sábado, 16 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 116


Elisa Alderani (A Magia da Noite de Natal)


Quando era criança ninguém tinha medo de andar no escuro, e o caminho a percorrer para chegar à Igreja era bem longo. As sombras das árvores se projetavam à nossa frente, nos rodeavam e nós seguíamos tranquilamente na noite santa para ir à Missa do Galo; assim chamada aqui no Brasil, e que antigamente era celebrada à meia noite. Muitas vezes, nas vésperas do Natal já havia caído a neve, e isso tornava a noite mais silenciosa. O barulho dos passos era abafado; a paisagem linda.

Ao longe se notavam as luzes do pequeno lugarejo, no cume a Igreja, e o clima do verdadeiro do Natal, invadia os nossos corações. As últimas badaladas dos sinos, perdiam-se no ar gelado da montanha.

A gente caminhava às pressas para chegar logo, e depois da celebração, voltava cantando com a alma cheia de júbilo natalino. Havia em nosso ser a felicidade da simplicidade, da paz, da amizade, do calor da família unida, com o espírito cristão.

Os pés ficavam molhados e gelados; chegando, a mãe nos colocava perto do fogão a lenha quentinha deixado abastecido, e ainda emanava calor. Em cima dele havia as grandes panelas, com os caldos, ou com carne já quase assada para o almoço de Natal.

Lembro-me das gostosas comidas com cheiros deliciosos. As horas já haviam passado rapidamente, mas ganhávamos uma fatia de panetone e um pequeno gole de vinho doce. Depois precisávamos deitar logo, por que o Menino Jesus, se nos encontrasse acordados não deixaria presentes, mas na ansiedade era difícil pegar no sono.

Assim se foram os anos da inocência, da pureza e doçura de muitos Natais. Quando na manhã seguinte, debaixo da árvore de pinheiro verdadeiro, encontrávamos nossos presentes, talvez pobres, mas ficávamos muito felizes... logo começávamos brincar. Na cozinha quente os cheiros gostosos do café, dos doces que estavam na mesa misturavam-se com as das tangerinas penduradas na árvore. Havia este costume de pendurar frutas, balas, bombons de chocolates, enfeitados com fitas douradas. Nós escolhíamos qual comer primeiro, era uma festa! Da vidraça da cozinha podíamos ver o jardim; e a neve que havia pousado ao longo da noite, deixando nos galhos das árvores uns lindos bordados, tal qual uma branca e luminosa pintura.

Hoje, sozinha, à frente do meu pequeno presépio, das pequenas imagens antigas, que guardei daquele tempo... Jesus dorme.

A noite aqui não é silenciosa. A véspera de Natal tem outros costumes!

(crônica no jornal “A Cidade”, em 2015, parte publicada na coluna do leitor)

Fonte:
A Autora

Professor Garcia (Décimas ao Ritmo do Velho Galope à Beira-Mar) I


1
Cantando galope, ninguém me segura,
estando em meu barco, jangada ou canoa,
tragando as procelas e o vento da proa,
enfrento a sereia, seu canto e ternura,
as ondas revoltas e a noite mais pura,
as trevas mais negras, eu posso enfrentar...
Meu barco é ligeiro e no meu velejar,
banhado de prata no claro da lua,
enquanto meu barco nas ondas flutua,
eu canto galope na beira do mar!

2
Levanto bem cedo, me ponho de pé,
abraço a procela da noite sombria,
a aurora desperta e a barra do dia,
montada nas ondas, acorda a maré;
eu pego o rosário, me curvo ante a fé,
me entrego a Jesus e começo a rezar,
tenho que partir, pois preciso pescar,
foi tudo que fiz e até hoje ainda faço,
me sinto feliz quando beijo e me abraço
com o velho balanço das ondas do mar!

3
Enquanto o silêncio da noite se agita,
descanso, em meu barco, sentado na proa,
só escuto o barulho da voz da garoa
enublando a lua, no céu tão bonita;
risonha, cintila na paz infinita,
no instante em que escuto a sereia cantar,
eu giro o meu barco, começo a voltar,
com medo da noite e da velha sereia,
prefiro encalhar o meu barco na areia,
dormir sossegado na beira do mar!

4
Cruzei pantanais, muitos lagos e rio,
outros mares na vida, também já cruzei,
no campo eu lutava, na rua eu lutei,
pois essas lembranças jamais silencio;
fazer serenatas em noites de frio,
com meu violão eu sozinho a cantar,
no banco da praça, com a lua a brilhar,
bebia o sereno dos olhos da lua,
e assim que acabava a tristeza da rua,
voltava ao meu barco na beira do mar!

5
Poeta, eu aceito, num gesto bonito,
cantar as belezas que existem no mundo,
cruzar as fronteiras do mar mais profundo,
deixar minhas marcas no chão de arenito;
gravar o meu nome no duro granito,
na crista das ondas a me balançar,
convidar as musas para me beijar,
num gesto bonito, galante e decente,
na sofreguidão de uma tarde morrente,
cantando galope na beira do mar!

6
Só meu bandolim me carrega a incerteza,
nas noites que, insone, adormeço sozinho,
o dengo das cordas, seduz o meu ninho,
e o choro das notas me afasta a tristeza;
depois que desperto, eu esqueço a pobreza
do velho ranchinho e do meu caminhar,
sem luz e sem gás, como é rico o meu lar,
na simplicidade de um bom pescador.
De noite, o meu barco é uma enchente de amor,
molhado de espuma das ondas do mar!

7
Eu gravo o que vejo, na luz da retina,
dos olhos da lua e na paz das estrelas,
cantando, na praça, eu também quero vê-las,
bebendo o sereno da noite divina;
é assim que descrevo a beleza menina
e as rugas do rosto do chão potiguar,
o vento brejeiro que vem balançar
as mãos dos coqueiros de palmas abertas,
que espantam mistérios das noites desertas,
nos morros de areia da beira do mar!

8
O sopro da brisa é meu farto alimento,
e o solo da lira, meu canto infinito,
o toque do sino é meu eco e meu grito
e a minha viola é o meu pensamento;
em tudo que faço, no meu aposento,
eu sinto a ternura de um canto no ar,
respiro e medito e começo a pensar
que a vida que levo é de paz e esplendor…
Derramo alguns versos na fonte do amor
e o resto que sobra, nas águas do mar!

9
Seis horas da tarde, eu contemplo contrito,
meus lindos encantos do templo celeste,
no instante em que o sol, debruçado e sem veste,
desliga o farol que ilumina o infinito;
sem luz e calor, deixa o céu tão bonito,
que a lua sorrindo, começa a brilhar;
é a luz sem reflexo do globo solar,
brilhando outra vez, nos olhares da lua,
que linda e faceira, no espaço flutua,
molhada com os pingos das ondas do mar!

10
A lua, sem roupa, sorrindo ofegante,
provoca ciúmes na noite tão bela,
desfila sozinha a mais linda donzela,
que sempre se esconde no quarto minguante,
seu rosto bonito, de olhar flamejante,
suspira desejos de alguém conquistar,
e eu vivo sozinho tentando abraçar
os braços daquela que abraça o meu chão,
porque quem conhece o luar do sertão,
não sente saudades da beira do mar!

11
Na minha rotina, de noite eu não saio,
porque tenho medo do mal traiçoeiro,
o abraço da noite é um falso escudeiro,
vestido de preto e me vê, de soslaio;
eu fujo das trevas, veloz como um raio,
que corta o infinito na noite estelar,
e sigo as pegadas da paz do meu lar,
que é onde adormeço e desperto feliz;
se a mão que me afaga não faz cicatriz,
me puxa e me banha nas águas do mar!
______________________________

Nota do Blog:
O galope à beira-mar foi criado pelo repentista cearense José Pretinho. Conta-se que ele, após perder um duelo em martelo agalopado, foi retirar-se à beira-mar, e ali, vendo e ouvindo o marulho, imaginou o som de um galope. E fez os versos de onze sílabas (hendecassílabos), com a mesma estrutura de décima (estrofe de dez versos). Manteve o esquema rímico ABBAACCDDC usual no martelo agalopado. Uma exigência no galope à beira-mar é que o último verso sempre termine com a palavra "mar", no mínimo, sendo preferível terminar com "galope na beira do mar" (wikipedia)


Fonte:
Francisco Garcia de Araújo. Cantigas do meu cantar. Natal/RN: CJA Edições, 2017.
Livro enviado pelo autor.

Carolina Ramos (A Árvore de Natal)


Virou para trás os ponteiros do tempo. Os filhos, outra vez pequeninos… o marido, ainda cheio de vida. As festas, do fim do ano, pincelando um toque de Natal, em cada canto do casarão. Toque festivo, que atingia até mesmo as lixeiras, enfeitadas, não raro, com os cacos de aljôfar. Restos dos enfeites que os dedos afoitos deixavam escapar.

Meia noite… as meninas de camisola nova, pés descalços, lembravam anjos barrocos, a conduzir na concha das mãos, a imagem do Menino Deus, naquele sublime instante, introduzido na singeleza do presépio.

Revezavam-se os filhos. Cada ano, um era o escolhido para a honrosa missão de levar o Santo Menino até o seu leito de palhas. Com os demais, vinham os Reis Magos e os regalos.

Quatro filhos. Dois pares. Quase podia ouvir- lhes a voz afinada; coro angelical, que o tempo não conseguia apagar: "Noite Feliz!.. Noite de Paz!..."

As recordações lhe traziam de volta a imagem da árvore de Natal varrendo o chão com os galhos iluminados, enriquecidos de mimos! Uma lindeza! Lá no alto, a estrela esplendorosa, evocando aquela de Belém. Essa mesma estrela, tão usada, tinha agora em mãos e, surpreendentemente, guardava ainda resquícios do primitivo brilho. Material bom! Hoje, com pouco uso, tudo se desfazia irremediavelmente. Artimanhas do comércio, para favorecer o consumismo.

Tirou da caixa as relíquias de muitos Natais. Relíquias que o tempo se esforçava por destroçar e que ela defendia com máximo carinho. Uma verdadeira caixa de surpresas: — as guirlandas de papel laminado, as bolas de aljôfar, frágeis e multicoloridas; os castiçais minúsculos, com prendedores que os fixavam aos galhos, já em desuso, uma vez que as velinhas que os complementavam, eram agora substituídas, com vantagem, pelas lâmpadas pisca-pisca, mais práticas e mais alegres e que também ali estavam, em profusão. Os sinos, de todos os tamanhos, cobertos de purpurina prateada; sequer estava esquecido o indispensável pacote de algodão para lembrar os flocos de neve — costume tolo, ligado às origens. Tolo, sim, mas quem conseguiria imaginar um Natal sem esse toque sugestivo, ainda que tendenciosamente europeu? Ou sem a visão, também importada, do alegre e corado Papai Noel, barbas branquinhas, ainda que postiças, suando em bicas dentro da fantasia vermelha, anti-tropical? Aquele Pai Noel, sonho de todas as crianças, a sacudir as banhas no riso obrigatório, ao afagar as cabecinhas dos diabretes espremidos à sua volta, na disputa a confeitos e brinquedos. Sempre o espírito do Natal a escorregar do Presépio, para perder-se nesses descaminhos inevitáveis!

A caixa, uma vez vazia, deixava de alimentar lembranças. Na verdade, faltava o principal — a Árvore de Natal propriamente dita, que se esquecera de comprar. Tinha apenas os acessórios, que, sem os galhos do pinheiro, nada diziam.

Neste ano, a velha senhora não tivera estimulo nem entusiasmo algum que a levasse, como das vezes anteriores, à escolha de um arbusto apropriado. E para quê?! Os filhos, longe. Mais preocupados em sobreviver do que propriamente em viver. Não havia sapatos nem meias de crianças, à espera de presentes, ao pé do fogão ou da lareira artificial. Os regalos já haviam seguido, via postal, com zelosa antecedência e endereço certo. A recíproca também já lhe viera bater à porta, trazida pelo carteiro...

Tão bom, quando, coração em alvoroço, aguardava o toque de campainha de cada um. Cada filho tinha um jeito diferente de se anunciar. Era capaz de identificá-los todos. Tivera convites, sim, mas, aceitar um deles seria desprestigiar outros. Isto jamais faria!

Coração de mãe é coração de mãe, ama por igual, sem se dar o direito de escolhas. E, também, a coragem para as grandes viagens lhe fugia pelo fôlego curto, que coração materno também se desgasta de tanto amar. Resolvera ficar.

O primeiro Natal em que estaria só. Absolutamente só! Tão só quanto Deus deve sentir-Se, mercê da distância em que, na maioria das vezes, O colocam os desmandos dos filhos.

Devagarinho, como quem se deleita em criar alguma coisa, enrolou nos braços as guirlandas prateadas. Enganchou, aqui e ali, as mais belas bolas coloridas. Olhou-se no espelho, que duplicava as dimensões da sala. Sorriu, prendendo aos cabelos nevados a linda estrela, já de brilho baço como seus próprios olhos. Espiralou ao redor do corpo a fieira de lâmpadas coloridas. Deixou que os braços ornados pendessem ao longo da silhueta, levemente separados, imitando a curvatura dos galhos do pinheiro. Sentiu-se uma Árvore de Natal perfeita! Sorriu para a imagem que o espelho refletia. Se o Santo de Assis criara o primeiro presépio vivo, sem qualquer pretensão, ela animara, ou melhor, humanizara o primeiro pinheiro de Natal!

Deixou que o pranto lavasse mansamente os traços melancólicos que a solidão esboçara no cansaço do seu rosto.

Com extremo cuidado, ligou à tomada a fieira de lâmpadas adormecidas. Que as luzes completassem a sua arte improvisada.

Um estalo seco e as lampadazinhas multicoloridas esplenderam, por um segundo, com maior fulgor do que nunca! Apoteótico segundo, antes de se espatifarem, irremediavelmente, quando tombou ao chão, fulminada, aquela humana Árvore de Natal!

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 115


Francisco José Pessoa (Mucuripe)


São 4h30... o sol bocejando se espreguiça com um ar de quem está indisposto para a lida. O mar do Mucuripe espelha aquele parto divino. Sob sinais de cruz e Ave-Marias mal recitadas, após uma última cusparada em terra, que traz o ranço do fumo mastigado, sai o jangadeiro a peitar pequenas ondas que teimam uma após outra roçar-se nas areias mornas daquela praia já cantada e encantada em prosa e verso.

O destino, como todo destino que se preza, só Deus sabe...

Na proa, viaja a incerteza da volta, quando o pensamento do caboclo de tez queimada se volta para a terra e vê o acenamento do filho único escanchado no colo da mãe que ora em silêncio, entregando a Deus o leme daquela teimosa e valente embarcação.

Acompanhando o caminhar do sol, sentindo-o no mudar da própria sombra que se desenha no terreiro do quintal de casa, a mulher do jangadeiro rastreia entre pensamentos sãos e orações a frágil jangada domada por um braço forte,

Depois que o sol se põe a pino e inicia seu caminho de descanso pro lado de cá da terra, a mulher esperançosa espera o marido que cedo partiu, apruma o olhar pra risca, e o pensar pra bem longe... lá pra trás dela.

Tinge-se o céu de vermelho pálido. O sol, acanhado, com cara de sono, deixa uns poucos rastros de sua luz como para que alumiar o caminho daquela jangada teimosa que, de volta, roça o peito na areia da praia encantada trazendo consigo o destino incerto da partida.

Corpos se entrelaçam à beira-mar. O chapéu do pescador sai-lhe da cabeça num respeitoso agradecimento a Deus. A pescaria rendeu e o pirão escaldado espera o cangulo para a alegria dos dois.

De braços dados, o casal segue no rumo da tapera onde o filho dorme a sono solto. A espera foi cansativa.

Fonte:
Francisco José Pessoa de Andrade Reis. Isso é coisa do Pessoa: em prosa e verso. Fortaleza/CE: Íris, 2013.
Livro enviado pelo autor.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) 11


Glosando A. A. de Assis

VOCÊ E SEU BRILHO!

MOTE:

Prometi-lhe, amada minha,
mil estrelas, as mais belas.
Bobagem... Você sozinha
brilha mais que todas elas!


GLOSA:
Prometi-lhe, amada minha,
meu amor, todo, lhe dar,
fazê-la a minha rainha,
para todo o sempre a amar!

Procurei, pelo infinito,
mil estrelas, as mais belas,
(e um cometa bem bonito)
pra ver você, junto delas!

Meu coração, adivinha!
Para que buscar estrelas?
Bobagem... Você sozinha
me faz, todas elas, vê-las!

Pois seu brilho é especial,
deixa luzentes sequelas,
e no espaço sideral,
brilha mais que todas elas!

Glosando Abel B. Pereira

ME ENCONTRO E ME PERCO…


MOTE:
Eu me encontro na emoção
dos meus versos - sou feliz!
Mas, me perco na canção
de versos que eu nunca fiz.


GLOSA:
Eu me encontro na emoção

sempre que estou escrevendo
e vibra o meu coração,
ver alguém, meus versos, lendo!

Navego no mar aberto
dos meus versos - sou feliz!
Pois sinto, serão, decerto
os versos que um dia quis!

Eles dão satisfação
e me trazem alegrias,
mas, me perco na canção
de outras tantas nostalgias!

No meio, então, dessa dor
achando, dela, a raiz,
chego a sentir o sabor
de versos que eu nunca fiz.

Glosando Antonio Carlos Teixeira Pinto

CAI A TARDE


MOTE:
Cai a tarde! Que tristeza!
soluça o mar… E o farol
parece uma vela acesa,
ante a agonia do Sol!


GLOSA:
Cai a tarde! Que tristeza!

se aproxima a escuridão
e o Sol, com sua beleza,
não vejo brilhar mais, não!

Neste momento Indeciso
soluça o mar… E o farol
sabe que agora é preciso
iluminar o arrebol!

Unindo-se à natureza,
o farol, numa magia,
parece uma vela acesa,
numa chama de alegria!

Segue iluminando o mar
deixa ver o caracol
querendo ao mar agradar,
ante a agonia do Sol!

Glosando Antonio Manoel Abreu Sardenberg

VOU CAMINHANDO

MOTE:
Pelas estradas da vida
vou caminhando sem fim,
em busca de uma guarida,
e alguém que goste de mim!

GLOSA:
Pelas estradas da vida
eu continuo à procura
dessa emoção tão querida,
que chamamos de ternura!

Sigo só, na escuridão,
vou caminhando sem fim,
e o meu pobre coração
já nem quer bater, assim!!

Por isso, a minha partida;
parto em busca de carinho,
em busca de uma guarida,
de uma sombra em meu caminho!

E essa busca que angustia,
quero que termine, enfim:
Quero encontrar a alegria
e alguém que goste de mim!

Glosando Arlindo Tadeu Hagen

FICA

MOTE:
Eu te imploro, por favor
não insistas nesse adeus,
se não for por meu amor,
fica pelo amor de Deus!


GLOSA:
Eu te imploro, por favor
ouve esta voz que te fala,
que sobrevêm do interior
de minha alma que não cala!

Meu amor te peço, agora,
não insistas nesse adeus,
o meu coração te adora,
quero ser os sonhos teus!

Se por meu amor não for,
se não ligares pra mim,
se não for por meu amor,
que seja por outro fim!

Escuta, sente a emoção,
dos sentidos brados meus,
te imploro de coração:
Fica pelo amor de Deus!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XXXIV. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós.  2007.

Nilto Maciel (Impossível Contar a História de Palma)


Ao regressar de Palma, passou Martinando dias e dias aborrecido. Não o incomodava ter visto os primos ainda ameninados e o tio quase igual a antes, como sempre tinha sido. Admirava-se da prodigalidade mansa daqueles adolescentes, como se o pai fosse muito rico. Todo o povo sabia da avareza do velho Augusto: até dormia na bodega, com medo de ser roubado. Nunca permitiu a presença demorada dos filhos no pequeno estabelecimento. Não fossem chupar os bombons expostos à venda. Tudo medido e pesado, para que pudessem estudar e ser gente na vida. Talvez doutores.

Depois de satisfazer a ânsia de redescoberta da terra natal, Martinando procurou o tio. Sobre a mesinha, onde guardava o dinheiro, duas carteiras de cigarro abertas, como se o tio não tivesse deixado de fumar, depois de ter ido parar num hospital, acometido pela bronquite secular. “Vim só comprar cigarro”, apressou-se a dizer, abanando a cédula na direção do comerciante.

Na verdade, Martinando se sentia cansado de tanto andar. Preferia descansar os pés, embora para ouvir as perguntas de sempre: “Como vai o Carlos? Você já se formou? E a comadre Clarice?” Havia andado muito, subindo e descendo ladeiras, no meio dos matos, percorrendo as velhas ruas, onde brincara de bola-de-meia. Tudo diferente do que tinha imaginado. Parecia uma terra estranha, tantos montes, tantos rios, tanta floresta. Nunca um passeio por aqueles campos. Sempre entre as paredes das casas da cidade. Quando muito, antes de se mudar para a capital, pequenas viagens aos sítios de parentes e aderentes situados do lado direito de quem entrava na cidade. Via tudo com olhos novos, com interesse de pesquisador. Como um médico legista diante do cadáver da própria mãe. Não, não uma visão assim tão trágica. Sentia até umas pontadas de nativismo nos olhos. Os primos nunca haviam saído de lá e faziam papel de cicerones. Davam indicações, explicavam nomes e apelidos, sérios e preocupados em servir ao primo viajado.

Martinando encontrou o livro por acaso. Porque esperava colher informações sobre a história de Palma nas pessoas mais velhas e nas construções antigas. Acompanhado de alguns primos, vasculhou grotas para saber os nomes dos sítios, dos rios e das árvores.  Depois dispensou a companhia deles e andou só pela cidade. Ora, conhecia Palma tanto quanto eles. Diante de cada prédio de aparência antiga, sobrados e casarões, parava, olhos de turista, caderno e caneta à mão.

Da fachada de um sobrado copiou o ano de 1912; na parede da frente de um casarão leu a inscrição “Solar do Capitão Pedro Vasconcelos – 1915”; e assim por diante. Aquelas informações serviriam para contar parte da história de Palma. Ultimamente não parava de sonhar com a velha cidade. Agora acreditava nos sonhos. Porque os sonhos não surgiam do acaso, mas de uma exigência objetiva do intelecto. Ora, como sonhar com aqueles prédios e aquelas inscrições, se seu intelecto não exigisse a história de Palma?

Cansado de procurar inscrições, entrou numa bodega, à toa, como poderia ter ficado num banco de praça. O bodegueiro não lhe parecia estranho, como a maioria das pessoas da cidade. Porém, não lhe sabia o nome. Aquele rosto envelhecido habitava a memória de Martinando. Aborreceu-se de novo. Não, não se sentia aborrecido com o incidente público provocado pelo bodegueiro ao avistar Caetano e gritar: “Diga a Madalena que venha pagar os quarenta cruzeiros que me deve.” Apenas desapontado. O comerciante teria feito aquilo para insultar toda a sua família. Cobrar aos gritos uma continha de nada, ora essa! Como se gritasse: “Olhe, sua família, tão numerosa e tão conceituada, compra fiado e não paga porque não pode.”

Caetano parou e se voltou para dizer: “Mamãe não tem dinheiro nenhum.” Talvez até quisesse dar melhores explicações, mas, vendo o primo, continuou a caminhada. “Então diga a ela que arranje dinheiro hoje à noite com os machos.”

Martinando teve ímpetos de se retirar e abandonar o livro. No entanto, continuou a acariciá-lo, folheá-lo, desejá-lo. Onde encontraria aquela obra raríssima, senão ali? Permaneceu. E era a lembrança desse incidente que o aborrecia. Por que não comprou o livro? Tivesse perdido a cerimônia, pedido dinheiro emprestado ao tio, e pronto. Um livro velho destinado a enrolar sabão e fumo numa bodega de interior, transformado em raridade de antiquário! E se tivesse roubado o objeto? Ora, o nome da família iria para onde com mais essa? Por que não pediu o livro ao comerciante, se se tratava apenas de papel para enrolar sabão?

Martinando se aborrecia com o destino. Por que parou naquela bodega e não noutra? Ou em todas havia livros importantes sobre o balcão, destinados a embrulhar sabão, fumo?

Pelo hábito de querer saber de que tratam os livros, folheou aquele pedaço da história de Palma, sem saber como se comportar diante de tamanho achado. Aquele livro teria respostas a todas as suas indagações históricas. Desde os primórdios de Palma. A aldeia indígena transformada em vila, depois em cidade. Tudo em detalhes. A primeira cabana, a primeira capela, o primeiro sobrado. “É para vender?” Não devia ter demonstrado tanto interesse pelo livro. O papel velho virou mercadoria de valor. Surgia o ato mercantil. “Oitenta cruzeiros. É o último exemplar.”

Numa foto, a Praça da Matriz vista de longe e do alto. Talvez de outra igreja ou de um avião. Formando um triângulo, viam-se três igrejas. Martinando não se lembrava da existência de duas delas. “Demoliram estas duas, ficou só a matriz,” explicou o bodegueiro. “Livro raro. Toda a história de Palma.”

Fonte:
Nilto Maciel. Tempos de Mula Preta, contos. Secretaria da Cultura do Ceará: 1981.
Livro enviado pelo autor

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 114



Rachel de Queiroz (Os Bondes)

    

Pode ser fantasia, papel leva tudo, diz o povo, mas das gentis novidades que os jornais prometem por obra do novo Prefeito do Rio, a que mais me entusiasma será a volta dos bondes, imagina, os bondes. Nem acredito, a tanto não chegam as minhas veleidades. Bonde circulando pela rua, a gente esperando no poste de listra branca, escalando o alto estribo, instalando-se no velho banco de madeira, abrindo o jornal e deixando o motorneiro correr, o vento nos banhando o rosto... E o dito motorneiro badalando na sua campa delém-delém! E o condutor tilintando os níqueis no nosso nariz distraído, faz favor! — e marcando as passagens na caixa sonora do teto, e a gente puxando a sineta para descer e os pingentes circunavegando os carros — não, não ouso acreditar. Bonde, o mais civilizado veículo concebido pela técnica, bonde que não esquenta, não queima óleo, não vomita fumaça, não buzina, não sai do caminho, não ultrapassa os outros, não abalroa, não agride, não vira em canal, não despenca de viaduto, não caça pedestre, não fura pneu, não quebra barra de direção, não dá tranco para acomodar a carga humana, não depende de um motorista sofrendo de psicotécnica, mas de um motorneiro pachorrento, bonde, ah, bonde, não sei o que diga em teu louvor, já que, plagiando Manuel Bandeira, por mais que te louvemos nunca te louvaremos bem!

Sim, sei que são sonhos. Mas como para Deus nada é impossível, por que não um milagre? Um anjo pode inspirar o Prefeito e ele começar, tentativamente, pondo bondinhos a correr pela periferia da cidade, subúrbios, ilhas, esses lugares cariocas mais pacíficos. Na Ilha do Governador, por exemplo, de onde tiraram os bondes foi um crime, com aquelas ruas estreitíssimas à beira- mar, onde só o bonde, preso ao trilho, circulava por elas sem risco. Depois dos ônibus, é só verem as estatísticas, morre lá mais gente atropelada do que de assalto.

E a experiência dando certo em Campo Grande, Santa Cruz — os felizardos! por que não ousar uma tentativa pelo Leblon, talvez um circular pela Lagoa, seria muito turístico. Ou, ainda melhor, uma linha Leblon-Arpoador, ao longo da praia, de onde seriam expulsos os automóveis; nos bondes, os banhistas poderiam circular até de calção molhado — devolvendo-se ao uso a venerável instituição do taioba.

Falei em taioba. Alguém já pensou que, depois de extintos os bondes de segunda classe, não existe mais maneira alguma de pobre carregar seus fardos — lavadeira a sua trouxa, mascate a sua mala, vassoureiro as suas vassouras, verdureiro a sua cesta? Que foi que botaram em substituição do bonde taioba? Nada, claro. Quem pôde, comprou a sua bicicleta ou triciclo para atravancar ainda mais o tráfego. Pobre cada dia tem menos vez.

Nos tempos de eu mocinha, em Fortaleza, era de bonde que se namorava. O primeiro sinal de interesse que o rapaz dava à moça era pagar a passagem dela. Se ela aceitava, estava começado o namoro e o galã tinha direito de vir sentar-se ao seu lado, ou pendurar no balaústre, junto, se ela ia na ponta do banco. Menina namoradeira escolhia sempre a ponta do banco, para facilitar.

Em Belo Horizonte, no bonde que, do Bar do Ponto, subia a Rua da Bahia, quando o condutor ficava quieto lá atrás, já se sabia: era o Senador Melo Viana que vinha naquele bonde e pagava a lotação inteira. Todos se viravam em procura do perfil severo do senador que lia o seu jornal; de um lado e de outro pipocavam discretos agradecimentos mineiros e o senador se mantinha impassível embora, naturalmente, gratificadíssimo.

As moças da Tijuca aqui no Rio, que vinham trabalhar na cidade, bordavam no trajeto de bonde grande parte do seu enxoval; muita velha senhora tijucana, hoje em dia, há de lembrar-se disso. As de Ipanema não sei, nunca me contaram. Mas todas essas galanterias se acabaram. Hoje, em transporte coletivo, só se escuta palavrão, resmungos e ranger de dentes.

Então, ante a dura realidade, ante os dinossauros assassinos disparados pelo asfalto, deixem-me sonhar com os bondes. Nesta cidade feroz, seria cada bonde uma ilha de segurança, de amável fraternidade, sempre cabia mais um! ai, saudades.

Nosso reino por um bonde!

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

A. A. de Assis (Poemas Diversos) 2


VERSO MORTO

Aguardo o nascimento de um verso...
Mas o verso não sai,
Está vivo
chorando
na ponta de meus dedos
ansioso de luz.
Mas o verso não sai.
Meus dedos o prendem.
Egoístas.
Covardes,
Querem ficar com o meu verso
que se demorou tanto a gerar.
O papel espera.
A máquina à postos.
As teclas em linha.
Mas o verso não sai.
os dedos o prendem.
Egoístas.
Covardes.
Um verso tão pequenino.
Um nome apenas.
E os dedos o prendem.
E o verso não sai.
Morre no ventre da inspiração.
Dedos sem alma.
Egoístas.
Covardes.
Pobre verso...
Nunca mais gerarei outro igual...

TELEFONE

Alô, meu bem… é você?
Oh! Meu amor... há quanto tempo!
Sim… sim…mas com muita saudade…
… você nem imagina…

Tudo me trazendo lembranças suas:
as músicas…
A paisagem…
as noites alegres…
e o seu rostinho teimoso
levantando-se na fumaça
nascida de meu cigarro…

Anhan… em tudo, você.

Oh! meu amor… foi mesmo?
Não acredito… seria muita coincidência…
… está bem… está bem…

Hoje à noite… espere-me à janela,
vestida de branco…
e use aquele perfume
do primeiro dia de nosso amor…
Até logo, querida… outro para você…
… de estalar…

INVÍDIA

Tenho inveja daquela estrelinha
que pisca de longe
num buraquinho furado no céu.

Quisera ser como aquela estrelinha
que vive distante
sem ouvir a presença do mundo.

Esconder-me entre as outras estrelinhas
que bailam contentes
na pista feiticeira do infinito.

Brincar com as outras estrelinhas
que se namoram
nos segredos impenetráveis do universo.

Tenho inveja daquela estrelinha
que pisca de longe
num buraquinho furado no céu.
Que vive
e namora
e que baila
com muitas outras estrelinhas
na pista feiticeira do infinito…

UBINAM *

Fui buscar-te
na minha saudade
e encontrei somente o vazio.

Nos meus sonhos:
nem lá te encontrei,
que até dos meus sonhos fugiste.

Fui buscar-te
em noites de estrelas
e a noite escondeu-me o teu rosto.

Fui buscar-te nas madrugadas
e nas tardes auriluzentes.

… Não estavas na fantasia,
tampouco nas ilusões…

Fugiste,
levando
contigo
teu beijo,
teus olhos,
levando
tudo.

Fugiste,
deixando
comigo
saudade,
tristeza,
e um verso
mudo.
___________________
Nota do poeta:
* Ubinam – é uma expressão adverbial em latim. Significa "onde está?"


ALUCINAÇÃO

Um rosto vago
substancia-se
na intimidade do meu subconsciente.

Caminha ao encontro do meu beijo…
fala… ouço-lhe perfeitamente a voz…
abraça-me…
dá-me outro beijo… mais longo… mais quente…

Depois
a pouquinho e pouquinho
abstrai-se
vagamente
deixando um desejo insatisfeito
na intimidade do meu subconsciente…

SERENATA

Neblina densa
envolve um poema
nos segredos da madrugada.

Vozes do vento
quentes
confusas
sopram canções
que se perdem na serenata.

Dois vultos passeiam na praia:
mãos entrelaçadas
cabelos soltos ao beijo da brisa
tecidos leves
alvíssimos
voando…
quatro pés morenos machucando a areia
compondo os versos de um poema
feito de vozes e corpos
que cantam e dançam nos segredos da madrugada.

Uma onda egoísta
sobe à praia…
… recolhe o poema…
… afoga-o…

Fonte:
A. A. de Assis. Robson (Robson 60 anos 1959 – 2019). 2. ed. Maringá/PR: A.R. Publisher, 2019.
Livro entregue pelo autor no lançamento da edição do livro, em 8 de novembro de 2019, na FLIM (Festa Literária Internacional de Maringá)

Contos e Lendas do Mundo (Tribo Caiapó: O Fogo e o Jaguar)

Existem muitas versões diferentes deste mito nas várias tribos dos Caiapós, porém todas elas contam como o povo descobriu o segredo do fogo e começou a cozinhar os seus alimentos.

No tempo em que as pessoas secavam carne ao sol, para depois ser mais fácil mastigá-la, um homem e um rapaz partiram para a caça. A certa altura, o primeiro avistou um ninho de arara no alto de um rochedo escarpado.

- Botoque, tens de subir lá cima para veres se naquele ninho há ovos ordenou ao rapaz.

- Porque hei de ser eu? - perguntou Botoque. - Tu és mais crescido e forte.

- Precisamente por isso! - exclamou o homem. - Esta tarefa é a indicada para uma pessoa pequena.

Botoque tentou escalar o rochedo, porém, não tinha onde apoiar as mãos e os pés.

- Não consigo! - queixou-se.

- Não desistas com essa facilidade! - aconselhou-o o homem, que era marido da irmã de Botoque. - Precisamos de te fazer uma escada.

Procurou no mato em volta, até encontrar o tronco de uma árvore caída.

- Achei! - exclamou. - Ajuda-me a arrastar este tronco para a clareira. Botoque e o cunhado começaram a abrir saliências na madeira morta para improvisar uma espécie de escada, enquanto, no ar, por cima deles, um par de araras voava em círculo, soltando guinchos de alarme.

Depois de terminarem, o homem e o rapaz arrastaram o tronco até ao rochedo e apoiaram-no contra a sua superfície.

Botoque percorreu o comprimento do tronco com os olhos, desde o chão até mesmo ao cimo, que chegava exatamente à beira do sítio onde as araras tinham feito o seu ninho. Tinha muito que subir.

- Achas que sou mesmo capaz de subir isto tudo até lá cima? - perguntou, nervoso.

- Claro que sim - respondeu o cunhado. - Eu seguro no tronco cá embaixo, para o tornar firme.

Botoque, francamente relutante, foi subindo até chegar ao topo. Saltou do tronco para cima da saliência rochosa e olhou para o ninho.

- Quantos ovos vês? - perguntou-lhe o homem lá de baixo.

Botoque mal podia acreditar nos seus olhos. O ninho continha apenas duas pedras arredondadas.

- Nenhum! - gritou em resposta, inclinando-se para pegar nas pedras.

- Nesse caso, o que tens tu nas mãos? - perguntou o cunhado, fazendo pala com a mão sobre os olhos, para ver o que Botoque estava a fazer.

- Pedras! - gritou Botoque de novo. - Devem ter caído do alto do rochedo.

- Estás a mentir! - gritou o homem. - O irmão da minha mulher é um miúdo mentiroso! Tens aí dois belos ovos de arara e queres ficar com eles só para ti.

Mal Botoque pousou o pé na primeira saliência da escada, com a intenção de descer, o cunhado, enraivecido, começou a balança-la.

- Para com isso! - gritou o rapaz, em pânico. - Não estou a mentir. Agarrou-se ao tronco com as duas mãos e deixou escapar as pedras, que caíram mesmo em cima do cunhado furibundo.

- Como te atreves a atirar-me pedras! - gritou o homem quando uma delas o atingiu na cabeça. Cambaleou para trás e largou o tronco de árvore, que se estatelou no meio do chão fazendo uma barulheira infernal e partindo-se ao meio. Não seria de admirar que o cunhado de Botoque a tivesse largado de propósito, de tão furioso que estava.

Felizmente para Botoque, este ainda teve tempo para voltar apressadamente para cima da plataforma rochosa antes de a escada improvisada tombar. Mas infelizmente, ele estava agora preso lá em cima, na plataforma, impossibilitado de descer.

- Socorro! - gritou. - Ajudem-me!

O cunhado, no entanto, não lhe prestou qualquer atenção e foi-se embora.

Ao chegar à aldeia, mentiu em relação a Botoque, dizendo que o rapaz não lhe obedecera e correra a esconder-se no mato.

Botoque ficou sozinho dias a fio, na estreita saliência do rochedo. As araras, assustadas com a sua presença, abandonaram o ninho. Botoque passou muita fome e frio, não tardando a ficar reduzido a pele e osso. O seu corpo desenhava uma estranha sombra no chão poeirento que se estendia em baixo.

Foi então que, um dia, um jaguar - um enorme gato selvagem - que ia a passar, reparou na sombra e, pensando tratar-se de alguma criatura esquisita, tentou atirar-se a ela. De cada vez que saltava, Botoque encolhia-se contra a parede do rochedo e a sua sombra deixava de se ver no chão.

Intrigado, o jaguar olhou para cima e foi então que reparou em Botoque.

- Quem és tu? - perguntou.

- Sou um ser humano - respondeu Botoque.

- Não sabia que os humanos viviam em ninhos feitos no meio das rochas – observou o jaguar que, à semelhança de todos os grandes gatos, caminhava bem assente sobre as suas quatro patas. Subiu então pela parede rochosa, encontrando apoio em sítios que os humanos jamais teriam descoberto.

Botoque contou-lhe a traição do seu cunhado, mas, quando o grande gato lhe sugeriu que subisse para cima do seu dorso, sentiu-se receoso.

- Confia em mim - disse-lhe o jaguar. - Quem te traiu foram os da tua espécie, não os da minha. Vais comigo para minha casa e passas a ser como um filho para mim.

Botoque subiu então para o dorso do jaguar e depressa chegaram a casa deste. No meio do chão via-se um tronco de jatobá a arder exuberantemente.

- Que é aquilo? - perguntou Botoque, que nunca vira tamanha magia. As chamas de cores brilhantes pareciam dançar diante dos seus olhos.

Também crepitavam e transmitiam calor.

- Chama-se fogo - informou o jaguar. - Serve para cozinhar a comida.

- Cozinhar? - admirou-se Botoque, que nunca ouvira semelhante palavra. Como os humanos não conheciam o segredo do fogo, comiam tudo cru.

- Já vais ver - respondeu o jaguar, chamando a mulher.

- Quem trazes aí? - perguntou-lhe ela.

- Apresento-te o Botoque - disse o jaguar. - Foi traído pelos da sua própria espécie. Portanto, resolvi adotá-lo como nosso filho.

- Mas daqui a pouco teremos um filho mesmo nosso - insurgiu-se a mulher do jaguar, que esperava uma cria, mirando Botoque à luz das chamas tremeluzentes.

- Nesse caso ficaremos com dois filhos - retorquiu o jaguar, dando a conversa por terminada. - Agora vamos comer.

Foi assim que Botoque se tornou o primeiro do seu povo - provavelmente dos seres humanos - a comer carne cozinhada ao lume. Ficava deliciosa! Não só era mais fácil de mastigar do que a crua, como também ganhava muito mais sabor. Foi a melhor refeição que o rapaz já comera na vida. Nessa noite foi dormir, repleto e feliz, ao pé da fogueira, aquecido pelo seu calor.

Na manhã seguinte, Botoque acordou e viu que o jaguar lhe fizera um arco e flechas - uma arma jamais vista por nenhum humano - e os dois foram, rapaz e animal, caçar juntos. Tornaram-se grandes amigos, o que já não acontecia em relação à mulher do jaguar.

Sempre que ficava sozinha com Botoque, arreganhava-lhe os dentes e mostrava-lhe as garras. Não o deixava aproximar-se da carne e havia mesmo ocasiões em que o rapaz ficava sem comer. Não lhe agradava nada ter aquele novo «filho» em sua casa.

Certa manhã, depois de o jaguar partir para a caça, rosnou a Botoque com tal ferocidade que ele agarrou no arco e nas flechas e disparou-lhe uma para a pata.

Botoque, horrorizado com o que fizera, achou que chegara a altura de regressar à aldeia e juntar-se aos da sua própria espécie.

Agarrou num bocado de carne cozinhada e seguiu apressadamente para casa.

Ao chegar à aldeia, a família recebeu-o com muita alegria... com exceção do cunhado. Quando todos o imaginavam morto, eis que voltava com uma história fantástica sobre certo jaguar e algo chamado fogo. Os mais velhos provaram a carne cozinhada e admitiram que nunca nada lhes soubera tão bem.

Ficaram maravilhados diante do arco e das flechas e concordaram que o tal jaguar era, sem dúvida, uma criatura muito esperta.

- Temos de ter um pouco desse fogo para nós - disse um dos anciãos.

Os habitantes da aldeia reuniram então alguns animais a fim de lhes pedir ajuda, e em seguida traçaram os seus planos.

Atravessaram furtivamente a floresta, em direção à casa do jaguar. Ali chegados, um tapir carregou com o tronco em fogo nos costados e, a coberto da escuridão, voltaram todos para a aldeia.

O jaguar, que estivera a observá-los de entre as sombras, sentiu-se profundamente triste. Tratara Botoque com bondade e, no entanto, fora traído. Jurou então nunca mais caçar com arco e flechas e servir-se apenas dos dentes e das garras, decidindo igualmente jamais voltar a comer carne cozinhada, limitando-se à crua. O único fogo que voltou a sentir depois do acontecido foi uma raiva chamejante dentro de si contra os humanos - criaturas que traem não só os outros animais como também os da sua própria espécie.

Botoque e os aldeões, por outro lado, passaram a dispor do fogo para iluminar a escuridão, comer carne cozinhada e aquecer-se nas noites frias.

Fonte:
Mitos e Lendas Sul Americanas.

Projeto Apparere – Coletânea de Natal (Prazo: 17 de Novembro)


Coletânea de Natal (Temática sugerida por: Renata Pereira Gonçalves e Luiz Loureiro).

As inscrições se encerram em 17 de Novembro.

Sua participação não terá nenhum custo!

Regulamento da Coletânea de Natal

Buscamos para esta Coletânea Contos, Crônicas, Poemas, Roteiro falando sobre o Natal e suas diferentes facetas. Momentos bons ou talvez não tão bons vividos no dia de Natal, mas certamente um momento inesquecível. Qual seu momento de Natal que gostaria de dividir com o mundo?? Os textos poderão ser de qualquer gênero (Poesia, Trova, Haikai, Conto, Crônica, Roteiro, etc.), pois o objetivo é termos uma obra “monotemática e multiestilo”.

Objetivo:


Estimular a produção literária brasileira, valorizar novos talentos e dar visibilidade aos Escritores, Poetas, Contistas, Cronistas e etc.

Considerando que a participação é Gratuita, objetivamos ter uma grande quantidade de inscrições de modo a podermos fazer uma seleção de obras com altíssima qualidade.

Inscrições:

- As inscrições deverão ser feitas única e exclusivamente através do preenchimento do formulário ao final da página, em http://www.apparere.com.br/regulamento-coletanea-natal.php.

Regulamento de Participação (quem e como participar):


- Poderão participar Escritores, Poetas, Contistas e Cronistas maiores de 18 anos de qualquer nacionalidade, residentes no Brasil ou no exterior com documentação brasileira, e seus trabalhos deverão ser obrigatoriamente escritos em língua portuguesa (o que não impede o uso de termos estrangeiros no texto).

- Os participantes farão seus cadastros no formulário de inscrição abaixo, na página http://www.apparere.com.br/regulamento-coletanea-natal.php.

- Selecionaremos um mínimo de 40 participantes para esta Coletânea e esse número variará em função da qualidade de obras inscritas.

- Autor deverá usar seu nome legítimo (verdadeiro) no cadastro, entretanto, se desejar, poderá utilizar seu nome artístico ou pseudônimo na publicação da Coletânea, para isso deverá colocá-lo junto ao texto enviado.

- Cada participante poderá inscrever uma única Obra por Coletânea, podendo participar de outras Coletâneas.

- A temática da Obras deverá estar em linha com o tema da Coletânea com o objetivo acima definido, sendo que a criatividade e imaginação do escritor darão o toque e estilo ao trabalho.

- Não há exigência de que a Obra (poesia, conto, crônica, etc.) seja inédita, podendo já ter sido publicada, exceto em outra Coletânea do Projeto Apparere.

- É de inteira responsabilidade do Autor a correção ortográfica/revisão do texto ou textos enviados para esta Coletânea, sendo este inclusive um dos critérios de seleção. Desta forma não será feita nova revisão do texto.

- As Obras (poesia, conto, crônica, etc.) deverão conter título, sendo que a não observância dessa exigência excluirá a Obra da avaliação.

- As obras inscritas serão analisadas e selecionadas mediante avaliação de profissionais nomeados pelo Projeto Apparere, cujas decisões serão soberanas e irrecorríveis.

- O envio do texto será feito única e exclusivamente através desta página, através do formulário abaixo.

- A obra deverá estar em arquivo Word(.doc ou .docx) fonte Times New Roman ou Arial, tamanho 11.

Custos de Participação:

- A participação nesta Coletânea não ensejará em nenhum custo aos participantes, portanto será Gratuita.

- Também não há nenhuma obrigatoriedade de aquisição nem de exemplares e nem de serviços oferecidos pela Apparere e/ou pela PerSe.

Divulgação e Lançamento da Coletânea:

- O Lançamento da Coletânea será Online, com uma data para início das vendas dos livros.

- Antes do Lançamento será feita campanha de divulgação, contendo:

    . E-mail Marketing para a Base de clientes da Apparere e da PerSe.
    . Banners e nosso site.
    . Divulgação através de nossas Redes Sociais.
    . Assessoria de Imprensa.
    . Envio de Material de Divulgação aos Participantes para que esses divulguem em suas Redes Sociais e através de e-mail aos conhecidos.

Direitos Autorais:

- Não haverá cessão de Direitos Autorais, ou seja, os trabalhos continuarão pertencendo a seus autores, entretanto os Escritores/Autores/Poetas autorizam a comercialização de sua obra através da Coletânea, abdicando de qualquer remuneração sobre sua obra.

- Os Escritores/Autores/Poetas participantes responderão legalmente e individualmente sobre plágio, publicação não autorizada, calúnia, difamação e não autoria, isentando a PerSe e o Projeto Apparere de qualquer responsabilidade sobre o conteúdo enviado para a Coletânea.

- É de total responsabilidade dos participantes a veracidade dos dados fornecidos à organização.

- Todos os participantes de antemão ficam cientes e dão permissão e autorização para a publicação e comercialização de sua Obra (poesia, conto, crônica, etc.), e a veiculação na mídia de seus nomes, imagens e textos, em sites, pela PerSe e pela Apparere, desde que dentro do contexto das Coletâneas do Projeto Apparere e para benefício da maior visibilidade da obra e seu alcance junto ao leitor.

Sobre as Características e as Vendas dos Livros:

- A Coletânea será composta dos textos selecionados e de minibiografia dos participantes.

- Para a Capa da Coletânea faremos um concurso com designers que desejarem participar, e quem escolherá a capa da Coletânea serão os Autores que estiverem participando.

- Esta será impressa em Livro com as seguintes características: Brochura Formato 14x21; Miolo em Papel Polem 80g, impresso em uma cor; Capa Cartão 250g com orelhas impressa a 4 cores e laminação brilho/fosco.

- A Comercialização do livro impresso da Coletânea se dará através da Loja Online da Perse.

- Os participantes poderão adquirir os livros impressos por valor sempre inferior ao Preço de Venda da Loja Online, desde que em volume mínimo de 10 exemplares. Para isso deverá solicitar orçamento, através do e-mail do Projeto.

- Os participantes poderão adquirir os livros impressos por valor sempre inferior ao Preço de Venda da Loja Online, desde que em volume mínimo de 10 exemplares. Para isso deverá solicitar orçamento, através do e-mail do Projeto.

- Os participantes poderão adquirir os livros impressos por valor sempre inferior ao Preço de Venda da Loja Online posteriormente divulgado.

- A Comercialização da Coletânea também será feita no formato eBook (PDF e ePub) através da Loja OnLine da PerSe e também através da Plataforma de Terceiros parceiros da PerSe

- O livro impresso da Coletânea poderá ser colocado em comercialização nas Feiras e Bienais, em estande da própria PerSe, quando esta vier a participar.

- O livro terá registro no ISBN.

Cronograma Geral da Coletânea:

- Final das inscrições: 17/11/2019
- Divulgação aos selecionados: 25/11/2019
- Data de Lançamento e Início das Vendas: 10/12/2019

Observações Gerais:

- Dúvidas relacionadas a esta Coletânea e seu regulamento poderão ser enviados para o e-mail: apparere@perse.com.br

- Todos os contatos entre o Projeto Apparere e os Participantes serão realizados através de e-mail. Portanto os participantes devem ficar atentos.

- Todas as dúvidas e casos omissos neste regulamento serão analisados por uma equipe da PerSe e do Projeto Apparere, e sua decisão será irrecorrível.

- O Projeto Apparere, reserva-se o direito de alterar qualquer item desta Coletânea, bem como interrompê-la, se necessário for, fazendo a comunicação expressa para os participantes.

- Não é permitida a participação nas Coletâneas de funcionários da PerSe e do Projeto Apparere.

- A participação nesta Coletânea implica na aceitação total e irrestrita de todos os itens deste regulamento.

- As obras não selecionadas para a Coletânea serão destruídas e apagadas das bases de dados do Projeto Apparere, para fins de segurança.

Nesse caldeirão de nacionalidades e imigrantes chamado Brasil, certamente existem milhões dessas histórias para serem contadas, até mesmo dentro de nossas famílias. Conte-nos a sua!!

Forte abraço,
Equipe Apparere

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 113


Luiz Poeta (Bença, Pai)


Sabe, pai... quando fui visitá-lo lá no pé da serra do Pico da Pedra Branca, naquele sítio onde você morava e me presenteou com aquela caneta prateada, e as lágrimas rolaram no seu rosto moreno, sinceramente, não reparei muito na caneta, pois meu maior presente mesmo foi a sua sensibilidade...

Esforcei-me muito para não chorar também, quando recebi o seu abraço, guardado há tanto tempo no seu misterioso silêncio.

Hoje, lembro-me de muitas coisas interessantes: recordo-me, por exemplo, do dia em que uma cobra coral atravessou a nossa sala quando almoçávamos naquela casa de três cômodos (sala, quarta e cozinha) no Morro do Retiro, cm Bangu, onde morávamos, e você apenas disse: - Deixe que ela vai embora.

E ela foi, pai... era linda como a vida e venenosa como o mundo, mas não picou ninguém, apenas sumiu na porta da cozinha, levando com ela um pedaço feliz da nossa história suburbana.

Quando você e minha mãe se separaram, foi uma festa: eu e meu irmão ajudamos a carregar alguns móveis e roupas para a casa da minha avó pensando que estávamos pregando uma peça no senhor. Nem sentimos a separação. Se fossemos mais socializados e morássemos num condomínio, certamente alguém sugeriria que algum psicólogo nos orientasse para que suportássemos o afastamento familiar, mas como éramos crianças habitantes de um morro repleto de pessoas pobres e felizes, nem nos preocupamos, porque tudo era muito natural, inclusive o banheiro coletivo que fazíamos fila para usar e o tanque cujas águas eram recolhidas lá embaixo e levadas morro acima para que todas as lavadeiras, inclusive minha mãe realizassem seu ofício: lavar, passar e costurar para as grã-finas.

Sabe, pai... às vezes, por mais que alguns filósofos e intelectualóides tentem provar o contrário, a ignorância ajuda-nos a sobreviver. Não saber o que se passa à nossa volta - queiramos ou não - é uma ingênua e feliz forma de sobrevivência. Então, cada um foi pro seu lado. Você arranjou logo uma outra mulher e mais dois irmãos para nós. Minha mãe foi morar com um viúvo que tinha seis filhos. Passamos a ser oito dividindo ruidosamente as fatias de uma fritada... e viva a abençoada ignorância!

E a vida veio e foi pegando a gente de jeito: o mundo, repleto de convites... o tempo instigando nossa mocidade... a sua vida naquele quase eterno indo e vindo da Fábrica Bangu. Até que fui visitá-lo, pai, e conheci seu sitiozinho, suas galinhas, seu pomar... tudo muito simplesinho... como nossa vida sempre foi naquele morro. Amei ouvir os mesmos passarinhos: tizius, coleiras, biquinhos, sanhaços... e o bem-te-vi celebrando o nosso melhor encontro. Falei que estava estudando e que seria professor de literatura ou jornalista... disse inclusive que tocava violão e você me falou da sua flauta de bambu e dos seus poemas... que orgulho, pai, saber que herdei de você o dom da música e da poesia.

Um dia, pai... quando trabalhava no Hospital Sousa Aguiar, tive que socorrer um paciente especial. Uma kombi subiu a calçada e atropelou um ciclista que ia para a fábrica de tecidos. Infelizmente, era você, pai.

Corri, entretanto não cheguei a tempo; enviaram-no para o Instituto Médico Legal sem identificação e eu tive que ir lá para reconhecê-lo e não foi difícil: havia um ferimento muito pequenino na sua testa e você estava bem, pai: o mesmo rosto tranquilo querendo mostrar aquele riso tão serenamente misterioso...

Foi a minha segunda visita, pai. Acho que demorei muito, porém o seu sorriso nunca me abandona. Ele chega como um som de flauta de bambu ou uma inspiração para uma poesia.

Hoje, recebo sua visita, pai... e aproveito a oportunidade para dizer-lhe que ainda tenho aquela caneta prateada – sem tinta - porém aquelas suas lágrimas inundam meus olhos e trazem você com seu sorriso parecidissimo com o meu... quando quero chorar.

Pobre não diz que ama. Pobre ama com gestos. Por isso, pai, no seu dia, prefiro chorar meu melhor sorriso no dia da celebração da sua vida na minha vida.

Como se dizia lá no morro: - Bença, pai.

Fonte:
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. 1.ed. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Luiz Gonzaga da Silva (Trova e Cidadania) 3 - Abraço


A cidadania começa com um abraço. O abraço é uma poderosa expressão de afeto. É o corpo falando sua linguagem particular para transmitir emoção. Não existe gesto mais significativo. É um estender de mãos e braços que nos envolve e nos aproxima. Infelizmente, o mundo da tecnologia e a relação fetichista com as coisas que esta produz, torna o abraço um gesto cada vez mais raro.

Hoje é simples ir à Lua,
fica ali... basta um voozinho.,,
Proeza é cruzar a rua
para abraçar o vizinho!
A. A. de Assis - PR

Mas o abraço é aconchego, abrigo, amizade. Pode ser um antídoto à tristeza, à solidão. Estender os braços, abraçar alguém, significa proteção e acolhimento. Faz parte da nossa cultura. Braços abertos remetem a uma origem natural e biológica, remetem à mãe que abriga o filho. É o que recomendam os nossos trovadores.

Abraço, expressão de afeto
que sintetiza amizade;
gesto de emoção repleto
de amor e fraternidade.
Gonzaga da Silva - RN

Minhas trovas são abraços.
Mil braços vou abraçar
nos mil infinitos laços
que a trova sabe engendrar.
Roza de Oliveira - PR

Um abraço com frequência
sempre muito amor nos traz,
ele destrói a violência,
constrói um mundo de paz!
Maria da Graça Stinglin de Araújo - PR

A amizade verdadeira
é infinita como o espaço,
mas se estreita e cabe, inteira,
nos limites de um abraço.
Waldir Neves - RJ

Se os elos de nossos braços
não mais se unirem na vida,
seremos sempre pedaços
de uma corrente partida.
Cezário Brandi Filho - MG

Um abraço carinhoso,
em qualquer situação,
é remédio milagroso...
Não tem contraindicação!
Istela Marina de Souza Gotelipe Lima – PR

O abraço bem apertado
encerra terna magia,
é belo gesto de agrado,
sentimental sintonia.
Beatriz Cartaxo Cotta - MG

Quando unimos nossos braços,
aos braços de outros irmãos,
sentimos que os nossos laços
enfrentam todos os nãos!
Gislaine Canales - RS

Fonte:
Luiz Gonzaga da Silva (org.). Trova e Cidadania. Natal/RN, abril de 2019.
Livro enviado pelo autor.

domingo, 10 de novembro de 2019

Arthur de Azevedo (Vovô Andrade)


Ele aparecera um belo dia na casa de pensão de Dona Eugênia, acompanhado de três baús e um pequeno cofre de ferro. Pedira o aposento mais barato, e regateara o preço da comida, porque, dizia ele, estava habituado a tomar uma única refeição por dia, e parca, muito parca.

Ninguém sabia de onde vinha aquele velho, nem ele o dizia, conquanto não fosse precisamente um taciturno. Gostava de dar à língua, mas quando algum abelhudo o interrogava sobre a sua vida, ele não respondia, dando a entender apenas, por meias palavras, que passara por sérios dissabores, que tinha sofrido muito e mudara de terra para que ninguém lhe lembrasse o passado.

Sabia-se apenas que se chamava Andrade, era português, e emigrara muito criança para uma das nossas províncias onde viveu perto de sessenta anos.

Não consentia entrassem no seu quarto que ele próprio varria e espanava, deixando-se ficar horas e horas sozinho, fechado à chave, abrindo e remexendo o cofre e os baús.

Um dos hóspedes, o Braguinha, guarda-livros de uma casa importante, afirmou ouvir no aposento do velho o tilintar de moedas de ouro.

– Aquilo é uma espécie de tio Gaspar, dos Sinos de Corneville – afirmava o dito Braguinha com uma convicção que se comunicou aos outros hóspedes.
*

Mas podia lá ser! O velho Andrade tinha a roupa no fio, o chapéu surrado, os sapatos a rir, e era com um suspiro doloroso e profundo que pagava, no fim do mês, a sua módica pensão.
*

A dona da casa, que era viúva, e tinha três filhos, três bonitos rapazes, o mais velho dos quais contava apenas treze anos, também se convenceu de que o seu novo hóspede era um avarento sórdido; intimá-lo-ia, talvez, a procurar cômodo noutra parte, se ele não se tivesse afeiçoado desde logo aos três meninos, mostrando-lhes uma simpatia fora do comum, contando-lhes histórias que os divertiam. Quem meus filhos beija minha boca adoça.

– Adoro as crianças – dizia o velho a Dona Eugênia. – Que quer? Não tenho mais ninguém sobre a terra: sou completamente só.

– Só? Pois nem um parente?…

– Nem um aderente, minha senhora! A morte levou-me quantos eu amava, e esqueceu-se
de mim neste mundo de atribulações e misérias.
*

Havia um negociante, o Barbosa, sujeito de meia idade, compadre da Dona Eugênia, que a visitava miúdo e a assistia com os seus conselhos de homem prático. As más línguas diziam que esse amigo do defunto era alguma coisa mais que um simples conselheiro, porém sobre esse ponto não tenho nenhuma indicação exata, nem ele importa à minha narrativa.

A verdade é que, com a morte do marido, Dona Eugênia se achou numa situação muito precária, e foi o compadre quem lhe forneceu o capital necessário para o estabelecimento da casa de pensão, que prosperava.

Um dia em que Dona Eugênia lhe disse que a presença do misterioso velhote a aborrecia, e ela já o teria posto a andar, se ele se não mostrasse tão amigo dos rapazes, o Barbosa retorquiu:

– Pô-lo a andar? Que lembrança! Pelo contrário: conserve-o. Este hóspede foi a fortuna que lhe entrou em casa!

– A fortuna?

– A fortuna, sim! É um velho rico e avarento, que não tem herdeiros… Pô-lo fora! Que ideia! Trate-o com todo o carinho, e faça com que seus filhos o respeitem e o amem.

Naquela casa o Barbosa tinha sempre razão. Poucos dias depois, Dona Eugênia oferecia ao velho Andrade, pelo mesmo preço, um aposento maior, mais espaçoso, mais arejado, com boa mobília, colchão de arame e duas janelas dizendo para o jardim.

Fez mais: obrigou-o, com bons modos, a tomar duas refeições por dia, como os demais hóspedes, e pela manhã mandava-lhe chocolate ou café com leite e biscoitos.

O velho derramava lágrimas de reconhecimento, admirando-se, dizia ele, de tanta bondade para com um pobre diabo inútil, que não tinha onde cair morto.

Dona Eugênia conseguiu, com a habilidade de um diplomata, saber o dia em que fazia anos o velho, e nesse dia o pobre homem foi presenteado pelos menos com roupa e calçado. Agora não lhe faltava nada.

O Braguinha, vendo que o velho simpatizava com ele, e na esperança de ser contemplado por sua morte, começou também a mimoseá-lo com guloseimas, charutos finos, livros interessantes, jornais ilustrados, etc.

Entretanto, o velho não modificou os seus hábitos de solidão. Ninguém lhe entrava no quarto onde continuava diariamente, durante horas e horas – a abrir e fechar o cofre e os baús.

Um dia, quando ele ia pagar a Dona Eugênia a sua pensão, esta disse-lhe:

– Não se ofenda com ~ que lhe vou pedir: guarde o seu dinheiro; não tem que pagar coisa alguma; a sua mensalidade não me faz ficar mais rica nem mais pobre; quero que o senhor seja considerado nesta casa como pessoa da família.
*

A situação durou assim muito tempo. O velho Andrade passava uma vida de lorde, tratado a vela de libra.

Agora manifestava desejos, apetecia coisas, e bastava a mais leve insinuação para ser logo presenteado tanto pela viúva como pelo Braguinha.

Este foi afastado a conselho do prudente Barbosa. Era um concorrente perigoso. Tantas ‘fizeram que o guarda-livros foi obrigado a mudar-se, não deixando, contudo, de visitar o velho todas as vezes que o podia fazer, porque a viúva sequestrava o seu precioso hóspede.
*

Já estava o Andrade havia dois anos na casa de pensão, quando uma noite, achando-se a sós com Dona Eugênia, disse-lhe:

– Quero fazer-lhe urna comunicação, minha santa protetora. Estou velho ~ posso morrer de um momento para outro…

– Não diga isso; o senhor tem para dar e levar!

– Há lá no meu quarto um cofre de ferro cuja chave está sempre comigo. Esse cofre é um absurdo, uma fantasia, porque nada tenho senão quatro patacas e umas bugigangas sem valor. Pois bem; previno-a de que lá dentro está o meu testamento… – O seu testamento! dirá a senhora; mas você não tem o que deixar! – Pois tenho. sim, senhora – tendo naqueles baús muitos objetos, de nenhum valor, é verdade, mas que, se eu fechasse os olhos sem ter feito as minhas disposições testamentárias, seriam arrecadados pelo consulado português e vendidos em hasta pública. É isso que desejo evitar, dando destino ao que é meu.

Essa revelação fez com que redobrassem os carinhos que cercavam o velho. Levavam-no aos teatros, às festas, aos passeios; enchiam-no de marmeladas e vinhos finos. Os meninos habituaram-se a chamar-lhe "vovô Andrade".

E o hóspede tornou-se caro. Só não lhe davam médico e botica, porque tinha uma saúde de ferro, e nunca precisou disso.

E sempre a mesma reserva, sempre o mesmo mistério sobre o seu passado; não havia meio de lhe arrancar uma confidência!
*

Dona Eugênia começou a impacientar-se:

– Este velho é capaz de nos enterrar a todos!

– Tenha paciência; ature-o, que há de receber capital e juros acumulados – dizia o Barbosa. – Naquela idade o homenzinho não pode ir muito longe.

E não foi.

Justamente no dia em que se completavam cinco anos que era hóspede da casa de pensão, vovô Andrade caiu fulminado por uma apoplexia. Para festejar o quinto aniversário das suas relações, Dona Eugênia obsequiara-o com um opíparo jantar, abundantemente regado e ele comeu e bebeu demais.

Os meninos que já estavam crescidos (o mais velho ia fazer dezoito anos) choraram sinceramente. A viúva, insofrida, quis abrir logo o cofre, e tê-lo-ia feito se o discreto Barbosa lho não obstasse.

– Não mexa em coisa alguma. Vou chamar quem de direito.

Veio a autoridade consular, que abriu o cofre. Este continha, efetivamente, um invólucro subscritado com estas palavras: "Meu testamento", e cerca de trezentos mil réis em notas do Tesouro e moedas de prata e ouro, as tais que tilintavam aos ouvidos do Braguinha.

Dois baús estavam cheios de ferros velhos, trapos, coisas inúteis, e o outro continha objetos que representavam algum valor: a roupa e os demais presentes com que o vovô Andrade tinha sido durante cinco anos obsequiado na casa de pensão.

O testamento dizia:

"Achando-me septuagenário e reduzido à miséria, sem um parente, sem um amigo, depois de uma vida inteira de trabalhos e infortúnios, tinha que optar entre a mendicidade e o suicídio.

Não optei por uma nem por outra coisa: mudei de terra, fingi-me rico e avarento, bastante para isso dois velhos baús e um cofre de ferro, último vestígio de melhores tempos.

Graças a esse ardil, encontrei tudo quanto me faltava, e mais alguma coisa.

Uns dirão que fui tratante; dirão outros que fui filósofo. Para mim é o mesmo.

Dentro do cofre encontrarão a quantia necessária para o meu enterro".
*

Quem se lavou em água de rosas foi o Braguinha.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Vários.

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XXIX


TÃO SIMPLES ESTE AMOR ...

 Tão simples este amor nasceu... Nós nem notamos
 que era amor e afeição que aos poucos nos prendia...
 O amor, - é aquela flor que engrinalda dois ramos
 aos esponsais de luz do sol de cada dia!

 Dois ramos, - eu e tu, - e as horas desfolhamos
 numa doce, irrequieta e impensada alegria,
 - e assim vamos vivendo, e a viver, acenamos
 sonhos verdes aos céus azuis da fantasia!

 Tão simples este amor nasceu... Tal como nasce
 um beijo em tua boca, um riso em tua face,
 uma estrela no céu... ou uma flor de um botão.. .

 Nem era necessário mesmo eu te falar,
 se já o tens transformado em luz no teu olhar,
 e eu, já o sinto a cantar, dentro do coração!

TEMPLO PAGÃO

Quando inteira te despes, - os teus ombros nus
modelados de luar, de areias e de luz;

os teus seios pequenos, trêmulos e ousados,
como frutos maduros, quentes, sazonados;

e os teus curvos quadris esculturais, e as ondas
das nádegas carnosas, cheias e redondas;

e o detalhe das pernas firmes, que eu contemplo
como a duas colunas áticas de um templo;

e a borboleta fulva, de asas de veludo
imóveis e espalmadas no teu claro ventre;

quando inteira te despes aos meus olhos, - tudo
é um convite de amor a que eu viva, a que eu entre

para rezar no templo escondido e velado
que há no teu corpo esplêndido e marmorizado

uma oração pagã, olímpica e sensual,
em glorificação da beleza imortal!

UM DIA...
   
Um dia ... E para nós há sempre um dia
que tudo modifica de repente,
dando outro rumo, inesperadamente,
ao caminho que a gente percorria.

E então, a hora impensada de alegria
se transforma em tristeza rudemente,
- ou a dor se desfaz - e a alma sente
imprevisto prazer que não sentia.

Ouço falar assim desde menino
e me deixo ficar, sempre esperando
por esse estranho dia do destino...

E às vezes, esta espera me intimida,
porque não sei o que trará, nem quando
chegará esse dia à minha vida!

UMA PALAVRA, UM GESTO...

Não quiseste, - ou quem sabe? ... vacilaste na hora
em que esperei de ti uma palavra, um gesto...
- bastaria um olhar quando me fui embora,
um olhar... e eu feliz entenderia o resto...

Mas, não. Nem um olhar, num um vago protesto,
em um tremor na voz de quem sofre e não chora...
Ah! teria bastado uma palavra, um gesto,
para tudo, afinal, ser diferente agora...

Parti! levou-me a vida, ao léu, e redemoinho...
Hoje, volto, - e tu me olhas a falar de amor
e me entregas as mãos num gesto de carinho...

E evito teu olhar... E não me manifesto...
- É que, já não te posso dar, seja o que for,
nem mesmo uma palavra de esperança, um gesto…

VAIDADE

Tua vaidade é como um deus antigo
exige sacrifícios aos seus pés...
Olhar-te, é desafiar algum perigo,
amar-te, é procurar algum revés...

Olhei-te, e desde então teus passos sigo...
Amei-te, e mesmo assim. não sei quem és...
Meu amor, pobre amor, quase o maldigo,
talvez seja outra vitima a teus pés...

Amores, esperanças e desejos
ardem nos castiçais dessa vaidade
ao incenso sensual que há nos teus beijos.. .

Eis que te trago aqui meu coração.
Já de nada me serve, se em verdade
converteu-se a tão fútil religião!

VARIAÇÕES SOBRE A VIDA...

1
Gota d’água transparente
que brilha, cresce... e que cai!
Assim a vida de gente
que um instante se vai !

2
A Vida, - mistério vão
sombra agora, depois luz,
- estranho traço de união
ligando um berço... a uma cruz !

3
A Vida – uma onda que avança
e volta, - vai-vem do mar...
Quando vai, quanta esperança !
Quanta amargura, ao voltar !

4
A Vida, ansiosa escalada
sobre a paisagem do mundo...
Tanto esforço para nada
se há sempre abismo no fundo !

5
Ás vezes penso que a vida
essa vida – besta vida! –
coisa sem finalidade
que há tanta gente a querer

6
Ás vezes penso que a vida
que há tanta gente a querer,
só existe, - indefinida –
pra gente poder morrer…

VENTO...

Teu amor entrou na minha vida
violentamente,
como um sopro de vento abrindo uma janela
de repente.

Teu amor desarrumou meu Destino,
arrancou das paredes velhos retratos queridos,
e quebrou uma jarra no canto da minha
alma,
cheia de rosas,
cheia de sonhos...

Depois...
Teu amor saiu da minha vida, de repente,
como um sopro de vento fechando uma porta
violentamente…

VINGANÇA

Ontem eu a possuí ... e você não é minha!
Paradoxo talvez, mas tudo aconteceu ...
Em pensamento, o beijo eu colhia, tinha
o sabor desse beijo que você não deu ...

De olhos cerrados, louco, a sua imagem vinha
com a força do que é real e se impôs ao meu "eu" ...
E o corpo que eu tocava e a minha mão sustinha,
na sombra, aos meus sentidos cegos - era o seu!

Ontem por mais que a ideia seja estranha e louca,
- você foi minha enfim!... apertei-a ao meu peito...
desmanchei seus cabelos... machuquei-lhe a boca!

E possuía afinal, - num ímpeto criador –
vingando o meu orgulho abatido e desfeito
num doentio segundo de paixão e amor!

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 2. SP: Ed. Theor, 1965.