quinta-feira, 5 de maio de 2022

Eduardo Affonso (Era uma vez)

Sempre fui uma negação para guardar nomes.

Para compensar, sou péssimo fisionomista.

Quando dava aulas, era comum ser abordado.

– Tudo bom, professor? E a minha nota?

O máximo que eu conseguia saber era que o jovem ou a jovem (ainda não existiam as jovens naquela época) era de alguma das turmas para as quais eu lecionava. E eram muitas.

Na hora da chamada, tentava fazer o cara-crachá para ver se, de tanto repetir, associava os nomes às pessoas. Em vão.

Conseguia gravar, no máximo, os melhores e os piores de cada sala. Os da fila da frente e os do fundão. O que significa que 90% permaneciam um mistério para mim durante todo o ano letivo.

Não era pouco caso. Era déficit meu mesmo.

Eu também trabalhava no Banco do Brasil.  E volta e meia me aparecia alguém perguntando:

– E o meu negócio, como é que está?

Eu não fazia ideia de quem fosse a pessoa, que dirá como estava o negócio dela. Que poderia ser uma renovação de cheque especial, uma aplicaçãozinha do saldo disponível em conta ou um empréstimo para comprar 200 vacas girolandas.

– Me veja um documento, por favor, só para eu confirmar se seus dados saíram certinhos.

– Estou sem a identidade aqui…

– Serve conta de luz, qualquer coisa que tenha seu nome.

– Estou sem nada.

– Então assina aqui só para eu aproveitar e conferir a assinatura.

E lá ia eu, torcendo para que a assinatura fosse legível, ou teria que consultar milhares de cartões de autógrafo – ou perguntar, discretamente, a alguém de confiança, “quem é aquele ali na minha mesa?”.

Na rua, cidade do interior, era batata:

– Transfere 50 mil da minha poupança pra conta, que vai cair um cheque amanhã. Depois eu passo lá e assino.

Eram tempos pré aplicativos via celular. O celular, inclusive, ainda era ficção científica.  Eu tinha que chegar ao banco e avisar que, se aparecesse um cheque em torno de 50 mil sem saldo na conta, era para falar comigo antes de devolver. Só assim eu saberia quem era o cliente. Ou ex-cliente, por minha culpa, minha máxima culpa.

Para facilitar as coisas, tenho nome duplo. Minha mãe queria Eduardo. Meu pai concordou até a véspera, mas, sem combinar nada com ela, incluiu Sidney na certidão. Ela, magoada, nunca me chamou de Sidney. Ele, talvez por arrependimento, talvez de pirraça, também não. Só fiquei sabendo que, além de Eduardo, era Sidney quando entrei na escola, e tinha que dizer que eu, Eduardo, estava presente quando a professora chamasse o tal de Sidney.

Então em casa eu era Eduardo, na escola era Sidney. Nas apresentações formais, Sidney; nas relações mais íntimas, Eduardo. Eduardo na Psicologia; na Arquitetura, Sidney.

Num sem número de vezes, me peguei ao final de uma carta ou com o dedo no botão de um interfone sem saber quem estava lá, o Sidney ou o Eduardo. Tinha que refazer mentalmente toda a história, lembrar de onde nos conhecíamos, pensar na pessoa falando meu nome para ver qual soava mais familiar na sua boca – e só aí assinava ou dizia quem era.

Mas, como nem tudo é desgraça na vida de um cristão, eu era tímido. E, como Deus é justo, e dá o frio conforme o cobertor, também gago. O que me tornava ansioso nas relações interpessoais – mas apenas em dois tipos de situação: quando tinha que falar com alguém presencialmente (porque a timidez me dava um branco) ou quando tinha que falar com alguém por telefone (porque a gagueira me dava um nó).

Venci ambas as limitações falando o mais depressa possível, tanto para não gaguejar quanto para acabar logo com aquilo. E fugindo do telefone como um carioca, no verão, foge da conta de luz.

Por isso comecei a escrever.

Escrevendo, não gaguejava. Podia usar à vontade palavras começadas com B. E as pessoas tinham o nome que eu quisesse. E eu era sempre Eduardo, nunca Sidney.

Nunca vi a escrita como uma escolha ou um dom, mas como uma espécie de salvação.

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