quinta-feira, 5 de maio de 2022

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXXIX

Em plena vida e violência

 
Em plena vida e violência
De desejo e ambição,
De repente uma sonolência
Cai sobre a minha ausência.
Desce ao meu próprio coração.

Será que a mente, já desperta
Da noção falsa de viver,
Vê que, pela janela aberta,
Há uma paisagem toda incerta
E um sonho todo a apetecer ?
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Em torno ao candeeiro desolado
 
Em torno ao candeeiro desolado
Cujo petróleo me alumia a vida,
Paira uma borboleta, por mandado
Da sua inconsistência indefinida.
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Enfia a agulha
 
Enfia a agulha,
E ergue do colo
A costura enrugada.
Escuta : (volto a folha
Com desconsolo).
Não ouviste nada.

Os meus poemas, este
E os outros que tenho _
São só a brincar.
Tu nunca os leste,
E nem mesmo estranho
Que ouças sem pensar.

Mas dá-me um certo agrado
Sentir que tos leio
E que ouves sem saber.
Faz um certo quadro.
Dá-me um certo enleio...
E ler é esquecer.
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Entre o luar e o arvoredo
 
Entre o luar e o arvoredo,
Entre o desejo e não pensar
Meu ser secreto vai a medo
Entre o arvoredo e o luar.
Tudo é longínquo, tudo é enredo.
Tudo é não ter nem encontrar.

Entre o que a brisa traz e a hora,
Entre o que foi e o que a alma faz,
Meu ser oculto já não chora
Entre a hora e o que a  brisa traz.
Tudo não foi, tudo se ignora.
Tudo em silêncio se desfaz.
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E ou jazigo haja
 
E OU JAZIGO haja
Ou sótão com pó.
Bebé foi-se embora.
Minha alma está só.
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E, ó vento vago
 

E, ó vento vago
Das solidões,
Minha alma é um lago
De indecisões.

Ergue-a em ondas
De iras ou de ais,
Vento que rondas
Os pinheirais!
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Epitáfio Desconhecido
 
QUANTA mais alma ande no amplo informe,
A ti, seu lar anterior, do fundo
Da emoção regressam, ó Cristo, e dormem
Nos braços cujo amor é o fim do mundo.
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Era isso mesmo
 
ERA ISSO mesmo -
O que tu dizias,
E já nem falo
Do que tu fazias...

Era isso mesmo...
Eras outra já,
Eras má deveras,
A quem chamei má...

Eu não era o mesmo
Para ti, bem sei.
Eu não mudaria,
Não - nem mudarei...

Julgas que outro é outro.
Não: somos iguais.
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Eram Varões Todos
 
ERAM VARÕES  todos,
Andavam na floresta
Sem motivo e sem modos
E a razão era esta.

E andando iam cantando
O que não pude ser,
Nesse tom mole e brando
Como um anoitecer

Em que se canta quanto
Não há nem é e dói
E que tem disso o encanto
De tudo quanto foi.

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