sábado, 15 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 183


Monteiro Lobato (A Menina do Leite)


Laurinha, no seu vestido novo de pintas vermelhas, chinelos de bezerro, treque, treque, treque, lá ia para o mercado com uma lata de leite à cabeça – o primeiro leite da sua vaquinha mocha. Ia contente da vida, rindo-se e falando sozinha.

– Vendo o leite – dizia – e compro uma dúzia de ovos. Choco os ovos e antes de um mês já tenho uma dúzia de pintos. Morrem... dois, que seja, e crescem dez – cinco frangas e cinco frangos. Vendo os frangos e crio as frangas, que crescem, viram ótimas chocadeiras de duzentos ovos por ano cada uma. Cinco mil ovos! Choco tudo e lá me vêm quinhentos galos e mais outro tanto de galinhas. Vendo os galos. A 2 cruzeiros cada um – 2 vezes 5, 10... 1.000 cruzeiros!... Posso então comprar doze porcas de cria e mais uma cabrita. As porcas dão-me, cada uma, seis leitões. Seis vezes 12...

Estava a menina neste ponto quando tropeçou, perdeu o equilíbrio e, com lata e tudo, caiu um grande tombo no chão.

Pobre Laurinha!

Ergueu-se chorosa, com um ardor do joelho esfolado; e enquanto sacudia as roupas sujas de pó viu sumir-se, embebido pela terra seca, o primeiro leite da sua vaquinha mocha e com ele os doze ovos, as cinco chocadeiras, os quinhentos galos, as doze porcas de cria, a cabritinha – todos os belos sonhos da sua ardente imaginação...
_________________________________

Emília bateu palmas.

– Viva! Viva a Laurinha!... No nosso passeio ao País das Fábulas tivemos ocasião de ver essa história formar-se – mas o fim foi diferente. Laurinha estava esperta e não derrubou o pote de leite, porque não carregava o leite em pote nenhum, e sim numa lata de metal bem fechada. Lembra-se, Narizinho?

A menina lembrava-se.

– Sim – disse ela. – Lembro-me muito bem. A Laurinha não derramou o leite e deixou a fábula errada. O certo é como vovó acaba de contar.

– Está claro, minha filha – concordou Dona Benta. – É preciso que Laurinha derrame o leite para que possamos extrair uma moralidade da história.

– Que é moralidade, vovó?

– É a lição moral da história. Nesta fábula da menina do leite a moralidade é que não devemos contar com uma coisa antes de a termos conseguido.

Fonte:
Monteiro Lobato. Fábulas.

Lóla Prata (Acróstico)


As letras iniciais dos versos formam nome de pessoa ou coisa. A partir desse nome que se pretende comentar, compõem-se os versos. As rimas e a observância da métrica são opcionais.

Acrósticos (e congêneres) podem ser em seu contexto: biográficos, históricos, comemorativos, filosóficos, didáticos, de boas-vindas, em forma de prece, etc. Poesia visual.


ORIGEM DOS ACRÓSTICOS - de Silvia Araújo Motta

O acróstico é uma poética composição
Rimada, na qual. livremente ou não,
Impõe um conjunto de letras iniciais
Garantidas mediais, cruzadas ou finais,
Em que a leitura vertical ou diagonal
Muitas vezes forma uma palavra ou frase.

Desde os Séculos V e VI, nos oráculos,
O grego Epicarmo já fazia acrósticos.
Surgia também nos epigramas funerais.

A frase "Jesus Cristo, filho de Deus e Salvador"
Contém o mais célebre acróstico “ICHTHUS"
Realmente escrito no século IV: "PEIXE"
O maior símbolo místico do Cristianismo;
Sua autoria foi atribuída a Lactâncio e Eusébio.
Tantos por Ênio em Roma. Comodiano de Gaza,
Idade Média, e os feitos na poesia métrica latina.
Com Hinos na poesia inglesa de John Davies
Os adeptos portugueses; Camões, Garcia Rezende...
Sinal Acadêmico do Padre Antônio de Oliveira, Edgar Poe.

Houve acrósticos em prosa, com as letras do começo de cada parágrafo. e se chegou à verdadeira mania de acrósticos nos tempos do barroco,

O cantor e compositor Roberto Carlos contribuiu para o enriquecimento e popularização dos acrósticos. Compôs a música cuja letra diz:


Mais que a minha própria vida
Além do que eu sonhei pra mim
Raio de luz
Inspiração
Amor, você é assim

Rima dos versos que eu canto
Imenso amor que eu falo tanto
Tudo pra mim
Amo você assim
 
Meu coração
Eternamente
Um dia eu te entreguei

Amo você
Mais do que tudo eu sei
O sol
Raiou pra mim quando eu te encontrei
________________________________________________

Acróstico = letras iniciais

Mesóstico = letras mediais

Teléstico = letras finais

Diacróstico = letras iniciais e mediais

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ACRÓSTICO ALFABÉTICO

O Salmo 119 (118), AT da Bíblia, grande meditação sapiental sobre a Lei de Deus, segue na composição literária, o artifício do acróstico alfabético.

Levando essa técnica à sua máxima expressão: são 22 estrofes com 8 versos cada uma, e cada verso começa com a mesma letra do alfabeto hebraico.

Exemplificando: Em nosso idioma, todos os versos da la. estrofe se iniciariam com a letra A. Segunda estrofe, todos os versos com B. Terceira, com C, etc.

Além disso, cada estrofe contém vários sinônimos de Lei: palavra, promessa, normas, vontade, estatutos, preceitos, testemunhos, mandamentos, verdade.

A palavra "salmo" quer dizer oração cantada e acompanhada com instrumentos musicais. É poesia em versos que expressa os sentimentos diante da realidade da vida.

Coleção dos salmos = saltério.

Davi foi mestre de canto da corte do rei Saul, a quem sucedeu no trono de Israel. Quando Saul recebia "um espírito mau" (insatisfação pessoal...), restaurava-se ao som da harpa e dos poemas de Davi, autor da maioria dos salmos.

Época dos Reis israelitas: 971 a 561 a. C., dado histórico que contraria a tese de que a modalidade acróstico teria surgido no século V.

É bem mais antigo…


Fonte:
Lóla Prata. E eu sei fazer versos? Bragança Paulista/SP: ABR, 2011.

Livro (Origens e Produção)


Livro é um volume transportável, composto por páginas, sem contar as capas, encadernadas, contendo texto manuscrito ou impresso e/ou imagens e que forma uma publicação unitária (ou foi concebido como tal) ou a parte principal de um trabalho literário, científico ou outro.

Em ciência da informação o livro é chamado monografia, para distingui-lo de outros tipos de publicação como revistas, periódicos, teses, tesauros, etc.

O livro é um produto intelectual e, como tal, encerra conhecimento e expressões individuais ou coletivas. Mas também é nos dias de hoje um produto de consumo, um bem e sendo assim a parte final de sua produção é realizada por meios industriais (impressão e distribuição). A tarefa de criar um conteúdo passível de ser transformado em livro é tarefa do autor. Já a produção dos livros, no que concerne a transformar os originais em um produto comercializável, é tarefa do editor, em geral contratado por uma editora. Uma terceira função associada ao livro é a coleta e organização e indexação de coleções de livros, típica do bibliotecário.

HISTÓRIA DO LIVRO

A história do livro é uma história de inovações técnicas que permitiram a melhora da conservação dos livros e do acesso à informação, da facilidade em manuseá-lo e produzi-lo. Esta história é intimamente ligada às contingências políticas e econômicas e à história de ideias e religiões.

Antiguidade

Na Antiguidade surge a escrita, anteriormente ao texto e ao livro. A escrita consiste de código capaz de transmitir e conservar noções abstratas ou valores concretos, em resumo: palavras. É importante destacar aqui que o meio condiciona o signo, ou seja, a escrita foi em certo sentido orientada por esse tipo de suporte; não se esculpe em papel ou se escreve no mármore.

Os primeiros suportes utilizados para a escrita foram tabuletas de argila ou de pedra. A seguir veio o khartés (volumen para os romanos, forma pela qual ficou mais conhecido), que consistia em um cilindro de papiro, facilmente transportado. O "volumen" era desenrolado conforme ia sendo lido, e o texto era escrito em colunas na maioria das vezes (e não no sentido do eixo cilíndrico, como se acredita). Algumas vezes um mesmo cilindro continha várias obras, sendo chamado então de tomo. O comprimento total de um "volumen" era de c. 6 ou 7 metros, e quando enrolado seu diâmetro chegava a 6 centímetros.

O papiro consiste em uma parte da planta, que era liberada, livrada (latim libere, livre) do restante da planta - daí surge a palavra liber libri, em latim, e posteriormente livro em português. Os fragmentos de papiros mais "recentes" são datados do século II a.C.

Aos poucos o papiro é substituído pelo pergaminho, excerto de couro bovino ou de outros animais. A vantagem do pergaminho é que ele se conserva mais ao longo do tempo. O nome pergaminho deriva de Pérgamo, cidade da Ásia menor onde teria sido inventado e onde era muito usado. O "volumen" também foi substituído pelo códex, que era uma compilação de páginas, não mais um rolo. O códex surgiu entre os gregos como forma de codificar as leis, mas foi aperfeiçoado pelos romanos nos primeiros anos da Era Cristã. O uso do formato códice e do pergaminho era complementar, pois era muito mais fácil costurar códices de pergaminho do que de papiro.

Uma consequência fundamental do códice é que ele faz com que se comece a pensar no livro como objeto, identificando definitivamente a obra com o livro. A consolidação do códex acontece em Roma, como já citado. Em Roma a leitura ocorria tanto em público (para a plebe), evento chamado recitatio, como em particular, para os ricos. Além disso, é muito provável que em Roma tenha surgido pela primeira vez a leitura por lazer (voluptas), desvinculada do senso prático que a caracterizara até então. Os livros eram adquiridos em livrarias. Assim aparece também a figura do editor, com Atticus, homem de grande senso mercantil. Algumas obras eram encomendadas pelos governantes, como a Eneida, encomendada a Virgílio por Augusto.

Acredita-se que o sucesso da religião cristã se deve em grande parte ao surgimento do códice, pois a partir de então tornou-se mais fácil distribuir informações em forma escrita.

Idade Média

Na Idade Média o livro sofre um pouco, na Europa, as consequências do excessivo fervor religioso, e passa a ser considerado em si como um objeto de salvação. A característica mais marcante da Idade Média é o surgimento do monges copistas, homens dedicados em período integral a reproduzir as obras, herdeiros dos escribas egípcios ou dos libraii romanos. Nos mosteiros era conservada a cultura da Antiguidade. Apareceram nessa época os textos didáticos, destinados à formação dos religiosos.

O livro continua sua evolução com o aparecimento de margens e páginas em branco. Também surge a pontuação no texto, bem como o uso de letras maiúsculas. Também aparecem índices, sumários e resumos, e na categoria de gêneros, além do didático, aparecem os florilégios (coletâneas de vários autores), os textos auxiliares e os textos eróticos. Progressivamente aparecem livros em língua vernacular, rompendo com o monopólio do latim na literatura. O papel passa a substituir o pergaminho. Mas a invenção mais importante, já no limite da Idade Média, foi a impressão, no século XIV. Consistia originalmente da gravação em blocos de madeira do conteúdo de cada página do livro; os blocos eram mergulhados em tinta, e o conteúdo transferido para o papel, produzindo várias cópias.

Foi em 1405 surgia na China, por meio de Pi Sheng, a máquina impressora de tipos móveis, mas a tecnologia que provocaria uma revolução cultural moderna foi desenvolvida por Johannes Gutenberg.

Idade Moderna


No Ocidente, em 1455, Johannes Gutenberg inventa a imprensa com tipos móveis reutilizáveis, o primeiro livro impresso nessa técnica foi a Bíblia em latim. Houve certa resistência por parte dos copistas, pois a impressora punha em causa a sua ocupação. Mas com a impressora de tipos móveis, o livro popularizou-se definitivamente, tornando-se mais acessível pela redução enorme dos custos da produção em série.

Com o surgimento da imprensa desenvolveu-se a técnica da tipografia, da qual dependia a confiabilidade do texto e a capacidade do mesmo para atingir um grande público. As necessidades do tipo móvel exigiram um novo desenho de letras; caligrafias antigas, como a Carolíngea, estavam destinadas ao ostracismo, pois seu excesso de detalhes e fios delgados era impraticável, tecnicamente.

Uma das figuras mais importantes do início da tipografia é o italiano Aldus Manutius. Ele foi importante no processo de maturidade do projeto tipográfico, o que hoje chamaríamos de design gráfico ou editorial. A maturidade desta nova técnica levou, entretanto, cerca de um século.

Idade Comteporânea


Cada vez mais aparece a informação não-linear, seja por meio dos jornais, seja da enciclopédia. Novas mídias acabam influenciando e relacionando-se com a indústria editoral: os registros sonoros, a fotografia e o cinema.

O acabamento dos livros sofre grandes avanços, surgindo aquilo que conhecemos como edições de luxo.

Livro Eletrônico

De acordo com a definição dada no início, o livro deve ser composto de um grupo de páginas encadernadas e ser portável. Entretanto, mesmo não obedecendo a essas características, surgiu em fins do século XX o livro eletrônico, ou seja, o livro num suporte eletrônico, o computador. Ainda é cedo para dizer se o livro eletrônico é um continuador do livro típico ou uma variante, mas como mídia ele vem ganhando espaço, o que de certo modo amedronta os amantes do livro típico - os bibliófilos.

Existem livros eletrônicos disponíveis tanto para computadores de mesa quanto para computadores de mão, os palmtops. Uma dificuldade que o livro eletrônico encontra é que a leitura num suporte de papel é cerca de 1,2 vez mais rápida do que em um suporte eletrônico, mas pesquisas vêm sendo feitas no sentido de melhorar a visualização dos livros eletrônicos.

Produção do Livro

A criação do conteúdo de um livro pode ser realizada tanto por um autor sozinho quanto por uma equipe de colaboradores, pesquisadores, co-autores e ilustradores. Tendo o manuscrito terminado, inicia a busca de uma editora que se interesse pela publicação da obra (caso não tenha sido encomendada). O autor oferece ao editor os direitos de reprodução industrial do manuscrito, cabendo a ele a publicação do manuscrito em livro. As suas funções do editor são intelectuais e econômicas: deve selecionar um conteúdo de valor e que seja vendável em quantidade passível de gerar lucros ou mais-valias para a empresa.

Modernamente o desinteresse de editores comerciais por obras de valor mas sem garantias de lucros tem sido compensado pela atuação de editoras universitárias (pelo menos no que tange a trabalhos científicos e artísticos).

Cabe ao editor sugerir alterações ao autor, com vista a ajustar o livro ao mercado. Essas alterações podem passar pela editoração do texto, ou pelo acréscimo de elementos que possam beneficiar a utilização/comercialização do mesmo pelo leitor. Uma editora é composta pelo Departamento editorial, de produção, comercial, de Marketing, assim como vários outros serviços necessários ao funcionamento de uma empresa, podendo variar consoante as funções e serviços exercidos pela empresa. Na mesma trabalham os editores, revisores, gráficos e designers, capistas, etc. Uma editora não é necessariamente o produtor do livro, sendo que quase sempre essa função de reprodução mecânica de um original editado é feita por oficinas gráficas em regime de prestação de serviço. Dessa forma, o trabalho industrial principal de uma editora é confeccionar o modelo de livro-objeto, trabalho que se dá através dos processos de edição e composição gráfica/digital.

A fase de produção do livro é composta pela impressão (posterior à imposição e montagem em cadernos - hoje em dia digital), o alceamento e o encapamento. Podendo ainda existir várias outras funções adicionais de acréscimo de valor ao produto, nomeadamente à capa, com a plastificação, relevos, pigmentação, e outros acabamentos.

Terminada a edição do livro, ele é embalado e distribuído, sendo encaminhado para os diferentes canais de venda, como os livreiros, para daí chegar ao público final.

Pelo exposto acima, talvez devêssemos considerar que a categoria livro seja a concepção de uma coleção de registros em algum suporte capaz de transmitir e conservar noções abstratas ou valores concretos. No início de 2007, foi noticiada a invenção e fabricação, na Alemanha, de um papel eletrônico, no qual são escritos livros.

Classificação dos Livros


Os livros atualmente podem ser classificados de acordo com seu conteúdo em duas grandes categorias: livros de leitura sequencial e obras de referência (anuário, bibliografia, dicionário, manual, enciclopédia, guia turístico, livro didático, relatório, vademecum e poesias).

Curiosidades

A Bíblia é o livro mais vendido do mundo.
O Guiness World Book of Records é o segundo livro mais vendido no mundo.
Harry Potter, da inglesa J. K. Rowling, é atualmente o livro que vendeu mais cópias em menos tempo.

Referências
Dados da Unesco.
FEBVRE, Lucien. O aparecimento do livro. São Paulo : Unesp, 1992.
KATZENSTEIN, Ursula. A origem do livro. Sao Paulo : Hucitec, 1986.
SCORTECCI, João. Guia do Profissional do Livro. São Paulo: Scortecci, 2007.

Fonte:
Secretaria de Educação do Estado do Paraná.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 182


Elisa Alderani (Auto-Retrato)


Ganhei um convite para uma noite de seresta neste carnaval. Olhei para ele com certo desinteresse, e disse para mim mesma: “não sei se vou participar, estou desanimada para este evento...” Agradeci, guardei-o em um dos departamentos da minha bolsa. Nela tem de tudo, bolsa de mulher é assim, todo mundo conhece.

O dia passou, fiz mil e uma coisas, mas principalmente dei prioridade à leitura; estou lendo um livro interessantíssimo. Devo policiar-me para não me deixar envolver demais e respeitar o horário para dormir o suficiente, pois o amanhã espera por mim. Será um dia bem recheado.

Sexta-feira, dia do baile seresteiro. Abro a bolsa, tiro o convite e coloco-o bem à vista na estante. Sigo o meu ritual de todas as manhãs, café e oferecimento do dia. Saio cedo de casa com a minha preciosa bolsinha branca, na qual carrego a Sagrada Comunhão para ser levada em domicílio aos doentes da paróquia. Hoje, dia especial, primeira sexta-feira do mês. Para quem tem Fé é dia de indulgência, dia para pedir misericórdia ao Sagrado Coração de Jesus.

Terminada a celebração da Santa Missa, lentamente subo os degraus do altar e o ministro extraordinário, depois de cumprimentar-me, pergunta: "Quantas"? Eu respondo com um leve sorriso: "Cinco, Sr. Lino, obrigada e um bom dia". - Ele, com muita calma coloca as hóstias consagradas na minha pequena "teca" dourada contando-as com muita atenção.

Devagar, com compostura, saio da igreja levando no colo o meu sagrado tesouro, louvando o SS. Sacramento com o coração. Ciente da grande responsabilidade a qual fui chamada. Sou eu por inteiro, presente naquilo que estou praticando. Executo esta tarefa com muito amor. Começo assim meu roteiro espiritual.

Em cada casa que visito são as mesmas orações pelo doente que me espera com devoção. Procuro sempre criar um clima de conforto, esperança e coragem, pois estou à frente do mistério da doença talvez devida ao envelhecimento.

No desenrolar das horas, caiu a tarde. O convite na estante espera por uma resposta. Ainda estou na dúvida, mas afinal decido pelo sim. Vou acordar aquela outra Elisa, um pouco adormecida, mas alegre e descontraída. Abro o guarda-roupa, e já invento minha fantasia: vai ser discreto, conjunto preto, é só jogar uma blusa bem florida por cima dele. Pronto! Chegando lá ponho o colar florido de carnaval… Olho-me no espelho: ficou bom, aliás, ótimo!

Assim, envolvida pela alegria contagiante das colegas, caio no samba e marchinhas antigas. Pulo, brinco alegremente, nem vejo o tempo passar.

Volto para casa cansada e feliz. Olho-me no espelho e converso comigo mesma: Amém! O meu dia passou. Valeu a pena... A alegria alivia as tensões, sinto-me leve e feliz. Afinal nada mudou. Continuo sendo eu mesma. Os diferentes papéis que a vida me oferece não mudam o meu interior, o meu jeito de ser.

Este é meu "auto-retrato". Afinal é muito bom ser autêntica em cada circunstância.

Fonte:
Elisa Alderani. Flores do meu jardim – Fiori del mio giardino. Edição bilingue. Ribeirão Preto/SP: Legis Summa, 2008.
Livro enviado pela autora.

A. A. de Assis (Trovas do Mestre Trovador) 2


Benditos, no mundo inteiro,
os que ao plantio procedem.
– São filhos do Jardineiro
que o verde implantou no Éden!

Creio na força do amor,
creio na força do exemplo.
Um credo com tal teor
nem necessita de templo.

Das provas feitas na escola,
uma vale nota cem:
– é a de quem, fugindo à “cola”,
mostra a ética que tem.

Dentre os bens que o filho espera
receber por transmissão,
tesouro nenhum supera
o exemplo que os pais lhe dão.

Destino, fado ou o que for...
isso tudo é só brinquedo.
– Na história real do amor,
cria o amor seu próprio enredo.

Deve o mundo ao gênio humano
obras de extremo valor.
O drama é ver, ano a ano,
minguar o espaço da flor...

Entre o pássaro e o poeta
há perfeita identidade:
seu canto só se completa
se há completa liberdade.

Esta é uma lei que não muda,
portanto preste atenção:
– O Pai jamais nega ajuda
àquele que ajuda o irmão!

Facilmente me dominas,
bastando apenas piscar...
– É o feitiço das meninas
que brincam no teu olhar!

Fé é uma forma de ver,
via amor, o além-da-vista;
é a graça de perceber
como é bom que Deus exista.

Hão de nos ser muito gratas
as futuras gerações,
se, em vez de queimar as matas
queimarmos as ambições!...

Mais que os lucros do trabalho,
mais que as honras e os troféus,
o amor é o único atalho
que de fato leva aos céus.

Nesta Terra outrora linda,
que aos pouquinhos se desfaz,
o lar é a ilha onde ainda,
às vezes, se encontra a paz.

Neste planeta avarento,
onde o “ter” é o ditador,
que triste é ver o cimento
roubar o espaço da flor!

No instante em que é concebida,
entra na história a criança.
Negar-lhe o direito à vida
é um crime contra a esperança!

O bem-querer une a gente
mais que a consanguinidade.
– De que vale ser parente,
sem os elos da amizade?

Passa em voo um passarinho,
outros tantos passarão...
Que os proteja São Chiquinho
contra nós e o gavião!

Poeta nenhum se priva
de certos dengos vitais:
– Sem pão talvez sobreviva,
mas sem ternura... jamais!

Pouco a pouco, passo a passo,
vamos nós, de déu em déu...
Já conquistamos o espaço;
só falta ganhar o céu!

Qual o vento, quando muda,
leva a nuvem que o céu cobre,
muita vez pequena ajuda
muda o destino de um pobre.

Quanta falta de juízo...
Perdão, meu bom Deus, Perdão!
– Ganhamos um paraíso;
fizemos dele um lixão...

Quanta vez, meu companheiro,
para não passar por bobo,
precisa o ingênuo cordeiro
usar disfarce de lobo...

Que dó, meu doce Arquiteto,
que tamanha insensatez...
Tão lindo era o teu projeto,
mas veja o que o homem fez!

Se a justiça, um dia, enfim,
a todos der vez e voz,
Deus dirá que agora, sim,
mora no meio de nós!

Vereis nos próximos anos
a decisiva corrida:
– Cuidam do mundo os humanos,
ou cessa no mundo a vida!

Fonte:
Vida, verso e prosa

Fernando Sabino (Condôminos)


A porta estava aberta. Foi só eu surgir e arriscar  uma  espiada para a sala, o dono da casa saltou da mesa para receber-me:

- Vamos entrar, vamos entrar. Estávamos à espera do senhor para começarmos a reunião: o senhor não é o 301?

Não, eu não era o 301. Meu amigo, que morava no 301, tivera  de fazer repentinamente uma viagem, pedira-me que o representasse.

O homem estendeu-me a mão, num gesto decidido: 

-  Pois então muito prazer.

Disse que se chamava Milanês e recebeu com um sorriso à milanesa a minha escusa pelo atraso. Desconfiei  desde  logo que fosse meio surdo - só mais tarde vim a descobrir que seu ar de quem já entendeu tudo antes que a gente fale não era surdez, era burrice mesmo.

Conduziu-me ao interior do apartamento onde várias pessoas, umas onze ou doze, já estavam reunidas ao redor da  mesa. À minha entrada, todos  levantaram a cabeça,  como galinhas junto ao bebedouro. O apartamento era luxuosamente mobiliado, atapetado, aveludado, florido e enfeitado, nesta exuberância de mau gosto a que se convencionou chamar de decoração. O Milanês fez as apresentações:

- Aqui é o Dr. Matoso, do 302. Quando precisar de um médico. . .  Ali o Capitão Barata, do 304 - representante das gloriosas Forças Armadas. Dona Georgina e Dona Mirtes, irmãs, não se sabe qual mais gentil, moram no 102. Aquele é o Dr. Lupiscínio, do 201, nosso futuro síndico...
       
Suas palavras eram recebidas com risadinhas chochas, a indicar que vinha repetindo as mesmas graças a cada um que chegava. Cumprimentei o médico, um sujeito com  cara  mesmo de Matoso, o capitão com seu bigodinho ainda de tenente, as duas velhas de preto, não se sabia qual mais feia, o futuro síndico, os demais. O dono da casa recolheu a barriga e as ideias, sentando-se empertigado à cabeceira. Busquei o único lugar vago do outro lado e acomodei-me. A mulher do Milanês passou-me um copo de refresco de maracujá - só então percebi que todos bebericavam refresco em pequenos goles, aquilo parecia fazer parte do ritual, convinha imitá-los. Um dos presentes, solene, papel na mão, aguardava que se restabelecesse a ordem para prosseguir.

- Desculpem a interrupção - gaguejei. - Podem continuar.

– Não havíamos começado ainda - escusou-se o Milanês, todo simpaticão. - Estávamos apenas trocando ideias.

 - Se o senhor  quiser, recomeçamos tudo - emendou a Milanesa, mais prática. - Ali o nosso Jorge, do 203, dizia que precisávamos...

- Perdão, quem dizia era o Dr. Lupiscínio - e o nosso Jorge do 203,  um rapaz roliço como uma salsicha de óculos, passou para o extrema. A  esta altura interveio o capitão, chutando em gol:

 - Pode prosseguir a leitura.

Alguém a meu lado explicou:

- O Dr. Lupiscínio fez um esboço de regulamento. O senhor sabe, um regulamento sempre é necessário.

O Dr. Lupiscínio pigarreou e leu em voz alta:

- Quinto: é vedado aos moradores... Espere – voltou-se para mim: - O senhor quer que leia os quatro primeiros?

 - Não é preciso - interveio o Milanês: - Os quatro primeiros servem apenas para introduzir o quinto. Vamos lá.

- Quinto: é vedado aos moradores guardar nos apartamentos explosivos de qualquer espécie...

O capitão se inclinou, interessado:

- É isso que eu dizia. Este artigo não está certo: suponhamos que eu, como oficial do exército, traga um dia para casa uma dinamite...

- O senhor vai ter dinamites em casa, capitão?  – espantou-se  uma  das velhas, a Dona Mirtes.

- Não, não vou ter. Mas posso um dia cismar de trazer...

- Um perigo, capitão!

- Meu Deus, as crianças - e uma senhora gorda na ponta da mesa levou a mão à peitaria.

- Pois é o que eu  digo: um perigo - tornou o capitão.-  Devíamos proibir.

- Pois então?

Ninguém entendia o que o capitão  queria  dizer.  Ele  voltou  à carga:

- E imagine se um dia a dinamite explode, mata todo mundo! Não, é preciso deixar bem claro no regulamento: NÃO é vedado ter em casa explosivos de qualquer espécie.

- NÃO é vedado? Quer dizer que pode ter? – desafiou o autor do regulamento, já meio irritado.

- Quer dizer que não pode ter explosivos - respondeu o capitão, quase a explodir.

O capitão não sabia o que queria dizer a palavra vedado - e dali não passariam nunca se o Jorge, do 203, não tivesse levantado a lebre:

- Vedado é proibido, capitão. Vedado explosivo: proibido explosivo.

- Vedado proibido?

Confundia-se, mas não dava o braço a torcer:

- Eu sei, mas acho que devíamos deixar mais claro que é  proibido. Isto de explosivo é perigoso, vedado só é pouco, se vamos proibir, é preciso a palavra NÃO. Para dar mais ênfase, compreendem? NÃO é vedado...

- Continue - ordenou o Milanês.

O capitão vedado pela própria ignorância, calou o bico. O Dr. Lupiscínio continuou a leitura e em pouco já ninguém estava prestando atenção: todos concordavam com a cabeça ao fim de cada artigo, quando o homem corria os olhos pela sala, para recolher aprovação. O Milanês, a certa altura, sugeriu que interrompessem o regulamento em favor da eleição do síndico - já se fazia tarde e dali haveria de sair um síndico naquela noite. A  Milanesa se aproveitou para ir lá dentro buscar mais refresco.

- Sugiro que aclamemos o nome do Dr. Lupiscínio para síndico – disse uma das velhas, desta vez a Dona Georgina.

Todos aprovaram, menos o Milanês que, pelo jeito, queria ser síndico também.

- Estamos numa democracia - falou, tentando o engraçadinho: - E sem desfazer os méritos ali do nosso preclaro Dr. Lupiscínio, acho que devemos lançar mão da mais importante das instituições democráticas: o voto secreto.

- Não precisa ser secreto - sorriu o Dr. Lupiscínio, certo da vitória: - Somos poucos, todos conhecidos, quase uma família.

- Que acha o 301? – perguntou-me o Milanês, tentando conquistar o meu voto. Eu, porém, incorruptível, votaria no Dr. Lupiscínio - a menos que a dona da casa, até o momento da eleição, se lembrasse de servir-me alguma coisa além de refresco de maracujá.

Disse-lhe que preferia não intervir, já que apenas representava um dos proprietários.

 - O senhor não é condômino? – estranhou a bem nutrida senhora da ponta da mesa. –  Então quem é que está em cima de mim? Eu sou 202.

Expliquei-lhe que não era condômino - esta palavra era uma das razões pelas quais até  então não tivera coragem de comprar um apartamento.

- Estou representando o 301. Em cima da senhora deve estar ali o Dr. Matoso, que, se ouvi bem, é 302.

Dr. Matoso sorriu amável, concordando:

- Faço muito barulho, minha senhora?

- Absolutamente - protestou ela, levando de novo a mão ao peito. - Mal ouço o senhor à noite descalçando os sapatos e botando os chinelos.

- A senhora é 202? – perguntou uma das velhas, novamente a Dona Mirtes. – Pois então seu ralo deve estar entupido: está pingando água no banheiro da gente.

A outra velha confirmou silenciosamente com a cabeça a  acusação terrível. Enquanto isso o Milanês providenciava a votação: cortou  lenta e caprichosamente uma folha de papel em doze pedaços, distribuiu-os a cada um de nós:

- E a urna? Onde está a urna?

A urna seria um horrendo vaso de alabastro. Nos solenizamos ao redor da mesa, exercendo o sagrado direito de  voto. Procedeu-se à apuração e o vencedor foi mesmo o Dr. Lupiscínio, do 201, por  esmagadora maioria: o Milanês ganhou apenas um voto, o seu próprio, naturalmente.

E a Milanesa? Eu também, 301, ganhei um voto, mas não foi dela, desconfio que foi da  senhora do 202, a do ralo entupido, que me proporcionava olhares à socapa. Felicitei o novo síndico, escusei-me e caí fora: ameaçavam retornar ao regulamento, e o capitão dizia:

 - Por "áreas comuns" entenda-se: escada, corredores, vestíbulo, entrada de serviço, garagem. E elevador, que é próprio, mas também não deixa de ser comum...

À saída notei, de passagem, que o edifício não tinha elevador.

Fonte:
Fernando Sabino. O Homem Nu. Rio  de  Janeiro: Record, 1976.

Contos e Lendas do Mundo (França: A Princesa do Bosque Encantado)

Era uma vez um rei, pai de três jovens príncipes, todos em idade de casar. Um dia, os nobres, reunidos na corte, perguntaram-lhe se já havia pensado nisso.

- Digam-me quem é a princesa mais bela e mais rica que conhecem e enviarei um deles para lhe pedir a mão - foi a resposta pronta.

Eles declararam que era a princesa do bosque encantado.

- Também não me ocorreria outra melhor, mas vai ser difícil. Muitos outros candidatos tentaram chegar até ela. Internaram-se no bosque, mas nenhum regressou.

- O príncipe tem de passar pela Pousada dos Quatro Gorriões, onde lhe explicarão como deve ultrapassar o primeiro obstáculo.

Depois de se apetrechar devidamente, o príncipe mais velho pôs-se imediatamente a caminho. Quando chegou à Pousada dos Quatro Gorriões, disseram-lhe que, para penetrar no bosque, tinha de matar a serpente de guarda à entrada.

Ao vê-lo aproximar, esta ergueu-se e ele tentou abatê-la, mas a espada limitou-se a roçá-la e ela indicou:

- Continua!

O príncipe embrenhou-se num bosque magnífico, cheio de árvores esplêndidas, povoado por aves de todas as cores e o solo coberto de flores odoríferas. Não tardou a sentir-se atraído por uma bela música de violinos e sanfonas, acompanhados por um coro. Jovens belos que dançavam convidaram-no a reunir-se a eles e ele não hesitou em aceitar.

Sucederam-se os dias sem que o rei tivesse notícias do filho mais velho. Por fim, o do meio anunciou-lhe:

- Também quero pôr-me a caminho.

Tampouco conseguiu matar a serpente, limitando-se a produzir-lhe pouco mais do que um arranhão com a espada, após o que ela indicou:

- Continua!

Quando chegou ao local onde se encontravam os dançarmos, o príncipe deteve-se, surpreendido com aquela música e coros de pessoas que o convidavam a reunir-se a eles. Reconheceu então o irmão e, tal como este, não seguiu em frente.

Como não chegavam notícias dos dois príncipes à corte do rei, o mais jovem comunicou ao pai:

- Agora, quero partir eu.

O monarca não desejava consentir, porém, o filho pegou na espada do avô, mandou-a abençoar e pôs-se a caminho.

Desta vez, a serpente recebeu um golpe mortal. Todavia, no mesmo instante, o príncipe viu que, no lugar do réptil, havia agora uma pequena e admirável raposa à qual faltava uma pata, como se lhe tivessem cortado.

- Vem comigo, príncipe - convidou-o. - Segue-me, mas procura não te deteres com os dançarinos.

Quando ouviu a música, ele voltou-se para o outro lado e prosseguiu o seu caminho, apesar de ter reconhecido as vozes dos seus irmãos, que o chamavam pelo nome. Quando os acordes deixaram de se ouvir, viu que a pequena e admirável raposa já só se apoiava às duas patas que lhe restavam. Apesar disso, ela indicou:

- Vem, vem, meu pequeno príncipe! Verás numerosos pássaros, cada um numa bela gaiola de ouro. Alguns cantam maravilhosamente bem e possuem plumagem deslumbrante. Não te detenhas junto deles. No entanto, quando vires uma gaiola com um pássaro de olhos tristes e penas eriçadas, apodera-te dela.

E, com efeito, o príncipe apoderou-se da gaiola do pássaro de penas eriçadas. No mesmo momento, deu-se conta de que a pequena e preciosa raposa caminhava sobre três patas, pois recuperara uma das perdidas.

- Agora, continua com a tua gaiola e, quando chegares ao palácio, apodera-te de uma mula que um gigante deixou aí a pastar - recomendou ela.

O gigante lamentou-se e rogou ao príncipe que não se apoderasse da mula, mas o jovem príncipe não cedeu aos seus pedidos insistentes, nem às ameaças. Desta vez, a pequena raposa, que recuperara a quarta pata, indicou-lhe:

- Ata a mula à portas do palácio, entra e pergunta ao rei se te concede a mão da filha.

O monarca respondeu que lhe concedia com o maior prazer. No mesmo momento, o pássaro de penas eriçadas transformou-se na princesa mais linda do mundo, a qual aceitou em se tornar esposa do príncipe e pediu-lhe que a levasse imediatamente à corte do pai. A pequena raposa, que aguardava à porta, recomendou ao príncipe:

- Montem ambos na mula e, se aproximar algum perigo, chamem-me com as seguintes palavras: "Acode em meu auxílio, pequena e preciosa raposa!"

Quando o príncipe passou junto dos dançarinos, os irmãos voltaram a reconhecê-lo. A noite, ele e a princesa desmontaram da mula para descansar. De repente, surgiram dois homens jovens, um dos quais se apoderou da princesa e o outro da mula. E enquanto um levava a princesa sequestrada, o outro - o seu irmão do meio - atirou o príncipe a um poço que havia muito perto dali.

O infortunado príncipe estava prestes a afogar-se, quando se lembrou da raposa e gritou:
- Acode em meu auxílio, pequena e preciosa raposa!

No instante imediato, ela apareceu no topo do poço e indicou:

- Agarra-te à minha cauda!

Quando ele se encontrava quase no cume, da cauda soltou-se e voltou a cair na água.

- Acode em meu auxílio, pequena e preciosa raposa!

Ela voltou a aparecer e desta vez conseguiu retirá-lo do poço. Em seguida, informou:

- Regressa à cidade onde vive o rei, teu pai. Pelo caminho, encontrarás uma ferradura que a mula perdeu. Guarda-a. Quando chegares à cidade, veste-te de ferreiro e, depois de todos os outros terem tentado ferrar a mula, oferece-te para o fazer. A seguir, dá-te a conhecer ao teu pai e explica-lhe que foste tu que conseguiste chegar até à princesa do bosque encantado.

Os ferreiros foram passando um após outro, mas nenhum conseguiu aproximar-se da mula, que não parava de desferir coices, na presença do rei, com os seus dois filhos. Finalmente, apresentou-se um jovem ferreiro, que se acercou dela, levantou-lhe a pata e puxou de uma ferradura, que se lhe ajustou perfeitamente.

O príncipe deu-se então a conhecer e, cheia de alegria, a princesa abraçou-o. O monarca determinou que o casamento se celebrasse imediatamente.

Jamais se tinha assistido a uma boda tão faustosa. E hoje, o príncipe e a sua princesa são esposos jovens e felizes e trouxeram ao mundo vários principezinhos.

Fonte:
Ulf Diederichs, Palácio dos Contos. Lisboa/Portugal: Círculo de Leitores, 1999
.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 181


Rubem Braga (Recenseamento)


São Paulo vai se recensear. O governo quer saber quantas pessoas governa. A indagação atingirá a fauna e a flora domesticadas.  Bois, mulheres e  algodoeiros  serão  reduzidos  a  números  e  invertidos  em estatísticas.
        
O homem do censo entrará pelos bangalôs, pelas pensões, pelas casas de barro e de cimento armado, pelo sobradinho e pelo apartamento, pelo cortiço e pelo hotel, perguntando:

- Quantos são aqui?

Pergunta triste, de resto. Um homem dirá:

- Aqui havia mulheres e criancinhas. Agora,  felizmente, só há pulgas e ratos.
        
E outro:

- Amigo, tenho aqui esta mulher, este papagaio, esta sogra e algumas baratas. Tome nota de seus nomes, se quiser. Querendo levar todos, é favor.

E outro:

- Eu? Tinha um amigo e um cachorro. O amigo se foi, levando minhas gravatas e deixando a conta da lavadeira. O cachorro está aí, chama-se Lord, tem três anos e meio e morde como um funcionário público.

E outro:

- Oh! sede bem-vindo. Aqui somos eu e ela, só nós dois. Mas  nós dois somos apenas um. Breve, seremos três. Oh!

E outro:

- Dois, cidadão, somos dois. Naturalmente o sr. não  a  vê.  Mas ela está aqui, está, está! A sua saudade jamais sairá de meu quarto e de meu peito!

E outro:

- Aqui moro eu. Quer saber o meu nome? Procure uma senhorita loura que mora na terceira casa da segunda esquina, à direita. O meu nome está escrito na palma de sua mão.

E outro:

- Hoje não é possível, não há dinheiro  nenhum. Volte amanhã. Hein? Ah, o sr. é do recenseamento? Uff! Quantos somos? Somos vinte, somos mil. Tenho oito filhos e cinco filhas. Total: quinze pestes. Mas todos os parentes de minha mulher se instalaram aqui. Meu nome? Ahn... João Lourenço, seu criado. Jesus Cristo João Lourenço. A minha  idade? Oh! pergunte à minha filha, pergunte. É aquela jovem sirigaita que está dando murros naquele piano. Ontem quis ir não sei onde com um patife que ela chama de "meu pequeno". Não deixei, está claro. Ela disse que eu sou da idade da pedra lascada. Escreva isso, cavalheiro, escreva. Nome: João Lourenço; profissão: idiota; idade: da pedra lascada.  Está  satisfeito? Não, não faça caretas, cavalheiro. Creia que eu o aprecio muito. O sr. pelo menos não é parente da mulher. Isso é uma grande qualidade, cavalheiro! É a virtude que eu mais admiro! O sr. é divino, cavalheiro, o sr. é meu amigo íntimo desde já, para a  vida  e para a morte!

Fonte:
Rubem Braga. 50  Crônicas  Escolhidas.  Rio  de  Janeiro:  José Olympio, 1951.

Lourdes Bagatim Scheffer (O Encanto e o Desencanto das Fadas)

Pintura de Salvador Dali
Esta estória aconteceu lá pelos anos de 1890, num lugarejo próximo a Castelfranco di Veneto, no norte da Itália. Tempos muito difíceis, as famílias eram numerosas, não possuíam grandes recursos e tinham o mínimo de conforto em suas casas. O inverno, rigorosíssimo, arrastava-se por boa parte do ano. Durante os poucos meses quentes, as pessoas trabalhavam arduamente para acumular e estocar comida para os meses frios. Essa era a prática mais comum.

Ali, nesse lugar, vivia uma família muito numerosa. Os filhos casaram-se e trouxeram suas esposas para ali viverem em companhia de seus pais. O tempo passou e vieram seus filhos, que muito cedo aprendiam o quão difícil era ganhar o próprio sustento e também como era divertida aquela convivência com os irmãos, primos, tios, tias e avós. Todos trabalhavam, os adultos faziam os trabalhos mais pesados e às crianças eram oferecidas tarefas mais leves e que não exigiam grande esforço, fosse ele físico ou mental. Dessa maneira, elas as executavam rapidamente, para sobrar mais tempo para suas brincadeiras. Devido as dificuldades para enfrentar os dias difíceis de inverno, e como não contavam com uma boa lareira para se aquecer, tinham por hábito reunir-se em estábulos, onde os animais iam à procura de abrigo, escondendo-se das tempestades de neve. Procuravam estar muito próximos dos animais, pois isto os mantinha aquecidos. Nessa época, as mulheres eram também responsáveis pelo bem estar da família e juntamente com suas crianças, passavam o dia todo fazendo trabalhos manuais e conversando, porém tinham grande dificuldade para confeccionar suas roupas. Por essa razão, tinham que recorrer a outras pessoas para fazê-las. Tinham, por hábito, encomendar suas roupas para algumas criaturas que viviam próximo dali, embora ninguém soubesse onde, nem como. Outra característica interessante é que não havia uma comunicação pessoal entre eles, porém o que se acreditava é que essas bondosas criaturas tinham poderes especiais, muito diferentes das pessoas comuns. Eram chamadas de fadas.

Para que as roupas fossem confeccionadas, era necessário que se colocasse todo o material a ser usado para a confecção embaixo de uma ponte. Num dia, colocava-se tudo que era necessário para a confecção de uma peça e, no dia seguinte, podia-se procurar no mesmo lugar e lá estava a peça de roupa, pronta para uso. Diziam até que a presença dessas criaturas era identificada por um perfume forte e muito agradável.

As pessoas ficavam perplexas com a rapidez com que elas teciam tais peças de roupa. Por mais que se tentasse, não foi possível saber como eram costuradas aquelas roupas. O que se sabia é que tudo era feito de maneira rápida e perfeita, não ficando qualquer fio solto para que se pudesse desfazer a peça já confeccionada.

Esse mistério em tomo dessas criaturas, chamadas popularmente de fadas, foi crescendo e passou a ser objeto de grandes discussões durante os momentos em que as famílias se reuniam. O tempo passava e no dia a dia, ninguém estava interessado em saber o que acontecia lá fora. A única preocupação era manter-se aquecido, para não morrer de frio. Mas, entre as mulheres que ali compareciam diariamente, havia uma que todos os dias, à mesma hora, ausentava-se, sem dar qualquer explicação aos demais. Aquilo, que no início parecia ser uma coisa sem importância, passou a chamar a atenção de outras mulheres, que intrigadas, começaram a questionar tal ausência.

Foi então que uma delas falou para as demais:

- Não entendo o que ela possa estar fazendo ao sair sempre no mesmo horário e retomando muito tarde da noite. Vou tentar segui-la e descobrir aonde vai e com quem.

No início, algumas não concordavam, pois achavam que não seria correto invadir a privacidade da companheira. Aos poucos, a curiosidade tomou conta de todas e passaram a encorajá-la a tomar tal decisão. E assim aconteceu.

Certo dia, quando a tal senhora deixou o local, sua amiga a seguiu de longe e viu quando ela se aproximou da chaminé do fogão. Rapidamente foi ao mesmo lugar, a tempo de ouvir quando ela proferiu algumas palavras até então desconhecidas. Imediatamente após, desapareceu pela chaminé do fogão. Esta então, ao chegar muito próximo do fogão, pronunciou as mesmas palavras que ouviu de sua amiga e foi sugada pela chaminé. Alguns segundos se passaram. De repente, ela se deu conta de estar numa festa, com muitas pessoas, algumas até conhecidas suas. Avistou sua amiga e foi ter com ela. Qual não foi a surpresa quando sua amiga a viu.

- Você, por aqui? - disse a primeira.

- Como foi que você entrou neste lugar ?

Esta imediatamente respondeu:

- Segui você e pude ouvir as palavras que pronunciou antes de entrar pela chaminé. Fiz exatamente o mesmo e aqui estou - respondeu esta última.

Falando assim, começou a prestar atenção a tudo que a cercava, maravilhada com a beleza do salão e as mesas repletas de comida. Não se conteve e pegou uma guloseima, levando à boca com muita ansiedade,

- Meu Deus! Não tem sal?

Ao proferir essas palavras, todo o encanto se desfez e ambas se viram na sala de suas casas.
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Lourdes Bagatim Scheffer, é natural de Joaquim Távora/PR, em 1953. Formada em Letras Português/Inglês e especialização na área de Metodologia da Língua Inglesa e tradução na PUCPR. Estudou e trabalhou em Londres. Lecionou Inglês. Trabalha com traduções em literatura.

Fonte:
Isabel Florinda Furini (org.). 50 Contos por 14 Autores. Curitiba: JM, 2008.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 180


Altino Afonso Costa (Fazenda Santa Rosa)


Terra dos meus sonhos que me viu nascer, com minha própria mãe fazendo o parto; sentiste meus pés descalços nas incansáveis caminhadas de moleque, caçador de passarinhos, com estilingue no pescoço e bornal repleto de bolas de argila secadas ao sol.

As andanças à toa, cavalgando a mula Roseira, sem arreios, com o espírito  povoado de temores de almas de outro mundo, quando eu atravessava na frente do cemitério...

Como era o meu mundo de fantasia, quando à noite ia dormir na casa grande de madeira, coberta de folhas de zinco, cheias de buracos e que nos dias de chuva enchia as salas e os quartos de goteiras compassadas.

E o barulho monótono da chuva no telhado e o terror de ouvir os trovões que sacudiam o chão e os raios que riscavam o céu, em tons ameaçadores.

O colchão de palha de milho, desfiada, que fazia um barulho inesquecível quando movia o nosso corpo para acomodá-lo no sono que custava a chegar.

E o cheiro de urina de moleque mijão...

E as pulgas que incomodavam à noite, mesmo com os galhos de erva Santa Maria, que minha mãe jogava sob a cama rústica.

A lamparina a querosene, o fogão caipira de lenha; a linguiça portuguesa defumada e exalando um cheiro de carne de porco, temperada com vinho tinto. E a carne de porco cozida, mergulhada em lata de gordura.

E a broa sobre a mesa, e o aroma de vinho tinto que vinha da adega... e o caldo verde transbordando da tigela...

Minha velha Fazenda Santa Rosa, quanta saudade da minha mãe, do meu pai e dos meus irmãos.

E os assados na noite de Natal e as fogueiras de S. João, S. Pedro e Santo Antônio, com o estouro dos rojões, busca-pés, e o amendoim, batata doce e mandioca assados na brasa tardia da fogueira,,,

Quanta lembrança e saudades me trazes, terra da minha infância feliz...

Fonte:
Altino Afonso Costa. Buquê de estrelas. Paranavaí/PR, 2001.
 Livro enviado por Dinair Leite.

Lúcia Constantino (Poemas Avulsos) 3




DECISÃO

Estranhos encontros,
estranhas partidas.
Hoje vendo meus móveis
na casa da vida,
Ainda vou chorar um pouco.
Mas não deixarei
que sujem mais o meu rosto
porque já não há
mais tanto sal a gastar
de dentro do meu corpo.
**********************************

DECLARAÇÃO

Amo-te, ó viandante,
que parte numa caminhada
sem sentido neste deserto
em busca de um deus descolorido.

Amo-te, ó tarde dominadora,
que implora meus passos,
porém sou teu grande fiasco:
covarde demolidora.

Amo-te, ó bocejo dos oprimidos:
carvão senhorial
nutrindo as labaredas do mal.
**********************************

METAMORFOSE

A noite de outrora silencia.
Pelas mãos do destino se cala
até que surja um novo dia
no seu coração, para um regresso à fala.

Podem ocorrer seres desnudos,
vagos e tristes seres de segredos,
carregando o peso do mundo
em seus fardos de medo.

A noite não importará esta brusca espera
até que passem as trevas sobre a matéria
quando a Divindade retém o julgamento.

A metamorfose da própria vida
transforma a dor de uma fenda
no mais sincero dos depoimentos.
**********************************

MURMÚRIO

Antes que eu volte um dia
para o lar de mim mesma
onde uma réstia de luz
não esmaece
a verdade primeira de todas as coisas
por serem laços da alma,
antes que te vás
ou somente te desprendas,
ouve.
Que estranhamente te percebo
pelos caminhos. Como se fossem planos.
Mas não são.
Como se anjos andassem curvos.
Mas não andam.
Como se a terra fosse ausente.
Mas não é.
Uma gota no oceano
em selvagem dose cósmica.
Alquimia de pássaros
despojados de si mesmos.
Em ventos transmudando, exiláveis.
**********************************

ORAÇÃO

Antes que eu envelheça
tire da minha boca
este sabor de sono.
Semelhante a um oráculo mudo
tenho deuses dormindo
em nichos vivos.
Ainda não é tempo
do linho branco.
Para que eu desperte novamente
necessito água corrente
sobre meus pântanos.
**********************************

RENOVAÇÃO

Eu quero a vida
não consumida
pelos ratos do amor
que levam medalhas polidas
e a si mesmos num andor.

Eu quero uma bela chama
que eu mesma possa acender
embaixo da minha cama
para um claro anoitecer.

Eu quero tudo
e principalmente
experimentar uma vida nova
sem ter que no espelho
me pôr à prova.

Fonte:
Maria Lúcia Siqueira (Lúcia Constantino). Asas ao anoitecer. Curitiba/PR: M.L. Siqueira, 2004.