quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Contos e Lendas do Mundo (Tribo Caiapó: O Fogo e o Jaguar)

Existem muitas versões diferentes deste mito nas várias tribos dos Caiapós, porém todas elas contam como o povo descobriu o segredo do fogo e começou a cozinhar os seus alimentos.

No tempo em que as pessoas secavam carne ao sol, para depois ser mais fácil mastigá-la, um homem e um rapaz partiram para a caça. A certa altura, o primeiro avistou um ninho de arara no alto de um rochedo escarpado.

- Botoque, tens de subir lá cima para veres se naquele ninho há ovos ordenou ao rapaz.

- Porque hei de ser eu? - perguntou Botoque. - Tu és mais crescido e forte.

- Precisamente por isso! - exclamou o homem. - Esta tarefa é a indicada para uma pessoa pequena.

Botoque tentou escalar o rochedo, porém, não tinha onde apoiar as mãos e os pés.

- Não consigo! - queixou-se.

- Não desistas com essa facilidade! - aconselhou-o o homem, que era marido da irmã de Botoque. - Precisamos de te fazer uma escada.

Procurou no mato em volta, até encontrar o tronco de uma árvore caída.

- Achei! - exclamou. - Ajuda-me a arrastar este tronco para a clareira. Botoque e o cunhado começaram a abrir saliências na madeira morta para improvisar uma espécie de escada, enquanto, no ar, por cima deles, um par de araras voava em círculo, soltando guinchos de alarme.

Depois de terminarem, o homem e o rapaz arrastaram o tronco até ao rochedo e apoiaram-no contra a sua superfície.

Botoque percorreu o comprimento do tronco com os olhos, desde o chão até mesmo ao cimo, que chegava exatamente à beira do sítio onde as araras tinham feito o seu ninho. Tinha muito que subir.

- Achas que sou mesmo capaz de subir isto tudo até lá cima? - perguntou, nervoso.

- Claro que sim - respondeu o cunhado. - Eu seguro no tronco cá embaixo, para o tornar firme.

Botoque, francamente relutante, foi subindo até chegar ao topo. Saltou do tronco para cima da saliência rochosa e olhou para o ninho.

- Quantos ovos vês? - perguntou-lhe o homem lá de baixo.

Botoque mal podia acreditar nos seus olhos. O ninho continha apenas duas pedras arredondadas.

- Nenhum! - gritou em resposta, inclinando-se para pegar nas pedras.

- Nesse caso, o que tens tu nas mãos? - perguntou o cunhado, fazendo pala com a mão sobre os olhos, para ver o que Botoque estava a fazer.

- Pedras! - gritou Botoque de novo. - Devem ter caído do alto do rochedo.

- Estás a mentir! - gritou o homem. - O irmão da minha mulher é um miúdo mentiroso! Tens aí dois belos ovos de arara e queres ficar com eles só para ti.

Mal Botoque pousou o pé na primeira saliência da escada, com a intenção de descer, o cunhado, enraivecido, começou a balança-la.

- Para com isso! - gritou o rapaz, em pânico. - Não estou a mentir. Agarrou-se ao tronco com as duas mãos e deixou escapar as pedras, que caíram mesmo em cima do cunhado furibundo.

- Como te atreves a atirar-me pedras! - gritou o homem quando uma delas o atingiu na cabeça. Cambaleou para trás e largou o tronco de árvore, que se estatelou no meio do chão fazendo uma barulheira infernal e partindo-se ao meio. Não seria de admirar que o cunhado de Botoque a tivesse largado de propósito, de tão furioso que estava.

Felizmente para Botoque, este ainda teve tempo para voltar apressadamente para cima da plataforma rochosa antes de a escada improvisada tombar. Mas infelizmente, ele estava agora preso lá em cima, na plataforma, impossibilitado de descer.

- Socorro! - gritou. - Ajudem-me!

O cunhado, no entanto, não lhe prestou qualquer atenção e foi-se embora.

Ao chegar à aldeia, mentiu em relação a Botoque, dizendo que o rapaz não lhe obedecera e correra a esconder-se no mato.

Botoque ficou sozinho dias a fio, na estreita saliência do rochedo. As araras, assustadas com a sua presença, abandonaram o ninho. Botoque passou muita fome e frio, não tardando a ficar reduzido a pele e osso. O seu corpo desenhava uma estranha sombra no chão poeirento que se estendia em baixo.

Foi então que, um dia, um jaguar - um enorme gato selvagem - que ia a passar, reparou na sombra e, pensando tratar-se de alguma criatura esquisita, tentou atirar-se a ela. De cada vez que saltava, Botoque encolhia-se contra a parede do rochedo e a sua sombra deixava de se ver no chão.

Intrigado, o jaguar olhou para cima e foi então que reparou em Botoque.

- Quem és tu? - perguntou.

- Sou um ser humano - respondeu Botoque.

- Não sabia que os humanos viviam em ninhos feitos no meio das rochas – observou o jaguar que, à semelhança de todos os grandes gatos, caminhava bem assente sobre as suas quatro patas. Subiu então pela parede rochosa, encontrando apoio em sítios que os humanos jamais teriam descoberto.

Botoque contou-lhe a traição do seu cunhado, mas, quando o grande gato lhe sugeriu que subisse para cima do seu dorso, sentiu-se receoso.

- Confia em mim - disse-lhe o jaguar. - Quem te traiu foram os da tua espécie, não os da minha. Vais comigo para minha casa e passas a ser como um filho para mim.

Botoque subiu então para o dorso do jaguar e depressa chegaram a casa deste. No meio do chão via-se um tronco de jatobá a arder exuberantemente.

- Que é aquilo? - perguntou Botoque, que nunca vira tamanha magia. As chamas de cores brilhantes pareciam dançar diante dos seus olhos.

Também crepitavam e transmitiam calor.

- Chama-se fogo - informou o jaguar. - Serve para cozinhar a comida.

- Cozinhar? - admirou-se Botoque, que nunca ouvira semelhante palavra. Como os humanos não conheciam o segredo do fogo, comiam tudo cru.

- Já vais ver - respondeu o jaguar, chamando a mulher.

- Quem trazes aí? - perguntou-lhe ela.

- Apresento-te o Botoque - disse o jaguar. - Foi traído pelos da sua própria espécie. Portanto, resolvi adotá-lo como nosso filho.

- Mas daqui a pouco teremos um filho mesmo nosso - insurgiu-se a mulher do jaguar, que esperava uma cria, mirando Botoque à luz das chamas tremeluzentes.

- Nesse caso ficaremos com dois filhos - retorquiu o jaguar, dando a conversa por terminada. - Agora vamos comer.

Foi assim que Botoque se tornou o primeiro do seu povo - provavelmente dos seres humanos - a comer carne cozinhada ao lume. Ficava deliciosa! Não só era mais fácil de mastigar do que a crua, como também ganhava muito mais sabor. Foi a melhor refeição que o rapaz já comera na vida. Nessa noite foi dormir, repleto e feliz, ao pé da fogueira, aquecido pelo seu calor.

Na manhã seguinte, Botoque acordou e viu que o jaguar lhe fizera um arco e flechas - uma arma jamais vista por nenhum humano - e os dois foram, rapaz e animal, caçar juntos. Tornaram-se grandes amigos, o que já não acontecia em relação à mulher do jaguar.

Sempre que ficava sozinha com Botoque, arreganhava-lhe os dentes e mostrava-lhe as garras. Não o deixava aproximar-se da carne e havia mesmo ocasiões em que o rapaz ficava sem comer. Não lhe agradava nada ter aquele novo «filho» em sua casa.

Certa manhã, depois de o jaguar partir para a caça, rosnou a Botoque com tal ferocidade que ele agarrou no arco e nas flechas e disparou-lhe uma para a pata.

Botoque, horrorizado com o que fizera, achou que chegara a altura de regressar à aldeia e juntar-se aos da sua própria espécie.

Agarrou num bocado de carne cozinhada e seguiu apressadamente para casa.

Ao chegar à aldeia, a família recebeu-o com muita alegria... com exceção do cunhado. Quando todos o imaginavam morto, eis que voltava com uma história fantástica sobre certo jaguar e algo chamado fogo. Os mais velhos provaram a carne cozinhada e admitiram que nunca nada lhes soubera tão bem.

Ficaram maravilhados diante do arco e das flechas e concordaram que o tal jaguar era, sem dúvida, uma criatura muito esperta.

- Temos de ter um pouco desse fogo para nós - disse um dos anciãos.

Os habitantes da aldeia reuniram então alguns animais a fim de lhes pedir ajuda, e em seguida traçaram os seus planos.

Atravessaram furtivamente a floresta, em direção à casa do jaguar. Ali chegados, um tapir carregou com o tronco em fogo nos costados e, a coberto da escuridão, voltaram todos para a aldeia.

O jaguar, que estivera a observá-los de entre as sombras, sentiu-se profundamente triste. Tratara Botoque com bondade e, no entanto, fora traído. Jurou então nunca mais caçar com arco e flechas e servir-se apenas dos dentes e das garras, decidindo igualmente jamais voltar a comer carne cozinhada, limitando-se à crua. O único fogo que voltou a sentir depois do acontecido foi uma raiva chamejante dentro de si contra os humanos - criaturas que traem não só os outros animais como também os da sua própria espécie.

Botoque e os aldeões, por outro lado, passaram a dispor do fogo para iluminar a escuridão, comer carne cozinhada e aquecer-se nas noites frias.

Fonte:
Mitos e Lendas Sul Americanas.

Nenhum comentário: