sábado, 23 de novembro de 2019

Malba Tahan (A Lenda Singular do Vaso Torto)


Era assim. Louvado seja Allah!

Era assim que Amid, o velho oleiro de Samarcanda, fazia todos os dias.

Terminada a tarefa, ao cair da tarde, examinava atentamente um por um, os vasos que o jovem Namedin, seu discípulo dileto, havia modelado. Orgulhava-se com o progresso daquele adolescente na difícil e delicada arte da cerâmica. Revelava o principiante, na execução das obras mais finas e delicadas, invulgar talento.

Havia, entretanto, uma particularidade que fazia negrejar a dúvida no espírito do mestre. Todos os dias, entre os vasos impecáveis, esguios e bem torneados, repontava, fabricada pelas mãos ágeis do artífice, uma peça (e uma só!) lamentavelmente mal feita, torta e deformada. Como explicar a presença daquele aleijão único no meio de tantas perfeições e belezas? Decorreria a multidão de uma falha insanável ou não passaria tudo de um simples capricho do aprendiz?

Amid, intrigado com o caso, resolveu desvendar o mistério. Como apurar a verdadeira origem daquele desacerto, daquela anomalia? Vou observar o trabalho (pensou o oleiro) a fim de precisar o momento em que Namedin claudica e erra. E assim fez. Um dia, da manhã até a quarta prece, o mestre acompanhou atento a faina do jovem. Era preciso descobrir a razão de ser do vaso torto...

Afinal, o velho oleiro, sempre vigilante, viu satisfeita a sua curiosidade.
    
Quando o vulto sedutor da namorada surgia, o aprendiz desorientava-se; suas mãos tremiam...
   
Todos os dias, a uma certa hora, graciosa menina que residia para além da mesquita de Chan-Sindah, cruzava vagarosamente a rua. Namedin apaixonara-se por ela; e, por isso, ao vê-la passar sentia-se confuso, perturbado.

Ali estava, afinal, a explicação do mistério. Quando o vulto sedutor da namorada surgia, o aprendiz desorientava-se; suas mãos tremiam e o vaso que se achava, naquele momento, na roda girante, sob os cuidados de seus dedos ágeis, sofria as consequências daquela desatenção.

Como poderia o enfeitiçado oleiro, naquele instante de comoção, guiar com segurança os seus dedos, dominar os voos de seu pensamento e aquietar os anseios de seu coração?

Rejubilou-se o mestre de Samarcanda com a descoberta, e, a partir daquele dia, com mais carinho e interesse dedicou-se à nobre tarefa de orientar o discípulo querido. Ao amor, sim, e não à imperícia do artista deveria ele incriminar o aparecimento do vaso defeituoso. E que importava, afinal, a mutilação de uma peça no meio das outras? A mulher amada, com a sua presença perturbadora, fazia surgir uma obra defeituosa; mas com sua ausência, entretanto, inspirava dezenas de perfeições.

E, ao ter notícia do caso, um poeta árabe, servo de Allah, escreveu três ou quatro poemas admiráveis que foram gravados em ouro e bronze no deslumbrante palácio de Tamerlão. O terceiro poema - lembro-me até hoje, muito bem! - começava exatamente assim:
   
    Ao ver aquele vaso torto
    Entre outros de forma esguia,
    Penso no destino, absorto:
    - A mão do oleiro tremia!...
   
    Louvado seja Allah que criou a Poesia, a Beleza e o Amor!
   
Fonte:
Malba Tahan. Os Segredos da Alma Feminina nas Lendas do Oriente.

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