terça-feira, 17 de maio de 2022

Aparecido Raimundo de Souza (O Pentelho)

O SUJEITO PEGA O TELEFONE E ENQUANTO LIGA PARA O AMIGO vai se desfazendo dos sapatos e das meias pelo meio do corredor a caminho da cozinha. Fala: “Alô? Luiz, seu bobalhão, sou eu, o Carlos.Acabei de chegar em casa, vindo do prédio onde funciona seu escritório. Toquei a campainha uma porrada de vezes e ninguém atendeu. Sua secretária não veio trabalhar, ou não quis abrir, sei lá. A garota da sala ao lado, de nome Bethânia, chegou às oito horas e dez minutos e, me vendo impaciente, andando para lá e para cá, e àquela hora da manhã, ofereceu água gelada e um cafezinho que fez na hora e, depois, caneta e papel para que eu pudesse, antes de virar as costas, lhe escrever um bilhete e enfiar por baixo da porta. O negócio é o seguinte: procurei feito um imbecil o nome que você me passou, ontem, por telefone. Fui em todas as livrarias da cidade (são quase vinte) e não encontrei nenhum livro de Julia Petit”.

“Aliás, Luiz, ninguém conhece Julia Petit por aqui. E ela nunca esteve na lista dos mais vendidos. Liguei para sua casa e consegui falar com a sua filha. Ela confirmou o nome da criatura: realmente Julia Petit, com o t mudo no final. Argumentei que na pressa, talvez você tivesse me passado o nome errado. Quem sabe, não fosse Julia, mas Rulia, Nulia, Sulia, Vulia, ou qualquer coisa parecida. Sua filha garantiu que era Julia, até soletrou, jota de jaca, u, de uva, ele, de laranja, i de indelicadeza e a dea mendoim. Parti, então, para o Petit. Não seria, Petite, com e, ou Petitte, com dois tes? Consegui tirar a sua simpática mocinha do sério. Nas ligações seguintes, a jovem só não me chamou de santo, mas percebi, pela alteração da voz, que meu papo se tornara chato e incômodo. Insisti em continuar a conversa, mas ela, com a grosseria e o atropelo que rondam a cabeça da juventude, acabou me mandando tomar naquele lugar. Não contente, meu amigo, pá, desligou na minha cara. Fiquei como um abestalhado, a boca aberta, as palavras entrecortadas na garganta, o telefone no ouvido e o troço: tu, tu, tu, tu, tu, tu...”.

“Você sabe muito bem, amigo Luiz, que odeio quando alguém interrompe a ligação, sem mais nem menos, e eu fico boquiaberto, feito um panaca, sem saber o que fazer com o auscultador na mão. Pior é o tu, tu, tu, tu, tu, tu...”.

“Só por vingança disquei de novo. Decidi soltar meia dúzia de cobras e lagartos no escutador de novelas daquela patricinha de Beverly Hills. Perdão, meu amigo, não por raiva, só para que ela aprendesse a respeitar os mais velhos. Contudo, na primeira tentativa, a porcaria deu ocupado e o “tu, tu, tu, tu, tu, tu” se fez ouvir, logo que terminei de riscar o quarto número. Insisti por mais umas quinze vezes. Todas infrutíferas. Resolvi dar um espaço. Cinco minutos. Findo esse tempo, voltei à carga. Nada! De novo, uma, duas, dez, vinte vezes, Luiz, acredite, vinte vezes e a porcaria, insistente: tu, tu, tu, tu, tu, tu...”.

“Com certeza, sua filha está de marcação cerrada. Não é possível ficasse pendurada por tanto tempo, sem dar folga. Bem, pode ser, também, que tenha deixado o fone fora do gancho, por descuido. Para matar as horas, Luiz, optei por um novo rolê. Tomei um café, comi um pão com manteiga e, após isso, voltei à peleja. Gastei, meu amigo, duas horas e meia refazendo as livrarias. Uma por uma. As respostas das atendentes eram sempre as mesmas. Teve uma que resolveu me alugar pra valer. Chato quando alguém lhe torra as medidas, não é verdade? Tentarei reproduzir o diálogo que tivemos”:

- Senhor, não temos nenhum livro de Julia Petit, nem de Julia Petite ou similar. Por acaso o senhor saberia dizer qual o nome da obra que ela escreveu? É romance? Livro de autoajuda? Esotérico? Já procurou em casas que vendem produtos espíritas? O senhor não levaria, em substituição, o último de Paulo Coelho, ou o mais recente de Lya Luft?

- Obrigado.

- Não gosta de Zíbia Gasparetto? Ah! Temos também “Por Que os Homens Fazem Sexo e as Mulheres Fazem Amor”.

- E por quê?

- Desculpe, ainda não li o livro, mas dizem que é bom. Minha supervisora devorou de cabo a rabo e achou massa.

- Massa?

- É. Legal!...

- Minha filha, você já leu Kafka?

- Não, senhor.

- E Roberto Shinyashiki?

- Nunca ouvi falar.

- Nem eu. Prefiro Fernando Sabino.

“Esse foi, Luiz, na íntegra, o bate-papo que trocamos, eu e a vendedora, em uma das livrarias. Para você ver que não estou mentindo, trouxe o nome dela, o número do CPF, identidade, carteira de trabalho e o telefone, caso o amigo queira ligar e confirmar realmente minha presença lá. Mudando de pau para cavaco, uma gracinha, a guria. Roldana, o nome da teteia. Lembra a Margarete. Já sei, você vai me questionar: quem é Margarete? Deixa refrescar sua memória. Margarete, aquela do cabelo vermelho, bem curtinho, que você se engraçou, na lanchonete e, depois – me escangalho de rir quando penso nisso – eu flagrei vocês dois, mais tarde, lá na quitinete, na hora exata do “bembom”.

“Para terminar, deixei um lembrete debaixo da porta do seu escritório com os dizeres: “Ligue-me, ligue-me, ligue-me, pelo amor de Deus, ou vou acabar louco. Assinado, seu amigo Carlos”. Em tempo: peça desculpas a Senhorita Bethânia. Na pressa, na correria, acabei trazendo a caneta dela.”
***

Quando Luiz chega em casa, a secretária eletrônica sinaliza que há ligações não atendidas. Aperta o play. Quarenta. Todas, sem exceção, do Carlos. Retorna:

“Carlos, sou eu, Luiz, atenda essa droga de telefone. Caramba! Eu sei que está aí. Recebi seus recados. “Trocentos”, ao todo. Não precisava ligar tantas vezes, mané. Achei seu bilhete, pi, pi, pi, pi, pi, pi (nessa hora, a secretária eletrônica de Carlos começa a apresentar problemas. Luiz encontra dificuldade para gravar a resposta aos insistentes apelos do amigo)... Julia Petit, pi, pi, pi, pi, pi, pi é Ju... Pi, pi, pi, pi, pi, pi... Julia. Escreve-se, J, u, l, i, a , pi, pi, pi, pi, pi, pi, - e Petit se soletra pi, pi, pi, pi, pi, pi... P, E, T, I, T. O t é mudo, o t é mudo, no final, pi, pi, pi, pi, pi, pi... Julia, pi, pi, pi, pi, pi, pi, Petit... Seu babaca, pi, pi, pi, pi, pi, pi, é pro... Pi, du, pi, pi, to, pi, pi, pi, ra, pi, pi, pi, pi... Mu, pi, pi, pi, pi, pi, si,cal, pi, pi, pi, pi, pi, pi ... Não,pi, pi, pi, pi, pi, pi, é, pi, pi, pi, pi, pi, pi, es, pi, pi, pi, pi, pi, pi, cri, pi, pi, pi, pi, pi, pi, to, pi, pi, pi, pi, pi, pi, ra. Ela... Pi, pi, pi, pi, pi, pi, está, pi, pi, pi, pi, pi, pi, na lis, pi, pi, pi, pi, pi, pi, ta, pi, pi, pi, pi, pi, pi, dos, pi, pi, pi, pi, pi, pi, mais, pi, pi, pi, pi, pi, pi, bem pi, pi, pi, pi, pi, pi, vesti, pi, pi, pi, pi, pi, pi, dos, pi, pi, pi... Não, pi, dos pi, mais, pi, bem, pi, vendi, pi, pi, pi, pi, pi, pi, dos... Pi, pi, pi, pi, pi. Eu disse... Pi, pi, pi, pi, pi, pi... Vesti, pi, pi, pi, pi, pi, pi, dos pi, pi, pi, pi, pi, pi, Não, pi, pi, pi, pi, pi, pi, vendidos. E, por fa, pi, pi, pi, pi, pi, pi, vor, pi, pi, pi, pi, pi, pi, não, pi, pi, pi, pi, pi, pi, me, pi, pi, pi, pi, pi, pi, tor, pi, pi, pi, pi, pi, pi, re, pi, pi, pi, pi, pi, pi, tan, pi, pi, pi, pi, pi, pi, to, pi, pi, pi, pi, pi, pi, o pi, pi, pi, pi, pi, pi, sa, pi, pi, pi, pi, pi, pi, co. Pi, pi, pi, pi, pi, pi. , pi, pi, pi, pi, pi, pi, para, a, pi, pi, pi, pi, pi, pi, o, pi, pi, pi, pi, pi, pi, in, pi, pi, pi, pi, pi, pi, fer... no... Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!...”.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. A outra perna do saci. São Paulo: Sucesso, 2009.

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