quarta-feira, 4 de maio de 2022

Fernando Sabino (Minha (in)experiência de cinema)

OS TEXTOS tinham de ser convencionais, cheios de lugares-comuns, pois os clientes não aceitariam qualquer inovação ou ousadia de linguagem. Cheguei mesmo a compor uma lista de palavras e expressões como arrancada para o progresso, esforço titânico, movimento ciclópico, desafio do futuro, e por aí afora, para os momentos de aperto. Difícil arte essa, a de escrever para não dizer nada, em que são mestres os editorialistas de jornal.

Eram narrativas do cinema comercial, em que me iniciei pela mão de Paulo Mendes Campos. Aquilo não tinha um mínimo de qualidade literária que me permitisse assinar o nome, mas era um meio de vida honesto como outro qualquer. Eu me lembrava sempre do que disse, creio que Sérgio Porto, quando recusaram um texto seu para televisão, porque não estava como queriam:

— Vocês me desculpem, mas pior do que isso não sei fazer.

Houve exceções, é lógico: num filme sobre a Sudene, por exemplo, que Paulo e eu fizemos a quatro mãos, conseguimos que aprovassem um texto bem razoavelzinho. Pelo menos na primeira parte, em preto e branco, sobre a miséria do Nordeste (a segunda parte, em cores, é que era sobre o esforço titânico da Sudene). É verdade que contamos com um colaborador de grande sabedoria: o Rei Salomão. O texto era todo composto de versículos bíblicos do Livro de Provérbios. Fomos muito cumprimentados:

— Vocês estão escrevendo bem à beça.

Por essa época havíamos resolvido juntar nossos talentos, achando que seria mais fácil assim. Quando ambos tínhamos encomendas, escrevíamos juntos as duas. Escrever não é propriamente o termo: elocubrar talvez vá melhor. O escasso material que nos davam como fonte de consulta vinha acompanhado de uma decupagem do filme em planos e sequências, com o respectivo tempo de duração. Cada linha datilografada correspondia a 5 segundos. Era tudo medido e calculado, quase que palavra por palavra. Parecíamos dois malucos:

— Me arranja aí três palavras. Estou precisando de alguma coisa assim: parará, pa-pá, pa-pá.

— Deixa eu ver. Por que você não põe só pá, pá e pá?

Foram pelo menos uns cinquenta filmes, que se não me deram experiência de cinema, pelo menos me familiarizaram com alguns aspectos práticos da produção: tinha de ver os copiões, às vezes acompanhar a montagem e sugerir modificações — cheguei mesmo a elaborar roteiros, para facilitar a redação posterior do texto.

O que era pouco, reconheço, para que eu passasse a me considerar um cineasta — coisa que não pretendia, e continuo não pretendendo ser. Mas deu para ver de perto o trabalho que é fazer um filme. Mesmo como aqueles, que estavam para o cinema-arte como um anúncio das Casas da Banha está para a Divina Comédia.

De filmes que nunca foram feitos, meu inferno está cheio. Não foram poucos os cineastas meus amigos (e digo de passagem: é tudo boa gente) que em diferentes ocasiões me encomendaram argumentos ou sugeriram que nos associássemos para fazer um filme. A princípio, seduzido pela perspectiva de experimentar um novo meio, eu levava a sério e me punha a trabalhar. Cheguei a escrever todo o roteiro de um semidocumentário do Rio de Janeiro visto por um chofer de táxi — encomenda de Alberto Cavalcanti, que depois se foi para a Europa e me deixou de roteiro na mão.

Para Carlos Thiré, escrevi uma comédia passada no carnaval, que não chegou a ser filmada porque ao fim fiquei sabendo que em vez de receber pelo meu trabalho, eu teria que assumir uma das quotas de financiamento da produção — e éramos só nós dois, por enquanto. Mais tarde, já macaco velho, continuei me associando a vários amigos do cinema, mas só em longas (e excelentes) conversas de bar. Tenho até hoje filmes em projeto com vários deles, de Luís Carlos Barreto a José Medeiros, de Hugo Carvana a Domingos de Oliveira. Com este, cheguei a descolar um financiamento na Columbia e, entusiasmados, marcamos encontro com Tom Jobim e Chico Buarque, que seriam os atores de nosso filme. Chico não apareceu e Tom não pôde levar a ideia a sério porque na época tinha problemas com um dente da frente.

Vários produtores já tinham querido antes comprar a história do homem nu para transformá-la num filme. Silveira Sampaio fora um deles, e seria engraçado vê-lo na tela interpretando pelado o papel que já representara (vestido) num sketch para televisão.

Hugo Christiensen insistia em fazer do homem nu uma das suas “crônicas da cidade amada”. Até que surgiu um produtor disposto a realizar o filme como eu queria. O diretor me parecia capaz, pelo sucesso obtido com outro filme seu — o qual não cheguei a ver, mas que todos me asseguravam ser muito bom.

Ficou decidido que minha colaboração não se limitaria a escrever o roteiro e os diálogos, mas me caberia também acompanhar o diretor em todas as fases de realização do filme, da escolha dos atores e locações às filmagens propriamente ditas, da montagem ao lançamento de estreia. Com isso eu me assegurava finalmente uma iniciação no cinema, e pela mão de um mestre. Discutimos longamente a história, chegamos a um acordo, e escrevi a primeira versão, que ele me devolveu com algumas sugestões. Fiz a segunda, que não passava ainda de um esboço mais desenvolvido, e fiquei aguardando que ele me respondesse lá de São Paulo. Enquanto isso, sacramentava em contrato com a companhia produtora a minha participação no filme, que incluía também uma participação no faturamento. E fiquei aguardando. Até que um dia uma das crianças chega em casa correndo, excitada:

— Estão filmando um homem nu lá na praia.

Intrigado, vou até a praia e dou com o Paulo José correndo pela areia diante de uma câmera. Não estava propriamente nu, mas com uma tanguinha da cor da pele. O diretor dava instruções à sua equipe, e quando finalmente me viu entre os curiosos que acompanhavam a filmagem, sorriu meio de lado:

— Pois é, estamos filmando...

Deixei então que filmassem e fui para casa. Não cheguei a ver o filme senão quando já estava sendo exibido no meu bairro, para uma plateia de meia dúzia de gatos pingados. Pouco depois, a companhia produtora falia e também não cheguei mais a ver a cor do dinheiro.

Com isso eu dava por encerrada a minha experiência no cinema, antes de iniciá-la — quando me surgiu David Neves.

Se David Neves não existisse, teríamos de inventá-lo — como dizia Dostoievski de Deus e outros dizem do diabo. Deixa correr frouxo! — me dizia ele próprio, quando nos tornamos amigos e eu insistia em que iniciássemos o nosso primeiro projeto a quatro mãos. Essa sugestão de tranquilidade, esse convite à descontração e ao descompromisso no trabalho quase chegou a se tornar uma espécie de lema da nova firma produtora: Bem-te-vi Filmes Ltda., fundada com o mesmo espírito que inspirara a sua antecessora no campo da literatura, a Editora Sabiá. Vamos trabalhar nos divertindo que ninguém é de ferro, se possível fazendo alguma coisa que preste, e se ganharmos um dinheirinho tanto melhor. Por que sabiá e depois bem-te-vi? Porque Rubem Braga gosta de passarinho, e ele não podia ficar de fora. Dele partira a ideia de fazer uns filmes sobre escritores brasileiros. . .

Mas o sabiá da crônica não quis saber mais de cinema, quando viu o filme que fiz sobre ele próprio em super-8, para experimentar. Foi um trabalhão dos diabos, que mobilizou outros amadores das vizinhanças, como Roberto Brancher e Adolpho Portella, que eram os donos das câmeras, o assistente Mosquito (Luiz Cláudio Franco) e ainda Romeu Tonini Filho, erigido em técnico de som, por possuir um excelente gravador. Baden Powell entrou com a música sem saber, e o texto era tirado de crônicas do próprio Braga na voz deste seu criado, já que ele se recusou a falar. Mas David Neves gostou:

— Você leva jeito.

E fomos juntos para Hollywood.

Ele queria assistir a um festival de cinema e eu queria fugir ao festival de equívocos que era então a minha vida. Para darmos à viagem alguma motivação profissional (e alguma sustentação econômica), faríamos uma série de crônicas filmadas, ou minifilmes, ou lá o que fosse, sobre a vida em Hollywood.

Acabamos filmando Alfred Hitchcock em seu escritório nos estúdios da Universal. Assim que o velho bruxo permitiu que o filmássemos, e com um barbeiro a lhe cortar o cabelo, “para ficar mais pitoresco” como ele próprio sugeriu, David pôs-se a empurrar móveis, remover objetos, transformando o elegante escritório do mestre na casa da mãe-joana. Por causa da pouca luz, ainda me fez segurar um imenso abajur em cima da cabeça do velho. E a cena da despedida, já à porta da rua, o próprio Hitchcock resolveu orientar e dirigir. Fui dirigido por Hitchcock! O que me deixou tão confuso que, ao vê-lo me estender a mão dizendo adeus e entrar, em vez de ir embora acabei entrando atrás.

Valeu a experiência de ver David Neves em ação:

— Vai, David: quando eu atravessar a rua você filma.

Tratava-se agora de mostrar como os motoristas americanos respeitam os pedestres. Só não fui atropelado porque Deus, que é brasileiro, respeitou a minha insensatez.

Filmamos o túmulo de Rodolpho Valentino e o de Marilyn Monroe, a calçada da fama e a casa de Carmem Miranda — uma Hollywood que não existe mais. Depois fomos parar no México e voltamos para o Brasil, com escala no Panamá e na Guatemala. Mal chegando, nos associamos para fazer um filme sobre o Paraguai. David me avisou logo, prevenindo-se a respeito das exigências de trabalho da nossa sociedade:

— Quando estou em casa eu não atendo telefone.

Não pude deixar de perguntar, com toda seriedade:

— E quando não está?

A série de dez filmes sobre escritores se tornou possível graças ao Banco Nacional. Os diretores do Banco nem pestanejaram quando lhes expus o plano e pedi que o patrocinassem assumindo o custo da produção. Aprovaram tudo de mão beijada:

— Pode ir em frente.

Começamos por Carlos Drummond de Andrade, que havia visto o filminho sobre o Rubem e havia gostado. Mal começáramos e meu sócio se manda para um festival na Polônia com ar de vou ali e volto já:

— Quinze dias, no máximo.

Dois meses depois me telefonava (do México), dizendo que estava a caminho. Nesse meio tempo me deixou nas boas mãos de Roberto Neumann, que até se deitar no meio da rua se deitou, para filmar o poeta. Fomos parar em Belo Horizonte, Itabira, Ouro Preto e Congonhas, à procura das raízes de Minas na sua poesia. Eu queria filmar um boi — a solidão do boi do campo — e a todo momento parávamos o carro na estrada:

— Olha ali um boi pastando.

— É uma vaca.

Acabamos filmando dezenas de Tutu Caramujo na porta da venda, a meditar na derrota incomparável. Depois, no Rio, o poeta na Avenida Rio Branco, na livraria, no café e sendo abordado por uma linda admiradora que hoje vem a ser minha mulher. No ônibus, tivemos de isolar no fim da linha meia dúzia de bancos, com a concordância do motorista, meio desconfiado, para enchê-los com a comparsaria:

— Quais são os nossos amigos que têm cara de passageiro de ônibus? — perguntou David, já de volta, reassumindo seu lugar atrás da câmera.

Recrutamos meia dúzia — entre eles Marco Aurélio Matos e minha filha Virgínia.

— Minha senhora, isto é uma filmagem, se incomodava de passar para o outro banco?

— Daqui não saio. Daqui ninguém me tira.

A velha tinha ido se sentar justamente no lugar reservado ao poeta, que ia entrar na próxima parada.

— Este filme está meio chato — disse ele, já à entrada do Ministério da Educação: — Vamos fazer umas brincadeiras. Eu me escondo atrás daquela coluna e ponho a cara de fora.

Depois foi a vez de nosso querido Érico Veríssimo em Porto Alegre. Eu não podia imaginar então que em breve o filme se tornaria um comovente documento vivo deste que foi, como disse Drummond de Milton Campos, o homem que todos gostaríamos de ter sido.

Pedro Nava, por sua vez, se portou como verdadeiro ator. Seguiu à risca as marcações, fez, falou e aconteceu. O grande memorialista, que por si só justificava a sua inclusão na série, teve lances do mais fino humor também na sua qualidade de médico:

— Quando me dizem que reumatismo não tem cura, eu digo: tem tratamento. Nada mais incurável que um sujeito sem perna, não é isso mesmo? Pois pode usar uma perna-de-pau — é um tratamento.

Afonso Arinos nos surpreendeu com a sua verve, logo ao princípio do filme, contando uma história de pintassilgos e bicudos, junto à gaiola de um canário. Isso numa produção Bem-te-vi! Era muito passarinho junto — sugeri que no fim do filme ele acabasse soltando o canário da gaiola.

— Soltar meu canarinho? Isso nunca.

Um periquito amarelo, que era mais barato, com jeito passaria por um canário. Compramos dois, e foi bom, porque Afonso Arinos, bicado na mão pelo primeiro deles, soltou-o antes da hora. Prudente de Moraes, neto, que assistia à cena, meio cético (já havia participado de outra), sugeriu:

— Acho melhor soltar o próprio diretor desse filme.

José Américo, filmado em João Pessoa, não nos deu trabalho algum. Ao contrário de Jorge Amado, em Salvador, que não parava quieto, queria que todos os seus amigos aparecessem, e a cada momento aparecia ele próprio com uma camisa diferente, cada uma mais colorida que a outra. Umas dez ou doze camisas, num filme de dez minutos!

Não havia continuidade possível: abria a porta com uma e surgia na sala com outra. Mas a esta altura eu já contava com novo sócio, Mair Tavares. Aquele índio calado e discreto, concentrado em frente à moviola*, para quem tudo menos que a perfeição é uma droga, na realidade vinha a ser um extraordinário montador. Com ele, durante dois anos a fio, aprendi finalmente alguma coisa sobre o delicado e fascinante ofício do cinema: um filme se faz na moviola.

Quando os amigos perguntavam por mim, que andava sumido, Rubem Braga dizia, como de alguém entregue ao vício:

— Ele hoje vive na moviola.

Aprendi alguma coisa mais, e a isso talvez se reduza a minha experiência: a indústria cinematográfica no Brasil está com 20 anos de atraso — no estágio em que se encontrava, por exemplo, há 20 anos, a indústria editorial. Não vou falar na insuficiência de recursos técnicos, na escassez de material e equipamento, na deficiência dos laboratórios, no estrangulamento da distribuição, na concorrência estrangeira, na precariedade geral de uma infra-estrutura ainda nos moldes artesanais. Direi apenas que o cineasta brasileiro que consegue terminar um filme e exibi-lo num cinema é para mim um herói.
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Moviola = mesa de edição ou mesa de montagem.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

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