Rosemilde não está preocupada com o futuro do país. Nem com o vestibular que vem aí, e no qual pretende defender uma vaga na Faculdade de Comunicação. O que lhe põe vinco na testa é o sempre anunciado reaparecimento das saias curtas.
— Curtas até onde? Quantos centímetros? Os costureiros internacionais não dizem, e isto é muito importante. Eu tenho pernas longas, será que vão encompridá-las ainda mais?
Rosemilde pressente a ameaça dos estilistas à estética do seu corpo:
— Eles fazem de nós o que querem, nos despem, nos escondem, nos modificam, nos fantasiam, nos usam. Eu acho que nós, mulheres, é que devemos administrar nossos corpos. Mas são os homens que ditam as leis da moda. Aliás, nem são leis, são decretos-leis ou atos institucionais mal redigidos. Se ainda não conseguimos libertar-nos da tirania dos costureiros, como é que iremos reivindicar os nossos direitos maiores?
(Mas se Saint Laurent e outros ditadores estabelecerem um teto razoável de centímetros, Rosemilde é capaz de ficar quieta e obediente.)
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AQUELE BÊBADO
— Juro nunca mais beber — e fez o sinal da cruz com os indicadores.
Acrescentou:
— Álcool.
O mais, ele achou que podia beber. Bebia paisagens, músicas de Tom Jobim, versos de Mário Quintana. Tomou um pileque de Segall. Nos fins de semana, embebedava-se de Índia reclinada, de Celso Antônio.
— Curou-se cem por cento do vício — comentavam os amigos.
Só ele sabia que andava mais bêbado que um gambá. Morreu de etilismo abstrato, no meio de uma carraspana de pôr de sol no Leblon, e seu féretro ostentava inúmeras coroas de ex-alcoólatras anônimos.
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AQUELE CLUBE
O Clube dos Desconfiados teve existência breve. Sua utilidade era indiscutível. Por isso congregou inúmeros desconfiados, que em sociedade se sentiriam mais garantidos contra possíveis más intenções e surpresas desagradáveis. Uma vez reunidos e organizados, com estatutos e diretoria, passaram a desconfiar uns dos outros e de si mesmos. Marcada assembleia geral extraordinária para exame da situação, ninguém compareceu. Ficaram todos nas esquinas próximas, espiando quem entrava na sede. O porteiro, desconfiadíssimo, sumiu.
Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.
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