Estes malucos têm cada ideia, santo Deus! Num dia destes, no Hospital Nacional de Alienados, aconteceu uma que é mesmo de se tirar o chapéu. Contou-me o caso o meu amigo doutor Gotuzzo, que me consentiu em trazê-lo a público, sem o nome do doente – o que farei sem nenhuma discrepância.
Havia na seção que esse ilustre médico dirige um doente que não era comum. Não o era, não pela estranheza de sua moléstia, uma simples mania, sem aspectos notáveis; mas pela sua educação e relativa instrução. Com bons princípios, era um rapaz lido e assaz culto. Fazia parte até da Academia de Letras de Vitória, estado do Espírito Santo, onde residia – como membro extraordinário, em vista ou à vista de vaga, isto é, membro externo, ou de fora, que espera a primeira vaga para entrar. É uma espécie de acadêmico muito original que aquela academia criou e que, embora se preste à troça, lembre coisas de bebês, de cueiros, do Manequinho da Avenida, e outras muito pouco elegantes, oferece, entretanto, efeitos práticos notáveis. Atenua a cabala nas eleições e evita as sem-vergonhices e baixezas de certos candidatos. Lá, ao menos, quando há vaga, já se sabe quem vai preenchê-la. Não é preciso mandar organizar um livro, às pressas...
A denominação, na verdade, não é lá muito parlamentar; a academia capixaba, porém, a perfilhou, depois de proposta pela boca de um dos mais insignes beletristas goianos que nela têm assento.
O doente do doutor Gotuzzo, como já disse, era membro de fora da academia capixaba; mas, subitamente, com a leitura dos Comentários à Constituição, do doutor Carlos Maximiliano, enlouqueceu e foi para o hospital da Praia das Saudades.
Entregue aos cuidados do doutor Gotuzzo, melhorou um pouco; mas tiveram a imprudência de lhe dar, de novo, os tais Comentários e a mania voltou-lhe. Como ele gostasse do assunto, o doutor Gotuzzo mandou retirar do poder dele a profunda obra do doutor Maximiliano e deu-lhe a do senhor João Barbalho. Melhorou a olhos vistos. Há dias, porém, teve um pequeno acesso; mas brando e passageiro. Tinha pedido ser levado à presença do alienista, pois queria falar-lhe certa coisa particular. O chefe da enfermaria permitiu e ele lá foi ter, na hora própria.
O doutor Gotuzzo acolheu-o com toda a gentileza e bondade, como lhe é trivial:
– Então, o que há, doutor?
O doente era como todo o brasileiro, bacharel em direito ou em ciências veterinárias; mas pouca importância dava à carta. Gostava de ser tratado de capitão – coisa que não era nem da defunta Guarda Nacional, sepultada, como tantas outras coisas, apesar da Constituição. Apareceu calmo e sentou-se ao lado do alienista, a um aceno deste. Interrogado, respondeu:
– Preciso que o doutor consinta que eu vá falar ao diretor.
– Para quê? Para que você quer falar ao doutor Juliano?
– É muito simples: quero arranjar um emprego. Dou-me muito com o doutor Marcílio de Lacerda, senador, que foi até quem me fez membro de fora da Academia da Vitória; e ele, naturalmente, há de se interessar por mim.
– Escreva ao doutor Marcílio que ele virá até aqui.
– Não me serve. Quero ir até lá; é muito melhor. Para isso, preciso licença do doutor Juliano.
– Mas, meu caro, não adianta nada o passo que você vai dar.
– Como?
– Você é doente, sua família já obteve a interdição de você – como é que você pode exercer um cargo público?
– Posso, pois não. Está na Constituição: “os cargos públicos civis, ou militares, são acessíveis a todos os brasileiros”. Eu não sou brasileiro? Logo...
– Mas você...
– Eu sei; mas as mulheres não estão sendo nomeadas? Olhe, doutor: mulher, menor, louco ou interdito, em direito têm grandes semelhanças.
Tanto insistiu que obteve o consentimento para ir falar ao eminente psiquiatra. O doutor Juliano Moreira recebeu-o com a sua inesgotável bondade, que, mais do que o seu real talento, é a dominante na sua individualidade. Ouviu o doente com calma, interrogou-o com doçura e respondeu ao pedido dele:
– Por ora, não consinto, porquanto devo antes pedir, a esse respeito, as luzes de um qualquer notável consultor jurídico.
Havia na seção que esse ilustre médico dirige um doente que não era comum. Não o era, não pela estranheza de sua moléstia, uma simples mania, sem aspectos notáveis; mas pela sua educação e relativa instrução. Com bons princípios, era um rapaz lido e assaz culto. Fazia parte até da Academia de Letras de Vitória, estado do Espírito Santo, onde residia – como membro extraordinário, em vista ou à vista de vaga, isto é, membro externo, ou de fora, que espera a primeira vaga para entrar. É uma espécie de acadêmico muito original que aquela academia criou e que, embora se preste à troça, lembre coisas de bebês, de cueiros, do Manequinho da Avenida, e outras muito pouco elegantes, oferece, entretanto, efeitos práticos notáveis. Atenua a cabala nas eleições e evita as sem-vergonhices e baixezas de certos candidatos. Lá, ao menos, quando há vaga, já se sabe quem vai preenchê-la. Não é preciso mandar organizar um livro, às pressas...
A denominação, na verdade, não é lá muito parlamentar; a academia capixaba, porém, a perfilhou, depois de proposta pela boca de um dos mais insignes beletristas goianos que nela têm assento.
O doente do doutor Gotuzzo, como já disse, era membro de fora da academia capixaba; mas, subitamente, com a leitura dos Comentários à Constituição, do doutor Carlos Maximiliano, enlouqueceu e foi para o hospital da Praia das Saudades.
Entregue aos cuidados do doutor Gotuzzo, melhorou um pouco; mas tiveram a imprudência de lhe dar, de novo, os tais Comentários e a mania voltou-lhe. Como ele gostasse do assunto, o doutor Gotuzzo mandou retirar do poder dele a profunda obra do doutor Maximiliano e deu-lhe a do senhor João Barbalho. Melhorou a olhos vistos. Há dias, porém, teve um pequeno acesso; mas brando e passageiro. Tinha pedido ser levado à presença do alienista, pois queria falar-lhe certa coisa particular. O chefe da enfermaria permitiu e ele lá foi ter, na hora própria.
O doutor Gotuzzo acolheu-o com toda a gentileza e bondade, como lhe é trivial:
– Então, o que há, doutor?
O doente era como todo o brasileiro, bacharel em direito ou em ciências veterinárias; mas pouca importância dava à carta. Gostava de ser tratado de capitão – coisa que não era nem da defunta Guarda Nacional, sepultada, como tantas outras coisas, apesar da Constituição. Apareceu calmo e sentou-se ao lado do alienista, a um aceno deste. Interrogado, respondeu:
– Preciso que o doutor consinta que eu vá falar ao diretor.
– Para quê? Para que você quer falar ao doutor Juliano?
– É muito simples: quero arranjar um emprego. Dou-me muito com o doutor Marcílio de Lacerda, senador, que foi até quem me fez membro de fora da Academia da Vitória; e ele, naturalmente, há de se interessar por mim.
– Escreva ao doutor Marcílio que ele virá até aqui.
– Não me serve. Quero ir até lá; é muito melhor. Para isso, preciso licença do doutor Juliano.
– Mas, meu caro, não adianta nada o passo que você vai dar.
– Como?
– Você é doente, sua família já obteve a interdição de você – como é que você pode exercer um cargo público?
– Posso, pois não. Está na Constituição: “os cargos públicos civis, ou militares, são acessíveis a todos os brasileiros”. Eu não sou brasileiro? Logo...
– Mas você...
– Eu sei; mas as mulheres não estão sendo nomeadas? Olhe, doutor: mulher, menor, louco ou interdito, em direito têm grandes semelhanças.
Tanto insistiu que obteve o consentimento para ir falar ao eminente psiquiatra. O doutor Juliano Moreira recebeu-o com a sua inesgotável bondade, que, mais do que o seu real talento, é a dominante na sua individualidade. Ouviu o doente com calma, interrogou-o com doçura e respondeu ao pedido dele:
– Por ora, não consinto, porquanto devo antes pedir, a esse respeito, as luzes de um qualquer notável consultor jurídico.
Fonte:
Lima Barreto. Coisas do reino do Jambon. SP: Brasiliense, 1956.
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