segunda-feira, 23 de junho de 2025

Asas da Poesia * 41 *

 

 Glosa de
NEMÉSIO PRATA
Fortaleza/CE

MOTE:
Ah, se eu fosse um construtor
eu faria estradas novas
incrustadas com amor;
pelo chão... milhões de trovas!
José Feldman (Floresta/PR)

GLOSA:
Ah, se eu fosse um construtor
de estradas, falou o Bardo;
faria, com muito amor,
estradas, sem qualquer fardo!

Pelas trilhas mais fechadas
eu faria estradas novas
com versos sinalizadas, 
e balizadas com trovas!

Disse mais o Trovador:
que as estradas, as faria
incrustadas com amor;
a mais pura pedraria!

Assim vive do Trovador,
construtor de estradas novas,
espalhando, com amor,
pelo chão... milhões de trovas!
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Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

A prata, em nosso cabelo, 
faz ninho se a idade vem... 
Que pena ela não fazê-lo 
em nossos bolsos também!
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Poema de
SONIA CARDOSO
Ponta Grossa/PR

Ir e vir 

Sim, já vesti os mortos 
E desvesti os vivos 
Acompanhei suas dores,
Melancolias profundas 
Caminhadas trôpegas 
E saídas jubilosas 
O ir e vir da vida.
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Trova de
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Só tu, sabiá tristonho,
preso, conheces a dor,
da atroz solidão de um sonho
dos que vivem sem amor!
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Poema de
OLIVER FRIGGIERI
Floriana/Ilha de Malta

Somos água viva

Nossa história deve terminar algum dia
Como água do manancial que ao remanso chega
Ou pedra que rola até deter-se,
Como um pêndulo de relógio que ao fim se imobiliza.
Cada dia ao anoitecer, em nossas casas
Quando nossos filhos perguntam o que está passando
Trocamos de tema ao não ter resposta
E cantamos o estranho hino de nossa idade:

“Somos água viva e nada a bebe
Porque nas ondas se encontra o sal da destruição.
Somos pedras eliminadas dos altares
De Deuses enfermos que iam mortos desesperados
Em uma luta contra eles mesmos. Pêndulo somos
Que está a ponto de gastar o seu vigor.”

(tradução de José Feldman)
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Poema de
ANTERO JERÓNIMO
Lisboa/Portugal

A saudade são alvos fiapos
dependurados na imensidão do pensamento 
nesse lugar bem cativo
onde a lembrança se faz eterna.
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Trova de
VICTOR MANUEL CAPELA BATISTA
Barreiro/Portugal

A seca traz muita fome
enche todos de tristeza,
para gente que mal come
o porvir é uma incerteza.
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Soneto de
LUIZ ANTONIO CARDOSO
Taubaté/SP

Chegaste…
 
Chegaste em meu destino, de repente,
com poucas palavrinhas, a sorrir.
Chegaste no meu mundo e docemente,
fizeste a minha vida refulgir.
 
Chegaste, completando o meu presente…
traçando com detalhes meu porvir.
fazendo renascer, efervescente,
a vida – que queria inexistir !
 
Chegaste, numa noite irretocável,
alimentando sonhos magistrais
de um tempo de carícia incomparável.
 
Chegaste… e amanheceu neste jardim…
e aquele que era triste? Não é mais…
fizeste florescer dentro de mim !
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Trova de
DOROTHY JANSSON MORETTI 
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

Quando me entrego ao passado,
sinto-o tão perto e envolvente,
que – esquecido e enevoado –
longe de fato... é o presente.
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Poema de
VIRIATO DA CRUZ
Porto Amboim/ Angola, 1928 – 1973, Pequim/ China

Namoro

     Mandei-lhe uma carta em papel perfumado
     e com letra bonita eu disse ela tinha
     um sorrir luminoso tão quente e gaiato
     como o sol de Novembro brincando
     de artista nas acácias floridas
     espalhando diamantes na fímbria do mar
     e dando calor ao sumo das mangas

     Sua pele macia - era sumaúma...
     Sua pele macia, da cor do jambo, cheirando a rosas
     sua pele macia guardava as doçuras do corpo rijo
     tão rijo e tão doce - como o maboque*...
     Seus seios, laranjas - laranjas do Loje
     seus dentes... - marfim...
             Mandei-lhe essa carta
             e ela disse que não.

     Mandei-lhe um cartão
     que o amigo Maninho tipografou:
     "Por ti sofre o meu coração"
     Num canto - SIM, noutro canto - NÃO
             E ela o canto do NÃO dobrou

     Mandei-lhe um recado pela Zefa do Sete
     pedindo, rogando de joelhos no chão
     pela Senhora do Cabo, pela Santa Ifigênia,
     me desse a ventura do seu namoro...
             E ela disse que não.

     Levei á Avo Chica, quimbanda de fama
     a areia da marca que o seu pé deixou
     para que fizesse um feitiço forte e seguro
     que nela nascesse um amor como o meu...
             E o feitiço falhou.

     Esperei-a de tarde, á porta da fabrica,
     ofertei-lhe um colar e um anel e um broche,
     paguei-lhe doces na calçada da Missão,
     ficamos num banco do largo da Estátua,
     afaguei-lhe as mãos...
     falei-lhe de amor... e ela disse que não.

     Andei barbudo, sujo e descalço,
     como um mona-ngamba**.
     Procuraram por mim
     "-Não viu...(ai, não viu...?) não viu Benjamim?"
     E perdido me deram no morro da Samba.

     Para me distrair
     levaram-me ao baile do Sô Januario
     mas ela lá estava num canto a rir
     contando o meu caso
     as moças mais lindas do Bairro Operário.

     Tocaram uma rumba - dancei com ela
     e num passo maluco voamos na sala
     qual uma estrela riscando o céu!
     E a malta gritou: "Aí Benjamim !"
     Olhei-a nos olhos - sorriu para mim
     pedi-lhe um beijo - e ela disse que sim.
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* Maboque = Fruto do maboqueiro, de tamanho e cor de uma laranja, casca dura e polpa aromática, sumarenta e agridoce. (Dic. Priberam)
** Mona-ngamba = serviçal, moço de fretes. (Infopedia)
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Epigrama de
JOÃO AMADO PINHEIRO VIEGAS
Salvador/BA, 1865 – 1937

Entre as folhas amarelas,
a melhor é o Imparcial.
Mas, como paga em parcelas, 
só pode ser parcial.

(contra o jornal baiano O Imparcial que pagou a Pinheiro Viegas parceladamente um artigo de sua autoria) 
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Poema de
EUGÉNIO DE SÁ
Lisboa/ Portugal

Fome de Beijos

Nunca gostei de beijos de rotina
Aqueles beijos fugazes, não sentidos
Que se dão como acenos devolvidos
Sem emoções brilhando na retina

Não! — Os beijos devem vir do coração
Sejam aqueles que trocam as salivas
Ou os castos, que damos a um irmão
Todos são comoções em nossas vidas

Pois que o beijar é um ato de nobreza
De quem faz desse gesto um ponto alto
Para mostrar um querer, sem sutileza

E então o Ser beijado, em sobressalto
Perde a noção de tudo, e em ligeireza
Responde com fulgor ao doce assalto!

Beijos que tornam-se  rotina
São beijos de amores mornos
Gosto de beijos ardentes, quentes
Que dão início a  prelúdios de amor
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Trova de
CORNÉLIO PIRES 
Tietê/SP (1884 – 1958)

Da multidão dos enfermos
que sempre busco rever,
o doente mais doente
é o que não sabe sofrer.
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Poema de
AFONSO FÉLIX DE SOUZA
Jaraguá/GO, 1925 – 2002, Rio de Janeiro/RJ

Canção da Noite Nua

Noite sem alma
Noite sem vozes roucas
assombrando o silencio.
Noite nua.

Passos incertos
duro como o asfalto
e pensamentos leves
guiando-me os passos.
Indiferença do luar.
Na rua triste
paradas súbitas.
No olhar o medo ingênuo
da infância que não morre.

Risos de mulher
atrás da janela fechada.
Desejos rápidos
a apressar os passos...
A memória murmura
confidências,
que o silêncio apaga.

Noite sem véu.
Noite que tem a clara nudez da alma
que sonha no escuro.
Desejos leves de amor a guiar os passos
e essa ânsia incontida de sonhar
que como a infância
não morre nunca.
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Trova de
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

Em cada beijo roubado,
que roubo de ti, meu bem,
sinto o gosto do pecado
que o beijo roubado tem.
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Poema de
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
Mariana/MG (1918 – 2008) Rio de Janeiro/RJ

Canção 

O leve vento me leve
Para as praias de além-mar.
O leve vento me leve...
Para em luzes me banhar.
Quero um sopro de inocência
Que afoga os caminhos mortos
Onde estaria a saudade
E treme na luz das velas
Nos velórios de além-mar?

Quero fugir da loucura
Que prende os corpos no mar.

Em tudo que me esperava
Jamais pureza encontrei.
Fui gemido, tédio, noite,
Fui vagabundo e fui rei.
E me buscando no mundo
No mundo não me encontrei.
O leve vento me leve,
Para as praias de além-mar.
O leve vento me leve,
Me deste em praias macias,
Me deste as bocas macias
Nas namoradas do mar.
Quero um sopro de inocência .
Para em luzes me banhar.
= = = = = = 

Trova de 
WANDA DE PAULA MOURTHÉ
Belo Horizonte/MG

Não prometo, em nossa história,
meu amor por toda a vida,
porque a vida é transitória,
e meu amor, sem medida!...
= = = = = = 

Poema de 
ANTONIO ROBERTO FERNANDES
São Fidélis/RJ (1945 – 2008)

Mas...

E eu que achei que a lua não brilhasse
Sobre os mortos no campo da guerrilha
Sobre a relva que encobre a armadilha
Ou sobre o esconderijo da quadrilha,
Mas, brilha...

Eu achei que nenhum pássaro cantasse
Se um lavrador não mais colhe o que planta
Se uma família vai dormir sem janta
Com um soluço preso na garganta,
Mas, canta...

Também pensei que a chuva não regasse
A folha cujo leite queima e cega
A carnívora flor que o inseto pega
Ou o espinho oculto na macega,
Mas, rega...

Pensei também, que o orvalho não beijasse.
A venenosa cobra que rasteja
No silêncio da noite sertaneja
Sobre as ruínas da esquecida igreja,
Mas, beija...

Imaginei que a água não lavasse
O chicote que em sangue se deprava
Quando de forma monstruosa e brava
Abre trilha de dor na pele escrava
Mas, lava...

Apostei que nenhuma borboleta
Por ser um vivo exemplo de esperança,
Dançaria contente, leve e mansa.
Sobre o túmulo
Em flor de uma criança,
Mas, dança...

Por isso achei que eu não mais fizesse
Poema algum após tanto embaraço
Tanta decepção, tanto cansaço.
E tanta esperança em vão por teu abraço,
Mas, faço...
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Trova de
ZAÉ JÚNIOR
Botucatu/SP, 1929 – 2020, São Paulo/SP

Melhor sorrir na pobreza
que ser rico na apatia,
pois fartura sobre a mesa
não enche a vida vazia!
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Hino de
PAUDALHO/PE

Paudalho linda flor da mata
som da serenata que embalou Ceci.
Paudalho recanto ditoso
berço glorioso do imortal Poti.

Paudalho terra dos engenhos,
tem o céus empenhos a te coroar.
Paudalho página de glória
que o livro da história sabe embelezar.

Ah na alma do teu povo
um encanto sempre novo
um requinte de bondade
que tuas portas vão abrindo para a hospitalidade.

Paudalho linda flor da mata
som da serenata que embalou Ceci.
Paudalho recanto ditoso
berço glorioso do imortal Poti.
= = = = = = 

Trova de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Não condeno a caminhada
culpo sim, meus passos falhos.
Foi bem larga a minha estrada
fui eu quem buscou atalhos.
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Poema de
ALEXANDRE O’NEILL
Lisboa/Portugal (1924 - 1986) 

Há palavras que nos beijam

 Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

 Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

 De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.

 (O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

 Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.
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Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

A árvore do amor se planta
no centro do coração;
só a pode derrubar
o golpe da ingratidão.
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Poema de
CARLOS NOGUEIRA FINO
Évora/ Portugal

Umas vezes falavas-me dos rios

umas vezes falavas-me dos rios
e densas cicatrizes
e o sangue
procedia
outras vezes velava-te uma lâmpada
de faias e de enigmas
e a sombra
repousava
outras vezes o barro
originava
uma erupção de insónia recidiva
no gume do incêndio onde jazias
nessas vezes a água do teu riso
abria nos meus pulsos uma rosa
e eu entontecia
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Poetrix*de
JOÃO PEDRO WAPLER
Porto Alegre/RS

mulher nua

na ponta do barbante 
a roupa se faz 
e depois morre no corpo de alguém. 
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* Poetrix (s.m.): poema com um máximo de trinta sílabas métricas, distribuídas em apenas uma estrofe, com três versos (terceto) e título.
 
CARACTERÍSTICAS
 
1 O poetrix é minimalista, ou seja, procura transmitir a mais completa mensagem em um menor número possível de palavras e sílabas.
2 O título é indispensável. Ele complementa e dá significado ao texto. Por não entrar na contagem de sílabas, permite diversas possibilidades ao autor.
3 Não existe rigor quanto à métrica ou rimas, mas o ritmo e a exploração da sonoridade das sílabas é desejável.
4 Metáforas e outras figuras de linguagem, assim como neologismos, devem ser elementos constitutivos do poetrix.
5 É essencial que haja uma interação autor/leitor provocada por mensagens subliminares ou lacunas textuais.
6 Os tempos verbais – pretérito, presente e futuro - podem ser utilizados indistintamente.
7 O autor, as personagens e o fato observado podem interagir criando, inclusive, condições supra-reais, cômicas ou ilógicas (nonsense).
8 O poetrix deve promover a multiplicidade de sentidos e/ou emoções, não se atendo necessariamente a um único significado.
(Coordenação Geral do Movimento Internacional Poetrix)
(Site: http://www.movimentopoetrix.com) 
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Geraldo Pereira (Velhos Corredores da Juventude)


Velhos corredores estes, os de minha escola, os da antiga Faculdade de Medicina. Corredores de minha juventude, sacrários dourados da prata da vida, de quem como eu continua sendo um corredor de obstáculos, saltando-os a intervalos incertos de tempo. Há sempre mais um, no dia-a-dia da gente! Não os posso percorrer – os corredores – encorpado agora pelo peso da beca e os encargos da função. Adulto, amadurecido no carbureto da existência, trago o cabelo pintando e o corpo vergando; são as marcas brancas das horas difíceis e o sinal incolor, translúcido, da responsabilidade vivida. Vivida com a própria vida, mas vivida também com sofreguidão, com vidas por outros vividas. Ah, momentos de tanta tensão!

Ando um por um os corredores todos, analisando cada recanto: aqui se fiava conversa e ali, numa tarde morna de abril, um amor restou fiado em juras que foram desfeitas e promessas nunca cumpridas. Entro e saio das salas de aula, como se fora, pelo menos em espírito, aqui e agora, o adolescente quase de vinte anos de idade. Faço dessa manhã ensolarada a moldura de uma melancolia consentida. Há tempo pra tudo: tempo de amar o presente e tempo de querer bem ao passado. Não importa que vá a uma reunião – mais uma – dentre tantas de meu ofício. Dispenso hoje, somente hoje, o direito à palavra e ao aparte, como dispenso a questão de ordem e o dever do voto a cada ponto da pauta. Antes, desejo a democracia de meu interior, deixar o pensamento vagar em devaneios, preenchendo esses etéreos e bucólicos espaços, limitados, simbolicamente limitados, por paredes que aprisionam as minhas saudades. Eis o pranto do meu sentido silêncio.

A escola é a amante dos tempos de menino, imaginária, às vezes, como tantas outras coisas neste mundo de Deus, mas bela de rosto e bonita de corpo. Inesquecível, mesmo que envelheça a face e quebre o desenho das formas. O amante que se entrega, depois se desintegra, porém a amada fica no mesmo lugar, impávida, plantada com a força do concreto, assistindo a todos e a tudo em sua volta. Outros amantes chegam e do mesmo jeito, furtivos, se vão! Continuam, à distância quase sempre, cantarolando-lhe versos de amor, que são poemas da saudade. Vez ou outra, como agora, vivem a fantasiosa ilha do reencontro.

Mas, os meus professores, em grande maioria, estão na tumba, dormem o sono do imponderável. Um ou outro cruza comigo neste caminho do devaneio. Trazem as fisionomias sulcadas de tantas e tantas lutas no cotidiano da vida. Os funcionários também sofreram a estranha metamorfose da existência, envelheceram implacavelmente. Até alguns colegas se foram no éter do desconhecido! Gente nova, ainda, pra entregar ao Criador a alma nascida e criada no dia após dia do sofrimento dos outros.

Corredores repletos estes, movimentados de gente que vai e vem. São alunos que cumprem a transitoriedade acadêmica da vida universitária ou são mestres de gerações recentes, jovens, dinâmicos e apressados, no permanente mister de transmitir o conhecimento. Corredores repletos, mas vazios para mim! Não circulam mais os professores do meu tempo e não há aquela algazarra conhecida do alunato de tantos anos atrás.

Velhos corredores estes, os de minha juventude.
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Geraldo José Marques Pereira nasceu em Recife/PE, em 1945 e faleceu na mesma cidade em 2015, formou-se em Medicina na UFPE em 1986. Fez o mestrado no Departamento de Medicina Tropical da instituição, do qual se tornou coordenador posteriormente. Foi diretor do Centro de Ciências da Saúde e fundou o Núcleo de Saúde Pública e Desenvolvimento Social (Nusp) da universidade. Vice-reitor da instituição de 1996 a 2004 e, quando o reitor precisou se afastar entre março e novembro de 2003, foi reitor em exercício. Fora da universidade, integrou a Comissão Estadual de Saúde, a Comissão Científica de Combate à Dengue do Governo do Estado e a Comissão de Cólera da UFPE e da Cidade do Recife, além de participar do Conselho Científico do Espaço Ciência da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente de Pernambuco. Por conta dos inúmeros artigos científicos publicados, ainda foi membro da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores e do Conselho Estadual de Cultura e presidente da Academia Pernambucana de Medicina. Escrevia crônicas e, em março de 2011, assumiu a cadeira de número 16 da Academia Pernambucana de Letras, que já havia sido ocupada pelo seu pai, o escritor Nilo Pereira.

Fontes:
Geraldo Pereira. Fragmentos do meu tempo. Recife/PE. Disponível no Portal de Domínio Público
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Aparecido Raimundo de Souza (Reencantamento do cotidiano)


A LAPISEIRA ELISANJA, olhou para o relógio e conferiu as horas. Dezoito em ponto.  Saiu da sua mesa de trabalho com o espírito alegre. Estava radiosa e feliz. Mais um dia. Sem perceber que logo atrás dela, apenas alguns passos, alguém a seguia de cara fechada. Sem notar a presença da amiga Eloá Vitória, a Lapiseira Elisanja falou, como se conversasse consigo mesma.

Lapiseira Elisanja:
— Que maravilha! Cada pensamento meu, cada ideia, cada traço que eu crio... nossa, é a expressão mais pura da minha mente imaginosa... 

Ao contrário dela, trepada nos cascos, a Borracha Eloá Vitória, atrelada em sua sombra, se manifestou, duas pedras nas mãos. Atacou. 

Borracha Eloá Vitória: 
— Você disse pura? Por favor! A maioria dessas ideias que saem de dentro de você se fazem erradas, tortas ou pior, desajeitadas. Sem mim, você, sua tonta, seria um caos! 

Lapiseira Elisanja, sem perder a esportiva, se virou para a amiga e rebateu:
— Pelo menos eu crio algo! Você, ao contrário, só destrói. Apaga como se nunca tivesse existido! 

Borracha Eloá Vitória: 
— Eu não destruo porcaria nenhuma, sua mal-agradecida. Apenas dou a chance de você recomeçar sem erros “para te arrastar.” Só lhe concedo espaço para melhorar. 

Lapiseira Elisanja:
— E quem disse que um erro não pode ser belo? Às vezes, o improviso é a alma do criativo! Noutras, o improviso é só um desastre esperando para acontecer. Saiba que o prazer de deslizar no papel, desenhando cada pensamento que emerge da minha mente criativa é como se fosse uma dádiva. Mesmo norte, cada risco, cada curva, nasce como um sussurro de minha avidez imaginativa. Sou a ponte entre o abstrato e o concreto, ou seja, sua invejosa, me transformo no objetivo dos sonhos que logo em seguida, ganharão forma.

A borracha Eloá Vitória não deixa por menos. Alfineta:
— Sonhos que, na maioria das vezes, nascem imperfeitos, borrados, sem direção. Eu sou a guardiã da ordem, a restauradora da clareza. Sem mim, sua convencida, o mundo seria um caos de ideias inacabadas e garatujas confusas.

Lapiseira Elisanja:
— Que crueldade! Você olha para os meus traços e só enxerga defeitos? Cada imperfeição é prova de autenticidade.  É a alma da criação! Por que destruir aquilo que tem vida própria?

Borracha Eloá Vitória:
— Não é destruição, é oportunidade. Eu dou espaço para o aprimoramento, para o que é melhor. Não podemos crescer sem apagar o que está errado, sem dar um passo atrás para repensar e recomeçar.

A Lapiseira Elisanja se abre num sorriso amarelo e forçado. 

Lapiseira Elisanja: 
— E quem decide o que é errado? Às vezes, o erro é apenas um caminho diferente. Um gatafunho (garatuja) fora do planejado pode levar a uma descoberta inesperada, algo único e magnífico.

Borracha Eloá Vitória:
—Talvez. Mas eu observo os erros como manchas: elas podem ser belas, mas não deixam de ser máculas. Meu papel é suavizar essas imperfeições, dar ao artista a chance de criar algo mais limpo e mais refinado.

Lapiseira Elisanja:
—Refinado, talvez. Mas nunca tão espontâneo. Você pode apagar meus traços, mas nunca destruirá a essência do que eu trago à vida.

Essa troca de palavras entre as duas, a bem da verdade, reflete as suas personalidades ao tempo em que invoca uma profundidade maior para um conflito que nem deveria existir. 

Vindo de algum lugar perto do estojo, aparece a Régua Eduarda e ao ver as duas amigas trocando palavras ríspidas, espera a oportunidade para entrar no diálogo.

Enquanto isso, a Lapiseira Elisanja, continua soltando fogo pelas ventas. Desabafa:

Lapiseira Elisanja 
— Você pode apagar as minhas linhas, mas não denigre o talento inventivo que flui através de mim! 

Borracha Eloá Vitória, ainda meio enfezada:
— Talento inventivo, ou caos? Sem um pouco de ordem, o papel seria apenas um campo de batalha de ideias confusas.

(De repente, a Régua Eduarda enxerga uma brecha e interrompe com sua voz firme e equilibrada). 

Régua Eduarda:
— Olá queridas amigas. Vocês duas, parem com isso! Não percebem que só conseguem criar algo grandioso quando trabalham juntas?

Lapiseira Elisanja solta uma resposta ao acaso:
— E o que a sua amável pessoa entende de criação, dona Régua? Você é só –  como eu diria – uma linha reta!  

Nesse ponto da discussão, a Borracha Eloá Vitória, sem perceber, esquece as rusgas e acode em socorro da amiga:

Borracha Eloá Vitória:
— Isso mesmo, sua bobona. Todo mundo sabe que você só serve para traçar limites. 

Régua Eduarda:
— Limites, sim. Mas também direção e propósito. Eu sou quem dá forma ao caos e transforma linhas soltas em desenhos, ou melhor, em estruturas.  Sem mim, as suas desavenças não passariam de tapas e beliscões.

Lapiseira Elisanja: 
— Humm... talvez você tenha razão Régua Eduarda. Concordo que as minhas ideias precisem, vez em quando, de um pouco mais de direção... 

Borracha Eloá Vitória, esperta, dá o braço a torcer:
— Admito que apagar sem um propósito claro também não faz muito sentido.

A Régua Eduarda, em meio a essa confusão, passa a ser, do nada, uma personagem sábia, pragmática e talvez até um pouco sarcástica, entretanto, colocando as duas companheiras em seus devidos lugares. 

Lapiseira Elisanja ponderando um pouco as palavras:
— Sabe, Borracha Eloá Vitória. A Régua Eduarda não deixa de ter razão. Sem você, eu não seria, vamos dizer, precisa e meus traços vez outra ficariam sem propósitos definidos. Acho que posso “te valorizar mais.” 

A borracha Eloá Vitória se abre num sorriso espontâneo de canto a canto da boca. 

Borracha Eloá Vitória:
— E eu admito, sem sombra de dúvidas, que, sem você, não teria nada para apagar. Quem sabe consigamos ser mais importantes juntas do que imaginamos.

(De repente, o Papel Pedro Simão, até então calado e só assistindo a briga de camarote, interrompe com um tom dramático):

Papel Pedro Simão: 
Ah, que bonito! Vocês duas se entendendo, enquanto eu fico aqui sofrendo! É linha por toda parte, apagões sem fim... um dia, vou acabar rasgado nesse caos criativo!

Lapiseira Elisanja vindo em socorro do Papel Pedro Simão. 

Lapiseira Elisanja:
— Relaxa, meu amigo Papel Pedro Simão. Fica frio. Você é forte, aguenta tudo.  Não se esqueça, que é em você que nos espelhamos! 

A Borracha Eloá Vitória fortifica a tese, concordando.

Borracha Eloá Vitória:
— Isso mesmo, só não passa perto, pelo amor de Deus, da Tesoura Vandeca! Ele pode transformar você num monte de tirinhas. 

(Entra, inesperadamente a Tesoura Vandeca, cara fechada, boca afiada, acompanhada de um sorriso cortante).

Tesoura Vandeca:
— Escutei, sem querer, meu nome.  Não se preocupem! Somente quero esclarecer um ponto. Deixar claro um assunto que me incomoda, toda vez que ele vem à tona.  Serei breve. A amiga Borracha Eloá Vitória acabou de falar para o Papel Pedro Simão tomar cuidado comigo. Não tenho instintos assassinos. Além do mais, o Papel Pedro Simão é meu amigo de muitos anos. Aliás, como todos por aqui. Não tenho motivos para transforma-lo em tirinhas... e isso vale para os demais que pensam o contrário. Era o que precisava deixar esclarecido. A propósito, Papel Pedro Simão, que tal darmos uma volta por aí?

Papel Pedro Simão:
— “Demorô,” amiga Tesoura Vandeca. Vamos nos divertir um bocadinho... daqui a pouco, vem o melhor da festa...

(Com a saída da Tesoura Vandeca e do Papel Pedro Simão, os “sem modos” começaram a gritar e falar ao mesmo tempo. O Estojo se voltou para seu canto com a intenção de tomar conta de seus afazeres, levando em conta que dentro em pouco teria muito serviço à sua espera.) 

Lapiseira Elisanja:
— Sabe de uma coisa, Borracha Eloá Vitória. Apesar de tudo, eu admiro a sua determinação em mandar para o espaço alguns de meus traços. Só tem uma coisa que me deixa com pulga atrás da orelha... 

Borracha Eloá Vitória franzindo cenho: 
— O quê? Minha eficiência impecável? 

Lapiseira Elisanja mudando o rumo da prosa: 
— Não, é que... depois de tanto apagar, percebo que você está ficando – desculpe trazer isso à baila –, mas essa situação está cada dia mais visível. Você se faz mais pequena, tão minúscula e derreada que acredito, dentro em pouco, sumirá do mapa antes de mim!

(A Borracha Eloá Vitória engoliu o que iria dizer. Olhou para si mesma e só então percebeu o seu tamanho reduzido e respondeu com um toque de desespero dramático.)

Borracha Eloá Vitória: 
— Pequena?! Eu prefiro o termo... compacta! Mas é verdade, amiga Lapiseira Elisanja. Estou realmente, encurtando, decrescendo... logo serei uma coisinha anã, virarei um trocinho nanico.  

Lapiseira Elisanja tentando apaziguar um problema futuro: 
— Relaxa Borracha Eloá Vitória. Enquanto você encolhe, eu no mesmo trilho, me verei sem meu material de trabalho, o grafite. Até que isso ocorra, obviamente vou traçar e você apagará um milhão de vezes. No final, com a chegada da nossa velhice, estaremos no mesmo barco... ou melhor, no mesmo estojo.

As duas, de repente, caíram na risada enquanto o Lilico Tilibra, apelidado carinhosamente de “Estojo Guardião,” se retirou para dentro de seu casulo, se  mantendo alheio e só ouvindo. A Régua Eduarda, voltou a se manifestar e comentou sarcasticamente). 

Régua Eduarda: 
— Meninas, escutem o que vou dizer. Tudo o que estamos vendo e vivenciando aqui, não passa de um drama comum de estoque de papelaria... tenho para mim que não existe borracha igual a Eloá Vitória. Do mesmo modo, nem grafite para uma vovozinha linda na qual a Lapiseira Elisanja vem se transformando... eu também, como todos que aqui vivemos e trabalhamos, cairemos num poço sem volta do nefasto desábito. O que precisamos fazer, com urgência é nos preparamos para quando esse momento desditoso e maléfico chegar, estarmos de cabeças erguidas e em paz. 

A lapiseira Elisanja, a régua Eduarda, a borracha Eloá Vitória e até o estojo Lilico Tilibra nesse momento, vendo que a paz voltara a reinar, foi atrás da geladeira, se benzeu e rezou um Pai Nosso. Estava saltitante, já que seus chegados se confraternizavam, se abraçavam, e se uniam, irmanamente, em vista do tempo que algum dia (ou em breve, nunca se saberia ao certo), atracaria no cais do destino de cada um deles, como um barco negro para levar para o desconhecido de um futuro sem volta.  E o pior de tudo: sem aviso prévio.  

Diante desse quatro apresentado, que lição poderíamos tirar para usar no nosso dia a dia dessa história com sabor de quero mais?  A lapiseira, a Régua, a Borracha e o Estojo se uniram, e passaram a refletir, em vista do tempo que seguiria adiante, enquanto uma ficaria pequena, ou seja a Borracha e a Lapiseira, sem grafite. Quem daria uma palavra amiga, para que todos eles encarassem o porvir sem receios de se quedarem velhos e inoperantes? Imaginemos que a régua pudesse ser a voz da razão e da estabilidade, dizendo algo como: “Não se preocupem, amigos. Embora o tempo transforme a nossa aparência e função, a essência do que fomos, nunca desaparecerá. O que fizemos juntos, tipo medir, corrigir, criar, cortar, apagar, refazer, permanecerá em cada linha e traço que ajudamos a formar.”

Talvez a borracha, amiudada e gasta, seguiria cumprindo seu propósito. Apagaria para dar espaço ao novo.  Mesmo capenga, seu tamanho não definiria a sua utilidade, mas sim, o impacto que continuaria causando. “Embora depauperada, ainda — diria, lisonjeira — poderei mandar para as cucuias, um bocado de erros e dar espaço para prósperos recomeços. O que nos une e nos mantém com os nossos corações pulsando, é que continuaremos sendo úteis, cada um à seu jeito.” E a lapiseira, sem grafite, encontrará consolo ao lembrar que não importa como... de onde menos se espera haverá um jeito de recarregar e seguir criando.  

O importante, berrou num dado momento espavorido, a Régua Vitória, como se tivesse lido os pensamentos do estojo Lilico Tilibra: 
— SOMOS UMA GRANDE FAMÍLIA. E DEVEREMOS CONTINUAR ASSIM... UNIDOS... HAJA O QUE HOUVER...

Com a chegada do curto passeio feito pelo casal Papel Pedro Simão e a Tesoura Vandeca, os demais pularam apressados para dentro do refúgio Lilico Tilibra, o “Estojo Guardião” que, radioso e contente, anunciou:

— Hora do jantar. Venham saborear as guloseimas que preparei para nós. Em confraternização a esse chamado, os partícipes se uniram radiantes e famintos em volta da enorme mesa oval. 
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Aparecido Raimundo de Souza, natural de Andirá/PR, 1953. Em Osasco, foi responsável, de 1973 a 1981, pela coluna Social no jornal “Municípios em Marcha” (hoje “Diário de Osasco”). Neste jornal, além de sua coluna social, escrevia também crônicas, embora seu foco fosse viver e trazer à público as efervescências apenas em prol da sociedade local. Aos vinte anos, ingressou na Faculdade de Direito de Itu, formando-se bacharel em direito. Após este curso, matriculou-se na Faculdade da Fundação Cásper Líbero, diplomando-se em jornalismo. Colaborou como cronista, para diversos jornais do Rio de Janeiro e Minas Gerais, como A Gazeta do Rio de Janeiro, A Tribuna de Vitória e Jornal A Gazeta, entre outras.  Hoje, é free lancer da Revista ”QUEM” (da Rede Globo de Televisão), onde se dedica a publicar diariamente fofocas.  Escreve crônicas sobre os mais diversos temas as quintas-feiras para o jornal “O Dia, no Rio de Janeiro.” Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Reside atualmente em Vila Velha/ES.

Fontes:
Texto enviado pelo autor. 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing