sábado, 30 de março de 2024

Ademar Macedo (Ramalhete de Trovas) 20

 

Humberto de Campos (Ferrabrás)

O coronel Otaviano de Meireles, comandante de um batalhão da Guarda Nacional aquartelado em Niterói, era conhecido em toda a cidade pela sua valentia, e, em especial, pela sua intransigência em questões de honra. Casado com uma das senhoras mais formosas do bairro, era tal o pavor infundido pelo seu nome, que ninguém se atrevia, sequer, a levantar os olhos para a sua cara metade. Aquele que tal fizesse, era, na opinião de toda a gente, um homem liquidado.

Foi por esse tempo, e quando mais se acentuava, em toda a praia de Icaraí, a fama da coragem do coronel, que passou a residir na vizinha capital o jovem advogado Dr. Otacílio Fernandes, que não era coronel, nem major, nem capitão, nem tenente, mas fora, sempre, um dos mais famosos namoradores de Niterói. Proprietário do prédio em que o coronel residia, não foi necessário grande esforço da parte do moço para travar amizade com o inquilino; e esta foi tão rápida, e tão sincera, que, uma semana depois, era o Dr. Otacílio convidado para um almoço, no primeiro domingo, na residência do brioso militar.

Chegado o dia, lá estava, na praia de Icaraí, o jovem capitalista. Risonho, amável, dissimulando com um sorriso gentil a austeridade da sua fisionomia marcial, correu o dono da casa ao portão, para receber o convidado e fazê-lo subir até à sala, onde madame já o esperava, obsequiosa e linda, com o rosto a emergir, como uma grande rosa, das espumas de neve do seu elegantíssimo penhoar de linho e renda.

- O Dr. Otacílio Fernandes - apresentou o coronel.

E ao recém-chegado:

- Minha esposa...

Minutos depois, sentados à mesa redonda, em que havia apenas três talheres, a palestra corria jovial, feliz, entre petiscos saborosos e sorrisos significativos, quando o telefone tilintou. Era o procurador do coronel que reclamava a sua presença, urgente, na estação das barcas, para ultimação de um negócio inadiável.

- Diabo! - exclamou o bravo militar. – Tenho de ir, não há remédio!

E virando-se para o capitalista, enquanto desamarrava o guardanapo:

- Esteja à vontade, doutor. É questão de meia hora. Fique por aí; eu não demoro!

E para a esposa:

- Orminda, faze as honras da casa; eu venho já!

Mal o coronel tomou o bonde, duas taças se chocavam no ar, por cima da mesa, festejando ruidosamente aquele encontro, há tanto desejado. E de tal forma foi a saudação, que, ao reentrar em casa, o coronel foi encontrar os dois no seu gabinete, num colóquio de excessiva intimidade. Apanhado em flagrante, o advogado pôs-se de pé, lívido. Apoiado na porta, que empurrara, o coronel encarou-o trovejando:

- Sim, senhor, Sr. Dr. Fernandes!

Pálido, trêmulo, o advogado lembrou-se da fama do coronel, e sentiu que chegara a última hora da sua vida.

- Sim, senhor! - tornou o militar.

E abrandando a voz:

- Você não tem medo de uma congestão?

Fonte> Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. 
Disponível em Domínio Público.

Caldeirão Poético LXXXIII


(Academia Brasileira de Sonetistas Clássicos)

Arlindo Tadeu Hagen

MINHA POESIA

A forma de expressar meus sentimentos
sempre foi através da poesia.
Muito mais do que a fala, a fantasia 
me acompanhou por todos os momentos. 

Lamentei, versejando, os sofrimentos 
e brindei as vitórias na alegria.
Através dos meus versos, sempre atentos,
testemunhei de tudo, dia a dia.

A poesia fez melhor meu mundo
 mais fraterno, bonito e colorido
e deu à minha vida mais sentido.

Entretanto, o meu verso mais profundo 
eu penso que jamais irei fazer
sobre as coisas que eu sinto sem dizer.
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Elvira Drummond

MALÍCIAS DO VERSO…

O verso vem… achega-se discreto, 
de modo tão suave, que sombreia 
as suas intenções, o seu projeto 
de armar, devagarinho, a sua teia.

Um verso tem seu próprio dialeto:  
se tece palavrinhas, em cadeia, 
enrama seu enredo tão completo, 
que alumbra com clarão de lua cheia! 

E, nesse ponto, o verso não espera: 
assume o meu desejo de quimera
e faz de mim refém do coração!  

Entregue, totalmente, ao seu capricho, 
escuto o seu sussurro, o seu cochicho…
é o verso que conduz a minha mão! 
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Fernando Antônio Belino

VINHO E PÃO

Se faço um verso novo, é bom sinal
de que resta comigo uma esperança,
de que a fúria do intenso vendaval
não dizimou meu riso de criança.

Refém do cerco atroz do imenso mal,
a minha lira insiste e não se cansa.
Mantém-se firme, em luta visceral,
contra esse breu que, sobre a luz, avança.

Quando escrevo, a poesia é um gesto forte,
que afasta, da navalha, o agudo corte,
mantendo acesa a tímida alegria.

A escrita é meu alento e minha cura;
é um vinho que me salva da loucura;
é um pão que me alimenta a cada dia!
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Gilliard Santos

RECEITA DE UM SONETO DE AMOR

Em uma folha branca e bem untada
Despeje três porções de inspiração;
Coloque seis colheres de emoção
E mexa bem, de forma graduada...

Ponha de amor três xícaras de cada,
Depois uma pitada de paixão...
A massa, enfim, requer maturação
Para depois no forno ser assada.

Versejar é processo demorado...
Segue regras, qual fosse um algoritmo.
Não é simples o ofício de escritor!

Verso sáfico, heroico, agalopado?
Essa escolha depende do seu ritmo...
E eis um soneto clássico de amor.
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Guilherme de Freitas

PLUVIAL

Malgrado um certo estio repentino,
E, sendo assim, maior que os outros medos,
Alguma gota molha o meu destino,
E um verso a mais me escorre pelos dedos.

De pingo em pingo, as sílabas combino,
E a estrofe me aparece sem segredos,
E após o fim do ciclo de refino,
Encaro o resultado de olhos ledos.

Centelha audaz que sou da luz divina,
Abraço as leis, a forma e a disciplina
Que exige o bom poeta, quando cria...

E desse modo, um vão papel em branco
Se torna o território sério e franco
No qual se faz chover a poesia.
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Jérson Brito

NA MEDIDA CERTA

Na construção do verso, a melodia 
é requisito um tanto necessário,
ainda mais se o estilo literário
tiver, na forma, o arrimo que inebria.

Embora existam vozes em contrário,
enxergo plena a verve que se alia
ao regramento imposto e à simetria
usada quando grita o imaginário.

A liberdade dentro da clausura
de sílabas contadas, linha a linha,
reputo valiosíssima conquista.

Se estou também no público, à leitura
procuro dar cadência, nesta minha
audácia de encarnar um sonetista.
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José Rodrigues Filho

O POETA E O JABUTI

No intuito de compor um sonetilho 
Nas redondilhas encontrei as rimas,
Não sendo afeito ao cerne de obras-primas 
Muito hesitei até achar o trilho. 

Zelosamente, afasto o trocadilho...
Procuro não focar em pantomimas. 
Coloco nos quartetos coenzimas 
As quais darão formato ao novo filho. 

Escrevo atento aos passos de um quelônio,
Recém-nascido, um novo patrimônio 
Da natureza excelsa e criadora. 

A inspiração aflora nos tercetos...
Relembro estrofes de outros meus sonetos, 
Concluo a peça desafiadora. 
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Lucília Alzira Trindade Decarli

SONHO DE POETA

Quisera poder, num toque de mão, 
levar ao leitor a excelsa magia
que o faça encontrar, talvez, fantasia, 
mas chegue a sentir repleta emoção! 

Nos versos, proponho haver sintonia
que inspire a compor a "eterna canção".
Debalde, almejar tenaz perfeição, 
se entorna, o poema, obscura avaria...

E, pobre de mim, rabisco e rabisco, 
depois os releio e os versos confisco; 
desejo alcançar a intrínseca meta.

Caneta e papel... perscruto no prisma
a força da luz que excede o sofisma
e volto a escrever... Serei um poeta?
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Ricardo Camacho

ARTE MAIOR

Com muito prazer, estanco a agonia,
Compondo a canção, ilustre poema,
Que eleva a expressão na voz que irradia
Encanto, poder e graça suprema.

Pressinto vencer enorme dilema,
Soltando a emoção no verso, alegria,
Que anula a tensão no próprio fonema
Fazendo nascer o som - Melodia!

Lembrando um tenor, conduzo a cadência
Da composição, no firme compasso,
Que leva o leitor em bela fluência 

Num voo retrô, à prístina essência,
Por meio da mão, da pena e do traço
Com esta versão de própria fulgência!
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Fonte: Recanto das Letras. 25.03.2024

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) – Capitulo 29: Isadora de Pampa e Bahia

A chuva foi embora. O sol voltou a brilhar, e Isadora buscava a aquecer-se sentada no meio da estrada. Seu estado chamou a atenção de um viajante moreno e grisalho. 

- Está precisando de ajuda, moça? – disse ele com um sotaque diferente.

- Sim. Mas não sei bem nem o que dizer ou o que pedir. Quem és tu? 

- Me chamo João, venho de Salvador, Bahia. Sou caminhoneiro. Vim fazer uma exportação.

- Como é lá? 

- Salvador? Ôxe! É um lugar lindo.

Isadora observou o céu, o horizonte, se observou maltrapilha, sem seu amor, sem sua mãe... Olha bem para o rapaz na tentativa de perceber se ele era gente ruim. E num impulso, disse: “– Preciso ir para bem longe. Se puder me levar para tua cidade.” 

- Ôxente, menina, é sozinha no mundo?

Isadora silencia...

- Está bem. Parto de volta daqui duas horas. Se quiser eu te levo. 

- Quero, sim. Mas saiba que sou uma mulher de respeito. 

- Não se preocupe, não vou te molestar, não. Deve tá com fome. Na volta te trago um lanche. 

Depois de muitas horas de viagem, Isadora quebra o silêncio. E conta sua trágica história ao novo amigo. 

O caminhoneiro a escuta com atenção. Isadora adormece. E ele, com delicadeza e respeito, protege a moça do frio com um cobertor. 

Quando chegam em Salvador, Isadora deslumbra-se com o lugar, e a chama da esperança de viver dias melhores reacende seu ânimo. 

- Você precisa de um banho, trocar essa roupa, descansar. Vou te levar na casa de uma grande amiga minha, que vai cuidar disso tudo – disse João. 

A fachada da casa era discreta. E foram bem recebidos por uma senhora bem vestida e simpática.  João logo contou abreviadamente o que havia acontecido com sua protegida. 

- Menina, me chamo Branca. Vem, vou cuidar de você – disse a dona da casa. 

Ao adentrar a casa, Isadora observou que havia muitos cômodos, e conversas no interior das portas... “Aqui é uma pensão?”  – perguntou ela. 

Dona Branca riu...

– Vem, menina, precisa de um banho, comida e sono. Vou te mostrar onde fica o banheiro. E ver uma roupa pra você. Depois conversamos. 

Isadora ficou acomodada no quarto, onde recebeu sua refeição. O quarto era pequeno, mas organizado, limpo e com janela. Ela adormeceu no cair da tarde, até o outro dia. Então, buscou pela dona da casa, e adentrou na sala cheia de jovens mulheres conversando, cerca de umas quinze e suspeitou... Aqui é um...

- Sim. Aqui é um cabaré. Não tão famoso quanto o Bataclan, que é o cabaré mais famoso de Salvador, mas distinto e cheio de amor para oferecer. - disse dona Branca. 

As meninas riram.

- Eu não quero ser uma prostituta. 

- Calma, minha filha. Ninguém vai te obrigar a nada, não. Senta, coma, daqui a pouquinho João vem te buscar. Ele quer te mostrar a cidade. 

- E depois? 

- E depois você volta. Se quiser... 

João, com alegria mostrou a bela Salvador à gaúcha dos pampas, que entusiasmou-se com a beleza do lugar. 

Seus olhos atentos não deixaram escapar os detalhes das paisagens daquela Salvador cheia de novidades... E de pessoas agradáveis, simples e sorridentes.

Estava assustada com o fato de ter ido parar num cabaré. Seu coração ficava apertado de pensar na possibilidade de ter se livrado de um canalha para cair nas garras de vários canalhas iguais ou piores do que o Fábio. Mas as paisagens das ruas dispersaram seus temores. Ao se aproximarem da igreja do Bonfim, cânticos à Iansã lhe tomaram todos os sentidos. E ela sorriu.

 Coro de vozes:
Iansã rainha da terra
Oh, Iansã rainha do mar
Tu és a senhora dos ventos
E dona do seu jacutá...   
 
- É procissão em homenagem à Santa – disse João. 

Muitas pessoas, especialmente mulheres vestindo branco e vermelho, com o peito enfeitado de colares de conta, cercavam o cortejo que levava a imagem de Iansã até Mãe Menininha do Gantois. No terreiro, era dia de homenagem à Santa guerreira dos raios. Mas Isadora não sabia quem era Mãe Menininha e nem do que se tratava "um terreiro". Então, pacientemente, João lhe explicou tudo. 

- Vó Gorda disse que Iansã é minha protetora. 

- Vó Gorda?   - perguntou ele.

- É o anjo protetor da minha morada. 

Quando a procissão se distanciou do cenário que tem como protagonista a bela imagem da Basílica do Senhor do Bonfim, eles entraram no templo e fizeram algumas preces em silêncio. Na saída João lhe comprou uma fitinha do Bonfim, que é vendida num mural do lado de fora da igreja. Instruiu Isadora de como fazer um pedido e amarrou a fita no pulso da moça. 

 - João, estou feliz e muito agradecida com teus cuidados e com a beleza deste lugar, mas estou hospedada numa casa onde as moças ganham o pão de cada dia se prostituindo. Elas me fazem lembrar meu pai que destruiu a família torrando dinheiro com mulheres da rua.

- Não as chame assim. Elas não são mulheres da rua. São simplesmente mulheres. Não sinta raiva dessas moças. A maioria delas não faz programa por gostarem. Muitas até nojo sentem de seus clientes, homens autoritários, bêbados, e que por vezes as agridem fisicamente. Elas são meninas que vêm da extrema pobreza, sem instruções, sem oportunidades... Que para sobreviver, tiveram que escolher entre a vida no crime ou fazer a vida nos cabarés onde foram acolhidas. Parecem alegres, mas no fundo são tristes. Você não será obrigada a nada. E logo vou te arranjar um trabalho bom. Mas agora chega de prosa. Tô com o bucho vazio. Vamos comer um acarajé na barraca da baiana? – disse apontando para uma barraquinha colorida. 

 - Nunca comi, mas pelo cheiro, deve ser gostoso. 

- É uma das delícias da Bahia. 

- Sem querer abusar da tua boa vontade, posso fazer um pedido?

- Pede, moça.

- Me leva ao terreiro da Mãe Menininha? 

- Oxente! Levo, sim – disse espantado. 
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continua...
Fonte: Texto enviado pela autora 

Recordando Velhas Canções (Tocando Em Frente)


Almir Sater e Renato Teixeira

Ando devagar
Porque já tive pressa
E levo esse sorriso
Porque já chorei demais

Hoje me sinto mais forte
Mais feliz, quem sabe
Só levo a certeza
De que muito pouco sei
Ou nada sei

Conhecer as manhas
E as manhãs
O sabor das massas
E das maçãs

É preciso amor
Pra poder pulsar
É preciso paz pra poder sorrir
É preciso a chuva para florir

Penso que cumprir a vida
Seja simplesmente
Compreender a marcha
E ir tocando em frente

Como um velho boiadeiro
Levando a boiada
Eu vou tocando os dias
Pela longa estrada, eu vou
Estrada eu sou

Conhecer as manhas
E as manhãs
O sabor das massas
E das maçãs

É preciso amor
Pra poder pulsar
É preciso paz pra poder sorrir
É preciso a chuva para florir

Todo mundo ama um dia
Todo mundo chora
Um dia a gente chega
E no outro vai embora

Cada um de nós compõe a sua história
E cada ser em si carrega o dom de ser capaz
De ser feliz

Conhecer as manhas
E as manhãs
O sabor das massas
E das maçãs

É preciso amor
Pra poder pulsar
É preciso paz pra poder sorrir
É preciso a chuva para florir

Ando devagar
Porque já tive pressa
E levo esse sorriso
Porque já chorei demais

Cada um de nós compõe a sua história
E cada ser em si carrega o dom de ser capaz
E ser feliz
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

A Sabedoria da Simplicidade em 'Tocando Em Frente'
A música 'Tocando Em Frente', interpretada pelo renomado cantor e compositor Almir Sater, é um hino à simplicidade e à sabedoria que se adquire com a experiência de vida. A letra da canção reflete uma filosofia de vida que valoriza o andar devagar, a paciência e a capacidade de sorrir mesmo após ter enfrentado momentos de tristeza. A mensagem central é a de que a vida é um caminho que deve ser percorrido com serenidade, aceitando as lições que cada experiência traz.

A canção utiliza metáforas do cotidiano rural, como a figura do 'velho boiadeiro' que conduz sua boiada, para ilustrar a jornada da vida. Essa analogia ressalta a importância de seguir em frente, dia após dia, com determinação e sem pressa, assim como o boiadeiro que segue sua estrada. A repetição dos versos 'Conhecer as manhas e as manhãs / O sabor das massas e das maçãs' sugere uma apreciação pelas pequenas coisas da vida, pelas experiências sensoriais simples, mas profundamente significativas.

Almir Sater, com sua voz calma e seu inconfundível toque de viola, transmite em 'Tocando Em Frente' uma mensagem de otimismo e resiliência. A música nos lembra que todos passamos por momentos de amor e dor, mas que cada um de nós tem a capacidade de compor sua própria história e encontrar a felicidade. A canção se tornou um clássico da música sertaneja brasileira, tocando o coração de muitos com sua poesia e melodia acolhedora.
(https://www.letras.mus.br/almir-sater/44082/significado.html)

Teófilo Braga (As águias do norte)

(CONTO POLACO)

Harpa sacrossanta, orvalhada pelas lágrimas dos videntes, que repousam sobre ti frontes encanecidas, banhadas no pranto do cativeiro, quando à tarde abandonada na solidão do exílio, à beira da torrente, a aragem vespertina vinha gemer em tuas cordas, o cântico remoto era como o anseio de um coração opresso, ai, que se perde confundido com o rojar das cadeias.

Inclina-te agora em meus braços, e vibra-me um canto de desespero, insofrido, eterno, para acordar a turba, que dorme sob o peso das gargalheiras*. O vento livre saberá levar a toada longínqua, para achar eco no peito dos desgraçados. Pátria! Pátria! És a túnica inconsútil (sem costura) sobre que rodam os dados do infortúnio.

Polônia! Tu és o peito exangue, ferido pela lança do incrédulo. Pudesse o teu sangue dar a vista ao que te fere com mão obstinada. Ao menos, que o tua última arrancada afaste para bem longe o bando dos abutres selvagens que pairam sobre ti, Prometeu, algemado em terra, mas, que ainda nas convulsões da agonia mostra a animação do fogo divino da liberdade.

Oh! Mas o que vale ao poeta desterrado contemplar a ruína da pátria! Para que há de ele pedir à sua harpa um canto de angústia e saudade, se aqueles que o escutam e se sentem fortes para lutar com um esforço sobre-humano, são depois mártires do sublime entusiasmo?

Que tristeza profunda o lembrar-me que o meu poema a Tentação, exaltando os estudantes da Lituânia para sacudirem os tiranos, fez com que os opressores arrojassem para as estepes e minas da Sibéria a flor da mocidade da Polônia! Pobre Karl; ainda tenho aqui a carta em que ele me conta os trabalhos da jornada para o desterro:

De um estudante de Lituânia ao Poeta anônimo da Polônia

«Em todos os tempos a poesia tem sido a expressão dos sentimentos profundos da humanidade; chora com as suas dores, e é ela que vai ao sepulcro das nações proferir o Surge et ambula (levante-se e ande) à raça suplantada pela pressão dos déspotas. Desde os profetas de Israel, e Tirteu e Calino até Rouget de Lisle, Kerner e Poetefi, a poesia tem dirigido as revoluções; é como a coluna de fogo que leva á terra prometida através do errar no deserto.

Nós éramos crianças, animados dos sentimentos mais puros, que a idade não deixa contaminar; chorávamos de mágoa e despeito, com vergonha de vermos envilecida, sob o jugo obscuro dos czares, esta pobre pátria esmagada por um colosso de inércia e barbárie. Um dia apareceu-nos um poema estranho, novo, um grito ansioso em que se exalava uma alma. Pareceu-nos a voz da Polônia que nos chamava em seu desalento; sentimo-nos fortes no primeiro impulso.

Estudávamos em Lituânia; uma noite reunimo-nos para ler o poema. Brilhava em cada rosto um lampejo de cólera e esperança. Cada estrofe era um sobressalto, a ansiedade do sacrifício. Éramos como aqueles crentes dos primeiros séculos do cristianismo, tínhamos a sede do martírio. A noite da conjuração era tempestuosa como os pensamentos que nos agitavam. Juramos ali, com as mãos sobre as estâncias misteriosas que nos vieram despertar do letargo da opressão, abnegar do amor, da família, da vida, por esta desgraçada Polônia. A lâmpada solitária que iluminava o aposento deixava uma penumbra fantástica e terrível, como em um tribunal whemico*; os olhos coruscavam com brilho de alegrias sanguinárias. O entusiasmo precipitava-nos. Sentíamos forças de Atlante, uma audácia e tenacidade para a luta; mas, via-se ao mesmo tempo em cada rosto a sombra, não sei de que pensamento funesto, de uma aspiração irrealizável. Seria uma desgraça iminente?

Quando nos abraçamos como irmãos na mesma crença, para os transes mais dolorosos, correram as lágrimas, ferventes, como nos momentos rápidos de uma despedida para sempre. Havia um silêncio augusto. Parecia que o céu e a terra escutavam o nosso juramento; que a pátria agrilhoada interrompera os lamentos para escutar a voz consoladora de seus filhos, que esperavam o dia da redenção.

Foi então que ela apareceu, Edwige, a mulher que eu amava, o cabelo destrançado pelo vento da noite, cansada, ofegando, sem cores, assustada. Julguei-a uma aparição angelical, que baixava para trazer-nos a palma do martírio, a anunciar os transes deste horto em que estávamos recordando as agonias da Polônia. Como ela estava bela, radiante; era uma profetisa, altiva como Débora quando proclamava às pessoas a lei, à sombra das palmeiras entre Rama e Bethel, sobre as fronteiras de Benjamim e Ephraim. Ficamos suspensos, esperando o hino que havia romper dos lábios selados por um mistério profundo. Como deixou ela a casa de seus pais, nas sombras da noite medonha? Como soube onde estávamos; quem a trouxe aqui? Fora o amor, esta iluminação da segunda vista. Edwige proferiu, depois de alguns instantes de repouso, com a voz entrecortada e trêmula:

— Ainda é tempo! Os soldados russos vêm em busca de nós; sabem da conjuração, e perseguem-nos; poupemo-nos para a hora suprema do resgate.

Depois ela veio para mim e abraçou-me. Ia começar a falar, quando se sentiu na rua o estrépito de armas, e vozeiro de uma soldadesca brutal e desenfreada. Não me custava a vida; mas tê-la a meu lado, ali! vê-la sujeita à irrisão e maldade dos que vinham para prender-nos! Pobre Edwige; ela abraçou-me e sorriu:

—Tens medo? Vejo-te tão pálido! Receias que eu não tenha coragem para corresponder à tua bravura? Eu sou mulher, é verdade. Era ao suspiro de uma mulher que a liberdade romana acordava sempre. Lucrécia e Virgínia ensinaram-me também a ser forte um dia. Karl! Eu sinto que neste instante nos une um amor mais alto e desinteressado, que nada tem das paixões terrenas. Dá-me o abraço que há de fundir numa só as nossas almas para sempre. Agora já te posso dizer como Árria*, se te visse esmorecer no perigo, o que ele disse levando o punhal ao peito: Paete, non dolet (Peto*, não dói).

O tumulto, o som confuso das armas, o tropear dos soldados, não me deixaram ouvi-la mais. Entraram na sala sombria, como uma onda turbulenta que irrompe derrubando os diques e se precipita como um vértice fremente. As armaduras reluziam, e nos causavam a vertigem do terror. Um frio letal escoou-se por mim; lembrou-me lutar para defende-la.

Reinava um silêncio de morte. Já sabíamos a sorte que nos esperava. Depois vieram lançar-nos as cadeias pesadas, as gargalheiras infamantes da escravidão, ultrajando com risos aquele sentimento puro que nos dava constância para o martírio. Era impossível resistir; todo o esforço seria inútil. Deixei passivamente algemarem-me. Um olhar firme de Edwige inspirou-me uma resignação indizível. Não sei que aparência divina, que irradiação sublime, etérea, envolvera o rosto da minha amada, que os soldados não se atreviam a aproximar-se. Seria esse terror, que fazia cair em terra, fulminados, os que tocavam na Arca sacrossanta? Na serenidade altiva que ela mostrava neste instante, conheci-lhe uma resolução extrema; Edwige queria também ser prisioneira, para sofrer comigo as dores do desterro. Ela lançou mão do poema que estava sobre a mesa, e começou a recitar algumas das estrofes mais arrebatadas, com uma voz profética, no tom misterioso de uma sibila. A magia daquela voz sentida prendia; ficaram imóveis, quedos, escutando-a:

Fragmentos de uma Elegia polaca

— «E lentamente, mui lentamente, por detrás do Homem-Deus, avança deslumbrante de beleza e sem vestígios de morte a minha dileta Polônia. — Ela para sobre os umbrais do Sião prometido a todos os povos, e — destas alturas sagradas sua voz retumba, dirigindo-se às nações reunidas muito longe, lá em baixo, nos términos do espaço.

«A mim, a mim, oh vós, raças fraternas! A última luta do derradeiro combate terminou; — os embustes das traições e das mentiras terrestres estão destruídos. — Subi comigo para o reino da paz.» — E o coro das nações lhe responde: «Benção e glória a ti, oh Polônia! Porque ainda que tenhamos todas sofrido, — tu suportaste mais tormentos que nenhuma de nós, — Pela enormidade das injustiças acumuladas sobre ti, conservavas constantemente o inimigo debaixo do raio de Deus! — No transe do martírio, tiravas de teu coração uma vida mais enérgica que a dos teus opressores, — e pelo teu sacrifício nos salvaste. — Benção e glória a ti, oh Polônia!»

Oh! quantas vezes por uma noite sombria do outono, a voz de minha mãe ou de algum antepassado sai do túmulo, e chega até mim para me falar do futuro. — Eis que a este ruído misterioso, visões estranhas me aparecem. — O canto de triunfo soltando-se do peito de milhões de homens, ressoa em derredor. — Os vencedores passam em falanges inumeráveis, — eu vejo as brancas, resplandecentes figuras das irmãs e dos irmãos libertados da escravidão; — a centelha da imortalidade faísca de todas as frontes. — Mesmo sem asas, eles vogam no ar, como se fossem alados; sem coroas brilham como se fossem coroados. — E eu mesmo prossigo no meio de todos, e me sinto em uma espécie de céu desconhecido, antecipado. E, quem sabe? Talvez que a profecia dos meus sonhos se realizasse já sobre o túmulo da Polônia! E não havia senão eu, eu cadáver, que faltava entre os ressuscitados! Oh, através destas grades e destes muros que me fecham como as tábuas de um féretro, o meu espírito se ilumina e se expande ao longe, transpondo o tempo e o espaço! — Sim, eu vejo: além, por toda a parte miríades de estrelas e flores; — o mundo regenerado celebra suas núpcias com a jovem liberdade! — Na aresta dos Alpes, no cimo dos Cárpatos, o céu resplandece com os raios da mesma aurora, — e todos os povos unidos, confundidos, parecem formar um só oceano, por sobre o qual é levado o espirito de Deus (*1).»

Á medida que ia prosseguindo no canto, Edwige, como a Sulamita dos Cantares, comparada à torre que olha para o ocidente, parecia suspensa; o semblante com a graça diáfana de um serafim. Naquela elevação surpreendente, a comoção embaraçou-lhe a voz; não pôde falar; ficou hirta, lívida, como na concentração violenta do êxtase.

Era o gênio da Polônia encarnado em uma mulher que sofria. Edwige ficou silenciosa; nem um queixume, uma lágrima sequer, quando lhe roxearam os pulsos. Quando tornou a si, e conheceu que ia compartilhar comigo a mesma sorte, sorriu, com a expressão divina da alegria dolorosa e da resignação.

Dias depois leram-nos a sentença. Doze anos de desterro e trabalhos na Sibéria. Edwige escutou impassível. Custava-me tanto vê-la sofrer em silêncio; ela fazia um esforço inaudito para não vergar com as dores excessivas; não queria redobrar o meu sofrimento. Oh meu Poeta! Foi então que me convenci de que o homem é o lobo do homem; pior ainda que o lobo cerval, porque espia os segredos da nossa alma, e antes que nos inflijam as sevícias do corpo, torturam-nos o espírito, insultando os sentimentos mais recatados e santos que nos dão coragem nos desalentos da vida.

Partimos todos na carroça dos desterrados. As rajadas do inverno eram cortantes, e tiravam-nos todo o vigor para avançar; depois, vieram amontoando-se os gelos, e nos obrigaram a prosseguir a pé; a desolação dos estepes, por onde passávamos, despertava-nos não sei que simpatia, talvez porque eram uma semelhança visível do abandono e ruínas em que estavam nossas almas.

Edwige, delicada e frágil não podia caminhar mais, via-a desmaiar pouco a pouco; a lividez do sepulcro no semblante desbotado! Parecia-me a flor mimosa, murcha com as geadas da noite. As pancadas do knut, um látego formado de tiras de couro cru e rosetas de ferro, com que a verberavam para adiantar caminho, esgotaram-lhe as forças.

Eu não sei que haja palavras humanas para exprimir a dor e a raiva que senti nesse instante, porque o coração do homem nunca sofreu tanto, para descobrir uma expressão para este infinito da angústia. Edwige nem se atrevia a olhar para mim; depois vi-a cair transida de frio e cansaço; esgotara o último esforço. Quiseram deixa-la sepultada entre o gelo. A noite vinha a fechar-se aspérrima, atroz; eu não podia sequer lembrar-me que o corpo da minha amada ia ser em breve pasto dos abutres. Via-me também já sem forças. Pedi para leva-la aos meus ombros.

Era a loucura e egoísmo do amor, que fazia com que a conduzisse, para sentir ainda agonias mais violentas que a morte.

—«Oh! antes me deixasses sepultada na solidão dos estepes, exposta às aves noturnas, do que vermo-nos agora separados para sempre!» — Disse-me ela a abraçar-me frenética, louca, quando nos separaram, mal que chegamos às minas da Sibéria.

Os meus companheiros do infortúnio não os tornei mais a ver; Edwige foi condenada ao trabalho das minas de mercúrio, muito longe. Não soube mais dela. A mim, enfiaram-me um capote de feltro e desceram-me por uma corda pelas gargantas da terra, por um boqueirão escuro; à medida que ia baixando, ia sentindo vozes confusas, ruído de enxadas. Então, vi na obscuridade profunda a luz baça e mortiça das lâmpadas de segurança, e uma multidão de homens escaveirados, magros; era uma cidade de múmias. Era aquela a minha habitação para doze anos de existência. Admirava-me de ver ali crianças; filhos dos desgraçados obreiros, raquíticos, pequenos, não conheciam a luz do mundo, a vida resumia-se no trabalho insano. As dores que suportava haviam-me embotado o sentimento, tinha a impassibilidade do idiotismo, a mudez do assombro. Às vezes uma lembrança longínqua de Edwige e de minha mãe, a quem não pude dizer ao menos o extremo adeus, me davam a consciência de que ainda vivia; mas não podia aliviar-me com as lágrimas.

Os que me viam nunca se atreveram a perguntar qual o meu crime. Não sei que esperança me prendia à vida, para que me não despedaçasse contra as rochas que ia arrancando. Estava já acostumado à escuridão. Um dia começou a lembrança de Edwige a ocupar-me a imaginação. Seria uma saudade viva? Algum pressentimento? Lembrar-se-ia ela também de mim nesse instante? Julgava-a já morta, criança e débil como era. Sem Edwige, para que queria eu a vida? Oh! se a visse ainda uma vez morreria contente, resignado, perdoando tudo quanto os que se dizem meus semelhantes me fizeram sofrer.

Era uma loucura esta ideia. E continuávamos silenciosos a romper a mina funesta e funda. Começamos a sentir um eco surdo; eram os trabalhadores de outras minas, que se encontravam. Continuei a trabalhar com mais afã, na direção donde vinham os sons abafados.

Encontramo-nos dias depois. Que alegrias, que abraços íntimos entre aqueles sócios da desgraça. Se estivesse ali Edwige! Que fatalidade! O meu desejo era o pressentimento.

«Já te esqueceste de mim?» Senti um abraço sem vigor; fitei nas sombras o vulto, que me falava e me estreitava a si. Era ela, lívida, desconhecida, com a magreza da tuberculose; o mercúrio penetrara-lhe a parte esponjosa dos ossos. Tive horror do ente que amava, era só a compaixão que me prendia a ela.

—«Lembras-te das palavras de Simeão quando na apresentação do templo viu o Messias em seus braços? Hoje digo-te o mesmo, Karl; já posso morrer.»

E eu continuei a viver para ver prolongados a miséria e os flagelos incríveis, que me cercavam. Já não tinha o amor, que alimentava as horas da minha solidão. Edwige tinha-me expirado nos braços; soltara a alma cândida, acrisolada nas tribulações, no último beijo, que recebeu de mim. Daí por diante a vida pareceu-me mais impossível de suportar; eu não vivia, vegetava como o líquen no fundo de uma caverna escura. A imbecilidade proveniente da atonia e dos pesares indescritíveis prolongara-me a existência vegetativa.

Lembrava-me minha mãe. Se a tornaria a ver ainda! Estaria ela já no sepulcro, ralada com a saudade da ausência, cansada de esperar a volta do cativeiro? Sem sucessos, nem distrações, que me preocupassem a vida, cada momento parecia-me um século de desesperos. Estes doze anos foram uma outra existência. Quando voltei à pátria julguei um renascimento; mas tornava a aparecer à luz do mundo para mais provações e dores, porque minha mãe estava morta; a pátria, o que ainda me fazia palpitar o coração com vida, vejo-a esquecida, inerte sob o jugo prepotente da Rússia. Hoje escrevo-lhe, meu Poeta, porque é a única pessoa, que me resta no mundo, e só me prende à vida o juramento, que fiz de imola-la no altar da pátria.—Karl.»

O Poeta anônimo da Polônia produziu com os seus poemas o mesmo que Mickiewich, o autor do Banquete de Walenrood. Só depois de morto é que se soube o seu nome; era o conde Sigismundo de Krasinski. A liberdade da Polônia fora o único ideal da sua inspiração; é ela sempre que transluz nas maravilhas com que enriqueceu a literatura polaca, nos Salmos do Futuro, no Iridion na Comédia Infernal e na Tentação, a que anda ligado este fato que narramos.
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* Notas
Árria = foi uma mulher na Roma Antiga que se tornou famosa por seu suicídio.
Gargalheiras = Coleira de ferro ou madeira, com que se prendiam, para castigar, os escravos.
Peto = marido de Árria.
Whemico = não consegui encontrar o que seria este tribunal. (JF)

[*1] Estrofes XIX, XX, XXI do poema O Último, do conde Sigismundo Krasinski.

Fonte> Teófilo Braga. Contos Phantásticos. Lisboa: Livraria de Antonio Maria Pereira, 1894. Disponível em Domínio Público. Português atualizado por J. Feldman

sexta-feira, 29 de março de 2024

Isabel Furini (Poema 56): Símbolos


 

Carolina Ramos (Redenção)

Se por estas páginas já passaram, cães, gatos, cavalos e até uma borboleta, quem diz que uma águia não pode entrar, sutilmente, no contexto de uma vida, viabilizada por uma página impressa? - Provo que sim, neste miniconto.

REDENÇÃO

A revista chegou-lhe às mãos por acaso, escolhida, entre muitas, numa sala de espera qualquer. O artigo era encimado por apenas uma palavra - Curiosidade. E o que poderá haver de mais oportuno para atrair as atenções do que essa palavra chave?!

Aquela página contava que a águia é uma ave longeva. A mais longeva de todas as aves - chegando a viver cerca de setenta anos! Os primeiros quarenta, representam o seu apogeu, seguido de um período bastante sério que põe à prova o poder de decisão dessa potente criatura.

Chegada ao período crítico, aquela águia sente que suas garras não são mais as mesmas, agora demasiado longas, maleáveis, sem mais lhe oferecerem forças necessárias para segurara presa indispensável à própria manutenção. O bico, agora mais longo, encurvado na ponta, cada vez mais se torna um verdadeiro estorvo, na hora de alimentar-se. E assim, também, as penas volumosas e pesadas – empecilhos evidentes para largos voos.

Da soma de tudo, agiganta-se o impasse revelador: - Deixar-se morrer, ou tentar reverter o problema?!

Bem curto, no entanto, o período de indecisão, antes que a águia se lance ao espaço e ganhe altura, a valer-se, dos parcos recursos que suas asas, já bastante pesadas, ainda lhe oferecem.

Chegada ao alto da montanha, resoluta, a águia bate o bico, forte e seguidamente, contra uma parede de pedra qualquer, até conseguir despedaça-lo. Sem jamais desistir e sem deixar-se abater pela dor lancinante!

- A partir de então, corajosa e dona de uma tenacidade inacreditável, aguarda por cerca de cento e cinquenta dias, até que novo bico torne a crescer, para com ele arrancar, uma a uma, as longas e tortas unhas, permitindo que novas e potentes garras voltem a nascer também, a garantir-lhe defesa e futura subsistência.

Como se isto não bastasse, também as penas velhas e pesadas, que a impediam de voar, são extraídas com estoicismo, complementando a reforma perfeita.

Revigorada, afinal, aquela águia, sem tardança, lança-se ao espaço num autêntico voo de redenção que lhe facultará mais trinta anos de vida intensa e produtiva!

Perplexa, a moça fechou a revista, desinteressada de tudo mais que a mesma pudesse lhe oferecer, além daquele fabuloso artigo.

Ninguém, naquela sala de espera. Ajeitou o corpo cansado na poltrona como em colo de mãe, deixando que as pálpebras descessem devagarinho. Chegava a duvidar daquilo que lera! Seria mesmo possível? Ou... mera ficção?!

Sofrida, por instantes, permitiu que sua vida inteira perpassasse por detrás das pálpebras fechadas, tal como retrocesso de filme de curta mensagem, mostrando-lhe, sem pausas, o quanto vivera e o quanto mais poderia viver se... liberta do peso das asas e das limitações impostas aos próprios voos.

Logo, como num milagre, a nova criatura, meio águia, meio mulher, ergueu-se decidida, atirando-se, de peito aberto, contra as paredes de pedra do seu frágil ego, agora valorizado ante si mesmo.

Arrebentou-se toda! Sofreu o que pensou não suportar!

Mas, estóica, a partir daquele instante, libertou corajosamente aquela ave cativa e triste, há tanto tempo engaiolada dentro dela mesma.

Sem mais sentir nos ombros o peso daquelas tão pesadas "penas", lançou-se no espaço, ao encontro de horizontes promissores, mais amplos, mais ciaros... E muito mais sadios do que aquele que nublava o seu olhar sofrido e que, de-fi-ni-ti-va-men-te, ousava ultrapassar.

Fonte> Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023. Enviado pela autora.

Esopo (A Velha e o Médico)

Uma velha, que tinha ficado cega, chamou um médico e disse-lhe:

- Cure-me da minha cegueira e eu pago-lhe bem. Mas se não me curar, não pagarei nada. Concorda?

O médico aceitou. Todas as semanas vinha à casa dela e aplicava-lhe nos olhos um falso remédio sem qualquer valor. Mas, a cada visita, levava consigo alguma coisa da casa da velha. Acabou por levar tudo o que ela possuía.

Algum tempo depois, finalmente, o médico começou a tratá-la a sério e deu-lhe um remédio que a curou.

Quando a velha voltou a ser capaz de ver, viu que a casa estava vazia e que não poderia pagar ao médico. Este, para cobrar a dívida, levou-a a tribunal.

Diante do juiz, a velha declarou:

- Este homem fala a verdade. Concordei que lhe pagaria se recuperasse a visão. E ele concordou que eu não precisaria de lhe pagar se permanecesse cega. Agora ele diz que eu estou curada. Mas eu digo que continuo cega, porque quando perdi a visão a minha casa estava cheia de objetos que agora não consigo ver!

O juiz deu-lhe razão e a velha ganhou a causa.
 
Moral da História: Quem está pronto a ganhar o que não merece, também deve estar pronto a perder.

Fonte> O Livro de Esopo - Fabulario Português Medieval. Lisboa: Imprensa Nacional, 1906. Publicado conforme a um manuscrito do seculo XV. Disponível em Domínio Público em https://pt.wikisource.org/wiki/O_Livro_de_Esopo

Luiz Damo (Trovas do Sul) LIX


Desde a aurora ao fim do dia
a vida floresce e inflama,
esparramando a harmonia
que, de Deus, a luz emana.
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A planta expele dos galhos,
frutos que à flor teve a causa,
não colherá sonhos falhos
quem ao labor não der pausa.
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As luzes que às madrugadas
desfilam no firmamento,
são grinaldas ancoradas
nas águas do pensamento.
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No mastro, um manto sagrado,
que alado ao vento desfralda,
cobre o dorso desgrenhado
no anteparo da grinalda.
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Faze do teu sonho a ponte
que aponte para o saber
e da busca, outro horizonte,
fonte, onde possas beber.
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De um encontro ocasional,
os nativos se encantaram,
quando Caminha e Cabral
na nova terra aportaram.
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Tem o sono a semelhança
da morte, porém sem causa,
no sono existe a esperança
mas à morte não tem pausa....
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Não faças do teu passado
um celeiro de saudade,
nem do sonho fracassado
razão de infelicidade.
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Quem tem às mãos o poder
nem sempre sabe calar,
agindo expressa o seu ser
mesmo com nada a falar.
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Abri meus olhos. Senhor
e as portas do coração!
Para enxergar vosso amor
sob a luz da conversão.
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Não deixe que as diferenças
suplantem as semelhanças,
nem as rudes desavenças
maculem as esperanças.
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Na mansão de uma amizade
pode haver alguém chorando,
com a mesma intensidade
de quem chora caminhando.
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Dos ramos que se aninharam
partiram os passarinhos,
muitos, não mais retornaram,
para reverem seus ninhos.
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A água pura e cristalina
vinda à mão pela chaleira,
passa pela serpentina
de uma cuia hospitaleira.
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Na vida há quem sonhe ilhado
em ser mar, forte e valente,
mas ignora que ao seu lado
tem um grande continente.
= = = = = = = = = 

Servindo a vários Senhores,
o homem mostra as evidências,
que ao prestar os seus favores
prioriza as preferências.
= = = = = = = = = 

Por impulso o incauto insulta,
com desdém ouve e responde,
revelando a mágoa oculta
que na sua alma se esconde.
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Ao plantares fica esperto,
nunca esperes colher, já,
porque no momento certo
a planta produzirá.
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Quem afirma, não fiz nada.
sem querer erra o conceito,
pois na forma declarada
diz que algo teria feito.
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Nunca aciones o gatilho
para um alvo depredares,
só porque perdera o brilho
pela corrosão dos ares.
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Estão no fundo dos mares
joias raras, sob os lixos,
umas, servindo de altares,
outras, meramente uns nichos.
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Luta sem um vencedor
só tem na literatura,
pois nos campos do labor
quem labuta tem fartura.
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Nunca temas, se o que tens,
pouco tem mudado a vida,
sempre trazes donde vens
muita esperança vivida.
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Há muitas mães esquecidas,
sem lar, semiabandonadas,
outras, tão desconhecidas,
mas todas, por Deus lembradas,
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Mesmo que à vida prescinda
de um duradouro sentido,
nenhuma flor é mais linda
que inteiro, o jardim florido.

Fonte> Luiz Damo. As faces da trova. Caxias do Sul/RS: Ed. Do Autor, 2021. Enviado pelo trovador.