sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Concurso Petropolitano de Trovas 2017 (Prazo: 17 de setembro)

  
 
 Com o intuito de reativar a União Brasileira de Trovadores - UBT - seção Petrópolis há praticamente 40 anos sob a presidência do Professor Roberto Francisco (in memoriam), falecido em junho de 2017, escritores residentes na cidade resolvem realizar o presente concurso, como forma de unir trovadores, estabelecer a nova diretoria da Seção Petrópolis e divulgá-la para o público, em geral, das UBTs vizinhas.

REGULAMENTO

Categorias e temas:

Juvenil – trovadores até 17 anos
Tema: saudade

Trovadores petropolitanos maiores de 18 anos
Tema: olhar

Trovadores de outras cidades maiores de 18 anos
Tema: desafio

Número de trovas:
Três inéditas por participante, no máximo.

Forma de inscrição: via correios ou e-mail:

a) Sistema de envelopes, ou seja, cada trova deve ser datilografada ou digitada na face de um pequeno envelope, de aproximadamente 8cm x 11cm, colocando-se dentro do referido envelope uma papeleta de identificação. Esses envelopes devem ser colocados dentro de um maior, e remetidos para o endereço do concurso, colocando-se como remetente "Concurso de Trovas" e o próprio endereço do concurso.

Av. Joaquim Rolla, nº 2 ap. 341.
Quitandinha
Petrópolis - RJ
CEP 25651-072


b) No caso das inscrições via e-mail, o concorrente deverá informar seu nome completo, CPF, endereço com CEP e telefone de contato. As trovas concorrentes devem ser enviadas para concursotrovas@gmail.com.

Prazo para remessa:
17.09.2017.
Será considerada a data de postagem nos correios para esta modalidade de envio.

Julgamento:
As trovas serão selecionadas e julgadas por membros da UBT de outras cidades.

Premiação:
A premiação, composta de troféus e diplomas, será outorgada em meados de outubro do corrente ano. Serão premiados os três primeiros colocados de cada categoria.

Comissão organizadora:
Catarina Maul, Catarina Santos, Carlos Borges, Ivair Kaippert
Colaboração na revitalização da UBT e organização do presente concurso:
Renato Alves – UBT RJ.
Maiores informações através do e-mail: concursotrovas@gmail.com

Fonte:
Catarina Maul
produtora cultural, poetisa, pedagoga
Bem Cultural Produções Artísticas Ltda / Bem Cultural Editora . www.bemcultural.com

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Teatro (Sistema Coringa)

Histórico

Modelo dramatúrgico criado por Augusto Boal (1931-2009) para permitir a montagem de qualquer peça com elencos reduzidos, alterando as tradicionais relações narrativas do gênero dramático, apoiado numa proposta épica e crítica.

Após o golpe militar de 1964, os homens de teatro se veem numa situação paradoxal: há pouco público e inexistem peças que retratem as profundas mudanças ocorridas na realidade. A primeira experiência de uso do Coringa dá-se em Arena Conta Zumbi, pelo Teatro de Arena, em 1965.

No Rio de Janeiro, Augusto Boal dirige Opinião, no ano anterior, espetáculo que enfeixava as experiências de ex-cepecistas, sobretudo apoiados nos esquemas dramatúrgicos criados pelo "agit-prop". Opinião é uma colagem de fontes diversas: músicas, notícias de jornal, citações de livros, cenas esquemáticas e depoimentos pessoais situando as três realidades em cena, nucleadas em torno de Nara Leão (1942-1989) (a classe média intelectualizada), João do Vale (1934-1996) (o migrante nordestino) e Zé Kéti (1921-1999) (o sambista de morro).

Com essa experiência dramatúrgica na bagagem, Augusto Boal integra o coletivo de artistas que cria Zumbi. Trata-se aqui de colocar em cena um episódio complexo da história brasileira: a luta dos quilombolas de Palmares e sua resistência ao jugo português. Mas o Arena enfrenta dificuldades materiais, desde o pequeno palco e espaço cênico até um elenco reduzido. Escolhido o tema, os locais de ação e as principais personagens - a saga da luta antiescravagista -, a solução cênica encontrada toma o aspecto de um grande seminário dramatizado, com os oito atores representando todas as personagens, revezando-se no desempenho das pequenas cenas focadas sobre os pontos fortes da trama, deixando a um ator coringa a função narrativa de fazer as interligações entre fatos, pessoas e processos, como um professor de história organizando uma aula e dando seu ponto de vista sobre os acontecimentos. O emprego da música ajuda as passagens de cena, acrescentando tons líricos ou exortativos de grande efeito. Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006) e Edu Lobo (1943) assinam a realização.

A montagem de Arena Conta Tiradentes, em 1967, aprofunda a experiência e surge explicada teoricamente em "O Sistema Coringa", redigido por Boal. O sistema evolui conceitualmente, desenvolvido para ser aplicado a qualquer texto teatral, permitindo, desse modo, tanto o barateamento da produção quanto a implantação de proposições estéticas, ligadas a um modo épico e dialético de expor a trama.

São empregados quatro procedimentos: a desvinculação ator/personagem (qualquer ator pode representar qualquer personagem, desde que vista a máscara correspondente), perspectiva narrativa unitária (o ponto de vista autoral é assumido ideologicamente pelo grupo que faz a encenação), ecletismo de gênero e estilo (cada cena tem seu estilo próprio - comédia, drama, sátira, revista, melodrama, etc. - independentemente do conjunto, que se transforma numa colagem estética de expressividades), uso da música (elemento de ligação, fusão entre o particular e o geral, introdução do ingrediente lírico ou exortativo no contexto mítico e dramático).

O Coringa é uma personagem onisciente que altera, inverte, recoloca, pede para ser refeita sob outra perspectiva uma cena, sempre que sinta necessidade de alertar a plateia para algo significativo, concentrando a função crítica e distanciada.

Função oposta ocupa o protagonista, o herói. Ele deve ser naturalista, fechado em sua lógica causal e psicológica, sempre representado pelo mesmo ator, destinado a criar e dar corpo à dimensão do particular típico, insuflando a ilusão cênica e materializando a dimensão mítica, uma vez que se destina à identificação e ao fomento da empatia junto ao público.

O conjunto de tais procedimentos é especialmente épico, oriundo de Bertolt Brecht (1898-1956), mas não deixa de abrigar, igualmente, uma tentativa de conciliar o historicismo proposto pelo distanciamento brechtiano com o particular típico, como concebido por György Lukács (1885-1971), outro teórico marxista que defende um herói mítico e fechado sobre si mesmo.

O sistema é examinado e tem suas propostas rebatidas no livro O Mito e o Herói no Moderno Teatro Brasileiro, por Anatol Rosenfeld (1912-1973). Tomando ponto por ponto os aspectos polêmicos da proposta de Boal, o crítico expõe os limites e contradições que apresenta, concluindo pela impossibilidade de sua aplicação a qualquer peça, como pretendia ser seu objetivo central.

E especificamente sobre Tiradentes, observa: "O herói, embora criticado pelos seus erros e cercado por um aparelho distanciador, é levado inteiramente a sério como herói [...] não chegando a ser suficientemente mito para colher as vantagens estéticas do arquétipo monumental. Mas de outro lado tem do mito a esquematização extrema de modo a não render suficientemente na dimensão da análise histórico-social e da vigência empática. A não ser que nos enganemos, Boal não deseja que se aplique a Tiradentes a sua excelente formulação: 'sempre os heróis de uma classe são os quixotes da classe que a sucede'. O herói, tal como proposto na peça, seria hoje um ser quixotesco, como o Hércules de Dürrenmatt".1

Na base dessas discussões encontram-se questões estéticas e ideológicas muito amplas, que devem ser reportadas às distintas soluções propostas por Bertolt Brecht ou por Lúkacs; ou seja, os modos diversos de se dialetizar artisticamente a perspectiva crítica e histórica.

Após Zumbi e Tiradentes, o coringa volta a ser empregado por Boal em A Lua Muito Pequena e a Caminhada Perigosa, texto integrante da Primeira Feira Paulista de Opinião em 1968 e em Arena Conta Bolivar, criação vitimada pela Censura e apresentada apenas no exterior, em 1970. Ainda que pleno de contradições, é ele utilizado por muitos grupos latino-americanos, ao longo dos anos 1970, que encontram assim um modo de ação política compatível com o fechamento dos regimes políticos do período. Em modo evoluído e diverso, ajuda Augusto Boal a definir e propor, logo a seguir, o Teatro do Oprimido.

Ao longo das décadas seguintes, no Brasil, algumas das técnicas teatrais nascidas ou criadas no sistema coringa acabam por ser empregadas em outros contextos, utilizadas como recursos de linguagem, sem obedecer, todavia, às suas determinações ideológicas. São exemplos: o rodízio de personagens do elenco por meio da substituição de adereços; o amálgama de gêneros diversos numa mesma cena ou peça; o emprego de recursos narrativos mesclados com cenas dramáticas, etc., tornando o Sistema algo assimilado e diluído, mais uma prática do que um modelo, no cotidiano do fazer teatral.

Notas
1 ROSENFELD, Anatol. O mito e o herói no moderno teatro brasileiro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1996. p. 38.


Referências:
BOAL, Augusto. 'O Sistema Coringa'. In: Arena conta Tiradentes. São Paulo: Sagarana, 1967. Republicado In: BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
MOSTAÇO, Edelcio. Teatro e política: Arena, Oficina e Opinião. São Paulo: Proposta, 1982. 196 p.
ROSENFELD, Anatol. O mito e o herói no moderno teatro brasileiro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1996. 122 p.

Fonte:
SISTEMA Coringa. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2017. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo620/sistema-coringa>. Acesso em: 13 de Ago. 2017. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Carlos Leite Ribeiro (Sabendo e Recordando) Parte V, final

Em Paris, assistiu a um concerto do pianista Sam, grande amigos de ambos, que teve a gentileza de tocar e cantar especialmente para ela, “As Time Goes By”. Fatos que ela registrou com emoção e grande ênfase, no seu diário.

- Também estou comovido com a tua narrativa.

- Eu comovida e com fome. Já estamos atrasados para o almoço. Aonde vamos hoje almoçar?

- Conheço um bom e romântico restaurante, que fica em São Pedro e não muito longe daqui. Talvez uns sete quilômetros.

Como Júlio tinha prometido, foram a um românico restaurante. Na saída do portão que dá para o Palácio da Pena, seguiram em frente por uma rua estreita e ainda feita em calçada do tempo dos coches. O interior do restaurante é revestido de azulejos muito bonitos, com o tema “Agricultores” tendo em quase todos a bela silhueta do Palácio da Pena. No cardápio escolheu “Arroz de Tamboril”, uma das especialidades da casa, e o vinho escolhido por ela, foi um macio e tinto “Borba”. É um prato que tem de ser feito na altura e por isso demora certo tempo.

- Júlio, estou cansada e emocionada com o que te contei. Além de estar “esfomeada”.

- Menina, estou nas mesmas condições. Vamos guardar a visita ao Castelo dos Mouros para amanhã e quando sairmos daqui, vamos diretamente para o hotel.

Depois do almoço que estava excelente, voltaram pela mesma rua estreita e no fim desta, cortaram à direita para apanharem a estrada que os iam levar a Sintra, passando pelo portão rotativo do castelo. Chegados à cidade, compraram no bar sanduiches de queijo tipo “Flamengo”, fiambre e presunto de Trás-os-Montes. Além de sumos de frutos. Iam como na noite passada jantar no quarto.

- Até que enfim, que vou descansar – exclamou ela quando entrou no quarto do hotel. Enquanto me “estico” um pouco na cama, prepara-te tu para a noite.

- OK “chefa”. Vou tomar uma ducha e vestir o pijama. Fica aí com os anjinhos.

Entretanto, ela adormeceu. Depois de ter tomado banho, Júlio entrou no quarto e viu que ela estava a dormir, e acordou-a para ela se preparar.

- Porque os homens são tão chatos ao acordar uma mulher? Chato! Já vou.

- Fica calma, vai-te preparar enquanto eu me deito debaixo da roupa – e com ar de brincadeira, ainda lhe disse – não posso esquecer de ir ao armário buscar o cobertor sobressalente, para não aconteceu como aconteceu ontem…

- Hoje não deves precisar do cobertor, pois a noite está mais quente da que a de ontem…

Ele riu-se e não foi buscar o cobertor.

Quando ela entrou na cama, ele delicadamente compôs os cobertores para cima do corpo dela, que lhe agradeceu.

- Hoje sou eu que tenho frio. Deixa-me chegar um pouco a ti?

- Á vontade, “madame”!

- Vou virar-me para ti…

Já era de madrugada quando foram comer os sanduíches que tinham levado. E ambos estavam com muita fome.

- Menino, agora com a “barriguinha” cheia, vamos deitar. Mas desta vez é mesmo para dormir.

- Doí-me muito as pernas, podias levar-me ao colo.

- Que gracinha…

Acordaram mais tarde do que do costume, mas muito bem-dispostos. Ele pagou o hotel e suas malas ficaram na arrecadação para não irem com o carro carregado para o Castelo dos Mouros. Antes foram à pastelaria Piriquita tomar o pequeno almoço (ou o café da manhã). Já no castelo, depois de passar a porta giratória e comprar as entradas, foram até ao largo da cisterna (que servia também de prisão) e mais adiante, Ivone disse a Júlio:

- Agora temos de subir estas muralhas todas? Já não tenho “pernas” para tanto.

- Também me queixo do mesmo. Vamos subir pela ladeira, que é muito mais suave para subir e depois descemos pelas muralhas.

- Não sabia dessa ladeira e já subi (outrora) várias vezes as muralhas.

A subida foi um pouco penosa até chegar à torre, de onde se avista um soberbo panorama, desde Colares, praia das Maçãs, Azenhas do Mar e a vista estende-se até terras de Torres Vedras. E também a elegante silhueta do Palácio da Pena, diferente da que se avista da Cruz Alta, em três morros diferentes uns dos outros. Calmamente sentaram no banco de pedra quase circundante da quadra da torre.

- Ivone, já descansamos um pouco. Queres recomeçar a narrativa?

- Deixa-me beber um pouco de água. Já terminámos o capítulo “minha avó” …

- Agora será o capítulo “Mamã”?

- Embora tivesse nascido em Inglaterra, minha mãe sempre se sentiu “francesa”. Lá fez seus estudos e conheceu o que viria a ser meu pai, português do Algarve, que já há anos trabalhava numa companhia de gás, em Paris.

E foi na capital de França que eu nasci e no jardim-escola, conheci um maravilhoso “miúdo”, que mais tarde viria a ser meu marido.

- Mas voltando a “tua mãe”.

- Infelizmente, sobreviveu pouco tempo à morte prematura de meu pai. Na parte final da vida de minha mãe, o casal Raymund e madame Emiliè, tomaram conta de mim e mais tarde adotaram-me. Raymund era o administrador da empresa têxtil onde minha mãe trabalhou.

Foi em Paris que me fiz mulher, estudei e comecei a namorar o Diogo, um português a viver em França.

- Ivone, e como vieste para Portugal?

- A empresa onde trabalhava Raymund, montou cá, perto de Loures uma sucursal e ele foi nomeado responsável dessa sucursal. Vim com eles para cá, onde terminei os estudos médios.

- Onde entra o Diogo?

- Meu marido, depois dos estudos em França, veio para Portugal para trabalhar numa fábrica de produtos agrícolas, em Mafra. Como estávamos sempre em contato por correio ou telefone, quando ele veio reatámos o nosso namoro, que mais tarde deu em casamento.

- Tens filhos?

- Tenho uma filha casada e que vive perto de Nova Iorque. Está numa gravidez e ultimamente não tem estado bem. E tu, Júlio, tens filhos?

- Tenho um que vive na Holanda, é casado com uma sueca e técnico de comunicações/Informática. Está bem na vida.

- Estou viúva já quase há cinco anos. E tu, há quantos anos?

- Já vai para oito. De vez em quando vou ter com meu filho, para não sentir tanto a solidão.

- Está na hora de descermos e regressarmos a Lisboa.

- Descemos pelos degraus do castelo, ou queres descer pela rampa?

- Vamos descer pelos degraus, pois em cada degrau, avistamos um belo panorama diferente.

Passaram pelo hotel para apanharem a sua bagagem, e aproveitaram para comprar uma guloseimas, antes de rumar a Lisboa.

- Vamos jantar antes de Lisboa? – Perguntou-lhe ele.

- Conheço um restaurante na Amadora.

- E eu conheço um muito bom antes da Amadora, em Queluz, bem pertinho do majestoso palácio, onde nasceu e morreu, D. João IV de Portugal e I do Brasil.

- Como não estamos de acordo, vamos resolver o problema lançando moeda ao ar. Queres coroa ou cara?

- Prefiro coroa…

- E desta vez ganhaste. Vamos então a esse restaurante em Queluz.

Pouco tempo depois, pararam no parque de estacionamento do restaurante “O Abílio”. Uma das especialidades deste restaurante, é “escalopes de veado” acompanhado por arroz, batata frita e saladas.

- Menino, mas sou eu que vou escolher o vinho. Hoje apetece-me um “Gatão rosé”, de acordo?

- Menina, completamente de acordo, para mais, já há tempos que não bebo esse precioso néctar.

O jantar correu tranquilamente e alegremente com conversa banal. Ambos estavam felizes, embora um pouco cansados. É que a idade não perdoa… Quando chegaram à porta da casa dela, ele com voz hesitante, perguntou-lhe:

- Posso subir também?

- Claro que não. Minha casa não é nenhum hotel!

- Então, podíamos ir para minha casa?

- Também não. Para mais, tu já me disseste que na tua cama, só lá dormiu tua falecida mulher.

- Querida, vou morrer de frio esta noite!

- Não vais não, meu querido. Enrola-te a um cobertor e vais ver que vais dormir muito quentinho. Um beijinho e uma boa noite com muitos e bons sonhos. Até outro dia e não te esqueças de me telefonares.

- Até outro dia!

Quando ela se afastava, ele tristemente, pensou: “plano falhado”

Durante semanas, além do encontro diário no café, saíram alguns fins de semana, visitando, entre outras localidades, a Foz do Arelho (Caldas da Rainha); Nazaré; São Pedro de Moel, Praia de Pedrogão, Figueira da Foz, etc.

No primeiro fim de semana, ele levou um edredon, o que levou Ivone a perguntar-lhe:

- Júlio, para que é esse edredon?
 
- Menina, é para não morrer de frio durante a noite!

Ela atirou uma sonora gargalhada ao responder-lhe:

- Fica sabendo que nos fins de semana que passarmos juntos, eu quero que tu “morras de frio”!!!

Um dia, ela com ar triste deu-lhe a notícia:

- Olha Júlio, minha filha está na parte final da gravidez que não está a corre-lhe muito bem. Está muito fraquinha. Assim, depois de amanhã vou partir para Nova Iorque, mas a ajudar e acompanhá-la.

- Eu posso ir contigo?

- Não Júlio. Vou sozinha e não sei quando voltarei. Aproveita e vai uns tempos para a casa de teu filho.

- E podemos contar pelo telefone e pelo computador?

- Sempre que possa, contatarei contigo. Fica tranquilo nesse aspecto.

No Aeroporto Internacional de Lisboa, despediram-se com um longo beijo.

- Então, nós…? – Perguntou-lhe ele.

- Júlio, quando eu regressar, falaremos….

FIM
 
Fonte: O Autor. Disponível em http://cencaestamosnos.blogspot.pt/search/label/CONTOS

terça-feira, 15 de agosto de 2017

Carlos Leite Ribeiro (Sabendo e Recordando) Parte IV

A viagem foi curta, pois Sintra fica a cerca de trinta quilômetros de Lisboa.

Já em Sintra e na estrada que vai para o Castelo dos Mouros e Palácio da Pena, antes de chegar ao castelo cortaram à direita e no terreiro da entrada do Convento dos Capuchinhos, num lugar idílico, sentados num banco rústico, Ivone recomeçou sua narrativa sobre o que sabia de sua avô.

- Minha avó e marido, de Lisboa apanharam um navio que os levou aos Estados Unidos, por intermédio da então OSS – Agência de Serviços Estratégicos dos Aliados. Mais tarde, por conveniência de serviço, foram transferidos para Londres, para ficarem mais perto da Resistência contra o Nazismo. Ela ficou nos serviços administrativos e ele nas comunicações. Muitas mensagens via rádio para planificação e organização da Resistência, foram organizadas por ele. Foi em Londres que minha avó ficou grávida de minha mãe.

O meu avô Victor Lazlo preparou cuidadosamente, durante muitos meses a invasão dos Aliados à Europa, dando também orientações aos vários grupos da Resistência que tinha que atuar quando fosse a invasão. Antes do dia “D” de 6 de Junho de 1944, meu avô partiu clandestinamente para a Normandia (França) para superintender os trabalhos de sabotagem que deviam ser realizados para atrasar a reação alemã à Grande Invasão.

Foram combates de uma ferocidade nunca vista que custou muitos milhares de vítimas de ambas as partes. No dia seguinte, ou seja no dia 7 desse mês, uma bomba alemã matou meu avô.

- Foi um fim triste para um herói que nunca foi conhecido do grande público, mas que teve uma utilidade extrema nessa época. Mas vamos esquecer por ora de tua narrativa e convido-te para o almoço e depois fazer o check-in no hotel. De acordo?

- Já sinto fome para mais nem me convidaste para o café da manhã. Por onde vamos?

- Vamos regressar pela estrada que viemos até apanhar a principal que vamos descer até Sintra. Vamos almoçar ao restaurante do hotel Tivoli Sintra, que tem uma soberba vista desta belíssima serra.

- Olha eu hoje não me apetece comer peixe.

Depois de fazerem o check-in para um quarto de só uma cama. Aqui ela sorriu enigmaticamente… Foram conhecer o quarto com uma vista de sonho, deixar suas malas e por fim desceram até ao restaurante. Escolheram “Vitela assada no forno com batatas pequenas”, salada e vinho, este escolhido pela Ivone. Escolheu “Colares” tinto.

Depois do repasto, foram até à Pastelaria Piriquita, onde como sobremesa comeram uns deliciosos “travesseiros” especialidade de doceria daquele estabelecimento, e tomaram café.
Ficaram a conversar durante algum tempo e como ela se queixou que estava muito stressada, foram dar um passeio a pé pela pequena mas belíssima cidade, chegando até ás portas da Quinta da Regaleira.

Ela não quis entrar alegando que não estava com disposição de ver “coisas velhas”. Ele atirou uma enorme gargalhada. Voltaram para a cidade e, no largo Jogo da Pela, sentaram-se nos degraus do Palácio que para muitos ainda é o Palácio Real, onde nasceram vários reis e príncipes de Portugal.

Mas ela não estava para visitar naquele dia “coisas velhas” e ficaram sentados nos degraus do palácio. A certa altura, ela queixou-se que a pedra devia de ser mais quente, pois estava a sentir frio por estar ali sentada.

- Ivone, queres ir para o hotel descansar?

- Para o hotel descansar?!. Não. Se estás com alguma ideia “avançada” retira isso da cabeça senão nunca mais te falo.

- Não tenho nenhuma ideia pré-concebida. Podíamos ir para aquela esplanada ali em frente. Se quiseres, claro.

- Vamos. Na esplanada com certeza que não ficarei num assento tão frio como estas escadas de pedra.

Infelizmente para eles, naquela esplanada os lugares estavam todos ocupados, assim como na esplanada do Hotel Central. Tiveram que procurar outra, esta na curva do Duche. Ela teve de ir à casa de banho (banheiro) e quando regressou, disse-lhe:

- Júlio, este estabelecimento vende “Queijadas de Sintra”.

- Aqui todas as lojas vendem queijadas. Mas quando quiseres, voltamos à Piriquita que fica aqui perto e compramos queijadas.

- Se voltarmos lá, podíamos comprar também daqueles deliciosos “travesseiros”. Tive uma ideia: Podíamos comprar essas guloseimas e uns sumos de frutos e jantarmos no nosso quarto?

- Gulosa!

- Olha quem fala: tu és o maior guloso que conheço!

- Pelo caminho podemos comprar umas velas.

- Porquê? Vai haver algum apagão? Candeeiros elétricos é que não faltam no quarto!

- Seja feita a sua vontade, grande gulosa. Hoje não estou para discussões por ninharia nenhuma. Para mais, tudo o que te acontece fora dos teus planos, é cá o Júlio que tem a culpa.

- Com esta conversa toda, está a começar a escurecer. Sintra é perigosa à noite?

- Muito perigosa, cheia de fantasmas!

- Tu é que me pareces um bom fantasma! Então com esse cabelo tão comprido. Porque não cortaste o cabelo?

- Não a estou a convidar nem pressionar-te, mas quando a “madame” entender, vamos comprar as guloseimas e vamos para o nosso quarto no hotel.

- Já reparei que és muito sensível a brincadeiras de palavras. Quando o “gentil cavalheiro quiser, podemos ir. Esta despesa pago eu. Na Piriquita pagas tu.

Fizeram as compras e depois foram para o hotel. Quando chegaram ao quarto, não tinham luz. Reclamaram na recepção e como aquela hora não havia nenhum eletricista disponível, tiveram que mudar de quarto. Estavam no 2º andar e passaram para outro no 3º, que ainda tinha uma vista mais ampla sobre Sintra.

- Bem te disse que devíamos de ter comprado velas. Mas tu não fazes nada que te peça.

- Ho, Menino! Eu não nasci ontem, tenho cabeça e segundo dizem, tem alguma inteligência. Tu querias era uma ceia à luz das velas!

- Não discuto, pois és tu que tens sempre razão.

A ceia à “luz elétrica” correu bem e ambos evitaram picardias. Viram a televisão, nomeadamente o noticiário e depois um filme que ela classificou “do tempo do rouca”. Quando ela já estava preparada para ir para a cama, mostrou-lhe os tampões nos ouvidos para não ouvir o ressonar dele. Ele, quando já estava preparado, mostrou-lhe os pedaços de algodão que tinha colocado nos ouvidos-

- Com o teu cabelo branco e comprido e com esses algodões, pareces mesmo “uma alma do outro mundo”! rsssss

Estavam deitados ainda há pouco tempo, quando ela se virou para ele e arrancou-lhe um algodão que ele tinha nos ouvidos, gritando-lhe:

- Menino, não te encostes a mim. A cama é bastante grande, chega-te para o teu lugar.

- Estou aqui a “morrer” de frio!

- Levanta-te e vai ao armário buscar um cobertor para te enrolares nele.

- Com este frio não posso! Tenta compreender!

- Já compreendi tudo e muito bem! Vou eu ao armário buscar um cobertor para tu te enrolares nele.

- Não faças isso!

- Bico calado e enrola-te neste cobertor para não teres frio e não te aproveitares para te encostares a mim.

- Nem quero acreditar!

- Mas acredita e deixa-me dormir muito descansadinha. Até amanhã…

Na manhã seguinte levantaram-se cedo, mas mal falaram um com o outro, não ser um seco “bom dia” e quando já estavam arranjados “vamos descer para tomar o pequeno almoço?

Já na estrada, Júlio explicou a Ivone que iam subir pela estrada que ontem foram para o Convento dos Capuchinhos.

- Queres dizer que vamos passar à cortada para o convento e subimos ainda mais?

- Certo. Vamos subir até ao Palácio Nacional da Pena, mandado construir por D. Fernando de Saxe-Coburgo-Gota-Koháry, marido da rainha D. Maria Iº. Como ontem disseste, não gostas de ver “velharias”…

- Isso foi ontem. Hoje já estou mais bem disposta!

Antes passaram pela porta rotativa do Castelo dos Mouros, e subindo mais um pouco chegaram ao fim da estrada Sintra/Palácio da Pena. Passaram o portão e percorreram umas lindas alamedas antes de estacionar o carro no parque respectivo. Daí, subiram uns degraus e uma pequena rampa e entrara na varanda que dá para a verdadeira entrada do palácio. Quando Júlio se dirigiu à bilheteira, soube que naquele dia não havia visitas pois o palácio estava em manutenção e limpezas. Ela, quando soube, atirou uma sonora gargalhada. Ele, olhou-a de lado e também se riu.

- Júlio, tu já visitaste este Palácio muitas vezes e eu algumas. Vamos para outro lado.

- Tens razão, vamos até à Cruz Alta. Se eu ainda me lembrar onde se entra na estrada.

Foi fácil encontrar a estrada a partir do parque de estacionamento a Cruz Alta fica a cerca de 3 Km do palácio, num alto morro, e tem uma belíssima panorâmica, das mais belas de Portugal. Quando chegaram lá, viram com tristeza que a grande cruz de ferro tinha sido vandalizada. Encostaram-se ao varandim em frente aos degraus da cruz, donde se avista, num outro morro o majestoso Palácio da Pena. Voltaram-se para o outro lado.

- Júlio, parece que temos a nossos pés, Oeiras, Estoril, Cascais e ali mais adiante, o areal da praia do Guincho. E repara que se vê a ponte 25 de Abril e mais além a belíssima ponte Vasco da Gama!

- Ivone, é na margem esquerda do rio Tejo, vê-se da esquerda para a direita, o Montijo, Seixal, Almada (com o seu Cristo Rei), a Trafaria e Cova do Vapor, etc., e muito mais afastado o Castelo de Palmela (que só se vê em dias muito claros como está hoje); além do estuário do Tejo, que é em delta e também muito belo.

- Até parece que avisto uns golfinhos a saltar…

Ficaram alguns minutos extasiados com tanta beleza que avistavam. Até que ele a lembrou:

- Então, com a morte de teu avô, tua avó ficou sozinha em Londres?

- Sim, ficou por lá mais cinco anos até se reformar. Depois, foi para a que chamava “sua Paris”, onde teve o amor de sua vida, e onde se empregou como secretária de uma empresa têxtil, onde o administrador era amigo da família. Ela nunca se esqueceu de teu avô Rick Blaine e até escreveu no seu diário a seguinte passagem: “A união de duas pessoas é uma sintonia de esforços e sentimentos que muitas vezes é cortada pelo destino”.

- E nunca mais o procurou?

- Procurou sim. Pelos serviços secretos, soube que ele esteve em Moçambique e que tinha tido problemas com as autoridades. Antes de saber este pormenor, esteve quase resolvida a ir ter com ele. Não foi com receio de ser rejeitada, pois teu avô, como até´ tu compreendes, era um aventureiro. Soube da sua fuga para a Argentina e daí perdeu-lhe o rastro durante anos.

- E soube que ele esteve no Brasil?

- Também soube assim como as atividades marginais dele. Tinha muita pena do Rick e chegou a admitir que talvez fosse por ela os desvarios dele. Esse pensamento (ou remorso) acompanhou-a até à morte. Talvez pensasse que com ela, ele teria sido uma pessoa boa. Pelo menos é o que dá a entender no seu diário.

Na última nota que escreveu no diário, poucos dias antes de falecer, nunca a consegui decifrar: “Trazendo grinaldas e roupagens divinas, ungindo de perfumes celestes. O Deus dos milagres, o Deus infinito, manifestou-se, a face voltada para todos os lados. Se o esplendor de mil sóis brilhasse ao mesmo tempo nos céus, seria talvez comparável ao irradiar do grande Ser”. Foi esta sua última mensagem.

continua...

Fonte : O Autor. Disponível em http://cencaestamosnos.blogspot.pt/search/label/CONTOS

I Prêmio Literário Gonzaga de Carvalho da ALTO - 2016 (Resultado Final)


Realização da Academia de Letras de Teófilo Otoni/MG

Categoria: Poema

1º Lugar:
“Vale ouro e diamante e não há quem não se encante”
Alfredo Nogueira Ferreira
Florianópolis-SC

2º lugar:
“Sobre as mulheres”
José Anchieta Antunes de Souza
Gravatá-PE

3º lugar:
“Lembranças mortas”
Gladston Passos Salles
Rio de Janeiro-RJ

Menções Honrosas:

4º lugar:
“Homenagem a Luiz Gonzaga de Carvalho”
Maria Luciene da Silva
Fortaleza-CE

5º lugar:
“É primavera”,
Marripe Faul Abeilice
Belo Horizonte-MG

6º lugar:
“Quisera... mas... ,”
Eloisa Antunes Maciel
São Martinho da Serra-RS

7º lugar:
“A TV matou a janela”
Wenderson Cardoso
Contagem-MG

8º lugar:
“Voar é contemplar o infinito”
José Moutinho dos Santos
Belo Horizonte-MG

9ºlugar:
“Escrever poesia”
Celso Gonzaga Porto
Cachoeirinha-RS

10º lugar:
“Poeta (n)ativo”
Marcos Pereira dos Santos
Ponta Grossa-PR

11º lugar:
“Cachoeira de saudade”
Ândrei Clauhs
Brasília-DF

12º lugar:
“Pedra do Poeta”
Valéria Victorino Valle
Anápolis-GO

13º lugar:
“Serra da Mantiqueira”
Cláudio de Almeida
São Paulo-SP

14º lugar:
“Coragem, mulher”
Nelci Veiga Mello
Campo Mourão-PR

15º lugar:
”Oasis”
Francisco José da Silva
Bom Jesus do Galho-MG

16º lugar:
“Olhos de âmbar”
Cláudio de Almeida Hermínio
Belo Horizonte-MG.

Categoria: Crônica

1º Lugar:
“História de cinema”
Helena Selma Colen
Ladainha-MG

2º lugar:
“Vinho e sangue”,
Geraldo de Castro Pereira
Vila Velha-ES

3º lugar:
“As raparigas de Seu Nó”
Eugênio Maria Gomes,
Caratinga-MG

Menções Honrosas:

4º lugar:
“As coisas miúdas”
Aristides Dornas Júnior
Moeda-MG

5º lugar:
“A arte como fonte de novo tempo”
Carlos Lúcio Gontijo
Santo Antônio do Monte-MG

6º lugar:
“Em síntese”
de Altamir Freitas Braga
Belo Horizonte-MG

7º lugar:
“Veredas do tempo”
Paulo Murilo Carneiro Valença
Recife-PE

8º lugar:
“O boato” de Cosme Custódio da Silva
Salvador-BA

9º lugar:
“Paz: Afinal, onde encontrá-la?”
Alcione Sortica
Porto Alegre-RS

10º lugar:
"Alegria na noite: a memória do mundo!”
Marcos Coelho Cardoso
Dourados-MS

11º llugar:
“Velha infância”
Jéssica Millato da Costa
Araras-SP

12º lugar:
“O canto de um bêbado”
Leandro Campos Alves
Caxambu-MG

13º lugar:
“O mestre e o vale”
Adevaldo Rodrigues de Souza
Belo Horizonte-MG

14º lugar:
“O Brasil também está em guerra”
Marcelo de Oliveira Souza
Salvador-BA

15º lugar:
“Espírito de porco”
Sérgio Rodrigues Piranguense
Contagem-MG

16º lugar:
“O som do silêncio”
Margareth das Dores Rafael Moreira Costa
Itambacuri-MG.

Comissão Julgadora:
Elisa Augusta de Andrade Farina
João Batista Vieira de Souza
Márcio Barbosa dos Reis

Fonte:
Wilson Colares (Presidente da ALTO)

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Domício da Gama (Maria sem tempo)

Era magra, pequena, escura. Tinha a extrema humildade dos que vivem longos anos sob o céu destruidor, sem pensar ao menos em resistir à sorte, com a passividade inerte da folha que o vento rola pelos caminhos. Era assim mirrada e seca e sombria, como se tivesse perdido a seiva ao ardor dos estios, como se guardasse das noites sem estrelas o negrume cada vez mais denso.

Era louca, porque só tinha uma ideia, e a criatura humana pode não ter ideias, mas não pode ter uma só. A sua era o angustioso desassossego das maternidades malogradas. Perdera um filho e o procurava. Andava pelos caminhos para buscá-lo e só levantava a voz para chamá-lo, ansiosamente, carinhosamente: "Luciano! Meu filho!..." E escutava longo tempo por trás nas cercas, no aceiro dos matos, à entrada dos terreiros das fazendas, nos desertos e nos povoados, onde quer que a levasse a sua dolorosa esperança. Aquela figura miserável, toda feita num gesto indagador, com a mão abrigando os olhos, à espreita, ou levantando o xale que lhe encobria a cabeça de cabelos hirtos, para ouvir melhor a resposta ideal, aquela encarnação de um desejo sempre iludido enturvava o esplendor do mais radioso meio-dia.

Gente compassiva, donas de casa a quem se apertava o coração ouvindo ecoar pelas estradas o seu reclamo desolador, quiseram retê-la, dar-lhe amparo e agasalho: "Aonde vai, Sinhá Maria? Fique com a gente, mulher! Por estes sóis que matam, assim ao desabrigo do tempo, o que faz uma criatura de Deus? Descanse uns dias e vá então..." Mas a louca se escusava resolutamente: "Não tenho tempo, minha senhora. Vou ao encontro do meu Luciano, que me disse que havia de voltar. Como não tenho mais casa, preciso de estar no caminho. Não vá ele passar enquanto aqui estou..." E se precipitava para fora exalando o seu grito: "Luciano! Meu filho Luciano!..."

E Maria sem Tempo não era uma lição, nem um castigo, nem um exemplo. Se alguma coisa ela provava, era que há sofrimentos que nada provam e que nada justifica, que são, pela razão obscura daquilo que tem de ser. A sua miséria nem mesmo era trágica, porque não exclamava, não lutava, não indagava. O céu rigoroso era-lhe como um senhor cruel, que a pobre escrava não entendia e sob cujos golpes se encolhia apenas. Vivera para ser mãe: sofria disso, como disso outras jubilam.

Quem a encontrava pelos desertos, longe de todo o amparo, às horas tristes do dia, pensava logo com piedade na solidão da sua alma. Mas se iam falar-lhe, ela se não mostrava agradecida à sociedade que lhe queriam dar: recaía logo no seu silêncio absorto, tão ocupado pelo seu sentimento.

O meu Luciano! dizer estas palavras era para ela o mesmo que sentir-se viva. Dizia-as alto, gritando, clamando, enchendo as grotas e os recantos das florestas com o seu alarido de araponga louca; dizia-as baixinho, suspirando, fundindo o coração num ajoelhamento de prece, na prostração suprema do supremo amor. E às vezes, caminhando horas ao longo da praia, com os cabelos sacudidos pelo vento do largo, vacilando sobre a areia branca e infirme que entontece, ela cantava ao mar em fúria a canção monotonamente sublime da sua pena sem fim.

Eles eram dois humildes e mansos e os soberbos e violentos lá de longe fizeram uma guerra para mal deles, uma guerra de tantos anos durando já que os cabelos da mulata tiveram tempo de embranquecer. E o seu Luciano sempre por lá, longe da sua velha, que só tinha a ele no mundo, e que não pudera opor-se a que partisse, porque com o poder de homens, que o vieram buscar naquela noite, tinha-se juntado todo o poder celeste, estrondando numa trovoada de arrasar o mundo. Quando chegaram os homens malditos, ela estava com o filho rezando o Magnificat, à claridade da vela benta em frente ao registro da advogada contra o raio. A voz dele tinha uma toada grave e cheia de fervor, que lhe quebrava a ela a friura do medo no coração. Ai! não era dos raios e coriscos do céu que a pobre mulata devia recear! Num silêncio entre dois refegões de vento, bateram de repente à porta. Luciano foi abrir e logo um homem entrando, antes de dizer uma palavra, lhe foi deitando a mão. O rapaz deu um pulo, esquivando-se, mas o outro gritou e a casa se encheu de gente armada, soldados, que subjugaram o seu filho e o amarraram. Ela conhecia um dos homens, o que tinha entrado primeiro: de joelhos, como tinha ficado diante da santa, arrastou-se aos pés dele. "Seu Capitão, não me tire o meu filho, que não cometeu crime. Tenha piedade de uma pobre mãe..." O Capitão, meio embaraçado, sem convicção, resmungou umas frases, falou em defesa da pátria, em honra nacional ofendida, dever de todo brasileiro e não sei que mais. Mas a mulher não lhe deu ouvidos; viu que lhe tiravam o filho para a matança nos campos do Sul e desatinou de todo, a pedir, a suplicar, de rastros pelo chão, beijando os pés e abraçando pelos joelhos os seus carrascos, sem poder mais chegar ao filho das suas entranhas. O Capitão começou a se incomodar com a cena e deu ordem de partir, apesar da tempestade no seu auge. Então Maria se endireitou, arquejante sobre os joelhos, e viu, enquadrado pela porta aberta sobre a noite negra cortada de relâmpagos, o seu belo rapaz, que, sem chapéu, de roupas rotas mostrando o peito nu, levantava para ela as mãos algemadas, num gesto de adeus, e lhe dizia com voz trêmula e sentida: "Não se desconsole, Mãe, que ainda hei de voltar..." Nesse instante um fuzil cegou-a e o estampido imediato de um trovão derrubou-a por terra. Quando tornou a si estava sozinha no meio da noite escura. Parece que esta lhe entrou deveras pela mente, e lhe apagou as últimas claridades que lá luziam. Ela se desinteressou de tudo o que ocupa as vidas mais humildes, desprendeu-se por uma inatenção absoluta dos fatos que podem servir de marca aos dias, perdeu a noção do tempo, perdeu as suas afeições menores, enclausurou-se, absorveu-se no seu único sentimento transformado em culto, endoideceu.

Como sempre fora uma pobre inteligência, a sua loucura não se caracterizou senão por uma teimosia especial, passiva, mas inflexível, uma recusa absoluta a ceder aos argumentos dos que queriam convencê-la de que o filho não andava por aquelas bandas e que não era gritando pelos caminhos que ela havia de o recuperar. Ele lhe dissera que havia de voltar... Essa promessa lhe não deixava lugar no espírito nem para a ideia da morte. Quando lhe disseram que Luciano morrera num combate, que um voluntário, que voltava ferido, o tinha visto cair ao seu lado no campo e ao seu lado morrer no hospital de sangue, ela sacudiu a cabeça, incrédula. A força da ideia fixa venceu-lhe a timidez natural e lhe tirou todos os escrúpulos e receios que a pudessem deter no cumprimento do seu fadário. Na abstração poética é assim um caráter heroico.

Os sinais físicos de loucura estavam nos seus olhos perdidos como os de um cão de caça, desatentos ou muito atentos, mas sem simpatia, e nos cabelos hirtos, eriçados, como num perene arrepio de pavor. O resto, mãos e pés de nômade selvagem, miséria profunda do corpo desprezado, fizera-o o ascetismo inconsciente da sua existência errante. A voz cantante, plangente antes, arrastava-se apoiando demais em certas sílabas, como quem chama. E falando baixo tinha umas inflexões escuras, vindas mais de dentro, o tom reflexivo de quem pensa em voz alta.

Sonhava muito, quando dormia, e prolongava o seu sonho, sempre o mesmo, pela vigília. Era com o dia da volta dele que sonhava, com a hora em que, avistando-o, lhe dissesse: "Bendito seja Deus, meu filho, que te torno a ver!" Ele abaixaria os olhos diante do seu olhar carinhoso, com os seus modos tão bonitos de bom filho e depois lhe contaria o que tinha visto pelas terras distantes, a história da sua ausência, as grandezas do mundo, as lindezas das outras gentes, tudo o que ela nem podia imaginar que fosse, tudo evocaria o som da sua voz, cuja lembrança bastava para lhe encher a ela os olhos de lágrimas. E voltariam a levantar a casa arruinada, o ninho velho donde a má sorte os enxotara, a refazer a vida antiga, humilde e pobre, que ela não trocaria pela de uma rainha, com Luciano...

Sonhava, e procurava o seu sonho, correndo as estradas. Mas não se afastava dos sítios familiares, algumas léguas de circuito, três municípios, a pátria. Mais longe já parece que a língua mudava ou pelo menos mudavam os costumes. Eram mais duros para a pobre mãe, como se ela pudesse fazer mal, ou não entendiam-na e desconfiavam. Um dia chegou ao pé de uma cidade muito bonita: as casas tinham vidros que faiscavam ao sol; nas ruas passava muita gente, toda calçada de botinas, os homens de gravata ao pescoço, as mulheres de chapéus com flores, todos muito soberbos; carros e cavaleiros passavam a toda a pressa, fazendo muito barulho nas pedras da calçada. Apareceram uns soldados e a pobre Maria fugiu espavorida. Era ali sem dúvida que moravam os que lhe tinham arrancado o seu Luciano. Disseram-lhe mais tarde que ela quase tinha estado na Praia Grande, que era para onde iam os designados para o recrutamento militar, mas que não era ali que eles batalhavam.

O invencível terror do desconhecido a impediu de ir procurar o filho aos campos do Sul. O Sul sabia ela onde era. De lá vinham as piores borrascas. E os tiros de canhão, que diziam de gala na cidade, para ela eram batalhas mais perto, a guerra que se aproximava. Se com a guerra lhe aparecesse um dia de repente Luciano! Quando o ar estava pesado, o tempo de oraça, ela escutava estremecendo o troar surdo dos canhões que salvavam no Rio, avaliando a aproximação da guerra pela sonoridade mais clara dos tiros, que lufadas de aragem quente e a banzeira traziam.

Um dia de verão, depois do meio-dia, ela vinha subindo da restinga do mar para a terra firme. Não passava ninguém pelas estradas. O sol de fogo retorcia a folha das árvores e fazia ferver o miolo da doida vagabunda. No grande silêncio da calma acabrunhante só se ouvia o zumbido do enxame de mutucas importunas, que acompanham a gente pelos caminhos à beira dos charcos, e o canto de galos longe. O chão escaldava; a doida movia rápida os magros pés descalços e caminhava de braços levantados, sustentando o chale acima da cabeça. Mas de instante a instante parava, com um gesto de impaciência, e se abaixava para atirar uma pedrada ou um punhado de areia aos camaleões cinzentos, que vinham pôr-se à beira do caminho, debaixo dos gravatás de folhas de serra e flor vermelha, e lhe faziam sinaizinhos brejeiros com a cabeça, quando ela passava. Sobre a ponte do Paracatu parou para ver uma cobra verde, que se lavava no magro fio d'água que ainda corria. Depois entrou na sombra do caminho estreito, com árvores dos dois lados, um desfiladeiro entre a lagoa e a barranca de um morro a pique, e se deteve a colher os cachinhos de jatitás verdes para refrescar a boca sequiosa. Passou um cavaleiro pela estrada e no ouvido ficou-lhe a cadência do meio galope, acompanhamento da toada favorita de Luciano, quando falquejava no mato:

Os olhos de Joanita São pretos como carvão...

Fora ela que lha ensinara, em pequenino. Vinha de tão longe a cantiga do Mineiro da serra! Vinha de antes das tristezas dela... Cerrou-se-lhe a garganta e retomou a estrada.

Já ia pondo a mão à cancela do campo do capitão Rosa, quando um tiro de canhão atroou os ares; depois outro e outro e em seguida um estrondo prolongado, como o de uma casa desabando.

Maria sem Tempo pensou na guerra. Chegara enfim! A artilharia destruía as grossas muralhas da casa da fazenda. Só lhe admirava aquele silêncio depois da catástrofe. Deu a volta para ir espreitar pela outra cancela, e não entendeu mais nada, quando viu a casa em pé, o gado no campo e na lombada do morro do Cantagalo e o eito de escravos no trabalho, manejado as enxadas, em que o sol faiscava. Ali estava tudo em paz; no céu nem uma nuvem quebrava a dureza do azul implacável: donde vinha então aquele troar de canhões?

A doida aproximou-se da fazenda, mas saíram-lhe cães bravos ao encontro e ela regressou do meio da ladeira. Deu então volta ao morro pelo lado do brejo, para entrar pelo engenho. Mas ao passar pelo campinho de dentro, onde se soltavam os animais de sela e as lavadeiras estendiam a roupa a corar, pareceu-lhe que ouvia deveras a cantiga do Mineiro da serra, a cantiga da saudade, que lhe entrava pelos ouvidos, em vez de ressoar-lhe apenas da memória esvaída. Transpôs a cerca de bambus em moitas sussurrantes e encontrou um cavouqueiro, dos que ali andavam a arrebentar pedra para construção, que descia da pedreira e vinha jantar. Maria perguntou-lhe ansiosamente: "O meu filho? é o meu Luciano quem está cantando?" O homem respondeu: "É o Luciano, sim; mas não vá para lá agora, que ele vai pegar fogo à mina." A doida não lhe deu mais atenção e embarafustou pelos cafezais acima. Chegando à entrada da pedreira, viu um rapaz meio pendurado de uma corda de nós, que acabava de arranjar os estopins e punha fogo à mina. Ela gritou: "Meu filho? És tu, meu Luciano?" O Chico Macaé, que já ia marinhando pela corda acima, voltou-se espavorido: "Meu Deus! que faz aí, Sinhá Maria? Fuja, que aí vai pedra! Corra, suma-se depressa, mulher!" E como ela estacasse atônita, ele lançou mão de uma pedra para afugentá-la. A mãe louca viu o gesto e, pondo as mãos na cabeça, despenhou-se pelo cafezal da grota. Alguns segundos mais e a mina rebentava e Maria sentia cair-lhe em torno uma chuva de pedras miúdas, enquanto ao longo da pedreira as grandes lascas desabavam fragorosamente.

Maria sem Tempo caiu extenuada sob uma grande mangueira no meio do campo. Na perturbação da emoção profunda todas as ideias se lhe confundiram e o desvario completo entrou-lhe na mente.

Era aquilo a guerra e era o seu filho que a fazia contra ela. O homem dissera que era ele e a cantiga a não enganara. Para se encontrarem daquele modo vivera ela tão longos anos, penando pelos caminhos! À ideia de que pudera ter morrido aos golpes do filho estremecido, um calafrio sacudiu-a toda convulsivamente e por fim as pernas se lhe inteiriçaram. Depois, a necessidade de abandonar toda a esperança quebrou-lhe as derradeiras forças. Uma toalha de gelo espremeu-lhe o coração num grito de agonia infinita e Maria sem Tempo morreu.

Algumas horas depois formava-se uma trovoada e um raio caía sobre a árvore que abrigava o cadáver. A tempestade passou e os escravos que, voltando da roça, foram ver o tronco lascado descobriram a morta. Os respingos da chuva lhe tinham coberto o rosto de terra e os olhos esgazeados já pareciam olhar do fundo da sepultura. Um dos escravos se abaixou para lhos fechar, dizendo: "Coitada de Sinhá Maria! Vá que ela agora descanse de procurar o filho!..." E outro, velho, resmungou, sem saber que tão bem dizia: "Esta morreu de ser mãe..."

Fonte:
GAMA, Domício da. Histórias Curtas. 1901.

Domício da Gama(1862 - 1925)

Domício da Gama (Domício Afonso Forneiro, adotou do padrinho o Gama), jornalista, diplomata, contista e cronista, nasceu em Maricá/RJ, em 23 de outubro de 1862.

Fez estudos preparatórios no Rio de Janeiro e ingressou na Escola Politécnica, mas não chegou a terminar o curso. Seguiu para o estrangeiro em missões diplomáticas.

A sua primeira comissão foi a de secretário do Serviço de Imigração, e o contato, nessa época, com o Barão do Rio Branco, valeu-lhe ser nomeado secretário da missão Rio Branco para a questão de limites Brasil-Argentina (1893-1895) e de limites com a Guiana Francesa (1895-1900) e com a Guiana Inglesa (1900-1901).

Foi secretário de Legação na Santa Sé, em 1900 e ministro em Lima, em 1906, onde desenvolveu grande e notável a atividade, preparatória da política de Rio Branco.

Embaixador em missão especial, em 1910, representou o Brasil no centenário da independência da Argentina e nas festas centenárias do Chile.

Embaixador do Brasil em Washington, de 1911 a 1918, foi o digno sucessor de Joaquim Nabuco, por escolha do próprio Barão do Rio Branco.

Ao celebrar-se a paz europeia de Versalhes, Domício, como ministro das Relações Exteriores, pretendeu representar o Brasil naquela conferência, propósito que suscitou divergências na imprensa brasileira. Convidado para a mesma embaixada, Rui Barbosa recusou, e o chefe da representação brasileira foi, afinal, Epitácio Pessoa, eleito pouco depois, em seguida à morte de Rodrigues Alves, presidente da República.

Domício foi substituído na Chancelaria por Azevedo Marques, seguindo como embaixador em Londres, em 1920-21. Foi posto em disponibilidade durante a Presidência Bernardes.

Em 1919 foi Presidente da Academia Brasileira de Letras, em substituição a Rui Barbosa. Ocupou a cadeira n. 33, tendo escolhido Raul Pompéia como patrono.

Domício da Gama era colaborador da Gazeta de Notícias ao tempo de Ferreira de Araújo e, ainda no início da carreira, escreveu contos, crônicas e críticas literárias.

Faleceu no Rio de Janeiro/RJ, em 8 de novembro de 1925

Livros Publicados:
Contos a meia-tinta, 1891.
Histórias curtas, 1901.

Fonte: Academia Brasileira de Letras

Carlos Leite Ribeiro (Sabendo e Recordando) Parte III

No outro dia, escolheram a estrada antiga que é mais bonita do que a autoestrada, a caminho de Peniche. Passaram por várias e lindas localidades e admiraram belas panorâmicas. Fui uma viagem agradável, com conversas banais mas sempre em tom alegre. Quando chegaram à bela Peniche, dirigiram-se a uma esplanada na também bela praia do Baleal.

- Ivone, vais começar a contar a história que sabes de tua avó?

- Sim Júlio! Minha avó materna era de origem israelita, nascida em Oslo, capital da Noruega, onde fez seus estudos.

Estávamos em plena 2ª Grande Guerra, com o domínio quase total do regime nazista. Minha avó era contra este sanguinário regime e contra a perseguição cada vez mais intensa da perseguição que faziam aos judeus. Na altura, o mais conhecido antinazismo e organizador de resistência a estes, era o checo, Victor Lazlo. Um dia, minha avó conheceu o Victor que a nomeou como representante da resistência ao nazismo, em Oslo. Com a convivência que passou a haver entre ambos, e embora ele fosse mais velho do que ela, apaixonaram-se.

No seu diário, minha avó descreve a seguinte passagem: “ A paixão é o mais intenso dos sentimentos que se pode ter por alguém. Significa a entrega total e sem reservas, tendo a capacidade de remover montanhas (…). Entretanto, foram descobertos pelas SS (polícia política nazista) e tiveram que fugir para Praga, capital checa, onde secretamente casaram.

- Ivone, desculpa e não a propósito, mas está na hora de irmos almoçar. Tens algum restaurante de preferência?

- Nunca almocei aqui em Peniche. Escolhe tu o restaurante – de acordo?

- Se me dás licença, vamos almoçar no restaurante “Nau dos Corvos” que fazem lá uma caldeirada de peixe fresco, sensacional. Mas a bebida escolhes tu.

- Pode ser um “Bucelas branco” (vinho) que há muito que não provo, melhor, bebo.

O restaurante é à beira-mar onde se avista o Atlântico que parece não ter fim. Júlio estava pensativo a admirar o mar.

- Em que pensas Menino? Estás tão calado que nem parece o Júlio que eu conheço?

- Estou a pensar que para além deste oceano está o Brasil…

- E também as brasileiras? rssss

- E também ainda não escolhemos o hotel nem fizemos o check.in…

- Não acredito que já tenhas sono. Hotel com toda a certeza que vamos arranjar. Deves estar a pensar em outra coisa.

Depois do almoço, foram procurar um hotel para passarem a noite. Depois de procurarem em vários hotéis que estavam lotados, conseguiram um quarto no hotel Soleil, com maravilhosa vista não só para o mar como também para praias em redor. Depois de fazerem o check-in (para quarto com duas camas), sentaram-se na esplanada desse hotel onde a Ivone recomeçou sua narrativa.

- Três dias depois do casamento, Victor Lazlo foi detido numa das ruas de Praga e preso num campo de concentração, onde foi várias vezes torturado. Minha avó teve sorte de uns amigos terem visto Victor ser preso e ajudaram-na a fugir para Paris, que ainda não tinha sido ocupada. Seu marido conseguiu fugir com a ajuda das Resistências de quatro campos de concentração.

- Ivone, e a tua avó em Paris?

- Ainda jovem e bonita, sentiu-se muito só numa grande cidade, onde não conhecia ninguém. A nostalgia levou-a um dia a um bar, onde conheceu um aventureiro americano, de nome Rick Blaine…

- É onde entra meu avô…

- Sim, e também um pianista de nome Sam Wilson, que tocava maravilhosamente “As Time Goes By”. Conheces esta bela canção de amor?

- O nome não me é estranho, mas não me lembro da canção e muito menos da letra.

- Vou tentar cantar, só para ti. Se prometeres não te rires da minha voz.

- Prometo. Canta só ao meu ouvido.

- No ouvido, não, só em voz baixa:

Com o passar do tempo
Você deve lembrar-se disso
Um beijo é sempre um beijo
Um suspiro é exatamente um suspiro
As coisas fundamentais se aplicam
Com o passar do tempo
E quando dois amantes namoram
Eles ainda dizem "eu te amo"
Nisso pode confiar
Não importa o que o futuro traga
Com o passar do tempo
Luar e canções de amor
Nunca caem de moda
corações cheios de paixão
ciúme e ódio
Mulher precisa de homem
E homem deve ter sua companheira
Ninguém pode negar
É a mesma velha história
A luta por amor e glória
Um caso de fazer ou morrer
O mundo sempre acolherá os amantes
Com o passar do tempo.

- Ivone, que maravilhosa voz tens. Até podias ter sido cantora profissional!

- Se o elogio é verdadeiro, os meus agradecimentos a tão gentil cavalheiro! Rss

- Como ia a contar, depois de ter encontrado teu avô num bar parisiense, ambos se apaixonaram e começaram um romance que podia ter terminado maravilhosamente. Paris ainda não tinha sido ocupada pelos exércitos nazistas, e ambos passaram momentos maravilhosos e inesquecíveis, muitas vezes em companhia do pianista Sam. Mas um dia, a cidade a quem chamam “de Luz” foi ocupada. Os três amigos pensaram logo em fugirem de lá, pois todos estavam na lista negra das “SS” e se fossem apanhados seriam internados em campos de concentração. Teu avô por ser contrabandista principalmente de armas para a Resistência; minha avó por ter sido casada com Victor Lazlo; o Sam por ter sido o ajudante de teu avô. E todos conspiravam contra o nazismo.

Combinaram apanhar um comboio para Marselha e daí apanhar outro meio transporte para um país ainda livre. Já na estação ferroviária, como a Ilsa demorava, teu avô mandou o Sam a ir buscar ao hotel onde estava alojada, mas já não a encontrou.

Tinha escrito uma mensagem para ser entre a Rick Blaine “: Amor da minha vida, a ternura é um gesto genuíno de carinho. É um sentimento pleno que dá vida, tornando-a mais repleta de sentido. Desejo-te as maiores felicidades do mundo. Sempre serás o amor de minha vida. Adeus. Ilsa”.  E assim, os dois amigos tiveram de partir sem sua companhia.

- Amiga, vamos interromper e vamos aproveitar para jantar?

- Não tenho grande fome, depois daquela saborosa caldeirada de peixe que comemos ao almoço. Mas sempre comerei alguma coisa. Uma sugestão: podíamos comer no restaurante deste hotel?

- De acordo!

Não foi um jantar à luz de velas, mas foi um jantar agradável assim como a conversa. Ele, avô de cinco netos; ela avó de uma neta. Contaram episódios de suas vidas. Uns bons outros menos bons ou mesmo maus. Depois da sobremesa, foram para o hall do hotel para tomar o café e a Ivone continuar sua narração.

- Minha avó nunca disse a Rick que era casada. Ambos em Paris tinham combinado não falarem de suas vidas passadas. Só mais tarde é que teu avô soube e com quem. Os anos passaram e o grande amor deles em Paris, estava esquecido, mas o destino não quis…

Na sua fuga de Paris, teu avô e o Sam assentaram raízes em Casablanca. O “Bar Rick” era o melhor e mais bem frequentado dessa cidade marroquina e ainda não estava (pelo menos oficialmente) sobre o domínio de 3ª Reich.

Nesse bar, além do jogo de casino, com a conivência do chefe da polícia local, o oportunista capitão Louis Renault. E foi nesse local que, inesperadamente, os amantes de Paris se reencontraram.

Certo dia, o casal Victor Lazlo / Ilsa Lund, entrou no bar do Rick, para procurar um contrabandista que diziam ter dois salvo-condutos com os quais podiam apanhar o avião para Lisboa e daí seguiriam para os Estados Unidos. Logo de entrada, a minha avó reconheceu o pianista Sam Wilson. Abeirou-se dele enquanto seu marido procurava o tal contrabandista e pediu-lhe para que ele tocasse “As Time Goes By”. Em princípio, o pianista recusou tocar, alegando não se lembrar mais, mas por fim acedeu ao seu pedido.

Quando Rick entrou no bar ao ouvir a tal canção, dirigiu-se logo ao pianista para o repreender. Com os olhos, Sam indicou-lhe quem estava sentado na mesa a seu lado. Atônito, teu avô dirigiu-se para a mesa na altura em que o marido dela regressava com a notícia que o contrabandista tinha sido morto e ninguém sabia quem tinha os tais salvo-condutos. Depois de vários episódios que não merece a pena aqui contar, minha avó desconfiou que os tais salvo-condutos estariam na mão de Rick.

Uma noite, em que seu marido saiu do hotel onde estavam alojados para ir a uma reunião clandestina, minha avó sorrateiramente entrou no escritório de teu avô que estava a beber uma garrafa de Whisky, tentando esquecer que tinha reencontrado a sua amada. Ela suplicou-lhe que lhe vendesse os dois salvo-condutos, pois seu marido era elemento imprescindível para a Resistência antinazista. Rick recusou e ela apontou-lhe uma pistola ao peito. Sem se desconcentrar, ele disse-lhe que tinha os salvo-condutos no bolso de seu casaco e seria um atos de misericórdia ela matá-lo naquele momento. Ela deixou cair a pistola e ambos se abraçaram com amor e recordaram seus bons momentos de Paris. Ficou combinado que ambos iriam fugir para Lisboa. E ela acreditou.

No outro dia, já no aeroporto, Rick teve de matar um general alemão que estava a tentar evitar que Victor Lazlo fugisse mais uma vez e novamente se juntasse aos Aliados. Minha avó estava convencida que ia partir com o amor de sua vida, mas num golpe teatral, teu avô entregou os salvo-condutos ao casal, alegando que o marido era muito importante para acabar com o nazismo na Europa.

- Ivone, essa parte não sabia eu. Como o pessoal deste do bar quer fechar, podíamos continuar a narrativa no “nosso” quarto?

- Nosso quarto, mas em camas diferentes!

Já no quarto, deitaram-se atravessados na mesma cama, mas com as cabeças em sentido contrário. Ligaram a TV e assim assistiram à telenovela que ambos estavam a seguir. Até antes da telenovela terminar, ambos adormeceram. Na manhã seguinte, quando acordaram, ambos protestaram que o parceiro ressonava alto.

- Tu a ressonar pareces uma antiga máquina de comboio a vapor – disse-lhe ela, o que ele logo lhe respondeu:

- Olha que tu também ressonas alto, que parece que tens grilos dentro da garganta!

- Nem te respondo. Vou tomar um duche e depois arranjar-me para irmos embora para Lisboa.

- E eu quando tomo banho?

- Só depois. Para mais, os homens despacham-se mais rápido do que as mulheres.

No regresso para Lisboa, combinaram encontrarem-se para continuar a narração, na seguinte sexta-feira.

- Ivone, escolhe a localidade. Entretanto, vamos nos encontrar durante a semana na hora do café, como habitualmente?

- Na próxima semana tenho que tratar de uns assuntos particulares e urgentes.

Os dias foram passando e, na quarta-feira, como a Ivone já tinha resolvido seus assunto, ele alvitrou que em vez de saírem na sexta-feira, podiam antecipar um dia a sua saída. Ela em princípio recusou, depois hesitou e por fim aceitou.

- E qual a cidade que a Menina escolhe?

- A escolher? Escolho Sintra. Se o Júlio assim entender.

- Adoro Sintra, cidade que conheço muito bem. Vou fazer a reserva do hotel. É um quarto de duas camas, não é?

- Sei lá. Desta vez pode ser com uma cama só, para não passar a noite a tapar-te. E desta vez, levo uns tampões para os ouvidos, para não te ouvir ressonar!

Na quinta/feira seguinte, Júlio estacionou o carro há hora marcada à porta da casa da Ivone.
Esperou meia hora e como ela não aparecia, resolveu ligar-lhe pelo celular:

- Morreste? – Perguntou-lhe ele. A resposta não tardou:

- Estou bem vivinha só que acordei há 5 minutos, algo rabugenta…

- O que é normal!

- Nada de piadinhas. Vou tomar banho e arranjar-me. Espera um pouco.

- Um pouco, quer dizer 15 minutos?

- Não, uma hora!

Não teve de esperar uma hora – mas quase. Ela apareceu muito bem vestida e ainda mais linda do que nos outros dias.

- Ena! A Miúda vem toda linda, melhor, mais linda do que nunca. Vais para alguma festa?

- Vou para uma festa com o “meu mais querido amigo”, o Júlio!

continua...

Fonte: O Autor. Disponível em http://cencaestamosnos.blogspot.pt/search/label/CONTOS

domingo, 13 de agosto de 2017

Conto Africano (O Bicho Folharal)

A onça estava cansada de ser enganada pela raposa, e mais irritada ainda por não conseguir pegá-la para poder fazer um bom guisado.

Um dia teve uma ideia: deitou-se na sua toca e fingiu-se de morta.

Quando os bichos da floresta souberam da novidade, ficaram tão felizes, mas tão felizes que correram na toca da onça para ver se a sua morte era mesmo verdade.

Afinal de contas, a onça era uma bicho danado!

Vivia dado sustos nos outros animais!

Por isso estavam todos muitos felizes com a noticia de sua morte.

A raposa porém, ficou desconfiada e como não é boba nem nada,ficou de longe, apreciando a cena.

Atrás de todos os animais, ela gritou:

- Minha avó quando morreu, espirrou três vezes. Quem tá morto de verdade, tem que espirrar.

A onça ouviu aquilo e para demonstrar para todos que estava mesmo mortinha da silva, espirrou três vezes.

- É mentira gente! Ela tá viva!- gritou a raposa

Os bichos correram assustados, enquanto a onça levantava furiosa.

A raposa fugiu rindo da cara da sua adversária.

Mas a onça não desistiu de apanhar a raposa e pensou num plano.

Havia uma grande seca na floresta, e os bichos para beberem água tinham que ir num lago perto da sua toca.

Então ela resolveu ficar ali.

Deitada. Quieta. Esperando... Espreitando a raposa dia e noite, sem parar.

Um dia, irritada e com muita sede, a raposa resolveu dar basta naquela situação. E também elaborou um plano.

Lambuzou-se de mel e espalhou um monte de folha seca por seu corpo cobrindo-o todo.

Chegando ao lago encontrou a onça.

Sua adversária, olhou-a bem e perguntou:

–  Que bicho é você que eu não conheço?

Cheia de astúcia, a raposa respondeu:

– Sou o bicho folharal!

- Então, pode beber água.

Vendo que a raposa bebia água como se tivesse muita sede, a onça perguntou desconfiada;

– Está com muita sede, hein?

Nisso, a água amoleceu o mel e as folhas foram caindo do corpo da raposa. Quando a última folha caiu, a onça descobrindo que foi enganada,pulou sobre ela. Mas nisso, a esperta raposa já tinha fugido rindo às gargalhadas.

Fonte:
Contos de Encantar

Carlos Leite Ribeiro (Sabendo e Recordando) Parte II

- Mas estamos aqui para falar de meu avô Rick, não é assim “bela dama”?

- Foi o combinado, embora possamos falar e admirar esta paradisíaca paisagem.

- Tínhamos ficado com meu avô em Moçambique, onde trabalhou desde a hotelaria, construção civil, e até de ladrão e assaltante de bancos, pessoas singulares, casas – tudo que lhe viesse à mão. Teve vários filhos de várias mulheres, moçambicanas, que os abandonou à sua sorte. Nessa altura, Moçambique como quase toda a África, exumava de nazistas (identificados mas nunca punidos). Viu-se perseguido pelas autoridades e pelos nazistas que nunca lhe perdoaram o fato de ele ter morto um seu general em Casablanca.

Por sorte, conseguiu arranjar emprego, como ajudante de cozinheiro, num barco argentino, que estava quase a zarpar para Montevidéu.

- Então seu avô viveu na Argentina?

- Não por muito tempo. Mudou-se para o Paraguai e com a dificuldade de arranjar emprego, tornou-se contrabandista entre este país e o Brasil. A propósito, para não ficarmos aqui só a olhar para o estuário do Sado, podíamos ir até à praia do Portinho da Arrábida, andar um pouco na areia e depois sentarmos numa esplanada para lhe contar mais sobre a vida que meu avô teve.

- Vamos então até à praia.

O caminho para esta praia é deslumbrante, e a praia linda. Descalços, andaram pela areia dourada e depois de distenderem os músculos das pernas, sentaram-se numa esplanada junto ao mar, onde ele continuou a narração.

- Ainda no Paraguai, meu avô teve uma enorme rija com seus “sócios” do contrabando, onde matou dois companheiros. Perseguido pelas autoridades desse país, andou fugido de terra em terra, vivendo de roubos e de assaltos, em companhia de uma mulher com quem viveu algum tempo.

Cada vez mais perseguido pela polícia, teve de fugir e atravessar o rio Paraná, numa noite escura, para se refugiar em território brasileiro.

Durante algum tempo, refugiou-se na cidade de Bagé, onde reencontrou um antigo companheiro do “contrabando” e outras coisas mais em território paraguaio, que lhe indicou um amigo dele que vivia numa favela do Rio de Janeiro.

Como estava também referenciado no sul de Brasil, urgia fugir daquelas paragens. Como não tinha dinheiro, teve de voltar aos roubos e assaltos a pessoas para poder sair do sul o mais rápido possível.

Num desses assaltos, feriu-se num pé e teve que ficar escondido em casa de esse amigo, conhecido por “Speed”. Foi esse amigo que pediu a um amigo caminhoneiro que lhe desse uma boleia até Curitiba, dando-lhe também algum dinheiro para que ele pudesse chegar ao Rio de Janeiro.          

De Curitiba, conseguiu uma boleia também em caminhão até Ribeirão Preto, já em pleno Estado de São Paulo. Daí como não conseguiu arranjar boleia até ao Rio de Janeiro, roubou um carro até gastar o combustível; depois outro e ainda mais outro até chegar à favela para procurar o tal amigo que o “Speed” lhe tinha indicado.

Esse amigo, o “Amadeu” só dois dias regressou à favela com “as suas meninas”, pois, além de traficante também era proxeneta. Desconfiado a princípio, foi ganhando confiança no meu avô e até começou a dar-lhe “trabalho” fazendo este entregas de produtos proibidos.

As coisas trabalho/dinheiro iam correndo bem até que a polícia militar fez uma rigorosa rusga à favela procurando marginais. Meu avô, o tal “Amadeu” e suas meninas conseguiram fugir indo viver para outra favela distante daquela.

- Júlio, não vem a propósito, mas já estamos na hora do almoço. Que tal?...

- Tem razão, Ivone. Vamos até Sesimbra e passar por belos sítios com belos panoramas.

Já perto de Sesimbra, ela perguntou-lhe a sorrir:

- O meu “nobre” companheiro de passeio, o que me vais sugerir para o almoço?

Ele deu uma gargalhada antes de replicar-lhe:

- “Minha nobre e linda companheira”, quando chegarmos ao restaurante e consultar o cardápio, é que lhe poderei sugerir um almoço digno de sua nobreza! Kkkkkkk

- Kkkkk, confio plenamente no seu gosto culinário, kkkkk, meu nobre amigo!

Já no restaurante bem perto do mar, depois de consultar o cardápio, Júlio sugeriu a sua amiga “Robalo no Sal”.

- É Júlio, é um manjar dos deuses, já há muito tempo que não como essa especialidade. Será preciso dizer que estou completamente de acordo?

- Só um pormenor: é um manjar digno de uma deusa e de um deus. Também já há tempo que não saboreio tal delícia! E preferência para o vinho?

- Se estiver de acordo, talvez um verde Aveleda?
 
- Muito bem!

O robalo no sal é uma delícia. O peixe é colocado num tabuleiro, no meio de sal grosso, vai ao forno durante cerca de meia hora. Depois, o sal é retirado juntamente com a pele e é servido com batatas cozidas pequenas, verduras ou salada de alface. Depois do almoço, resolveram ir até à também linda praia de Figueirinha, onde ele continuou a sua narrativa sobre o que sabia de seu avô paterno.

Descalços pisando a areia, desta vez de mãos dadas, andaram um pouco até se sentarem numa esplanada.
 
- Como já lhe disse, meu avô teve de mudar de favela com seu amigo. Tudo corria, digamos bem, até meu avô Rick se apaixonar por uma prostituta, uma das “meninas” do tal “Amadeu”, por acaso a mais bonita e mais novinha.

Quando “Amadeu” descobriu o “tal amor”, jurou matar meu avô e a moça. Tiveram que se esconder para outra parte do Rio de Janeiro, onde ela “trabalhava” e ele era o proxeneta. Foram descobertos por capangas do “Amadeu” e tiveram mais uma vez de fugir.

Como a Juciley tinha família no Nordeste, em Fortaleza, resolveram ir para lá. Apanharam um “pau de arara” (camioneta de caixa aberta, que transportava pessoas do nordeste que iam procurar trabalho no Rio ou em São Paulo). Como o dinheiro era pouco, só foram transportados até ao Recife, onde Juciley começou a “trabalhar” até arranjarem dinheiro para chegar a Fortaleza. Ela trabalhou vários meses até conseguir dinheiro para a viagem, também de “pau de arara”.

O dia chegou e após vários dias de sol intenso e chuva intensa, conseguiram chegar exaustos até à bela cidade de Fortaleza. Na primeira noite, ficaram os dois na areia da praia de Iracema, sem comerem nada.

No dia seguinte, foram a um bairro desta cidade, a casa de uma prima de Juciley que era dona de uma casa de “passagem” ou espécie de bordel. Recebeu-a com simpatia, ela contou sua vida e apresentou-lhe o meu avô.

A moça, que na altura tinha 16 anos, pediu à prima que a ajudasse, mas esta fez certas reticências pela pouca idade dela. No centro da cidade, não era conveniente, só se ela quisesse “trabalhar” em Vicente Pinzon, o que a moça, devido à situação financeira aceitou.
Combinaram então as condições (quase um contrato de trabalho: 45% para a prima, outro tanto para a Juciley e 10% para meu avô, como segurança (capanga) dela.

- Se houver “trabalho” deve dar para viver, ou seja, alugar uma casa e comer todos os dias.

- Para você, que é muito jovem, “trabalho” não vai faltar, para mais tenho lá uma “menina” que se vai reformar – disse-lhe a tal prima.

Tudo corria normalmente, quando uma noite, ao sair de um boteco, viu que um cliente estava a agredir Juciley, Puxou por uma faca e dirigiu-se para defender a mulher. O outro homem, pegou numa pistola e deu-lhe dois tiros fugindo em seguida. Ainda levaram meu avô ao hospital, mas quando lá chegou, já ia morto.

Como não tinha documentos nem ninguém reclamou o corpo, meu avô foi enterrado numa vala comum do cemitério São João Batista, como “desconhecido”, em Fortaleza. Foi assim, parte da vida e morte de meu avô Rick Blaine.

- Júlio, e conseguiram apanhar o agressor que causou a morte a seu avô?

- Não, pois não era conhecido por aquelas bandas e a Juciley não conseguiu dar os dados precisos do indivíduo.

- E como conseguiu esses dados (ou pormenores)  todos?

- Fui militar em Moçambique e tive curiosidade em saber algo dele. Procurei em vários lados, até na polícia e cheguei a um português que o tinha conhecido e sabia que ele tinha arranjado trabalho nunca barco que ia para a Argentina.

Mas deste país, não consegui saber nada. Só mais tarde, um amigo que morava no sul do Brasil começou a apanhar o fio da meada, em Bagé. Numa das minhas visitas ao Brasil, contatei com um indivíduo que na altura dos acontecimentos, trabalhava para o “Speed”, que em troco de algum dinheiro, me contou parte da história e me deu contato para eu procurar no Rio de Janeiro o tal “Amadeu”. Também já não era vivo, mas um sobrinho dele, que também sabia da história, me contou algumas coisas, entre as quais, ele e a Juciley tinha fugido para Fortaleza. Fui até à linda Fortaleza e por informação de um antigo agente da polícia, consegui saber que a antiga moça de meu avô ainda era viva e deu-me o endereço.

- Quer então dizer que conseguiu falar pessoalmente com a última mulher de seu avô?

- Tomou o negócio da prima quando esta morreu e continuou-o com responsável. Quando me apresentei, notei que ela ficou muito comovida, começando por me dizer:

- Você é tão bonito como era seu avô! Quase “cai das nuvens”!

- Ainda hoje não é “coisa” para se deitar fora! kkkkkkkk

- Ivone, por favor, não me goze. Devia ter-me conhecido a alguns anos atrás – digo sem vaidade.

- Acredito. Mas voltado a seu avô, foi a Juciley que lhe contou o resto da história, não foi?

- Sim e com todos os detalhes como contei a você.

- Está na hora de regressarmos a nossas casas. E já vamos chegar de noite.

- Podíamos jantar pelo caminho?

- Não posso. Tenho que jantar em casa pois é dia de meu filho que está nos Estados Unidos me telefonar.

- Mas ainda não me contou a história de sua avó Isa Lund.

- Que é longa, mas fica para outro dia. Vai ver que em determinada época, seu avô não foi tão mau como você no relato que me fez, o julga. Fica para outro dia.

Já em Lisboa, ao despedir-se dela ainda dentro do carro, beijaram-se nas faces, mas sem querer (?) seus os lábios roçaram um pelo outro. Enquanto se afastava, Júlio pensou:

- “Que lábios macios a Ivone tem. E doces...”

- “Será que o Júlio tivesse feito de propósito? Mas tem uns lábios maravilhosos…”.

Na noite do dia seguinte, ela ligou-lhe:

- Júlio, você morreu?

- Não Ivone, apanhei ontem um resfriado e estou de cama com gripe. Talvez fosse por ter pisado areia junto ao mar.

- Coitadinho! Até estou com pena de você kkkk. Também pisei areia junto ao mar e estou aqui bem, sem achaque nenhum!

- Pois, nem sei que lhe diga.

- Digo-lhe eu: se os homens pudessem ter filhos, morriam antes de dar à luz! Não seja piegas e arrebite, tome chá de limão com mel e um comprimido para a gripe e amanhã já nem se lembra que esteve hoje doente. Esta semana vamos continuar a nossa história, desta vez falando de minha avó Ilza Lund?

- Vamos sim! Até podemos ir na quinta-feira e passar a noite em qualquer hotel.

- Como disse?

- Passar a noite de quinta para sexta num hotel, mas em quartos separados.

- O Júlio fez bem repetir pois eu tive receio de ter ouvido mal. Mas pensando melhor, talvez não seja conveniente encontramo-nos esta semana, pois está doentinho e pode contagiar-me!

- Nada disso, na quinta-feira já estou curado.

- Não me diga que meu telefonema teve mais efeito que o chá de limão! Não seja piegas, que fica mal a um homem.

Na quinta-feira à hora que tinham combinado, quando ela entrou no carro, logo lhe perguntou:

- Júlio, você já está completamente curado? Não quero ser contaminada por essa doença de pisar areia molhada!

- Já estou completamente curado. O melhor remédio ainda foi os seus telefonemas! Mas parece-me que a Ivone hoje não está bem disposta?

- É a disposição habitual quando me levanto mais cedo

- Piegas! Então onde a dama quer ir hoje?

- Não quero atravessar o Tejo. Escolha você o destino do passeio.

- Vamos a Coimbra?

- É muito longe. Uma localidade mais perto.

- Então, Peniche, São Martinho do Porto, Foz do Arelho, Nazaré, São Pedro de Moel? Escolha.

- Escolho Peniche, mas que fique bem claro que você não vai pisar areia molhada! Para mais, nesta noite vamos ficar no mesmo hotel.

- Mas separados!

continua...
 
Fonte: O Autor. Disponível em http://cencaestamosnos.blogspot.pt/search/label/CONTOS

sábado, 12 de agosto de 2017

Conto Africano (A Árvore que falava)

Longe, muito longe… bem no coração da savana, vivia uma árvore maior e mais velha do que qualquer outra.

Abrigava, sob a sua corcha toda a sabedoria de África.

A seus pés, por entre as altas ervas, a leoa espiava o antílope ou a zebra que se tinham afastado do grupo. Como era a única árvore das redondezas, os pássaros, que se empoleiravam nos ramos mais altos, conheciam-na bem. Também as girafas, que comiam as folhas dos ramos do meio, a conheciam. E os leões, que se estendiam sob os ramos baixos para fazerem a sesta…

E assim a árvore conhecia todos os segredos dos pássaros, dos leões, das girafas, das zebras e de muitos outros animais. É que ela escutava com todas as suas folhas.

Até os homens vinham sentar-se debaixo da árvore no momento das grandes decisões, discutindo os assuntos sérios à sombra dos seus ramos.

A árvore sabia mais sobre o povo dos homens do que o mais velho dos anciãos e o mais sábio dos sábios. Porque ela sabia calar-se, enquanto eles gostavam de falar.

Mas a árvore não guardava para si o seu saber: àqueles que tinham os ouvidos atentos, ela murmurava, em confidência, a resposta a muitas questões.

Quando os seus filhotes estavam suficientemente grandes para voar, as andorinhas, as cotovias e os estorninhos tinham por hábito levá-los até à árvore. Ao cair da noite, a árvore enchia-se de chilreios. Passado algum tempo, com três bicadas, os pais faziam calar os mais palradores. E cada um escutava o murmúrio que subia da raiz mais profunda até ao raminho mais alto.

No dia seguinte, os jovens sabiam um pouco mais da arte de voar em ziguezague para enganar as aves de rapina que mergulham sobre as presas. E a águia ou o milhafre regressavam às montanhas de mãos a abanar, perguntando-se por que milagre todos os passarinhos daquele canto da savana se tinham tornado, de repente, tão espertos!

E cada girafinha que partia a mascar um punhado de folhas da árvore ficava a saber um pouco melhor como evitar a leoa que caçava. E, misteriosamente, cada leãozinho, depois da sesta ao pé da árvore, desconfiava um pouco mais do riso da hiena que rondava à procura de uma presa fácil.

Mas os homens, esses, partiam tão sisudos e estúpidos como tinham vindo, e a sua tagarelice nada lhes tinha ensinado porque não sabiam escutar.

Eram orgulhosos e arrogantes. Incendiavam a savana com os seus fogos e matavam mais animais do que aqueles que precisavam para se alimentar. Matavam-se até uns aos outros. E chamavam a isso «a guerra». A árvore falava-lhes, como a todos, mas os homens não a escutavam. Por causa deles, a árvore ficou triste. Pela primeira vez, sentiu-se velha e cansada. Se pudesse, ter-se-ia deitado para esquecer. Mas quando se é uma árvore, é preciso ficar de pé a recordar…

Foi então que as suas folhas amareleceram e secaram e, em breve, ficou nua no meio da savana. Os pássaros começaram a desdenhar dos seus ramos e os leões e as girafas também, porque ela deixou de lhes falar.

E todos diziam que ela estava morta.
* * *

Por muito tempo a árvore seca ficou de pé. E parecia que nada viria alguma vez a mudar… O milhafre da montanha estava contente e as hienas riam-se. A leoa perdeu um leãozinho, a girafa, uma girafinha e a andorinha, três passarinhos que mal sabiam voar.

Mas, uma manhã, veio um pequeno homem com um ar decidido. Tinha o olhar de uma criança, e esse olhar não refletia nem fogo nem sangue. As suas mãos não agarravam nem arco nem zagaia. Contudo, era um homem.

Parou ao pé da árvore seca, estendeu os braços e, com as pontas dos dedos, tocou no tronco, muito devagar, ao de leve, como se acordasse alguém que dorme. A corcha estremeceu. E a voz do pequeno homem subiu ao longo da árvore, terna como um cântico muito antigo. O homem falava à árvore, cheio de simplicidade. Depois, calou-se. E encostando a orelha ao tronco, escutou. O vento nos ramos parecia formar palavras e frases. E quanto mais a árvore falava, mais a expressão do homem se iluminava.

Quando a árvore terminou, o homem partiu. Quando voltou, trazia um machado aos ombros. Uma vez perto da árvore, levantou a cabeça em direcção aos ramos e murmurou algumas palavras em tom de desculpa. Depois, firme nas suas pernas, com o cabo do machado bem preso nas mãos, começou a cortar o tronco.

E a madeira ressoou na savana, até aos limites do deserto e das montanhas.

Cada pássaro, cada leão e cada girafa reconheceram a voz da velha árvore.

Em conjunto, acorreram para junto dela, mas apenas encontraram um cepo e algumas aparas espalhadas pelo solo.

É que o pequeno homem, ajudado por alguns da sua aldeia, tinha levado a árvore até casa. E, com medo dos homens, os animais não se atreveram a segui-lo.

Uma vez chegados à aldeia, o homem pôs-se a trabalhar. Tinha uma grande ideia: para que a voz de madeira da velha sábia percorresse de novo a savana, iria fazer um tantã.

Um tantã mais sonoro e maior do que qualquer outro. Suficientemente longo para que todos os homens da tribo pudessem tocar em conjunto.

Como o homem pegava de novo no machado para podar os ramos e deixar, assim, o tronco livre, aqueles que tinham carregado a árvore com ele fizeram -lhe sinal que parasse:

― Pequeno homem, nós ajudámos-te ― disseram os homens fortes com as suas vozes grossas. ― O nosso trabalho deve ser pago.

― Mas… com que é que vos vou pagar? Eu não tenho nada, bem sabem!

― Deixa-te disso! ― insistiram os homens fortes. ― Trouxemos a tua árvore, dá-nos a nossa parte.

― Não pode ser ― protestou o homem. ― É preciso que o tronco fique inteiro para este tantã. Se não, como é que a tribo poderá tocar?

Os homens obstinavam-se a reclamar a sua parte da madeira e o assunto foi levado ao Conselho dos Anciãos.
* * *

Era uma assembleia de homens muito velhos e muito tagarelas. Sempre prontos a pronunciar uma sentença ou um julgamento, tanto a propósito do que conheciam como do que ignoravam. Nada lhes agradava mais do que reunirem-se quando lhes pediam um conselho, e também quando não lho pediam! Ora, o Conselho tinha por hábito reunir-se debaixo da grande árvore, e os velhos sentiam-se desamparados… pois a árvore tinha sido cortada! O mais velho dos Anciãos, um pequeno velhinho com a face enrugada como uma ameixa seca, agitou o cachimbo por cima da cabeça e tomou a palavra:

― O Conselho não se pode reunir por falta de um lugar adequado.

E expeliu uma baforada do seu cachimbo.

Os outros membros do Conselho, sentados em círculo, aprovaram com um movimento de cabeça, expeliram, cada um, uma baforada do seu cachimbo e guardaram silêncio.

Os homens fortes, que queriam a sua parte da árvore, e o pequeno homem, que nada queria, não sabiam o que fazer.

Impaciente por começar o trabalho, o homem avançou para dentro do círculo, curvou-se respeitosamente diante do mais velho dos Anciãos:

― Digam-me apenas se posso começar o meu trabalho, já que estais aqui reunidos.

― Ah, não! É verdade que estamos aqui ― respondeu o Ancião.

— Mas o Conselho não está reunido. Por isso, não pode dar a sua opinião.

Expeliu uma outra baforada e calou-se.

Os homens fortes, impacientes por levar a madeira que lhes cabia, inclinaram-se, por sua vez, diante dos Anciãos e disseram:

― Digam-nos apenas se podemos pegar na nossa parte.

O Ancião nem se deu ao trabalho de responder. Limitou-se a expelir uma baforada do cachimbo e permaneceu em silêncio.

Mas o mais forte, que também era o mais impaciente, deu um passo em frente.

De imediato, o velho homem largou o cachimbo e, com uma voz trémula, acrescentou precipitadamente:

― O Conselho vai reunir… para decidir onde terá lugar o próximo Conselho.

O discurso enfadonho que se seguiu poderia ter durado até ao final dos tempos, se o Conselho não tivesse acabado por decidir… que decidiria mais tarde!

De seguida, os velhos aconselharam o pequeno homem a dar aos homens fortes o que eles pediam. Depois, reclamaram, por sua vez, um pedaço da árvore como recompensa pelo sábio conselho. E o pequeno homem assim o fez porque era costume dar uma prenda aos Anciãos, como agradecimento pelos seus conselhos.

E cada um se apressou a serrar, a rachar e a atar.

E o pedaço de árvore não tardou a transformar-se em achas, toras e feixes para queimar. Os homens acendiam fogueiras à volta da aldeia para manter afastados os animais selvagens. Ignoravam que os animais tinham ainda mais medo deles do que das suas fogueiras.
* * *

Um pouco desiludido, o pequeno homem reparou na diminuição do tronco, mas disse para si mesmo que, apesar de tudo, ainda chegava para fazer um bom tambor para a tribo.

Lançou-se ao trabalho, cheio de coragem. O machado, no entanto, não era muito adequado para o descortiçamento, por isso decidiu ir a casa de um vizinho pedir emprestado um podão, cuja lâmina curvada faria melhor o serviço. Como era hábito, o vizinho estava a fazer a sesta e o pequeno homem acordou-o para lhe fazer o pedido.

― Ah! És tu? ― disse o vizinho, bocejando como um hipopótamo. ― O que queres de mim?

― Se fazes favor, podias emprestar-me o teu podão? ― perguntou muito educadamente o pequeno homem.

― Eh! ― respondeu o vizinho, tão amável quanto um crocodilo a quem interromperam a digestão. ― Não me deixas dormir com esse barulho todo… E ainda por cima queres que te empreste o meu podão! E se eu precisar dele?

― Mas… é só por um dia! Amanhã já terei acabado!

― O que me dás em troca?

― Sabes bem que não tenho nada de meu.

― Ah não? E essa árvore? É tua, não é?

― Sim, mas… ― começou o pequeno homem.

― Pois bem, dá-me um pedaço para alimentar a minha fogueira e emprestar-te-ei o meu podão.

Assim se fez, já que mais ninguém na aldeia tinha a ferramenta de que o pequeno homem precisava.

Um pouco desiludido, atentou no tronco, agora mais pequeno. No entanto, havia ainda madeira para fazer um tantã para a tribo.

Lançou-se ao trabalho, cheio de coragem. E o descortiçamento depressa terminou.

Mas, quando quis cavar o tronco, apercebeu-se de que não tinha cinzel para o fazer.

De certeza que o vizinho tinha um, mas será que lho emprestaria sem reclamar mais um pedaço da árvore?

Infelizmente, mais ninguém da aldeia tinha cinzel. E era preciso acordar novamente o hipopótamo, amável como um crocodilo.

― Tu, outra vez! ― bocejou o vizinho. ― O que queres?

― Desculpa ― disse o pequeno homem com a sua voz gentil. ― Vim devolver-te o podão… e pedir-te, em troca, um cinzel, se fazes o favor.

― Em troca? ― zombou o vizinho. ― Não há troca nenhuma porque o podão é meu. Dá-me um pedaço de madeira para a minha fogueira e emprestar-te-ei o meu cinzel.

Assim foi feito. E o pequeno homem, um pouco desiludido, atentou no tronco muito curto. Ainda podia fazer um bonito tantã, não para toda a tribo, mas, mesmo assim, um bonito tantã. Cheio de coragem, meteu mãos à obra e depressa cavou o tronco. Faltava apenas endurecê-lo ao lume, para que fosse mais sólido e para que o seu som chegasse mais longe. Mas o pequeno homem não tinha fogueira e já havia dado tanta madeira aos outros que não possuía o suficiente nem para atear uma fogueira. Claro que a fogueira do vizinho crepitava, um pouco mais longe, mas não ousava acordá-lo pela terceira vez.

Foi então pedir aos homens fortes, que faziam uma grande fogueira, a permissão de passar o seu tantã pelo fogo.

― De acordo, ― disseram eles ― mas com a condição de pores uma acha na nossa fogueira, como todos fazem.

― Mas… já não tenho madeira, já vos dei tudo! ― respondeu.

― Ah sim? E isto, não é madeira? ― perguntou o mais forte dos homens fortes, indicando o pequeno tantã.

Com a morte na alma, o pequeno homem teve de se resolver a cortar um pedaço do tantã antes mesmo de lhe ter ouvido a voz.

E quando pensou naquilo que lhe restava do imenso tronco que a árvore lhe tinha dado, esteve quase para se sentar a chorar e abandonar o seu belo projeto.

Mas caiu de novo em si e disse para si mesmo que, apesar de tudo, se não chegasse para um tantã, chegaria para fazer um grande tambor.

Cheio de coragem, meteu mãos à obra e o que restava do tantã foi rapidamente convertido em djembé. (Djembé é o nome que se dá a esta espécie de tambor, em África). Mas o pequeno homem apercebeu-se de que lhe faltava uma pele de cabra para o tambor.

Partiu então à procura do rebanho de cabras. A rapariga que as guardava era ainda quase uma criança, e o pequeno homem pensou que seria mais fácil falar com ela.

― Bom dia ― disse à criança.

― Bom dia ― respondeu ela. ― És tu que dás madeira a toda a gente em troca de uma ferramenta ou de lume?

― Sim, quer dizer… ― começou ele.

― O que queres de mim? ― interrompeu a criança.

― Apenas uma pele de cabra, uma daquelas que tens por aí. Mas já não tenho madeira para te dar.

― É pena ― disse a rapariga. ― Justamente, também eu necessito de um pouco de madeira. Para afastar os leões do meu rebanho não há nada melhor do que uma boa fogueira, disseram-me os Anciãos.

― Oh, por favor, dá-me uma pele. Bem vejo que não te fazem falta ― suplicou o pequeno homem.

― Pelo contrário, as minhas peles, troco-as por madeira! ― retorquiu a criança.

E, como mais ninguém na aldeia tinha peles de cabra, o homem foi obrigado, uma vez mais, a cortar um pedaço do tambor.

A pele de cabra era dura e seca, frágil como uma corcha. Antes de a colocar no tambor, era preciso macerá-la, fervê-la, esticá-la, batê-la para a tornar mais suave e tão sólida como o couro.

Só faltava levá-la ao curtidor.

Aquele que curtia todas as peles da tribo morava sozinho fora da aldeia, perto do rio. O seu trabalho requeria muita água. E os outros não teriam querido que ele se instalasse perto, devido ao cheiro insuportável das peles molhadas.

Mas, por mais longe que o curtidor morasse, também ele tinha ouvido falar da árvore abatida. Por sua vez, reclamou uma parte, como prêmio do seu trabalho.

― Mas já não há nenhuma árvore! ― lamentou-se o pequeno homem. Ficou apenas um tambor!

― De acordo ― concluiu o curtidor. ― Contentar-me-ei com um bocado do tambor.

E o pequeno homem cortou e deu-lhe a madeira, e a pele foi curtida, seca e ficou pronta a ser colocada no djembé.

Quando quis esticá-la, deu-se conta de que lhe faltava uma corda para o fazer.

Foi então à procura daquele que na aldeia melhor sabia entrançar cordas. É que a corda que estica a pele de um djembé tem de ser sólida.

Tal como os outros, o entrançador de cordas pediu um pouco de madeira. Apesar dos seus protestos e lamentos, o pequeno homem nada conseguiu. E o tambor ficou ainda mais pequeno.

O pequeno homem regressou a casa perturbado, com a corda ao ombro. Ao ver o tambor tão pequeno, perguntou-se se teria valido a pena o trabalho.

Depois, recordou a árvore que se erguia no meio da savana. Lembrou-se da promessa que lhe tinha feito e a coragem voltou-lhe. Depressa a pele de cabra foi colocada no djembé, em arco, e muito esticada por uma rede de nós sólidos e complicados.

O homem olhou para o seu djembé, finalmente pronto! Claro que era um djembé muito pequenino, bem diferente daquele tantã que ele quereria ter talhado e no qual toda a tribo teria tocado em conjunto. No entanto, o homem não ficou decepcionado, porque era um belo djembé: esculpido, polido, suficientemente largo para as suas pequenas mãos, e suficientemente grande para lhe caber entre os joelhos. Então, o homem quis experimentá-lo. Com as palmas e os dedos pôs-se a tocar. E a voz que saía deste tambor, tão pequenino que mais parecia um tambor de criança, era ampla e vasta e profunda como a floresta.

O homem sentiu-se arrebatado e as suas mãos continuaram a tocar… E a voz imponente do pequeno djembé estendeu-se a toda a aldeia e à savana inteira.

Um por um, todos os da tribo se aproximaram dele. Tinham vindo todos: desde o mais ancião dos Anciãos à pequena guardadora de cabras, do mais forte dos homens fortes ao vizinho crocodilo. Tinham deixado as suas fogueiras, as suas conversas enfadonhas e as suas sestas, para formar um círculo em redor do pequeno tambor. E faziam silêncio.

Do pequeno djembé elevavam-se palavras e frases que diziam toda a savana: o medo da zebra que foge à azagaia do caçador ávido, o sofrimento da erva que curva perante a chama acesa pelo homem, a doçura do vento que murmura nos ramos da árvore… E os homens escutavam. Eles, que só pensavam na caça, na guerra e nas fogueiras, faziam silêncio.

Assim, até aos limites da montanha e do deserto, cada pássaro, cada leão e cada girafa reconheceram a voz da velha árvore. E, graças às mãos do pequeno homem, todos partilharam de novo o seu saber, por muito tempo ainda. Porque, ao som do djembé, o cepo da antiga árvore germinou. Do jovem rebento brotou uma nova árvore.

E, sob a sua corcha de árvore, corria a seiva da sabedoria de África.

A seus pés, por entre as ervas altas, a leoa espiava o antílope ou a zebra que se tinham afastado do grupo. Os pássaros, que se empoleiravam nos ramos mais altos, conheciam-na bem. E as girafas, que comiam as folhas dos ramos do meio, e os leões, que se estendiam sob os ramos baixos para fazerem a sesta.

Até os homens…

Fonte:
Do Spillers. L’arbre qui parle. Toulouse, Milan Poche, 1999. Disponível em Contos de Encantar