Recebo uma carta onde o correspondente reclama porque nós, jornalistas, sempre fugimos dos temas eternos. Porque só nos comprazemos com o efêmero — a carestia da vida, as dificuldades da existência urbana, as deficiências dos serviços públicos, os dramas do cotidiano e outras infelicidades transitórias.
A primeira resposta que ocorre é que a gente se ocupa do efêmero porque não tem grandeza suficiente para tratar do eterno. Mas depois dessa reação de humildade, vem a pergunta: na realidade que é que pode ser chamado, em termos humanos, de efêmero e de eterno? Parece que o que se considera eterno ou “temas eternos” são: a Arte, a Beleza, a Ciência, a Religião, o Amor e a Morte. Pelo amor e morte, vá, que são mesmo eternos. Mas os outros conceitos — de beleza, religião, etc., serão eles menos transitórios que as outras preocupações humanas?
Conceito de beleza, por exemplo: nada mais variável. E não só o da beleza feminina que nos primeiros lustros do século rondava pelos setenta quilos de peso e hoje (hélas!*) não pode passar um grama além dos cinquenta. Quem duvidar procure descobrir uma mulher que tenha exatamente as medidas do padrão universal da beleza que é a Vênus de Milo; vistam-na numa roupa de hoje em dia e será um escândalo!
A Vênus terá que ir para a dieta, perder pelo menos uma arroba das suas divinas enxúndias (*). E teremos então uma lição prática de como variam os critérios de beleza,
Ciência. O que para nós é ciência admirável, daqui a cem anos talvez não passe de meras e tateantes primícias. As maravilhas que se inventam hoje, daqui a uns tempos — curtos — hão de ser encaradas com condescendência e ternura, assim como a gente encara a desesperada procura dos alquimistas pela pedra filosofal.
A Arte. Esta, sabemos bem que não é eterna. Ou, mesmo eterna, a sua eternidade depende das modas, pois periodicamente se alteram os motivos da nossa veneração artística pelo passado. O padrão pode estar no Egito e pode estar na Grécia ou na África Negra — e assim exibiremos como modelo de arte eterna uma deusa helênica, um ídolo totem, um gato faraônico. Essas e outras manifestações de arte que consideramos imortais — como os poemas eternos — na verdade quem os leu senão os contemporâneos da obra, quem os lê hoje senão pacientes eruditos?
Eternidade, eternidade, só mesmo para o efêmero que o signatário da carta desdenha. A fome, que se traduz nos problemas de abastecimento e carestia. O Abrigo, que se revela na crise habitacional. E as leis que eternamente regem os homens são: lei do Movimento, que cuida dos transportes, isto é, trens, ônibus, aviões, carros, filas de embarque. E do preço da gasolina. A Lei do Menor Esforço, que nos leva a lutar pela maior comodidade doméstica e funcional — e aí vêm os telefones, a eletricidade, a falta de água, as relações domésticas. A Lei da Procura do Divertimento e do Lazer — e faz com que discutamos cinema, TV, teatro, férias, praias, esportes. Ainda há o Amor e especialmente a Morte, que o correspondente reivindica e ninguém lhe nega — eternos sim mas com a sua venerável, eternidade cabendo quase toda nas notas de polícia.
Não são pois os jornalistas que abandonam os temas eternos. Mais os abandonam os outros que se encerram na metafísica e no hermetismo literário — esses que o vulgo põe tão acima dos simples gazeteiros. Ou, se os não abandonam propriamente tratam esses mesmos temas por outros ângulos que não os nossos: por outro ângulo, sim, mas os temas são os mesmos. Quer se estude o amor fatal num ensaio filosófico quer se conte o caso da moça de programa que tocou fogo na roupa para se vingar do namorado, o tema é o mesmo — o amor, o eterno amor, que governa os deuses e os homens, os filósofos e as mulheres da vida.
Tema eterno é isso.
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Glossário
Glossário
Enxúndia – a adiposidade no ser humano; gordura, banha.
Hélas – interjeição que exprime dor, queixa, arrependimento; ai de mim, pobre de mim.
Hélas – interjeição que exprime dor, queixa, arrependimento; ai de mim, pobre de mim.
Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.
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