Dia desses, entre caixas de papelão e pertences velhos guardados sem saber se ainda serão usados, chamou-me à atenção um pacote de livros antigos com a embalagem desfeita. O barbante se rompeu e o jornal com que estava embrulhado não suportou o peso do conteúdo e se rasgou nas bordas pedindo renovação do invólucro.
Ao desfazer o embrulho, uma gorda e lustrosa barata surgiu ligeira. Ela se assustou e eu me enojei soltando um palavrão. Tive ímpeto de esmagá-la como se fazem com as baratas, mas algo também instintivo brecou meu gesto: ela era diferente das baratas que normalmente se escondem pelos cantos enfiadas em gretas e frestas dos móveis; era grande, gorda, lustrosa, com as antenas bem definidas e de um verniz marrom que puxava para o amarelo. Seria de espécie diferente das demais baratas que habitam a casa? - Indaguei aos botões da camisa.
Parei para analisá-la enquanto ela se escondia próximo dali, deixando a casca brilhante à vista e, como não encontrei resposta imediata, voltei aos livros limpando-os com um pano úmido, até que em um em especial encontrei seu esconderijo: a barata se deliciava com um velho livro de Anne-Marie Cazalis, Mémoires d'une Anne, (Memórias d'uma Anna), biográfico de 1976 que eu havia tentado ler sem tê-lo conseguido.
A tradução do francês ao português ficara tão difícil que a vontade de conhecer mais sobre a vida da escritora foi sacrificada pela dificuldade com a língua, e o "deixa pra depois" ganhou da persistência que se deve ter em casos assim.
O fato é que aquela baratona lustrosa e gulosa comera boa parte da vida de Anne-Marie, deixando apenas o dorso e o rodapé do volume. E aí me pus a matutar. Ou a filosofar? 0u pensar besteiras quando não se tem muito a fazer?
O que teria levado a barata a "devorar" somente o livro da Anne-Marie quando teve outros à disposição? Seria pela qualidade do papel? Ou da tinta? Ou foi a história picante de vida da autora sobre seu envolvimento com a amiga Juliette Gréco, depois com Bóris Vian, Jean-Paul Sartre e suas viagens sistemáticas à África especialmente à Tunísia que lhe rendeu outro livro (Kadhafi, le Templier d'Allah)? Teria sido pelo contexto da obra, já que os demais livros do pacote eram de assuntos técnicos de administração e contabilidade?
Por mais que imaginasse não fiquei sabendo. Poderia gastar mil perguntas, mil "entretantos" e comparações e outra quantidade igual de indagações que não chegaria a bom termo. A barata simplesmente a comeu letra por letra no sentido literal do termo, e eu era a testemunha do fato. Ponto final.
Entre a dúvida se a matava ou não, apelidei-a Anne, justamente por ter absorvido toda história da escritora com a calma e persistência que eu deveria ter ao ler o livro, e preferi deixá-la quieta na fresta em que se escondera.
Não é sempre que se encontra barata letrada no porão…
Ao desfazer o embrulho, uma gorda e lustrosa barata surgiu ligeira. Ela se assustou e eu me enojei soltando um palavrão. Tive ímpeto de esmagá-la como se fazem com as baratas, mas algo também instintivo brecou meu gesto: ela era diferente das baratas que normalmente se escondem pelos cantos enfiadas em gretas e frestas dos móveis; era grande, gorda, lustrosa, com as antenas bem definidas e de um verniz marrom que puxava para o amarelo. Seria de espécie diferente das demais baratas que habitam a casa? - Indaguei aos botões da camisa.
Parei para analisá-la enquanto ela se escondia próximo dali, deixando a casca brilhante à vista e, como não encontrei resposta imediata, voltei aos livros limpando-os com um pano úmido, até que em um em especial encontrei seu esconderijo: a barata se deliciava com um velho livro de Anne-Marie Cazalis, Mémoires d'une Anne, (Memórias d'uma Anna), biográfico de 1976 que eu havia tentado ler sem tê-lo conseguido.
A tradução do francês ao português ficara tão difícil que a vontade de conhecer mais sobre a vida da escritora foi sacrificada pela dificuldade com a língua, e o "deixa pra depois" ganhou da persistência que se deve ter em casos assim.
O fato é que aquela baratona lustrosa e gulosa comera boa parte da vida de Anne-Marie, deixando apenas o dorso e o rodapé do volume. E aí me pus a matutar. Ou a filosofar? 0u pensar besteiras quando não se tem muito a fazer?
O que teria levado a barata a "devorar" somente o livro da Anne-Marie quando teve outros à disposição? Seria pela qualidade do papel? Ou da tinta? Ou foi a história picante de vida da autora sobre seu envolvimento com a amiga Juliette Gréco, depois com Bóris Vian, Jean-Paul Sartre e suas viagens sistemáticas à África especialmente à Tunísia que lhe rendeu outro livro (Kadhafi, le Templier d'Allah)? Teria sido pelo contexto da obra, já que os demais livros do pacote eram de assuntos técnicos de administração e contabilidade?
Por mais que imaginasse não fiquei sabendo. Poderia gastar mil perguntas, mil "entretantos" e comparações e outra quantidade igual de indagações que não chegaria a bom termo. A barata simplesmente a comeu letra por letra no sentido literal do termo, e eu era a testemunha do fato. Ponto final.
Entre a dúvida se a matava ou não, apelidei-a Anne, justamente por ter absorvido toda história da escritora com a calma e persistência que eu deveria ter ao ler o livro, e preferi deixá-la quieta na fresta em que se escondera.
Não é sempre que se encontra barata letrada no porão…
Fonte:
Renato Benvindo Frata. Azarinho e o caga-fogo. Paranavaí/PR: Eg. Gráf. Paranavaí, 2014.
Livro enviado pelo autor.
Renato Benvindo Frata. Azarinho e o caga-fogo. Paranavaí/PR: Eg. Gráf. Paranavaí, 2014.
Livro enviado pelo autor.
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