormia, mas minutos depois despertou e eu, a quem nunca intimidara o olhar de moribundos, temi ao ferir-me em cheio o dela, que vinha muito fora do esperado cheio de energia, de ódio, de angústia e de mistério.

Durou algum tempo isso, bem depressa, ela, se esticando toda, num esforço violento, se pôs em pé sobre o leito, permaneceu assim calada instantes e depois, uma voz dolorosa, cheia de modulações de mágoa e ódio, às vezes, outras de desconsolo e pranto, foi solenemente dizendo em frase que não lhe era isso que ouvi.

Fonte:
Lima Barreto. Conto publicado originalmente em 1903. Disponível em Domínio Público.

sexta-feira, 3 de março de 2023

Daniel Maurício (Poética) 48

 

Aparecido Raimundo de Souza (Vício frenético)

O TELEFONE toca e a velhinha leva uma eternidade enorme para se levantar do sofá e caminhar até o aparelho que se esgoela ao lado da cristaleira. Finalmente consegue atender:

— Alô, quem é? Quer falar com quem?

— Boa noite, minha senhora. Por favor, é da residência do seu Noronha?

— Aqui não tem ninguém com esse nome. O senhor ligou para a residência errada. 

— Quem mora aí, senhora?

— Orfeu.

— Morfeu?

— Orfeu, senhor, Orfeu. Mas ele não está.

— Estranho! Me falaram que nesse número eu falaria com o Noronha...

— Quem lhe passou essa informação?

— Um tal de Bigorna.

— Bigorna? Bigorna... não conheço. Ele é seu amigo?

—  Quem? O Noronha?

— Não, moço, o Bigorna.

— Nem sei quem é. 

— Como esse Bigorna lhe passou então o número do Orfeu?

— Foi assim, madame. Eu liguei para um número e atendeu uma menina. Procurei pelo Noronha e ela me passou para o pai. O sujeito, por sua vez veio ao aparelho. Foi até um tanto indelicado comigo e depois de um curto diálogo que tivemos me informou que aquele número já havia sido do Noronha e agora não mais. Nessa confusão, me passou o seu telefone. Por essa razão estou ligando.

— O senhor ligou os números corretamente?

— Por certo, senão não estaria falando com a senhora.

— Vai ver o senhor discou algum algarismo errado. No lugar de discar um, discou oito, ou no lugar do três riscou cinco. Às vezes, na pressa, a gente acaba fazendo isso... eu mesma passei por esse incômodo por diversas vezes.

— Não acredito nessa possibilidade, madame.

— E por que não?

— Seu número de telefone não tem os algarismos oito e cinco. 

— Falei aleatoriamente. Não especifiquei nenhum número em particular. Como mencionei esses, poderia ter dito zero, quatro ou dois...

— Ainda que desta forma seu telefone não possui nenhum desses números.

— Então, meu amigo. Não vamos bater em ferro frio, nem gastar vela com defunto ruim. Como lhe falei, e agora repito. Aqui não tem nenhum Maconha. Passe bem. Boa...

— Espere, espere. Por favor, senhora. Não é Maconha, é Noronha. Olha só. Eu não sou criança. A madame menos ainda. Claro, não fosse tão urgente não estaria importunando. Mas veja só. O seu Bigorna me garantiu que esse número seria do Noronha. Assim, eu insisto...

—  Senhor, como é a sua graça?

— Sham Chum Chimchim madame.

— O senhor é japonês?

— Chinês.

— Entendo. Veja bem, seu Sam. Esse número está aqui em casa há exatamente vinte e cinco anos. O senhor não acha que é um tempo mais que suficiente para alguém garantir, com exatidão, ao prezado, que esse terminal é ou deixa de ser do tal do... Harmonia?

— Noronha, madame. O nome da pessoa é Noronha. E o meu, Sham. A senhora pronunciou meu nome de forma errada. Me chamou de Sam.

— Não é Sam?

— Não, senhora. É Sham.

— Desculpe, eu lhe chamei de Sam? Que loucura... 

— Chamo Sham. Tudo bem. Deixa pra lá. Voltando ao Noronha. Puxe pela memória... de repente...

— Noronha, Noronha...

— Isso. Noronha. Talvez por lapso tenha se esquecido. Pode ser que ela faça parte do seu circulo de amizades, ou do seu relacionamento familiar, uma...

— O senhor me ofende falando assim. Está me chamando de velha gagá?

— Em absoluto. De onde a madame tirou essa ideia absurda?

— O senhor acabou de frisar: “por um lapso”. Não tenho lapso, senhor Sam. Estou em pleno gozo das minhas faculdades mentais. Imagine se iria esquecer o nome de alguém, ou de uma pessoa que faz ou fez parte do meu circulo de amizades? Se ainda fosse um nome difícil, como o seu, vá lá, mas Colônia...?

— Madame, Noronha. Noronha. Lembra do Fernando?

—- Fernando? Que Fernando?

— De Noronha.

— Não conheço nenhum Fernando de Pamonha.

— Meu Deus do céu, madame. Tem alguém em casa junto com a senhora?

— Sim!

— Quem?

— Para que o senhor quer saber?

— De repente, se a senhora chamasse...

— Outra vez me taxando de maluca? Escuta aqui seu Sam...

— Sham, senhora. Sham... por tudo quanto é mais sagrado. É a terceira ou a quarta, vez, sei lá, que a madame esquece meu nome.

— Pois então, seu... seu...

— Está vendo? Na mosca!

— Calma. Não precisa repetir. Concordo que seu patronímico seja um pouco fora do comum, mas... como lhe falei e volto a repetir, pela quinquagésima vez, seu Vam. Aqui não tem nenhum Bolonha. O senhor, efetivamente ligou para o lugar errado.

— Dona... perdão... madame... meu nome é Sham, Sham, Sham. E o cidadão que procuro não se chama Bolonha e sim Noronha.

— Então, isso mesmo: aqui não tem nenhuma pessoa com esse nome. Passe bem, seu Pam.

Inopinadamente a velhinha desliga na cara do cidadão. 

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Lairton Trovão de Andrade (Enxurrada de Poemas) – III – Madrigais

GEMA DE AMOR
"O seu fruto é doce à minha boca." (Ct. 2.3)

Cálida gema, feita de amor,
Quero sentir todo o seu sabor;
Vou dar-lhe beijos apaixonados,
E você, seus lábios abrasados.

Você é doce - feita de mel,
Real geleia - pedaço do céu;
Quanta delícia no saborear,
Que bom se o tempo não mais passar!

Você está trêmula de emoção,
Sinto o pulsar do seu coração...
Perdi o controle, perdi meu senso
Por este amor de prazer imenso.

O que acontece? - Você suspira!
O que é isso? - Você delira!
Eu estou suando - quanto calor!
Estou feliz... Obrigado, amor!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

SE...
''Põe-me como um selo sobre o teu coração, 
porque o amor é forte como a morte." (Ct.8.6)

Se fossem apagados meus olhos,
Se a língua não mais eu movesse,
Se a voz que acalenta morresse,
Sem versos pra te comover...
Se o meu coração não pulsasse,
Se a vida a existência deixasse,
Seria tristeza em teu ser.

Se não me fluíssem as letras,
Se o cérebro aceso apagasse,
Não mais a emoção me tocasse,
Sem lábios de amor pra aquecer-te,
Sem nada de odor pra sonhar,
Sem mãos para mãos encontrar,
Então... como, ainda, querer-te?I

Se ouvidos não mais te ouvissem,
Se o ser que há em mim terminasse,
Se o néctar não mais eu tomasse,
Se nada, mais nada, a rimar,
Se ausente me fosse o carinho
- Passado saudoso em meu ninho,
Com que poderia te amar?

Se a Lua eu não mais contemplasse,
Se a lira calasse pra mim,
Se a noite me fosse sem fim,
Se tudo esvaísse em meu ser,
Minh'aura, sozinha, apagada,
Saudade esmagando meu nada,
Seria só dor teu viver.

Ainda que assim ocorresse,
Teria a memória em teu nome;
E o tempo que o tempo consome,
Iria seu ciclo encerrar;
Na vida do além-infinito
Teu ser ser-me-ia bendito,
Pra sempre eu iria te amar.

Ainda que tudo passasse
E o corpo pro nada partindo,
Minh'alma só luz refletindo
- Reflexo de um novo luar;
Seria esplendor de visão
- Eterna, infinita paixão:
Tu' alma poder contemplar,

Ainda que eu fosse só cinza,
Teria uma flor neste mundo
- Semente de amor tão profundo,
Espírito oculto a me amar;
Além, muito além, com fulgor,
Há forma, há pureza, há amor:
Tu' alma eu iria abraçar.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

SÚPLICAS
"Enquanto o rei descansa em seu divã, 
meu nardo exala seu perfume." (Ct. 1.12)

Não me ames jamais
Pela magia dos meus olhos;
Que a luz do meu olhar
Não te seja a tramontana,
A guiar teus passos
Rumo ao norte da felicidade.

Não contemples nunca
As pétalas do meu sorriso,
Com visões de rubros pomos
De um eterno outono.
Que o timbre sonoro
De aveludada voz
Não seja sereia"
A te encantar
Em visionário céu.

Jamais faças teu ninho
Nos frágeis caracóis
De cabelo algum.
Não te apaixones nunca
Por um rosto, apenas,
Onde o tempo, ainda,
Não deixou sua marca.

Que a postura artística
De um corpo atlético
Te seja descolorido sonho.
Esqueça, em tempo,
Do artificial perfume
Que te trouxe êxtases.

Não me ames jamais
Pelo tom do belo,
Que me julgas ter,
Mas que nunca tive.
Esqueça a imponência
Deste meu púlpito,
Pois tudo está passando
Com o passar das horas...

E tudo o que passa
É vaidade,
Vaidade de um tempo fortuito.
Não me ames, então,
Pelo que se transforma
E passa...
E, no tempo, morre.

Contudo,
Ama-me,
Ama-me com força irresistível!
Ama-me pela bondade
Que, porventura,
Exista em mim.
Ama-me pela felicidade
Do teu ser
E pela harmonia
Do teu viver.
Ama-me pelo caráter
Que, aos poucos,
O tempo
Foi-me edificando.
Ama-me pelo que sou
No meu espírito.
Ama-me pela essência
Da minha alma.

Então,
O teu amor
Será eterno,
E terás
Razões eternas
Para me amar
Eternamente...

Fonte:
Enviado pelo poeta.
Lairton Trovão de Andrade. Madrigais: poesias românticas. Londrina/PR: Ed. Altha Print, 2005.

Silmar Böhrer (Croniquinha) 77

O pouco conhecimento que temos sobre os homens coletores nos dá conta de que viviam uma vida de subsistência, trabalhavam para sobreviver, não usando o tempo livre para outras atividades. Ou raras delas.  

Modernamente, passando por estágios de desenvolvimento - homo sapiens, homo ludus e outros - tornamos a vida mais agradável na medida em que aprendemos que não é só trabalhar para sobreviver, para gerar riquezas, mundos e fundos.  Descobrimos que o espírito, nosso ser, também necessita de vagares. (Devagares).    

Nossos dias são uma miscelânea, quanto mais misturados, mais se completam.  Eu e meus EUS vamos fruindo este delicioso rango, saboreando coisas - vitórias, decepções, amenidades, tristezas, música, alegrias, poesia, lonjura, distâncias, horizontes . . .

O ócio, o lazer, o encantamento, são acumuladores de energias que vamos usando no prato principal.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Estante de Livros (David Copperfield, de Charles Dickens)


David Copperfield é um romance de Charles Dickens. A exemplo de vários trabalhos da época, inicialmente foi publicado em capítulos, tendo sido publicado como livro em 1850.

Muitos elementos descritos no livro se parecem com eventos da vida de Dickens, o que leva os estudiosos a considerarem-na a mais autobiográfica de suas obras. No prefácio da edição de 1867, Charles Dickens escreveu ""... como muitos pais amorosos, eu tenho, no fundo, no fundo, um filho favorito. E seu nome é David Copperfield".

A história narra o trajeto de David Copperfield da infância à maturidade. David nasceu na Inglaterra em 1820; seu pai havia morrido 6 meses antes de seu nascimento, e sete anos após, sua mãe se casa com Mr. Edward Murdstone. David não simpatiza com o padrasto, nem com a irmã dele, Jane, que passa a morar em sua casa. Mr. Murdstone espanca David pelas dificuldades nos estudos, e David, num desses espancamentos, morde-o, sendo mandado para um colégio interno, Salem House, sob os cuidados do cruel mestre Mr. Creakle. Ali, David faz amizade com James Steerforth e Tommy Traddles, os quais posteriormente voltará a encontrar .

David retorna a casa nas férias e encontra a mãe, que tivera um bebê, mas após voltar à escola, a mãe e o irmão morrem, e David retorna imediatamente para casa. Mr. Murdstone o manda para trabalhar em uma fábrica em Londres, da qual Murdstone é um dos proprietários. Seu chefe, Mr. Wilkins Micawber, é mandado para a prisão dos devedores King's Bench Prison, após a falência da fábrica, e passam-se muitos meses até sua liberdade, quando então se muda para Plymouth; enquanto isso, como David não tinha ninguém para cuidar dele em Londres, decide seguir caminho. 

Ele anda todo o caminho de Londres a Dover, para encontrar seu único parente, sua tia Miss Betsey. A excêntrica Betsey Trotwood aceita cuidar dele, apesar de frequentemente Mr. Murdstone visitá-la tentando conseguir a custódia de David. A tia o renomeia como 'Trotwood Copperfield', encurtado depois para "Trot", e pelo resto da história ele é chamado por um nome ou outro, dependendo de a pessoa ser uma velha conhecida ou tê-lo conhecido recentemente.

A história narra a passagem de David para a vida adulta, e seu envolvimento com as pessoas que encontra, levando-o a rever sua vida. Uma dessas pessoas era Peggotty, a fiel ex-caseira de sua mãe, sua família e a sobrinha órfã Little Emily, que vive com eles e encanta o jovem David. O romântico e independente amigo de David, Steerforth, seduz e desonra Emily, desencadeando a maior tragédia do romance, e a filha de seu chefe, a angelical Agnes Wickfield, torna-se sua confidente. 

Dois personagens próximos de David são o eterno devedor Mr Wilkins Micawber, e o fraudulento Uriah Heep, cujos deslizes são eventualmente descobertos por Micawber. Micawber é retratado como um personagem simpático, apesar de o autor deplorar sua inabilidade financeira e, como ocorrera na realidade com o pai de Dickens, é aprisionado por suas insolvências.

Uma das características de Dickens é fazer descrições rápidas sobre o destino de suas personagens; Dan Peggotty leva Little Emily para uma nova vida na Austrália; acompanhando-os estão Mrs. Gummidge e os Micawbers; em busca de segurança, todos encontram felicidade na sua nova vida. David inicialmente casa com a bela, mas ingênua Dora Spenlow, mas ela morre após um aborto. David, finalmente, casa com a sensível Agnes, que secretamente o amava e descobre a felicidade. Eles têm muitos filhos, incluindo uma filha chamada Betsey Trotwood.

PERSONAGENS:

David Copperfield – um otimista, diligente e perseverante personagem. Posteriormente ele é chamado "Trotwood Copperfield" por alguns ("David Copperfield" é também o nome do herói de seu pai, que morreu antes de David), mas tem muitos apelidos: James Steerforth o apelida de "Daisy", Dora o chama "Doady", e sua tia (Betsey Trotwood) se refere a ele como "Trot" (de "Trotwood Copperfield").

Clara Copperfield – mãe de David, descrita como inocente e pueril, morre enquanto David está em Salem House, juntamente com seu bebê.

Clara Peggotty – a fiel caseira dos Copperfield e longa companheira de David (viveu um tempo como Mrs. Barkis, após seu casamento com Mr . Barkis). Herdou 3 mil libras – uma grande quantia no século – quando Mr . Barkis morreu. Após a morte dele, passou a servir Betsey Trotwood.

Betsey Trotwood – a excêntrica e temperamental tia de David, que passou a ser sua guardiã. Ela está presente na noite do nascimento de David.

Mr. Chillip – o médico que assiste o nascimento de David.

Mr. Barkis – um reservado carroceiro que declara sua intenção de casar com Peggotty . Ele diz para David: "Conte a ela, Barkis está querendo! Apenas isso." Ele é um tanto mesquinho, e esconde sua surpreendente fortuna em uma caixa onde está escrito "Roupas Velhas". Ele deixa para a esposa a então grande soma de 3 mil libras, quando morre, dez anos depois.

Edward Murdstone – o cruel padrasto de David, que após a morte da esposa, o manda para trabalhar na fábrica. Após David sair pelo mundo, aparece na casa de Betsey Trotwood. 

Wilkins Micawber – um homem gentil que faz amizade com David. Ele sofre dificuldades financeiras e gasta seu tempo em prisões de devedores. Posteriormente emigra para Austrália. Seu personagem é baseado em John Dickens, pai de Charles Dickens. 

Jane Murdstone – a igualmente cruel irmã de Mr. Murdstone, que muda para a casa de David quando o irmão casa com Clara Copperfield. Ela é amiga confidente da primeira esposa de David, Dora Spenlow, e a encorajadora de muitos dos problemas surgidos entre David e o pai de Dora, Mr . Spenlow.

Daniel Peggotty – o irmão de Peggotty, um humilde, mas generoso pescador de Yarmouth que cria seus sobrinhos órfãos Ham e Emily. Após a partida de Emily, ele sai pelo mundo a procurá-la, e a encontra em Londres, após o que eles migram para a Austrália.

Emily (Little Emily) – uma sobrinha de Mr. Peggotty, amiga e amor de infância de David. Ela troca seu primo e noivo Ham por Steerforth, mas vai embora de casa após Steerforth abandoná-la. Posteriormente, ela emigra para a Austrália com Mr. Peggotty após ser resgatada por ele de um bordel em Londres.

Ham Peggotty – o bondoso sobrinho de Mr . Peggotty e noivo de Emily, antes de ela ser levada por Steerforth. Posteriormente, morre ao tentar resgatar um marinheiro de um navio naufragando, que ele acredita ser Steerforth.

Mrs. Gummidge – a viúva do sócio de Daniel Peggotty no barco. Ela também emigra para a Austrália com a família de Dan Peggotty.

Martha Endell – uma jovem de má reputação que ajuda Daniel Peggotty a procurar sua sobrinha em Londres. Ela trabalha como prostituta.

Mr. Creakle – o cruel mestre do jovem David, que é assistido por Tungay. Mr. Creakle é amigo de Mr. Murdstone.

James Steerforth – amigo íntimo de David, romântico e charmoso; conhece David em Salem House. Acaba mostrando sua deficiência de caráter ao seduzir e abandonar Little Emily .

Tommy Traddles – amigo de David, de Salem House. Tommy trabalha pesado, mediante dificuldades financeiras.

Mr. Dick (Richard Babley) – um alienado, pueril e amável senhor , que vive com Betsey Trotwood.

Dr. Strong – o mestre de David na escola de Canterbury , que o visita várias vezes.

Anne Strong– a jovem esposa do Dr. Strong.

Jack Maldon – um primo e amor de infância de Anne Strong, que continua a ter afeição por ela e tenta seduzi-la.

Mr. Wickfield – o pai de Agnes Wickfield e advogado de Betsey Trotwood, que tem problemas com alcoolismo.

Agnes Wickfield – a filha madura e sensata de Mr . Wickfield, que tem amizade por David desde a infância. Posteriormente se torna esposa de David e mãe de seus 3 filhos.

Uriah Heep – o perverso sócio de Mr. Wickfield, que é descoberto e preso.

Mrs. Steerforth – a mãe de James Steerforth.

Miss Dartle – a mulher que vive com Mrs. Steerforth, e tem um amor secreto por James Steerforth.

Mr. Spenlow – um empregado de David, que morre de ataque cardíaco enquanto dirige a carruagem.

Dora Spenlow – a adorável, mas infantil filha de Mr . Spenlow que se torna a 1ª esposa de David e apresenta muitas similaridades com a mãe de David.

Mr.Sharp – o diretor de Salem House.

Mr.Mell – um homem alto e magro, também de Salem House.

ADAPTAÇÕES

David Copperfield foi filmado em várias ocasiões, desde 1911. 

As numerosas adaptações para TV incluem a versão de 1966, com Ian McKellen como David, e a versão de 1999, com Daniel Radcliffe (do Harry Potter) como David jovem e Ciaran Mc Menamin como o David adulto.
Numa versão posterior, McKellen retorna, dessa vez como o cruel Creakle.

Há uma versão animada em 1993, onde os personagens são animais. Julian Lennonfaz a voz de David (um gato).

Foi transformado em musical em 1981 ( Copperfield).

David Copperfield foi publicado em 19 meses, em forma de série, a exemplo de outras publicações da época,

Os personagens de David Copperfield, muitas vezes, inspiraram o nome de personagens famosos, tais como o ilusionista David Copperfield e a banda hard rock Uriah Heep.

Fonte:
Wikipedia. Em 16 setembro 2017.

quinta-feira, 2 de março de 2023

José Fabiano (Muros de Trovas) 06

 

Cecy Barbosa Campos (Mudanças)

As montanhas circundavam a pequena cidade como se a protegessem. Árvores sentinelas completavam a guarda, altaneiras em seu verde-exército. Ao centro, a Igreja, a praça, a rua principal, que existe em todas as cidadezinhas, distinguindo-se das outras, mais estreitas, ladeadas por casas avarandadas, com pintura desbotada e flores coloridas, enfeitando, contrastivamente, o jardim bem cuidado.

Na rua principal, as lojas se apresentavam entulhadas, com artigos representativos das diversas atividades e profissões. Armarinhos, tecidos, objetos de decoração, panelas, tudo de que se precisasse poderia ser encontrado. As quitandas ou vendas eram providas, suficientemente, de verduras, frutas, arroz, feijão, fubá e outros produtos alimentícios. Até mesmo os galináceos eram ali encontrados, e as donas de casa, hábeis cozinheiras, engendravam cardápios caprichados, podendo até oferecer à família um requintado frango ao molho pardo em qualquer dia da semana, já que o problema da degola da ave era facilmente resolvido.

O tempo passava devagar. Qualquer ida ao mercado ou à Igreja podia se prolongar por horas, dependendo do "papo" que se estabelecia entre os amigos que se encontravam pelo caminho. No regresso à casa, o marido ou a esposa rememorava as novidades que tinham sido apreendidas e, antecipadamente, já se deliciavam ao pensar no almoço saboroso apimentado pelas fofocas que seriam degustadas conjuntamente.

Enquanto andavam pelas ruas tranquilas, os habitantes daquela cidadezinha ouviam, vez por outra, o som do rádio. Ecoavam as vozes de Francisco Alves, Carlos Galhardo, Ângela Maria... As letras românticas eram assimiladas e, muitas vezes, entoadas por homens e mulheres, velhos e crianças, mesmo que trechos de uma canção se misturassem ás palavras de outra, ou que o ritmo não estivesse perfeito. De qualquer forma, havia música no coração de cada um, naquele tempo distante, naquela e em outras cidadezinhas do interior. Os jovens, cheios de sonhos, identificavam-se com os artistas e se imaginavam cantando em programas de auditório superlotados e ouvindo os fãs gritarem seus nomes, no arroubo da paixão,

À tardinha, depois do jantar, as famílias colocavam cadeiras nas calçadas e as conversas se estendiam, de vizinho a vizinho, intercaladas por broinhas, biscoitos e doces caseiros. As portas abertas permitiam o vai e vem de uns, na casa do outro para pegar um copo d’água, ver o belo cacho de bananas que tinha sido colhido ou para uma corridinha ao banheiro. Esta comunhão acontecia de forma despreocupada e sem apreensões, pois ladrões, malfeitores ou policiais perigosos não existiam naquele tempo.

Entretanto, o progresso foi chegando e afugentando as crianças que brincavam nas ruas. Foi trancando as portas e colocando grades nas janelas. As casas foram se transformando em prisões e o medo tirou a alegria daqueles que antes viviam livremente.

Com o progresso, vieram os freezers e ninguém mais encontrou tempo de cultivar sua verdura no quintal ou de plantar flores no jardim. Os congelados facilitaram a vida de quem não mais tem tempo de matar o frango para o molho pardo. O som do rádio foi trocado pelo barulho de potentes aparelhos, e as conversas com os amigos, que se revezavam nas cadeiras da calçada, foram substituídas por insossos programas de televisão que acabaram com as conversas, até mesmo em família. 

As casas foram substituídas pelos espigões, que escondem a luz da lua e das estrelas. As árvores desapareceram, e os barracos mal se equilibram morro acima. Que penal Quanta diferença! 

A minha cidadezinha cresceu e tornou-se uma das maiores cidades do Estado. Parece que as pessoas mudaram também e, a respeito disto, é melhor guardar um silêncio bem mineiro sobre o assunto.

Fonte:
Enviado pela escritora.
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.

Cecim Calixto (Cajado de Sonetos) X


AUTORRETRATO

Quando estou triste a inspiração me vem
Arrebatar o que a memória sente.
Inda acrescento: a solidão faz bem
Às variações da esplendorosa mente.

Minha tristeza é essencial também
Quando atrelada à predileta ausente.
Sinto que danço no salão do além
Nos braços lânguidos da Euterpe ardente.

Saudade traz a solidão gostosa...
E a letra exata me apresenta honrosa
A diretriz do magistral poema.

E tange o som do meu lirismo santo
Na aprovação do meu pungente canto
Exposto em tela sem nenhum dilema.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

DISCREPÂNCIA

Vou resgatar o meu maior anelo
Que vem de longe, de um passado vil.
E foi por ele que enfrentei duelo
Contra deveres e o destino hostil.

Por este amor fiz e travei libelo
E preservei este prazer senil
Que não padece ante qualquer flagelo
Nem arrefece o coração viril.

O meu anseio por amá-lo tanto
Vem de menino que bebeu o encanto
Do beijo ardente no mais temo abrigo.

Tristonho assisto o original contexto:
Ser atirado num imundo sexto
Sem proteção de um matutino amigo.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

DOAÇÃO AMIGA

Quero que chova como chove a chuva
Sobre as verduras cá do meu pomar.
E traga frio de enxotar saúva
E de encher rios que se vão ao mar.

Se vem com sol vai se casar viúva,..
Depois a trégua, para o campo arar.
Termino o trecho e já descalço a luva
Para o meu trago semanal no bar,

Trabalho muito, pois compensa à faina,
Para o retorno que a algibeira amaina
Na crise insana que a lavoura assola,

Parte do fruto com orgulho cedo
Ao bom vizinho, sem nenhum segredo,
Que sempre ajuda sem pedir esmola.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

FESTA DE IGREJA NO INTERIOR

APARECIDA, jubilosa enseja
A bela festa que dezembro traz.
Há muita gente na pequena igreja,
Sinal que mostra que a oração apraz.

Além da Santa, o coração deseja
Ouvir a banda da regência audaz.
Leitão assado na legal bandeja
Mostra que o frango logo vem atrás.

No átrio largo o povo espera aflito
Do fogueteiro o memorável grito
Para a soltura do rojão primeiro.

Alegre fogo todo o céu clareia
E a multidão presente à praça cheia,
Percebe o afago do fiel Romeiro.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

JOTA

Nada mais temo que este amor menino,
Pois sobrevive sem nenhum pecado,
Despertando a alma como um forte sino
E arrefecendo o sentimento amuado.

Beijo inocente, é como o som de um hino,
Dos lábios rubros de emoção untado.
É a doce marca do sabor mais fino
Nas horas caras com seu bem amado.

E aquele tempo do colégio brota
E traz à mente aquela letra jota
Que foi amor, hoje eternal amiga.

Quanta lembrança me acalenta o senso:
Traz a doçura do passado imenso
E aflora o pranto da ternura antiga.

Fonte:
Cecim Calixto. Flores do meu cajado: sonetos. Curitiba: Juruá, 2015.

O. Henry (A Porta Verde)

Suponhamos que você esteja a caminhar pela Broadway depois do jantar, com dez minutos para fumar um charuto enquanto resolve se irá assistir a uma tragédia divertida ou a algo mais circunspecto no gênero de variedades. De repente, alguém o detém pelo braço. Você se volta para dar com os olhos fascinantes de uma linda mulher que exibe magníficos brilhantes e zibelinas russas. Ela lhe coloca na mão, às pressas, um pãozinho com manteiga, extremamente quente, e, armada de minúscula tesoura, arranca-lhe o segundo botão do sobretudo, dizendo significativamente uma só palavra — "paralelograma!" —, e envereda a correr por uma rua transversal, olhando amedrontadamente para trás, por cima do ombro.

Isso seria pura aventura. Você a aceitaria? Claro que não. Coraria, embaraçado; deixaria cair envergonhadamente o pãozinho e continuaria a caminhar pela Broadwny abaixo, apalpando timidamente o sobretudo à procura do botão. Tudo isso faria você, a menos que fosse um dos poucos privilegiados nos quais o autêntico espírito de aventura ainda não morreu. 

Os aventureiros de verdade nunca foram numerosos. Os que são assim designados em letra de forma não passam, na maioria dos casos, de homens de negócios com métodos recém-inventados. Saíram a campo em busca do que desejavam — tosões de ouro, santos graais, o amor de suas damas, tesouros, coroas e fama. O verdadeiro aventureiro parte sem rumo e sem premeditação ao encontro de um destino desconhecido. 

Excelente exemplo foi o Filho Pródigo — quando começou a viagem de volta a casa. Os semi-aventureiros — bravas e esplêndidas figuras — têm sido numerosos. Desde as Cruzadas até as Paliçadas, enriqueceram a arte da História e da ficção e o ramo da ficção histórica. Cada um deles, porém, tinha um prêmio a conquistar, um objeto a atingir, um machado a afiar, uma corrida a vencer, uma nova estocada em terça a esgrimir, um nome a esculpir, um corvo para bicar — não sendo, pois, amantes da autêntica aventura.

Numa grande cidade, o Romance e a Aventura, espíritos gêmeos, estão sempre à solta, à procura de pretendentes condignos. Enquanto vagamos pelas ruas, eles nos espiam sorrateiros e nos desafiam de vinte maneiras diferentes. Sem atinar por que, de repente levantamos os olhos e percebemos, numa janela, um rosto que parece pertencer à nossa galeria de retratos íntimos; numa avenida adormecida, ouvimos um grito de agonia e de medo vindo de uma casa vazia e fechada; um chofer de táxi, em vez de nos deixar em nossa calçada familiar, deixa-nos diante de uma porta estranha, que alguém abre para nós com um sorriso, convidando-nos a entrar; uma tira de papel, com algo escrito, desce flutuando até os nossos pés, atirada das altas gelosias do Acaso; trocamos olhares instantâneos de ódio, simpatia ou medo com estranhos apressados, na multidão transeunte; uma súbita carga d’água — e nosso guarda-chuva pode abrigar a filha da Lua Cheia e prima-irmã do Sistema Sideral; a cada esquina, lenços caem, dedos acenam, olhos assediam, e as perdidas, as solitárias, as empolgantes, as misteriosas, as perigosamente mutáveis chaves da aventura são nos postas na mão. Poucos de nós, entretanto, mostram-se dispostos a agarrá-las e utilizá-las. Tornamo-nos empertigados, com a vareta das convenções endurecendo-nos as costas. Seguimos adiante, e certo dia, ao fim de uma vida muito insossa, constatamos que o nosso romance foi algo pálido, um ou dois casamentos, uma roseta de cetim guardada no cofre, e uma briga perene com um radiador a vapor.

Rudolf Steiner era um autêntico aventureiro. Poucas as noites em que não saía do seu pequeno apartamento à procura do inesperado e do insigne. A coisa mais interessante da vida parecia-lhe ser o que pudesse encontrar logo adiante, ao virar a esquina. Algumas vezes, sua determinação em desafiar o destino o conduziu a estranhos atalhos. Duas vezes passou a noite no plantão da polícia; amiúde viu-se logrado por espertalhões ardilosos e mercenários; um lisonjeiro engodo custou-lhe o relógio e o dinheiro. Continuava, porém, com ardor jamais esmorecido, a erguer toda luva que lhe era atirada nas liças alegres da aventura.

Certa noite, Rudolf passeava por uma das ruas transversais, na parte central mais antiga da cidade. Duas torrentes de povo enchiam as calçadas — os que corriam para casa, e o inquieto contingente dos que abandonam o lar pela enganosa acolhida da table d’hôte profusamente iluminada. 

O jovem aventureiro era de presença agradável, e movia-se serena e cautelosamente. À luz do dia, era vendedor numa loja de pianos. Trazia a gravata passada por um anel de topázio, em lugar de prendê-la com um alfinete; e certa ocasião escrevera ao redator de uma revista que A Prova de Amor de Junie, por Miss Libbey, fora o livro que mais o influenciara na vida.

Durante o passeio, um violento estalejar de dentes, numa vitrina, chamou a atenção de Rudolf (com que náusea!) para um restaurante a ela fronteiro; olhando melhor, porém, notou as letras luminosas de uma placa de dentista, acima da porta contígua. Um negro gigantesco, envergando um fantástico casaco vermelho cheio de bordados, calças amarelas e boné militar, distribuía cartões discretamente aos passantes da multidão que os aceitassem.

Essa técnica de propaganda dental não constituía novidade para Rudolf. Geralmente, passava pelos distribuidores de cartões sem diminuir-lhes o estoque; nessa noite, entretanto, o africano enfiou-lhe um cartão na mão com tanta destreza, que Rudolf o aceitou, sorrindo ligeiramente ante a habilidade da manobra,

Depois de dar mais alguns passos, correu os olhos pelo cartão, sem muito interesse. O que viu, porém, fê-lo revirar novamente o cartão e examiná-lo detidamente. Um dos lados estava em branco; no outro viam-se, escritas a tinta, três palavras: "A Porta Verde". Foi então que Rodolf notou, pouco mais adiante, alguém atirar fora outro dos cartões entregues pelo negro. Rudolf apanhou-o e verificou que trazia, impressos, o nome e o endereço do dentista, além dos dizeres habituais: "placas", "pontes" e "coroas", e enganosas promessas de operações "sem dor".

O aventuroso vendedor de pianos parou na esquina e pôs-se a refletir. Em seguida, cruzou a rua, percorreu mais um quarteirão, tornou a atravessar e integrou-se na corrente de gente que subia. Simulando não ver o negro, ao passar por ele pela segunda vez, recebeu despreocupadamente o cartão oferecido. Dez passos adiante, parou para examiná-lo. Com a mesma caligrafia do cartão anterior, ali estavam as palavras "A Porta Verde".

Três ou quatro cartões haviam sido atirados ao chão por transeuntes, adiante e atrás de Rudolf. Todos tinham caído com o lado em branco para cima. Rudolf virou-os. Traziam a legenda impressa do consultório dentário.

O travesso espectro da Aventura raramente precisara de acenar duas vezes para Rudolf Steiner, seu verdadeiro seguidor. Dessa feita, contudo, fizera-o duas vezes, para a andança começar. O aventureiro voltou vagarosamente para onde estava postado o negro gigantesco, junto da vitrina da dentadura estalejante. Ao passar por ele, não recebeu cartão algum dessa vez. Malgrado o vestuário espalhafatoso e ridículo, o etíope exibia uma bárbara dignidade natural, ali postado a oferecer gentilmente cartões a alguns transeuntes, deixando outros passarem sem molestá-los. De meio em meio minuto, cantarolava uma frase áspera e ininteligível, semelhante à algaravia dos condutores de bonde e dos cantores de ópera. Dessa feita, não somente Rudolf não recebeu o cartão, como lhe pareceu que na negra fisionomia vasta e, reluzente se estampava uma expressão de frio, de quase desdenhoso desprezo.

Isso aturdiu o aventureiro. Via nela uma acusação silenciosa de que fora julgado inapto. Fosse qual fosse o significado das palavras misteriosas escritas no cartão, o negro havia escolhido Rudolf duas vezes, entre os da multidão, para seu destinatário; e agora parecia censurá-lo por não ter tido espírito nem sagacidade bastante para enfrentar o enigma. 

Afastando-se um pouco da torrente de passantes, o jovem fez uma estimava rápida do edifício onde supunha o esperasse sua aventura. Era um edifício de cinco andares; no seu subsolo havia um pequeno restaurante. O primeiro andar, agora fechado, parecia alojar uma chapelaria ou uma peleteria. O segundo, de acordo com as piscantes letras luminosas, era o do dentista. Acima dele, uma babel poliglota de letreiros forcejava por indicar as moradias de quiromantes, costureiros, músicos e médicos. Nos outros andares, cortinas nas janelas e garrafas de leite alvejando nos peitoris denunciavam paragens mais domésticas.

Terminada a inspeção, Rudolf subiu animadamente o longo lance de degraus de pedra até a casa. Venceu mais dois lances de degraus atapetados e deteve-se no patamar fracamente alumiado por dois pálidos bicos de gás — um bem para a direita, outro mais perto, à esquerda, Olhando em direção do foco luminoso mais próximo, logrou entrever uma porta verde ao centro do halo lívido. Hesitou um instante; depois, reviu a insolente careta do pelotiqueiro africano e caminhou diretamente para a porta verde, à qual bateu.

Momentos como os que passou antes que lhe atendessem à batida dão a medida da intensidade da verdadeira aventura. O que não estaria por detrás dos painéis verdes! Jogadores de cartas; espertos rufiões a tramarem golpes com sutil minuciosidade; a beleza em idílio com a coragem, a tecer planos para ser por ela cortejada; perigos, morte, amor, desapontamento, ridículo — tudo isto poderia responder àquela batida temerária.

Um leve farfalhar fez-se ouvir lá dentro e a porta se abriu lentamente. Apareceu-lhe uma moça, que ainda não atingira a casa dos vinte, vacilante e mortalmente pálida. Mal largou o trinco, oscilou fracamente, procurando apoio com uma das mãos. Rudolf tomou-a nos braços e a depôs num sofá desbotado, que estava encostado à parede. Após fechar a porta, relanceou os olhos pelo quarto iluminado por um tremeluzente bico de gás. Ordem, mas extrema pobreza, foi a história que leu.

A moça continuava imóvel, como que desmaiada. Rudolf olhou em redor, excitadamente, à procura de um barril. Deve-se rolar sobre um barril as pessoas que... — não, não; isso era para pessoas afogadas. Pôs-se então a abaná-la com o chapéu. Logrou êxito, pois bateu com a aba na ponta do seu nariz e ela abriu os olhos. Então o rapaz notou que, na verdade, aquele rosto era um dos que lhe faltavam na galeria de retratos íntimos. Os olhos cinzentos e francos, o narizinho impertinentemente arrebitado, constituíam a recompensa e fim adequados de todas as suas maraviIhosas aventuras. Contudo, a face era dolorosamente magra e pálida.

A moça fitou-o calmamente e depois sorriu.

— Desmaiei, não foi? — perguntou, com voz débil. — Bem, quem não o faria? Experimente ficar três dias sem comer nada e verá.

— Céus! — exclamou Rudolf, dando um pulo. — Espere um instantinho. Volto já.

Precipitou-se, porta verde afora, pela escadaria abaixo. Vinte minutos depois estava de volta, batendo na porta com o pé para que a moça a abrisse. Trazia os braços carregados de um montão de mercadorias compradas na mercearia e no restaurante. Colocou tudo sobre a mesa — pão e manteiga, carnes frias, bolos, tortas, conservas, ostras, um frango assado, uma garrafa de leite e uma de chá fervente.

— É ridículo ficar sem comer — declarou Rudolf, intempestivamente. — Deve deixar de fazer tais apostas eleiçoeiras. O jantar está servido.

Acomodou a moça numa cadeira junto à mesa e perguntou:

— Tem aí uma xícara?

— Está na prateleira, perto da janela — respondeu ela.

Ao voltar com a xícara, Rudolf viu que a moça, com olhos brilhando de extasiados, começara a comer um enorme endro em conserva, que pescara num dos sacos de papel, com o indefectível instinto feminino. Sorridente, tomou-lhe o endro da mão e encheu um copo com leite.

— Beba isto primeiro — ordenou. — Depois tomará um pouco de chá e comerá uma asinha de frango. Se for muito boazinha, poderá experimentar as conservas amanhã. E agora, se me permite ser seu convidado, vamos cear.

Puxou a outra cadeira. O chá avivou os olhos da moça e trouxe-lhe um pouco de cor às faces. Ela se pôs a comer com uma espécie de elegante voracidade, qual um faminto. Parecia considerar coisa natural a presença do rapaz e a ajuda que este lhe prestara — não como quem estimasse as convenções, mas como alguém cuja grande tensão lhe desse o direito de trocar o artificial pelo humano. Aos poucos, porém, voltando-lhe as forças e o bem-estar, voltou também o sentido das pequenas convenções de praxe; começou ela então a contar a Rudolf sua pequena história. Era semelhante às mil e uma que a cidade boceja todo dia: a história da empregada de loja com ordenado insuficiente, reduzido ainda mais pelas "multas” que servem para aumentar os lucros da loja; depois, os dias perdidos por doença; finalmente, o emprego perdido, a esperança perdida e... um aventureiro que bate a uma porta verde.

Para Rudolf, porém, a história soava tão importante quanto as estrofes de A Ilíada ou o ponto culminante de A Prova de Amor de Junie.

— E pensar que passou por tudo isso! — exclamou ele.

— Foi duríssimo. — disse a moça, solenemente.

— E não tem parentes nem amigos na cidade?

— Ninguém.

— Também estou sozinho no mundo. — disse Rudolf, depois de uma pausa.

— Folgo muito em sabê-lo. — respondeu a moça prontamente; e de certo modo foi agradável ao rapaz saber que sua condição de desamparo lhe merecia a aprovação.

Subitamente, cerraram-se as pálpebras da jovem, e ela suspirou fundo.

— Estou morta de sono — disse — e sinto-me tão bem!

Rudolf levantou-se e apanhou o chapéu.

— Então vou dizendo boa noite. Um sono prolongado far-lhe-a muito bem.

Estendeu a mão, que ela apertou com um "boa noite". Os olhos da moça, porém, faziam-lhe uma pergunta com tanta eloqüência, com tanta franqueza e emoção, que o rapaz respondeu-a com palavras:

— Sim, voltarei amanhã para vê-la e saber como passou, Não se livrará de mim assim tão facilmente.

Depois, à porta, como se a maneira de ele ter vindo tivesse muito menor importância do que o fato da vinda, ela perguntou;

— Como foi que veio bater à minha porta?

Rudolf fitou-a por um momento, lembrando-se dos cartões e sentindo-se subitamente mordido pelo ciúme. E se os cartões tivessem caído em outras mãos tão aventureiras quanto as dele? Decidiu prontamente que ela jamais deveria saber da verdade. Nunca a deixaria saber que ele estava a par do curioso expediente ao qual ela fora arrastada pela sua extrema
necessidade.

— Um dos nossos afinadores mora neste edifício — declarou — Enganei-me de porta.

A última coisa que viu no quarto, antes de a porta verde fechar-se, foi o sorriso da moça. No topo da escada, Rudolf deteve-se e examinou, curioso, o local à sua volta. Em seguida, foi até o fim do corredor; voltou, subiu ao andar de cima, e continuou, intrigado, suas explorações. Todas as portas que encontrou estavam pintadas de verde.

Cismado, desceu à rua. O fantástico africano ainda se encontrava lá. Rudolf abordou-o, com os dois cartões na mão.

— Pode dizer-me por que me deu estes dois cartões e o que significam? — perguntou.

Num sorriso largo e bem humorado, o negro exibiu magnífico anúncio da profissão de seu patrão.

— É ali, chefe. — respondeu, apontando para baixo. — Mas acho que já é muito tarde para o senhor alcançar o primeiro ato.

Olhando para onde o negro apontava, Rudolf viu, no alto da entrada de um teatro, o flamejante letreiro luminoso da nova peça; A Porta Verde.

— Me disseram que é uma peça de primeira, chefe. — continuou o negro. — O empresário dela me deu um dólar, chefe, para eu distribuir alguns cartões dele junto com os do doutor. Posso lhe oferecer um dos cartões do doutor, chefe?

À esquina do quarteirão em que morava, Rudolf fez uma parada para um copo de cerveja e um charuto. Quando saiu de charuto aceso, abotoou o casaco, empurrou o chapéu para trás e disse resolutamente ao poste de iluminação da esquina; que preparou o caminho para ele encontrá-la.

— De qualquer maneira, creio que foi a mão do Destino que preparou o caminho para eu encontrá-la.

Conclusão essa que, nas circunstâncias do caso, certamente dá a Rudolf Steiner ingresso nas fileiras dos verdadeiros seguidores do Romance e da Aventura.

Fonte:
O. Henry. Caminhos do Destino. Contos. Publicado originalmente em 1909.
Disponível em Domínio Público.