sábado, 7 de maio de 2022

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 18

 

Leandro Bertoldo Silva (Crônica -Testamento)

Existem algumas pessoas que têm verdadeira aversão quando o assunto é morte ou velório. Para muitas há qualquer coisa de mórbido ou mesmo um extremo mau gosto, embora não exista quem não tenha uma história engraçada para contar desses momentos sorumbáticos, o que causa uma das maiores controvérsias da vida ou falta dela. Não raras vezes aparece um bêbado vindo não se sabe de onde sem ninguém igualmente saber quem é — talvez amigo do finado que não pode mais prestar explicações — frente a palavras e casos desconexos proferidos aleatoriamente a causar risadas em uns e pulgas atrás da orelha de outros.

Há também os casos que viram lendas. Soube uma vez pela boca de todos os moradores de uma cidadezinha do interior de Minas que por anos não se falava em outra coisa a não ser da história de D. Etelvina, senhora de seus oitenta e poucos anos, morta, coitada, dentro do caixão e sendo velada em casa com os braços amarrados forçando-os a permanecerem na clássica posição cruzada no peito devido ter sido encontrada com eles para cima. O porquê de ter sido assim havia muitas versões e não menos controvérsias, mas foi fato necessário atar as duas mãos com barbante. Madrugada adentro entre um prato de sopa aqui outro ali, uma conversa lá outra cá, eis que D. Etelvina foi inchando devagarinho. Parece até ter escolhido o momento certo, pois quando as pessoas se reuniram para a oração final, já de manhãzinha, o barbante não resistiu à pressão dos braços de velha senhora e veio a arrebentar. Os braços, antes amarrados, como uma mola voltaram à posição vertical de uma só vez e fez espalhar flores para tudo que era lado junto com gente, cachorro, homens, mulheres, novos, idosos, até o padre e o sacristão aos gritos de misericórdia, latidos e palavrões, ao disputarem, todos, a pequena janela da sala, pois na porta já não passava ninguém. Nessas horas até os mais corajosos se revelam e não há quem mantenha posturas.

Há ainda os fatos poéticos, como aconteceu com um tio meu ao se despedir em um dos almoços de família, como eram costume todos os domingos. Depois de cantar e tocar suas modas de viola como ninguém e finda a comilança com uma generosa quantidade de gordura de porco que ele sempre colocava em seu prato e a tradicional pinguinha, ele se sentou em sua poltrona demonstrando total tranquilidade, enrolou um cigarrinho de palha, pitou calmamente e aí recostou confortavelmente, colocou o seu inseparável chapéu italiano no rosto e disse a todos: “É, está na hora de subir o morro”. O que todos pensavam ser uma sesta era o seu desenlace, assim mesmo com discrição e sem sofrimento. Morreu como viveu: feliz e rodeado de pessoas, cantando, comendo, fumando e tomando cachaça. Foi-se o “Zé do Mato”, como era conhecido, para mim o poeta da alegria e uma grande inspiração.

Quero aproveitar o ensejo da leveza e usar a mesma pergunta de um narrador de futebol ao se referir aos títulos do meu time do coração, porém direcionando-me a esses momentos derradeiros difíceis para muitos: “por que é que tem que ser tão sofrido assim?” Pois é! Não tem. Pelo menos para mim. E já que ainda estou aqui para falar sobre isso, não deixarei que me roubem a mínima oportunidade de opinar sobre um evento cuja atração principal será eu. Nada mais justo. Até mesmo porque devo elucidar aos mais supersticiosos que é fato consumado passarmos todos por esse momento e, se assim é, a única pessoa a dar informações precisas de como pensa ser este instante sou eu mais uma vez. Portanto, desejo jogar luz a essa situação e criar um evento poético, por que não? Duvida?  Vai vendo.

A propósito, o leitor atento deve ter percebido o título dessa crônica e visto lá a palavra “testamento”. Segundo o dicionário etimológico da língua portuguesa, testamento é o ato pelo qual alguém, com observância da lei, dispõe de seu patrimônio para depois de sua morte. Pois bem, segundo a iminência a observância aqui não é a lei, mas a poesia. E a disposição trata-se da declaração das minhas últimas vontades. Sendo assim, atesto:

Eu, escritor dessa crônica, brasileiro, casado, inscrito em todas as leis do desejo de romantizar a vida e a morte que me cabem, estando em perfeito juízo e em pleno gozo de minhas faculdades intelectuais, sem nenhuma interdição, na presença de (03) três testemunhas a seguir qualificadas: a literatura, o amor e a gratidão, residentes e domiciliados nas Ruas dos que Escrevem, dos que nos Move e dos que me Permitiram Estar Neste Mundo, livre de qualquer instrumento ou coação, resolvo publicar a presente crônica-testamento na qual exaro minhas últimas vontades, pela forma e maneira seguinte: PRIMEIRO: Não quero choro, se possível, prefiro os sorrisos. Afinal, passei por essa vida e venci, embora esteja a passar e a vencer neste exato momento da escrita. SEGUNDO: Não quero flores. Por que matar e enterrar as pobrezinhas? Acredito que um ser, no caso eu nessa condição no momento, seja o bastante. Além do mais, perfume de flores com vela é muito característico de defunto, Deus me livre! Estar morto já é suficiente. No lugar delas prefiro bolinhas de papel. Estar coberto por elas me é muito mais agradável e mais condizente com a minha profissão. TERCEIRO: Quero papéis avulsos na entrada do recinto e também um pote de lápis para as pessoas escreverem, se desejarem, uma mensagem, um poema, a letra de uma música ou outra coisa sugerida pelo coração, fazer uma bolinha com o papel e colocá-la junto às outras. Maledicências não serão fiscalizadas, mas eu saberei e prometo transmutá-las do lado de lá. QUARTO: Quero um evento agradável. Para isso, peço que a partir de então a palavra “velório” seja modificada por “sarau” para que todos possam se divertir. A palavra “capela” se houver não precisa ser substituída na grafia, mas ressignificada, isto é, apenas caso alguém queira cantar sem o acompanhamento de instrumento, o que será maravilhoso. Caso tenha algum, que sejam violão e flauta transversal, meus preferidos. Violino é lindo, mas aumenta a tristeza e não há esse sentimento em saraus. QUINTO: Ainda sobre a música, fica valendo a popular brasileira. Chorinho não combina com o meu momento, muito menos sofrência. Essa nem morto quero ouvir. SEXTO: Como grand finale, em seu sentido literal, desejo ser conduzido ao último berço ao som de “Canon em Ré maior”, de Pachelbel. E no momento exato do plantio, para dar um ar mais poético e galante, que alguém leia em alto e bom som a poesia “Hora Eterna”, de Henriqueta Lisboa. Não lhes furtarei o prazer da procura, mas transcrevo aqui alguns versos:

[…] Vida que esplendes por que passas!
Quero viver, sentir num turbilhão
dentro do pensamento a certeza deste eu.
Sofra, embora – que importa? – O corpo
fatigado.
Quero vida, mais vida, alma, renovação,
força para reter tudo o que o céu me deu,
capacidade para amar o que foi  criado!
Vida que esplendes porque passas,
e que és amada porque findas! […]
Bem a propósito, não é mesmo?

E dito isso dou por encerrada a presente crônica-testamento na existência das (03) três testemunhas acima descritas, para as quais dedico a minha vida e que a confirmará em juízo no cartório do céu, de conformidade com a lei da arte e da natureza.

EM TEMPO: Não quero enfeites, nem placas, nem mármores frios; a terra me basta. E nela, bem perto de mim, que se plante um pé de ameixa. Dele nasci e nele eternizo. Não quero virar estrela, prefiro ser árvore. Bem viva.

Luiz Gonzaga da Silva (Trova e Cidadania) – 21


GRATIDÃO


A gratidão é um dos mais nobres sentimentos. Pode ser externada, quando se refere a um outro, ou guardado na intimidade, quando se refere, por exemplo, à vida, O acaso nos colocou num determinado contexto histórico e social. Este contexto pode não ser o melhor, mas devemos ser gratos por nos encontrarmos nele, do contrário não seríamos o que somos. Sejamos, pois, gratos pela responsabilidade de exercermos a cidadania.

Ser grato eu sei que redime.
É um ato de louvação...
Não há gesto mais sublime
que um gesto de gratidão.
Ademar Macedo - RN
= = = = = = = = = = =

Gratidão, se não faltasse
nunca, no peito de alguém,
talvez o homem encontrasse
a paz que a mundo não tem.
Prof. Garcia - RN
= = = = = = = = = = =

Gratidão... pobre coitada,
desde muitos centenários
vem sendo decapitada
pelos sujos mercenários...
Irene Lopes Guimarães - RJ
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

HONESTIDADE e DESONESTIDADE

De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto (Rui Barbosa).

Honestidade é a qualidade de quem prima pela honradez, decoro, probidade, etc. É obediência às normas morais e éticas existentes em uma sociedade, comunidade ou cultura. Para a maioria, a pessoa honesta é a que não mente, não furta, não rouba, não é corrupta. A honestidade traz a paz de espírito, condição para a felicidade. Mas muitos preferem trocar a paz de espírito pela riqueza a qualquer custo. Para estes, honestidade é caretice, e outros adjetivos... Daí que o homem tenha vergonha de ser honesto. A desonestidade é um empecilho ao exercício da cidadania,

Meu amigo, não se exponha,
deixando-se corromper:
lute, não tenha vergonha
de um homem honesto ser.
Gonzaga da Silva - RN
= = = = = = = = = = =

Para viver siga o rastro
dos que acreditam e entendem
que a honestidade é o lastro
dos homens que não se vendem.
Messias da Rocha - MG
= = = = = = = = = = =

Se todos fossem honestos
ninguém veria na praça
mendigos comendo restos
do pão que a miséria amassa.
Clarindo Batista - RN
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

HUMANISMO

Humanismo, no sentido amplo, significa valorizar o ser humano e a condição humana acima de tudo. Está relacionado com generosidade, compaixão e preocupação em valorizar os atributos e realizações humanas, O Humanismo foi um movimento intelectual iniciado na Itália no século XIV com o Renascimento e difundido pela Europa, rompendo com a forte influência da Igreja e do pensamento religioso da Idade Média.

O Teocentrismo - Deus como centro de tudo - cede lugar ao antropocentrismo, passando o homem a ser o centro de interesse. O humanismo procura o melhor nos seres humanos e para os seres humanos sem se servir da religião. Entretanto, atualmente, essa dicotomia pode e deve ser minimizada. A religião também se modificou, acompanhando a evolução do mundo. A religião é parte da nossa cultura e não podemos fugir à sua influência.

Não deixemos que a maldade,
o preconceito e a ambição
destruam na humanidade
o amor de irmão para irmão!
Giva da Rocha - SP
= = = = = = = = = = =

O homem quando em delírio,
na loucura do egoísmo,
não sente a essência do lírio
que rescende do Humanismo.
Cosme Lemos - RN
= = = = = = = = = = =

O homem, com seus delírios
de grandeza e onipotência,
não vê nos campos os lírios,
nem sente da vida a essência.
Gonzaga da Silva - RN
= = = = = = = = = = =

Para enxergar a cobiça
e amparar prejudicados,
não deveria a Justiça
manter seus olhos vendados!
Lucília Decarli - PR
= = = = = = = = = = =

Mas, afinal, devemos considerar que a Justiça, enquanto instituição, na grande maioria das vezes, cumpre o seu papel, podemos até dizer transcendental.

A justiça imaculada,
tendo no céu as raízes,
não pode ser acusada
dos erros dos maus juízes.
João Rangel Coelho - RJ
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

LAVRADOR

Um dos trabalhadores mais sofridos e injustiçados do mundo é o lavrador, Em qualquer tempo, passado, presente ou futuro, o lavrador sempre foi, é e será uma vítima na dinâmica das sociedades. É estarrecedor constatar que aquele que é responsável por alimentar o mundo seja, hoje e sempre, o mais incompreendido, o mais injustiçado, o mais esquecido de todos. Só mesmo o poeta, com a sua sensibilidade, é capaz de reconhecer a importância desse trabalhador.

Bendigo a mão calejada
que, num trabalho fecundo,
presa ao cabo de uma enxada,
dá cabo à fome do mundo!
Edmar Japiassú Maia - RJ
= = = = = = = = = = =

É do romance envolvente
entre a terra e o lavrador
que a esperança da semente
se torna seara em flor.
Relva do Egypto - MG
= = = = = = = = = = =

Lavrador, por tuas mãos,
que Deus dotou de magia,
faz-se o milagre dos grãos,
dando o pão de cada dia!
Maria Lúcia Daloce Castanho - PR
= = = = = = = = = = =

Mas o lavrador, em geral, nunca é visto como um cidadão digno da maior consideração. É na verdade o grande herói do mundo, mas não recebe medalhas, honrarias e o respeito que merece. É simplesmente o grande injustiçado.

Cedo o lavrador levanta
a colher ingratidões,
e em cada cova que planta
vai enterrando ilusões.
Gonzaga da Silva - RN
= = = = = = = = = = =

De alma silente e sofrida,
sem o mundo dar-lhe ouvidos.
o lavrador lavra a vida
de sonhos nunca colhidos.
Gonzaga da Silva - RN
= = = = = = = = = = =

Vê-se na face enrugada
do lavrador do sertão
uma existência cansada
de tanta desilusão...
João Sobreira - CE
= = = = = = = = = = =

Na roça, ganhando a vida,
o sertanejo disposto,
mostra a existência sofrida
nas rugas do próprio rosto.
João Sobreira - CE
= = = = = = = = = = =

Quanto ao sofrimento do lavrador do sertão, eis um testemunho eloquente:

No sertão, sol causticante,
meu pai de enxada nas mãos,
foi morrendo a cada instante
por mim e por meus irmãos!...
Francisco Macedo - RN
= = = = = = = = = = =

Será que o penar do lavrador pode ser comparado ao do poeta? Parece que até certo ponto, sim. Ambos não têm o seu trabalho valorizado, em que pese os seus esforços. O trovador põe esse fato em relevo:

Lavrador, meu camarada,
não julgues que a pena é leve:
- pesa tanto quanto a enxada
a pena com que se escreve!...
José Rodrigues - RJ
= = = = = = = = = = =

A vida não vale nada
se a gente nada produz.
Tanto a pena quanto a enxada
abrem veredas de luz!
Thalma Tavares - SP
= = = = = = = = = = =

Mas infelizmente,
Foi sempre pobre o talento,
na vida paradoxal;
rico é o crânio de cimento
que só pensa em pedra e cal!
Archimino Lapagesse - SC

Fonte:
Luiz Gonzaga da Silva (org.). Trova e Cidadania. Natal/RN, abril de 2019.
Livro enviado pelo autor.

Nilto Maciel (As Ceias)

Serviam-se, escrupulosos.

— E as crianças? — quis saber Mário, garfo à mão.

A mastigar arroz e carne, Políbio olhou para os olhos do amigo, e, a seguir, para o quadro pendurado à parede, próximo à cabeça de Mário.

Os meninos viam televisão num dos quartos. Almoçaram cedo. Viviam com fome. Comiam feito lagartas. Todos riram, menos Sônia. Exagero do marido. Os coitados nem conseguiam engordar, tanto estudavam.

Políbio fixou novamente os olhos no quadro. Quem era o apóstolo que dormitava diante de Cristo? Teria se empanturrado de comida? Comer em demasia dava sono, dizia sua mãe. Por isso salvara-se da morte? Se não tivesse almoçado antes de todos, também teria morrido. O acaso livrou-o do veneno. Atribuíram aquilo a milagre. Deus, os santos, os anjos o protegeram.

— Vejo que vocês gostam muito de ceias. — deduziu Mário.

Sônia riu e disse não ser boa cozinheira. No entanto, sentia prazer em convidar amigos para almoçarem em sua casa.

Mário olhou para o quadro à sua direita. Não lembrava o nome, porém o conhecia. Talvez do museu de arte de ...

— A Ceia de Emaús. — gritou Sônia.

Políbio assustou-se e fez voltarem a mão e o garfo ao prato. Os outros, no entanto, não perceberam tais movimentos. Mário e Mônica mordiam pedaços de carne, enquanto Sônia falava de Caravaggio e sua pintura. Jesus muito jovem, ainda sem barba.

— Uma obra-prima.

Tantos anos passados, e tudo ainda tão nítido. Desespero, dores, gritos. A chegada dos vizinhos. Dona Ofélia a abraçá-lo, chorando. Sentia tontura, febre, dor. E ninguém imaginava a causa de tudo aquilo. Só após a consumação da tragédia, constatou-se ter sido o alimento envenenado.

Sem mais elogios para o pintor, Sônia se voltou para Políbio. Não tinha apetite? Não, aquele não era seu dia de gula. Os olhos de Sônia luziam. Seus cabelos pareciam mais negros. O rosto envelhecido do homem. Olhos pensativos. A taça com a bebida vermelha à altura do queixo. A barba rala.

— Gosto muito dessa pintura.

Sônia olhou para os olhos de Políbio e, logo, para o quadro de Louis Le Nain. Não ficava bem naquela parede. Talvez devesse ficar na sala de estar. Discutiam sempre por isso. Políbio riu. Birra dele e dela. Se contratassem os serviços de um especialista em ...

— Um decorador. — lembrou Mário.

Aqueles pobres camponeses, suas vestes, suas feições, tudo na pintura só servia para repelir apetite.

Mário e Mônica olhavam, calados, para Sônia. Ele até balançava a cabeça, em sinal de aprovação das palavras da anfitriã.

— No entanto, a traição de Judas não deveria dar apetite aos cristãos. — brincou Políbio.

Com força, Mário cortou a carne. A faca parecia rasgar o prato. Todos descalços, como no quadro dos camponeses. E neste não havia ódio, mas tristeza. Políbio depôs o garfo no prato. Mário quis virar a cabeça para trás. Sônia lembrou a salada de legumes. Mônica perguntou se a cozinheira lavava as verduras em vinagre. A cozinheira chamava-se Sônia.

Todos riram.

As crianças ainda no quarto. Presas à televisão. Pelo menos tinham pai e mãe. Um lar. Ele, não. Órfão aos cinco anos. Criado por tios e avós. Reza e missa todo dia. Ressurreição de Cristo. Balela. Órfão para sempre.

Mário falava de trabalho. Falta de tempo para se divertir, visitar amigos. Mônica concordava com ele. Vida monótona.

— Assim mesmo, ainda escrevo. — concluiu Mário.

Mônica gargalhou. Escrever não era trabalhar. E enfiou o garfo numa batatinha. Políbio ergueu a cabeça. Havia mais carne no prato de Mário.

— E Políbio, escreve ou não escreve?

Sônia olhava para o convidado. Mais acima da cabeça dele, os pés descalços dos apóstolos anunciavam a tragédia bíblica. Políbio nunca falava do passado. Sempre voltava ao presente, para daí chegar a desígnios.

Mônica deu por finda a sua refeição. Cruzou os talheres e virou-se para o marido. O rosto feminil de Cristo, as tranças caídas nos ombros lembravam rapazes modernos. A ave na bandeja parecia um frango assado. Nada havia mudado na Terra.

— Ora, mudou quase tudo. — contrastou Mário.

Insaciada, Sônia cravou o garfo num pedaço de linguiça. Caravaggio matara um homem durante uma briga. Temperamento explosivo.

— Como eu queria ser assim — lamentou-se Mônica.

Não devia pensar assim. A violência... Mário sorriu. Talvez Mônica quisesse ser como ela e não como o pintor.

— Exatamente isso. — desculpou-se a visitante.

Saciado, Políbio juntava as sobras do almoço no canto do prato. A assassina foi condenada a 30 anos de cadeia. Nunca mais a viu, desde o dia do crime. Se ainda vivia, disso não sabia. Nem queria saber.

Sônia deu um gritinho. Quase se esquecera do pudim. E levantou-se. Mário se disse farto. Mônica repetiu a frase. Quantos anos tinham os meninos?

— Vocês se casaram bem jovens.

Políbio fez as contas: 36 anos de vida, sendo 5 de inocência. O mais velho já andava na casa dos 10. E parecia ainda tão criança.

Chegado o pudim, todos os lábios sorriram. Os de Mário falaram.

— Escreva sua história, Políbio.

Sônia quis mudar de assunto. Só Deus salvava os homens. Os psicólogos já haviam insistido nessa história de escrever. Políbio não sabia escrever.

— Talvez não queira. — opinou o visitante.

Os dois casais tomaram água. Mário aceitou café. O vício do cigarro. Tossiu e fez menção de levantar-se. Antes dele, o anfitrião se pôs de pé. Auréolas douradas cingiam as cabeças dos apóstolos.

Encaminharam-se para os sofás. Sônia ofereceu um cinzeiro a Mário e perguntou se ele conhecia outras obras de Martin Schongauer. Sonolenta, Mônica fechou os olhos. E os três meninos, assustados, chegaram à sala: Brejnev morreu.

— Vou escrever minha tragédia. — anunciou Políbio.

Fonte:
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.
Livro enviado pelo autor.

Estante de Livros (A Morgadinha dos Canaviais, de Júlio Dinis)


É o terceiro romance do escritor português Júlio Dinis, publicado em 1868. A ação passa-se no século XIX em Grijó - Vila Nova de Gaia onde residiu Julio Dinis (Quinta dos Canaviais e Quinta da Alvapenha). Retrata a Morgadinha, chamada Madalena Constança, uma rapariga de enorme beleza e generosidade.

Enredo

A história inicia-se com a personagem principal, Henrique de Souselas, órfão e rico residente em Lisboa, que se encontrava doente devido ao diletantismo e à sensação de inutilidade da vida urbana.

Por esse motivo resolve instalar-se em casa da sua tia Doroteia, numa aldeia no norte de Portugal, a conselho de seu médico. Aí se restabelece e conhece Madalena, a elegante, inteligente e enérgica morgadinha, e apaixona-se por ela. No entanto, este amor não é correspondido e torna-se incômodo tanto para Madalena, que não gosta de Henrique, como para Augusto, que vê em Henrique um rival.

Augusto é um professor primário pobre e honesto, que é amigo de Vicente, o herbanário que veria a sua casa destruída pela construção de uma estrada. Augusto nutre, desde criança, um amor secreto por Madalena, a Morgadinha dos Canaviais, assim conhecida, em virtude de ter herdado da sua madrinha a Quinta dos Canaviais. Certo dia, Henrique, na taberna, ridiculariza o morgado das Perdizes sendo agredido por ele e pelos sujeitos que a frequentavam. Combalido da agressão, Henrique é levado para a casa da morgadinha. Aí é tratado com todos os cuidados por Cristina, uma rapariga pura e inocente, prima de Madalena, por quem acaba por se apaixonar. Henrique pede a sua mão e casa com Cristina. Por outro lado o amor secreto de Madalena e Augusto é revelado e acabam por casar.

Análise

Na figura do protagonista, Henrique de Souselas, a obra ilustra uma das teses favoritas do autor: o efeito regenerador da vida rústica sobre um sujeito deprimido pela vida urbana. Madalena, a Morgadinha, e a sua prima Cristina representam mulheres fortes, femininas e virtuosas, dispostas a contornar as barreiras sociais por amor, como acontece com Madalena com Augusto. Está também presente, uma forte componente de crítica social, que visa o fanatismo religioso e o clericalismo hipócrita, nomeadamente à crítica da tão controversa lei da altura que proibia o enterro nas Igrejas.

Existe um filme de 1949, com o mesmo título realizado.

Fonte:
Wikipedia

sexta-feira, 6 de maio de 2022

Dorothy Jansson Moretti (Album de Trovas) - 4

 

Humberto de Campos (A Cidade Indiscreta)

O Rio de janeiro é, positivamente, a cidade mais indiscreta do mundo. A vigilância em torno de sua Majestade o Rei Alberto, cujos passos e menores gestos são acompanhados de perto pelos jornais e pelo povo, demonstrariam essa verdade, se nós próprios, míseros mortais, não tivéssemos chegado pessoalmente a essa ingrata convicção. Não há, efetivamente, no Rio, um ponto, um abrigo, um refúgio em que se possa evitar a curiosidade dos olhares e das perguntas alheias. E quando esse lugar aparece, é tal a sofreguidão com que o procuram as pessoas discretas, que ele se torna, de pronto, um dos mais movimentados da cidade.

Ainda, agora, a propósito da visita de SS. MM. os Reis da Bélgica à Escola Nacional de Belas-Artes, veio-me à lembrança um episódio ali ocorrido, e em que tomei parte, durante a última exposição de artistas nacionais.

Solicitado por Mme. Cardoso Khan a ministrar-lhe, sem a assistência do marido, uns conselhos paternais sobre um caso do seu interesse, alvitrei, por telefone, a possibilidade de um encontro em lugar reservado, onde pudéssemos conversar em respeitosa intimidade. Aceita a minha proposta, a virtuosa senhora indagou:

- Onde poderá ser?

- Na "Mére Louise", no Leblon! - lembrei.

- Não, lá, não; tem muita gente. Podiam ver-nos, maliciar, e ir dizer ao Abelardo.

- Então, na casa de D. Matilde, no Flamengo! - tornei.

- Também, não. Ela é muito relacionada. Vai muita gente lá...

Apresentados e repelidos outros alvitres, veio-me à ideia, de súbito, a revelação de um amigo, e propus:

- A senhora já foi à Exposição da Escola Nacional de Belas Artes?

- Não.

- Pois, então, vá. Chegando lá, espere por mim, que subiremos, os dois, para o terraço que há em cima do edifício, o qual está sempre deserto. Abrigados por uns respiradouros que já existem, poderemos conversar sozinhos, inteiramente à vontade.

- Não sobe lá ninguém?

- Ninguém, filha! Eu estive lá o ano passado uma tarde inteira, e não apareceu ninguém!

À hora combinada, entrava na Escola, risonha e medrosa, a elegante criatura. Fiz-lhe um sinal e ganhamos a escada. De repente, recuei.

Em cima, no terraço, havia mais gente, aos casais, do que em baixo, na Exposição!

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.

Edwaldo Camargo Rodrigues (Trovas Avulsas)


Amor para a vida inteira
alterna amuo e carinho.
É como qualquer roseira
que só dá flor junto a espinho.
= = = = = = = = = = =

A pedra estava limosa:
escorregou, não caiu,
porque amparei a orgulhosa
que nem sequer me sorriu.
= = = = = = = = = = =

A quem diz que a vida é um sonho
cheio de amor e alegrias,
que vá lá em casa, eu proponho,
conviver com minhas tias.
= = = = = = = = = = =

Assim como o mar se agita
ao chegar a tempestade,
minh’alma sofre e palpita
quando sopra esta saudade.
= = = = = = = = = = =

Bastou-lhe sorrir apenas,
e ela pôs-me enfeitiçado.
Noites, outrora serenas,
desde então passo acordado.
= = = = = = = = = = =

Como é duro escrever trova,
os rigores são perversos!
Só aparece ideia nova
que não cabe em quatro versos.
= = = = = = = = = = =
De tanto ficar parada
espionando o tal vizinho,
a saíra, equivocada,
na cabeça fez-lhe ninho.
= = = = = = = = = = =

Disse, toda enfurecida,
ver-me a cara não querer.
Basta a lâmpada, querida,
do abajur não acender.
= = = = = = = = = = =

Ela tem-me procurado
com fala doce e macia.
Mas sou qual gato escaldado
que tem pavor de água fria.
= = = = = = = = = = =

Fiz o que o doutor mandou,
mas inda me dói o peito.
É porque ela não voltou:
são saudades, não tem jeito.
= = = = = = = = = = =

Foi ver no teto a barata,
encolheu-se na poltrona.
Ao marido gritou: “Mata!”
Só com ele é valentona.
= = = = = = = = = = =

Garantiu que preferia,
a tanta briga e aflição,
viver só. Passou-se um dia,
retornou, pediu perdão.
= = = = = = = = = = =

Gosto muito de um soneto,
mesmo lhe pondo estrambote,
mas com trovas não me meto:
são moinhos e eu, Quixote.
= = = = = = = = = = =

Lá no alto, nuvens escuras,
propelidas pelos ventos,
desfilam, feito amarguras,    
cá embaixo, em meus sentimentos.
= = = = = = = = = = =

O amor por mim que ela sente
ninguém compreende ou explica.
Ela é santa, eu, impudente,
sou pobretão e ela é rica.
= = = = = = = = = = =

Não durmo mais desde quando
ela partiu. Pouco importa,
sonho assim mesmo: ela entrando
pelo umbral da minha porta.
= = = = = = = = = = =

No pomar, a tarde inteira
ficamos, mas foi-se embora,
deixando, toda faceira,
meus lábios roxos de amora.
= = = = = = = = = = =

Paredes de pau a pique,
sapé trançado no teto,
mesmo assim, peço que fique,
o que importa é nosso afeto.
= = = = = = = = = = =

Persuasiva, fervorosa
jura de amor e carinho
pode ser bem enganosa
feito a flor que oculta o espinho.
= = = = = = = = = = =

Pise aqui, bem de mansinho,
colada assim junto a mim,
que a pomba arisca fez ninho
entre as rosas do jardim.
= = = = = = = = = = =

Pode mesmo haver consolo
quando se perde um amor,
eu sei, não sou nenhum tolo,
mas teimo em ser sofredor.
= = = = = = = = = = =

Porque aceito conformado
que dure pouco a alegria,
quero viver a seu lado
nem que for só por um dia.
= = = = = = = = = = =

Prolongados, no verão,
ou mesmo curtos, no inverno:
pouco importa a duração
dos dias, se o amor é eterno.
= = = = = = = = = = =

Quando eu era bem novinho,
logo aprendi a assobiar
imitando passarinho.
Quisera mesmo é voar!
= = = = = = = = = = =

Quem sonha a vida passar
sem apreensão ou tormento,
é o mesmo que acreditar
que há tempestade sem vento.
= = = = = = = = = = =

Quer espojar-se na vala,
em erro após erro incide-se,
não vou do inferno tirá-la
como Orfeu fez por Eurídice.
= = = = = = = = = = =

Salgou demais a comida,
exagerou na pitada.
Ou é muito distraída,
ou está mesmo apaixonada.
= = = = = = = = = = =

Sua face, clara, ora brilha,
ora retrai-se e recua,
oculta atrás da mantilha:
são fases dela e da lua.
= = = = = = = = = = =

Tem barriga o sapo-boi,
grande barriga tem Buda.
A dela plana já foi,
agora é um deus nos acuda!
= = = = = = = = = = =

Trai-me até com meu amigo,
um fuxiqueiro me diz.
Pode até ser, eu nem ligo:
nem todo corno é infeliz.
 
Fonte:
Trovas enviadas por João Líbero

quinta-feira, 5 de maio de 2022

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) 07: Ternura

 

Eduardo Affonso (Era uma vez)

Sempre fui uma negação para guardar nomes.

Para compensar, sou péssimo fisionomista.

Quando dava aulas, era comum ser abordado.

– Tudo bom, professor? E a minha nota?

O máximo que eu conseguia saber era que o jovem ou a jovem (ainda não existiam as jovens naquela época) era de alguma das turmas para as quais eu lecionava. E eram muitas.

Na hora da chamada, tentava fazer o cara-crachá para ver se, de tanto repetir, associava os nomes às pessoas. Em vão.

Conseguia gravar, no máximo, os melhores e os piores de cada sala. Os da fila da frente e os do fundão. O que significa que 90% permaneciam um mistério para mim durante todo o ano letivo.

Não era pouco caso. Era déficit meu mesmo.

Eu também trabalhava no Banco do Brasil.  E volta e meia me aparecia alguém perguntando:

– E o meu negócio, como é que está?

Eu não fazia ideia de quem fosse a pessoa, que dirá como estava o negócio dela. Que poderia ser uma renovação de cheque especial, uma aplicaçãozinha do saldo disponível em conta ou um empréstimo para comprar 200 vacas girolandas.

– Me veja um documento, por favor, só para eu confirmar se seus dados saíram certinhos.

– Estou sem a identidade aqui…

– Serve conta de luz, qualquer coisa que tenha seu nome.

– Estou sem nada.

– Então assina aqui só para eu aproveitar e conferir a assinatura.

E lá ia eu, torcendo para que a assinatura fosse legível, ou teria que consultar milhares de cartões de autógrafo – ou perguntar, discretamente, a alguém de confiança, “quem é aquele ali na minha mesa?”.

Na rua, cidade do interior, era batata:

– Transfere 50 mil da minha poupança pra conta, que vai cair um cheque amanhã. Depois eu passo lá e assino.

Eram tempos pré aplicativos via celular. O celular, inclusive, ainda era ficção científica.  Eu tinha que chegar ao banco e avisar que, se aparecesse um cheque em torno de 50 mil sem saldo na conta, era para falar comigo antes de devolver. Só assim eu saberia quem era o cliente. Ou ex-cliente, por minha culpa, minha máxima culpa.

Para facilitar as coisas, tenho nome duplo. Minha mãe queria Eduardo. Meu pai concordou até a véspera, mas, sem combinar nada com ela, incluiu Sidney na certidão. Ela, magoada, nunca me chamou de Sidney. Ele, talvez por arrependimento, talvez de pirraça, também não. Só fiquei sabendo que, além de Eduardo, era Sidney quando entrei na escola, e tinha que dizer que eu, Eduardo, estava presente quando a professora chamasse o tal de Sidney.

Então em casa eu era Eduardo, na escola era Sidney. Nas apresentações formais, Sidney; nas relações mais íntimas, Eduardo. Eduardo na Psicologia; na Arquitetura, Sidney.

Num sem número de vezes, me peguei ao final de uma carta ou com o dedo no botão de um interfone sem saber quem estava lá, o Sidney ou o Eduardo. Tinha que refazer mentalmente toda a história, lembrar de onde nos conhecíamos, pensar na pessoa falando meu nome para ver qual soava mais familiar na sua boca – e só aí assinava ou dizia quem era.

Mas, como nem tudo é desgraça na vida de um cristão, eu era tímido. E, como Deus é justo, e dá o frio conforme o cobertor, também gago. O que me tornava ansioso nas relações interpessoais – mas apenas em dois tipos de situação: quando tinha que falar com alguém presencialmente (porque a timidez me dava um branco) ou quando tinha que falar com alguém por telefone (porque a gagueira me dava um nó).

Venci ambas as limitações falando o mais depressa possível, tanto para não gaguejar quanto para acabar logo com aquilo. E fugindo do telefone como um carioca, no verão, foge da conta de luz.

Por isso comecei a escrever.

Escrevendo, não gaguejava. Podia usar à vontade palavras começadas com B. E as pessoas tinham o nome que eu quisesse. E eu era sempre Eduardo, nunca Sidney.

Nunca vi a escrita como uma escolha ou um dom, mas como uma espécie de salvação.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXXIX

Em plena vida e violência

 
Em plena vida e violência
De desejo e ambição,
De repente uma sonolência
Cai sobre a minha ausência.
Desce ao meu próprio coração.

Será que a mente, já desperta
Da noção falsa de viver,
Vê que, pela janela aberta,
Há uma paisagem toda incerta
E um sonho todo a apetecer ?
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Em torno ao candeeiro desolado
 
Em torno ao candeeiro desolado
Cujo petróleo me alumia a vida,
Paira uma borboleta, por mandado
Da sua inconsistência indefinida.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Enfia a agulha
 
Enfia a agulha,
E ergue do colo
A costura enrugada.
Escuta : (volto a folha
Com desconsolo).
Não ouviste nada.

Os meus poemas, este
E os outros que tenho _
São só a brincar.
Tu nunca os leste,
E nem mesmo estranho
Que ouças sem pensar.

Mas dá-me um certo agrado
Sentir que tos leio
E que ouves sem saber.
Faz um certo quadro.
Dá-me um certo enleio...
E ler é esquecer.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Entre o luar e o arvoredo
 
Entre o luar e o arvoredo,
Entre o desejo e não pensar
Meu ser secreto vai a medo
Entre o arvoredo e o luar.
Tudo é longínquo, tudo é enredo.
Tudo é não ter nem encontrar.

Entre o que a brisa traz e a hora,
Entre o que foi e o que a alma faz,
Meu ser oculto já não chora
Entre a hora e o que a  brisa traz.
Tudo não foi, tudo se ignora.
Tudo em silêncio se desfaz.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

E ou jazigo haja
 
E OU JAZIGO haja
Ou sótão com pó.
Bebé foi-se embora.
Minha alma está só.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

E, ó vento vago
 

E, ó vento vago
Das solidões,
Minha alma é um lago
De indecisões.

Ergue-a em ondas
De iras ou de ais,
Vento que rondas
Os pinheirais!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Epitáfio Desconhecido
 
QUANTA mais alma ande no amplo informe,
A ti, seu lar anterior, do fundo
Da emoção regressam, ó Cristo, e dormem
Nos braços cujo amor é o fim do mundo.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Era isso mesmo
 
ERA ISSO mesmo -
O que tu dizias,
E já nem falo
Do que tu fazias...

Era isso mesmo...
Eras outra já,
Eras má deveras,
A quem chamei má...

Eu não era o mesmo
Para ti, bem sei.
Eu não mudaria,
Não - nem mudarei...

Julgas que outro é outro.
Não: somos iguais.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Eram Varões Todos
 
ERAM VARÕES  todos,
Andavam na floresta
Sem motivo e sem modos
E a razão era esta.

E andando iam cantando
O que não pude ser,
Nesse tom mole e brando
Como um anoitecer

Em que se canta quanto
Não há nem é e dói
E que tem disso o encanto
De tudo quanto foi.

Aparecido Raimundo de Souza (Pelo interfone)

O homem chega na portaria do prédio com uma porção de sacolas e embrulhos nas mãos. A poder de muito sacrifício consegue dar um jeitinho de alcançar o interfone. Toca. Uma voz feminina atende instantaneamente:

— Oi, quem é?

— Sou eu Rúbia, o Troncoso.

— Oi, cunhado, vou abrir.

Uma combinação de sons se ouve:

— Abriu?

— Não.

O pi, pi, pi, pi se repete:

— Abriu?

— Não.

Uma... Duas...

— Abriu?

— Não.

...Três... Quatro...

— Abriu?

— Não.

...Cinco... Seis...

— Abriu?

— Não.

— Escuta Rúbia. Vai ver você está acionando a tecla errada.

— Claro que não.

— Cadê o Popó?

— Saiu.

— Você não avisou a ele que eu viria?

— Por certo. Mas você conhece seu irmão. Disse pra mim que ia ao supermercado comprar cerveja...

— Tudo bem, cunhada. Aperta essa encrenca mais uma vez.

— Vamos lá. Abriu?

— Não.

— E agora, abriu?

— Não.

Rúbia se enfurece.

— Que droga! Abriu?

— Não.

— Troncoso, faz o seguinte. Chama novamente.

— OK.

O aparelho é imediatamente desligado. Troncoso repete a operação teclando o número do apartamento desejado. Desta vez um homem atende em meio a uma chiadeira medonha:

— Fala meu.

— Sou eu, mano. A Rúbia acabou de me dizer que você não estava em casa.

— O que? Quem?

— Rúbia...

— Tava no banheiro. Sobe ai.

Um apito estridente se ouve seguido do mecanismo liberando a porta.

— Abriu?

— Não.

— Abriu?

— Não.

— Acho que esta droga emperrou. Abriu?

— Não.

— Abriu?

— Não. Popó, Popó, me escuta...

O dialogo de repente se transforma numa balbúrdia. Ambos desligam ao mesmo tempo. Troncoso espera alguns minutos. Consegue comunicação depois da quinta tentativa. É a cunhada, de novo:

— Oi, Rúbia, até que enfim.

— Quem é?

— Quem mais poderia ser? Sou eu, o Troncoso.

Abre logo essa droga de porta.

— Ta legal, Não precisa se irritar. Como você desligou, pensei que o portão estivesse aberto e você a caminho do elevador.

— Como vê, ainda aqui tentando entrar no prédio.

— Abriu?

— Não.

— Abriu?

— Não. Rúbia, não é melhor você descer?

— Cunhado, tô praticamente pelada.

— Imagino. Por isso mentiu ao falar que Popó tinha ido ao supermercado.

— Mas ele saiu, de verdade. Juro. Estou sozinha.

— Rubinha, pelo amor de Deus, agora não. Eu vim trazer as compras pro churrasco de vocês numa boa. Manda o Popó descer ou faz isso você mesma... Tenho um amontoado de encrencas me esperando lá em casa.

— Troncoso, eu já te falei. Popó não está aqui.

— Tudo bem. O que é que eu faço com as sacolas?

— Por tudo quanto é sagrado, Troncoso. Suba.

— Então abre.

O barulhinho da geringonça quebra o marasmo da conversação: — Abriu?

— Não.

—Abriu?

— Não.

Rúbia desliga. Troncoso insiste. Um sujeito atende.

— Fala.

— Popó abre logo essa porcaria.

Estranhamente o som desagradável de antes volta a se manifestar entre os dois interlocutores:

— Meu amigo, aqui não tem nenhum Popó.

— Ta. Então me passa a Rúbia.

— Que Rúbia, meu chapa, que Rúbia? Pra qual apartamento discou?

— Cara, a hora que eu te pegar na minha frente você vai se arrepender de ter nascido. Abre essa droga.

Embora a desordem persista, os dois homens continuam a dialogar. Se é que se poderia chamar o papo dos dois de diálogo:

— Escuta aqui, palhaço. Vou descer e quebrar a tua cara.

— Eu é que vou subir e rebentar com a sua. Depois que tiver terminado, nem mamãe vai lhe reconhecer. E quer saber, Popó: Volta lá pra sua cama e continua com a farra.

— Que cama, que farra, seu filho de uma vagabunda?

O interfone é desligado abruptamente. Troncoso, pê da vida, resolve levar a sacanagem adiante. Se os dois queriam brincar e se divertir às suas custas, tudo bem. Entraria no clima, e, depois, no final, mandaria os dois para os quintos do inferno. Tocou, decidido:

— Oi, Troncoso?

— Não, é o chapeuzinho vermelho!

— Cara, você ainda está ai?

— Rúbia, me faz um favor?

— Claro. O que você quer?

— Vá pro inferno, sua vagabunda.

Rúbia, perplexa: — Troncoso, o que deu em você. Que bicho te mordeu?

— Antes que me esqueça. Sabe o que vou fazer com as compras de vocês? Jogarei no lixo aqui ao lado.

Um sujeito alto e magro, sem camisa, só de bermuda, tatuado dos pés a cabeça, pinta no hall de entrada.

Nas mãos do cidadão um revólver pronto para entrar em ação reluz sinistramente.

— Seu filho da mãe, você deve ser o tal do Troncoso que resolveu se dependurar no interfone do meu apartamento. Vou te mostrar quem vai sair lascado.

Troncoso não espera o rapaz acabar de descer o restante das escadas. Larga as sacolas ali mesmo na calçada, tropeça num cachorro, quase é atropelado por um carro que aparece do nada. Sem olhar para trás, bate em retirada a mil por hora.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Refúgio para cornos avariados. São Paulo, SP: Editora Sucesso, 2010.
Ebook enviado pelo autor.

quarta-feira, 4 de maio de 2022

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 3


 

Paulo Mendes Campos (Para Maria da Graça)

Agora, que chegaste à idade avançada de 15 anos, Maria da Graça, eu te dou este livro: Alice no País das Maravilhas.

Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti.

Escuta: se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca. Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas. Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade.

A realidade, Maria, é louca.

Nem o Papa, ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz à gatinha: "Fala a verdade, Dinah, já  comeste um morcego?".

Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano. "Quem sou eu no mundo?" Essa indagação perplexa é o lugar-comum de  cada história de gente. Quantas vezes mais decifrares essa charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta; o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira.

A sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é inevitável. Foi o que Alice falou no fundo do poço: "Estou tão cansada de estar aqui sozinha!" O importante é que ela  conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do poço! Só as criaturas humanas (nem mesmo  os grandes macacos e os cães amestrados) conseguem abrir uma porta bem fechada, e vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta.

Somos todos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial, e temos a presunção petulante de esperar dela grandes consequências.

Quando Alice comeu o bolo, e não cresceu de tamanho, ficou no maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas que comem bolo.

Maria, há uma sabedoria social ou de bolso; nem toda sabedoria tem de ser grave.

A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia: "Oh, I beg your pardon!" Pois viver é falar de corda em casa de enforcado. Por isso te digo, para a tua sabedoria de bolso: se gostas de gato, experimenta o ponto de vista do rato. Foi o que o rato perguntou à Alice:"Gostarias de gatos se fosses eu?"

Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namoradas, todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos, que, quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: "A corrida terminou! mas quem ganhou?" É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupe a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre aonde quiseres, ganhaste.

Disse o ratinho: "Minha história é longa e triste!" Ouvirás isso milhares de vezes. Como ouvirás a terrível variante: "Minha vida daria um romance". Ora, como todas as vidas vividas até o  fim são longas e tristes, e como todas as vidas dariam romances, pois o romance é só o jeito de contar uma vida, foge, polida mas energicamente, dos homens e das mulheres que suspiram  e  dizem: "Minha vida daria um romance!"

Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.

Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mais devagar,  muito devagar. Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou  mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro, e não te desesperes ao triste pensamento de Alice: "Devo estar diminuindo de novo". Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente.

E escuta esta parábola perfeita: Alice tinha diminuído tanto de tamanho que tomou um camundongo por um hipopótamo.  Isso  acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos,  pois o contrário também acontece. E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte: É isso mesmo. A alma da gente é uma máquina complicada que produz durante a vida uma quantidade imensa de camundongos  que parecem  hipopótamos e rinocerontes que parecem camundongos. O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo. E como tomar o pequeno por grande e o grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom humor.

Toda pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma;  por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para as grandes ocasiões.  Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação  de  achar  que  fracassamos  ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grandes ocasiões.

Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência,  que  tem medo de não poder sair de lá. A dor também tem o seu feitiço, e este  se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter chorado um lago, pensava: "Agora serei  castigada, afogando-me em  minhas próprias lágrimas".

Conclusão: a própria dor deve ter a sua medida: é feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça.

Fonte:
Paulo Mendes Campos. O Colunista do Morro. RJ: Ed. do Autor. 1965.

Lairton Trovão de Andrade (Enxurrada da Poemas) – 5

ASPIRAÇÃO


“Ah, beija-me com os beijos
da tua boca." (Ct. 1.2)


Estes lindos olhos teus,
Azuis como o azul do mar,
Poderiam ser só meus...
- Como é bom poder te amar!

Nesta face de menina
Estou sempre a contemplar-te;
Como à sedosa bonina
Bem quisera acariciar-te!

Estes seios convulsivos,
Cheios de amor sem-par,
Estão sempre efusivos...
- Quem me dera te abraçar!

Estes lábios - rubra cor,
Continuamente a exalar
Anseios de um grande amor...
- Que delícia te beijar!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

ESTRELA DO MEU CÉU
"Tu és bela, tu és formosa.” (Ct. 4.1)

No céu da minha vida,
Há uma rara estrela;
Na imensa nebulosa
Deslumbra-me em vê-la.

Do mundo nada almejo,
Se a tenho sempre bela;
É luz do meu caminho
A minha alva estrela.

No abismo não te escondas,
- Adoro a minha estrela!
Perdido eu estaria,
Se não pudesse tê-la.

Sozinho, minha estrela,
O que podia eu ser?
- Seria escuridão
De eterno padecer.

Com vida de dez séculos,
Meu sonho nela eu pus;
A cada dia mais
Verei a sua luz.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

RAINHA DO ABISMO
"Eis que o meu amado vem aí, saltando sobre
os montes, pulando sobre as colinas."
(Ct. 2.8)


Solitária orquídea do rochedo altivo,
Que o penhasco alegras com teu magnetismo;
Tens a pedra tosca, por trono cativo,
Onde vives presa, rainha do abismo.

Muito maravilhas o penhasco feio,
Do surgir da aurora até ao entardecer;
Mas teu coração está de angústia cheio
Por não ter aquele que desejas ter.

Que vale o sorrir da brisa em teu semblante,
Que se faz presente pra te acariciar?
Sem meigos carinhos deste amor distante,
Tudo isso só pode te fazer penar.

O que mais fazer para te libertar?
Escalar montanha, além do abismo o horror?
Arriscarei tudo - quero te buscar!
Dar-te-ei uma vida repleta de amor.

Arriscarei tudo - vencerei o dragão!
Galgarei a escarpa - direção do norte;
Lutarei co'o vento - vencerei o tufão...
Vou salvar o amor - líbertar-te-ei da morte!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

SAUDADE
"Dize-me, ó tu, que meu coração ama,
onde apascentas o teu rebanho?"
(Ct. 1.7)


A minh’alma está cheia de dor,
Dor perene de acerba saudade,
De saudade do mais puro amor...
Estou triste qual triste albatroz,
Não preciso escutar nada mais,
Pois ouvir eu nem posso a sua voz.

Este vento assobia lá fora...
Lentamente meu dia passou...
Vem a noite calada, agora,
Sufocar minha vida tristonha
Com o meu pensamento angustiado
- Pesadelo acordado que sonha.

Nem as cordas sonoras da lira
Inspirar melodias puderam;
Só lamento pungente se ouvira
De uma vida que vive o temor,
E, distante da face querida,
A saudade tem sulcos de dor.

Que saudade do seu rosto lindo,
Desses olhos que olharam pra mim;
Eu a vejo formosa, sorrindo,
- Primavera corando-se em flor...
Que saudade da face excitada,
Fascinando-me em taça de amor.

Quero vê-la de novo bem linda,
Com seus braços repletos de vida;
No meu lar seja sempre bem-vinda,
Casa cheia de dócil encanto;
Contagiado será seu viver,
Expulsando, co'amor, o meu pranto.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  

TUAS MÃOS
"Tua mão esquerda está sob minha cabeça,
e tua direita abraça-me." (Ct.8.3)


Ó suaves mãos, mãos afeiçoadas,
De puros gestos, carinhosas;
Ó níveas mãos, mãos abençoadas,
Que coisa as fez assim formosas?

Macia palma, aveludada,
O dorso - cheio de expressão...
O que será tem de encantada
A placidez da tua mão?

E brandamente com ternura,
Amigas mãos, quentes, me vêm;
Não é paixão, não é loucura,
Mas as tuas mãos - o que elas têm?

Volvem pra mim alegremente,
Como se, então, me dessem um beijo;
E no tanger mais complacente,
Com grande afeto eu sempre as vejo.

Mesmo de frágil compleição,
Fazem-me forte qual gigante;
Quanta magia em cada mão!
Por elas só, vou sempre avante.

Na branca palma da tua mão,
Soletro as sílabas da vida;
Eu vejo um "M" com paixão
- Centro do amor é a letra lida.

Fonte:
Lairton Trovão de Andrade. Madrigais: poesias românticas. Londrina/PR: Ed. Altha Print, 2005.
Livro enviado pelo autor.

Fernando Sabino (Minha (in)experiência de cinema)

OS TEXTOS tinham de ser convencionais, cheios de lugares-comuns, pois os clientes não aceitariam qualquer inovação ou ousadia de linguagem. Cheguei mesmo a compor uma lista de palavras e expressões como arrancada para o progresso, esforço titânico, movimento ciclópico, desafio do futuro, e por aí afora, para os momentos de aperto. Difícil arte essa, a de escrever para não dizer nada, em que são mestres os editorialistas de jornal.

Eram narrativas do cinema comercial, em que me iniciei pela mão de Paulo Mendes Campos. Aquilo não tinha um mínimo de qualidade literária que me permitisse assinar o nome, mas era um meio de vida honesto como outro qualquer. Eu me lembrava sempre do que disse, creio que Sérgio Porto, quando recusaram um texto seu para televisão, porque não estava como queriam:

— Vocês me desculpem, mas pior do que isso não sei fazer.

Houve exceções, é lógico: num filme sobre a Sudene, por exemplo, que Paulo e eu fizemos a quatro mãos, conseguimos que aprovassem um texto bem razoavelzinho. Pelo menos na primeira parte, em preto e branco, sobre a miséria do Nordeste (a segunda parte, em cores, é que era sobre o esforço titânico da Sudene). É verdade que contamos com um colaborador de grande sabedoria: o Rei Salomão. O texto era todo composto de versículos bíblicos do Livro de Provérbios. Fomos muito cumprimentados:

— Vocês estão escrevendo bem à beça.

Por essa época havíamos resolvido juntar nossos talentos, achando que seria mais fácil assim. Quando ambos tínhamos encomendas, escrevíamos juntos as duas. Escrever não é propriamente o termo: elocubrar talvez vá melhor. O escasso material que nos davam como fonte de consulta vinha acompanhado de uma decupagem do filme em planos e sequências, com o respectivo tempo de duração. Cada linha datilografada correspondia a 5 segundos. Era tudo medido e calculado, quase que palavra por palavra. Parecíamos dois malucos:

— Me arranja aí três palavras. Estou precisando de alguma coisa assim: parará, pa-pá, pa-pá.

— Deixa eu ver. Por que você não põe só pá, pá e pá?

Foram pelo menos uns cinquenta filmes, que se não me deram experiência de cinema, pelo menos me familiarizaram com alguns aspectos práticos da produção: tinha de ver os copiões, às vezes acompanhar a montagem e sugerir modificações — cheguei mesmo a elaborar roteiros, para facilitar a redação posterior do texto.

O que era pouco, reconheço, para que eu passasse a me considerar um cineasta — coisa que não pretendia, e continuo não pretendendo ser. Mas deu para ver de perto o trabalho que é fazer um filme. Mesmo como aqueles, que estavam para o cinema-arte como um anúncio das Casas da Banha está para a Divina Comédia.

De filmes que nunca foram feitos, meu inferno está cheio. Não foram poucos os cineastas meus amigos (e digo de passagem: é tudo boa gente) que em diferentes ocasiões me encomendaram argumentos ou sugeriram que nos associássemos para fazer um filme. A princípio, seduzido pela perspectiva de experimentar um novo meio, eu levava a sério e me punha a trabalhar. Cheguei a escrever todo o roteiro de um semidocumentário do Rio de Janeiro visto por um chofer de táxi — encomenda de Alberto Cavalcanti, que depois se foi para a Europa e me deixou de roteiro na mão.

Para Carlos Thiré, escrevi uma comédia passada no carnaval, que não chegou a ser filmada porque ao fim fiquei sabendo que em vez de receber pelo meu trabalho, eu teria que assumir uma das quotas de financiamento da produção — e éramos só nós dois, por enquanto. Mais tarde, já macaco velho, continuei me associando a vários amigos do cinema, mas só em longas (e excelentes) conversas de bar. Tenho até hoje filmes em projeto com vários deles, de Luís Carlos Barreto a José Medeiros, de Hugo Carvana a Domingos de Oliveira. Com este, cheguei a descolar um financiamento na Columbia e, entusiasmados, marcamos encontro com Tom Jobim e Chico Buarque, que seriam os atores de nosso filme. Chico não apareceu e Tom não pôde levar a ideia a sério porque na época tinha problemas com um dente da frente.

Vários produtores já tinham querido antes comprar a história do homem nu para transformá-la num filme. Silveira Sampaio fora um deles, e seria engraçado vê-lo na tela interpretando pelado o papel que já representara (vestido) num sketch para televisão.

Hugo Christiensen insistia em fazer do homem nu uma das suas “crônicas da cidade amada”. Até que surgiu um produtor disposto a realizar o filme como eu queria. O diretor me parecia capaz, pelo sucesso obtido com outro filme seu — o qual não cheguei a ver, mas que todos me asseguravam ser muito bom.

Ficou decidido que minha colaboração não se limitaria a escrever o roteiro e os diálogos, mas me caberia também acompanhar o diretor em todas as fases de realização do filme, da escolha dos atores e locações às filmagens propriamente ditas, da montagem ao lançamento de estreia. Com isso eu me assegurava finalmente uma iniciação no cinema, e pela mão de um mestre. Discutimos longamente a história, chegamos a um acordo, e escrevi a primeira versão, que ele me devolveu com algumas sugestões. Fiz a segunda, que não passava ainda de um esboço mais desenvolvido, e fiquei aguardando que ele me respondesse lá de São Paulo. Enquanto isso, sacramentava em contrato com a companhia produtora a minha participação no filme, que incluía também uma participação no faturamento. E fiquei aguardando. Até que um dia uma das crianças chega em casa correndo, excitada:

— Estão filmando um homem nu lá na praia.

Intrigado, vou até a praia e dou com o Paulo José correndo pela areia diante de uma câmera. Não estava propriamente nu, mas com uma tanguinha da cor da pele. O diretor dava instruções à sua equipe, e quando finalmente me viu entre os curiosos que acompanhavam a filmagem, sorriu meio de lado:

— Pois é, estamos filmando...

Deixei então que filmassem e fui para casa. Não cheguei a ver o filme senão quando já estava sendo exibido no meu bairro, para uma plateia de meia dúzia de gatos pingados. Pouco depois, a companhia produtora falia e também não cheguei mais a ver a cor do dinheiro.

Com isso eu dava por encerrada a minha experiência no cinema, antes de iniciá-la — quando me surgiu David Neves.

Se David Neves não existisse, teríamos de inventá-lo — como dizia Dostoievski de Deus e outros dizem do diabo. Deixa correr frouxo! — me dizia ele próprio, quando nos tornamos amigos e eu insistia em que iniciássemos o nosso primeiro projeto a quatro mãos. Essa sugestão de tranquilidade, esse convite à descontração e ao descompromisso no trabalho quase chegou a se tornar uma espécie de lema da nova firma produtora: Bem-te-vi Filmes Ltda., fundada com o mesmo espírito que inspirara a sua antecessora no campo da literatura, a Editora Sabiá. Vamos trabalhar nos divertindo que ninguém é de ferro, se possível fazendo alguma coisa que preste, e se ganharmos um dinheirinho tanto melhor. Por que sabiá e depois bem-te-vi? Porque Rubem Braga gosta de passarinho, e ele não podia ficar de fora. Dele partira a ideia de fazer uns filmes sobre escritores brasileiros. . .

Mas o sabiá da crônica não quis saber mais de cinema, quando viu o filme que fiz sobre ele próprio em super-8, para experimentar. Foi um trabalhão dos diabos, que mobilizou outros amadores das vizinhanças, como Roberto Brancher e Adolpho Portella, que eram os donos das câmeras, o assistente Mosquito (Luiz Cláudio Franco) e ainda Romeu Tonini Filho, erigido em técnico de som, por possuir um excelente gravador. Baden Powell entrou com a música sem saber, e o texto era tirado de crônicas do próprio Braga na voz deste seu criado, já que ele se recusou a falar. Mas David Neves gostou:

— Você leva jeito.

E fomos juntos para Hollywood.

Ele queria assistir a um festival de cinema e eu queria fugir ao festival de equívocos que era então a minha vida. Para darmos à viagem alguma motivação profissional (e alguma sustentação econômica), faríamos uma série de crônicas filmadas, ou minifilmes, ou lá o que fosse, sobre a vida em Hollywood.

Acabamos filmando Alfred Hitchcock em seu escritório nos estúdios da Universal. Assim que o velho bruxo permitiu que o filmássemos, e com um barbeiro a lhe cortar o cabelo, “para ficar mais pitoresco” como ele próprio sugeriu, David pôs-se a empurrar móveis, remover objetos, transformando o elegante escritório do mestre na casa da mãe-joana. Por causa da pouca luz, ainda me fez segurar um imenso abajur em cima da cabeça do velho. E a cena da despedida, já à porta da rua, o próprio Hitchcock resolveu orientar e dirigir. Fui dirigido por Hitchcock! O que me deixou tão confuso que, ao vê-lo me estender a mão dizendo adeus e entrar, em vez de ir embora acabei entrando atrás.

Valeu a experiência de ver David Neves em ação:

— Vai, David: quando eu atravessar a rua você filma.

Tratava-se agora de mostrar como os motoristas americanos respeitam os pedestres. Só não fui atropelado porque Deus, que é brasileiro, respeitou a minha insensatez.

Filmamos o túmulo de Rodolpho Valentino e o de Marilyn Monroe, a calçada da fama e a casa de Carmem Miranda — uma Hollywood que não existe mais. Depois fomos parar no México e voltamos para o Brasil, com escala no Panamá e na Guatemala. Mal chegando, nos associamos para fazer um filme sobre o Paraguai. David me avisou logo, prevenindo-se a respeito das exigências de trabalho da nossa sociedade:

— Quando estou em casa eu não atendo telefone.

Não pude deixar de perguntar, com toda seriedade:

— E quando não está?

A série de dez filmes sobre escritores se tornou possível graças ao Banco Nacional. Os diretores do Banco nem pestanejaram quando lhes expus o plano e pedi que o patrocinassem assumindo o custo da produção. Aprovaram tudo de mão beijada:

— Pode ir em frente.

Começamos por Carlos Drummond de Andrade, que havia visto o filminho sobre o Rubem e havia gostado. Mal começáramos e meu sócio se manda para um festival na Polônia com ar de vou ali e volto já:

— Quinze dias, no máximo.

Dois meses depois me telefonava (do México), dizendo que estava a caminho. Nesse meio tempo me deixou nas boas mãos de Roberto Neumann, que até se deitar no meio da rua se deitou, para filmar o poeta. Fomos parar em Belo Horizonte, Itabira, Ouro Preto e Congonhas, à procura das raízes de Minas na sua poesia. Eu queria filmar um boi — a solidão do boi do campo — e a todo momento parávamos o carro na estrada:

— Olha ali um boi pastando.

— É uma vaca.

Acabamos filmando dezenas de Tutu Caramujo na porta da venda, a meditar na derrota incomparável. Depois, no Rio, o poeta na Avenida Rio Branco, na livraria, no café e sendo abordado por uma linda admiradora que hoje vem a ser minha mulher. No ônibus, tivemos de isolar no fim da linha meia dúzia de bancos, com a concordância do motorista, meio desconfiado, para enchê-los com a comparsaria:

— Quais são os nossos amigos que têm cara de passageiro de ônibus? — perguntou David, já de volta, reassumindo seu lugar atrás da câmera.

Recrutamos meia dúzia — entre eles Marco Aurélio Matos e minha filha Virgínia.

— Minha senhora, isto é uma filmagem, se incomodava de passar para o outro banco?

— Daqui não saio. Daqui ninguém me tira.

A velha tinha ido se sentar justamente no lugar reservado ao poeta, que ia entrar na próxima parada.

— Este filme está meio chato — disse ele, já à entrada do Ministério da Educação: — Vamos fazer umas brincadeiras. Eu me escondo atrás daquela coluna e ponho a cara de fora.

Depois foi a vez de nosso querido Érico Veríssimo em Porto Alegre. Eu não podia imaginar então que em breve o filme se tornaria um comovente documento vivo deste que foi, como disse Drummond de Milton Campos, o homem que todos gostaríamos de ter sido.

Pedro Nava, por sua vez, se portou como verdadeiro ator. Seguiu à risca as marcações, fez, falou e aconteceu. O grande memorialista, que por si só justificava a sua inclusão na série, teve lances do mais fino humor também na sua qualidade de médico:

— Quando me dizem que reumatismo não tem cura, eu digo: tem tratamento. Nada mais incurável que um sujeito sem perna, não é isso mesmo? Pois pode usar uma perna-de-pau — é um tratamento.

Afonso Arinos nos surpreendeu com a sua verve, logo ao princípio do filme, contando uma história de pintassilgos e bicudos, junto à gaiola de um canário. Isso numa produção Bem-te-vi! Era muito passarinho junto — sugeri que no fim do filme ele acabasse soltando o canário da gaiola.

— Soltar meu canarinho? Isso nunca.

Um periquito amarelo, que era mais barato, com jeito passaria por um canário. Compramos dois, e foi bom, porque Afonso Arinos, bicado na mão pelo primeiro deles, soltou-o antes da hora. Prudente de Moraes, neto, que assistia à cena, meio cético (já havia participado de outra), sugeriu:

— Acho melhor soltar o próprio diretor desse filme.

José Américo, filmado em João Pessoa, não nos deu trabalho algum. Ao contrário de Jorge Amado, em Salvador, que não parava quieto, queria que todos os seus amigos aparecessem, e a cada momento aparecia ele próprio com uma camisa diferente, cada uma mais colorida que a outra. Umas dez ou doze camisas, num filme de dez minutos!

Não havia continuidade possível: abria a porta com uma e surgia na sala com outra. Mas a esta altura eu já contava com novo sócio, Mair Tavares. Aquele índio calado e discreto, concentrado em frente à moviola*, para quem tudo menos que a perfeição é uma droga, na realidade vinha a ser um extraordinário montador. Com ele, durante dois anos a fio, aprendi finalmente alguma coisa sobre o delicado e fascinante ofício do cinema: um filme se faz na moviola.

Quando os amigos perguntavam por mim, que andava sumido, Rubem Braga dizia, como de alguém entregue ao vício:

— Ele hoje vive na moviola.

Aprendi alguma coisa mais, e a isso talvez se reduza a minha experiência: a indústria cinematográfica no Brasil está com 20 anos de atraso — no estágio em que se encontrava, por exemplo, há 20 anos, a indústria editorial. Não vou falar na insuficiência de recursos técnicos, na escassez de material e equipamento, na deficiência dos laboratórios, no estrangulamento da distribuição, na concorrência estrangeira, na precariedade geral de uma infra-estrutura ainda nos moldes artesanais. Direi apenas que o cineasta brasileiro que consegue terminar um filme e exibi-lo num cinema é para mim um herói.
====================================
Moviola = mesa de edição ou mesa de montagem.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

terça-feira, 3 de maio de 2022

Adega de Versos 79: Francisco Neves de Macedo

 

Milton S. Souza (Mãe não se mata)

Um poeta escreveu esta delicada poesia para todas as mães: “Ah!, se Deus ouvisse um dia minha prece ingênua e doce, que fosse mãe não morria, por mais velhinha que fosse...”. Nestes versos, a mais pura verdade: as mães verdadeiras, de qualquer idade, não deveriam morrer, pois elas são os anjos que Deus colocou na vida dos filhos. Que pena que muitos filhos só vão se dar conta do valor imenso das suas mães quando elas já partiram para a eternidade. Que bom que ainda existem tantos filhos que reconhecem, durante a vida inteira, o valor desta mãe que Deus lhes deu...

 Na semana passada, na cidade de Gravataí, aconteceu um pequeno incidente que serve muito bem para mostrar o amor de um filho pela mãe. E este filho, envolvido no acontecimento, é um excepcional, com alguns problemas mentais. Um adulto que, por causa da sua doença, nunca deixou de se comportar como uma criança. Uma criança que anda por todo o centro de Gravataí e que conhece todo mundo. Uma criança grande que não perde uma peça de teatro, pois adora ver os outros representando.

E ele estava lá, naquela noite, o cine-teatro quase lotado. Prestava muita atenção em tudo o que acontecia no palco. Batia palmas para quase todas as cenas e o seu sorriso conseguia ser mais luminoso do que o lusco-fusco das luzes coloridas que davam mais vida para as cenas que se desenrolavam. Sentado na primeira fila de cadeiras, ele parecia ser o espectador mais concentrado entre todos os presentes. A peça encenada era um drama. E as partes foram se desenrolando com muita veracidade, fazendo crescer o silêncio dentro do teatro, conforme se aproximava o clímax da apresentação. A história terminava com um filho desferindo uma facada mortal na sua mãe. Foi exatamente no momento em que o ator levantou a faca para cravar no peito da apavorada mulher que o silêncio foi quebrado pelo desespero da voz do excepcional: “Não, não, não, mãe não se mata”, repetia ele, chorando e tendo que ser contido para não subir ao palco em direção ao espantado ator que estava com a faca. O espetáculo parou. Foi muito difícil convencer aquele menino-grande que aquela cena não era verdadeira e que nada iria acontecer para aquela mãe. Chorando, rodeado por tantos conhecidos, ele repetia: “Mãe não se mata, mãe não se mata...”.

Os atores, mesmo parando de representar, foram aplaudidos pelo público. E quem ganhou mais aplausos foi exatamente aquela mãe que o nosso menino-grande “salvou a vida”: ela desceu do palco e veio, docemente, como faria qualquer mãe, dar um abraço no rapaz excepcional que fez o espetáculo parar. E ele só parou de chorar quando sentiu que aquela mãe estava ali, sã e salva, sem nenhum arranhão. “Mãe não se mata”, ainda repetiu mais uma vez, colando o seu rosto molhado no regaço daquela mulher desconhecida que lhe provocara tanta emoção. Um pequeno incidente. Mas que serviu para mostrar a grandeza do amor de um filho por uma mãe. Na visão clara daquele moço excepcional, não existe nada mais grave do que matar uma mãe. Foi por isso que ele gritou bem forte, para todo mundo ouvir, que “mãe não se mata”. Foi por isso, também, que ele ganhou a maioria dos aplausos: por ter conseguido dar um final feliz para aquela bonita peça teatral.