quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Rachel de Queiroz (Os Bondes)

    

Pode ser fantasia, papel leva tudo, diz o povo, mas das gentis novidades que os jornais prometem por obra do novo Prefeito do Rio, a que mais me entusiasma será a volta dos bondes, imagina, os bondes. Nem acredito, a tanto não chegam as minhas veleidades. Bonde circulando pela rua, a gente esperando no poste de listra branca, escalando o alto estribo, instalando-se no velho banco de madeira, abrindo o jornal e deixando o motorneiro correr, o vento nos banhando o rosto... E o dito motorneiro badalando na sua campa delém-delém! E o condutor tilintando os níqueis no nosso nariz distraído, faz favor! — e marcando as passagens na caixa sonora do teto, e a gente puxando a sineta para descer e os pingentes circunavegando os carros — não, não ouso acreditar. Bonde, o mais civilizado veículo concebido pela técnica, bonde que não esquenta, não queima óleo, não vomita fumaça, não buzina, não sai do caminho, não ultrapassa os outros, não abalroa, não agride, não vira em canal, não despenca de viaduto, não caça pedestre, não fura pneu, não quebra barra de direção, não dá tranco para acomodar a carga humana, não depende de um motorista sofrendo de psicotécnica, mas de um motorneiro pachorrento, bonde, ah, bonde, não sei o que diga em teu louvor, já que, plagiando Manuel Bandeira, por mais que te louvemos nunca te louvaremos bem!

Sim, sei que são sonhos. Mas como para Deus nada é impossível, por que não um milagre? Um anjo pode inspirar o Prefeito e ele começar, tentativamente, pondo bondinhos a correr pela periferia da cidade, subúrbios, ilhas, esses lugares cariocas mais pacíficos. Na Ilha do Governador, por exemplo, de onde tiraram os bondes foi um crime, com aquelas ruas estreitíssimas à beira- mar, onde só o bonde, preso ao trilho, circulava por elas sem risco. Depois dos ônibus, é só verem as estatísticas, morre lá mais gente atropelada do que de assalto.

E a experiência dando certo em Campo Grande, Santa Cruz — os felizardos! por que não ousar uma tentativa pelo Leblon, talvez um circular pela Lagoa, seria muito turístico. Ou, ainda melhor, uma linha Leblon-Arpoador, ao longo da praia, de onde seriam expulsos os automóveis; nos bondes, os banhistas poderiam circular até de calção molhado — devolvendo-se ao uso a venerável instituição do taioba.

Falei em taioba. Alguém já pensou que, depois de extintos os bondes de segunda classe, não existe mais maneira alguma de pobre carregar seus fardos — lavadeira a sua trouxa, mascate a sua mala, vassoureiro as suas vassouras, verdureiro a sua cesta? Que foi que botaram em substituição do bonde taioba? Nada, claro. Quem pôde, comprou a sua bicicleta ou triciclo para atravancar ainda mais o tráfego. Pobre cada dia tem menos vez.

Nos tempos de eu mocinha, em Fortaleza, era de bonde que se namorava. O primeiro sinal de interesse que o rapaz dava à moça era pagar a passagem dela. Se ela aceitava, estava começado o namoro e o galã tinha direito de vir sentar-se ao seu lado, ou pendurar no balaústre, junto, se ela ia na ponta do banco. Menina namoradeira escolhia sempre a ponta do banco, para facilitar.

Em Belo Horizonte, no bonde que, do Bar do Ponto, subia a Rua da Bahia, quando o condutor ficava quieto lá atrás, já se sabia: era o Senador Melo Viana que vinha naquele bonde e pagava a lotação inteira. Todos se viravam em procura do perfil severo do senador que lia o seu jornal; de um lado e de outro pipocavam discretos agradecimentos mineiros e o senador se mantinha impassível embora, naturalmente, gratificadíssimo.

As moças da Tijuca aqui no Rio, que vinham trabalhar na cidade, bordavam no trajeto de bonde grande parte do seu enxoval; muita velha senhora tijucana, hoje em dia, há de lembrar-se disso. As de Ipanema não sei, nunca me contaram. Mas todas essas galanterias se acabaram. Hoje, em transporte coletivo, só se escuta palavrão, resmungos e ranger de dentes.

Então, ante a dura realidade, ante os dinossauros assassinos disparados pelo asfalto, deixem-me sonhar com os bondes. Nesta cidade feroz, seria cada bonde uma ilha de segurança, de amável fraternidade, sempre cabia mais um! ai, saudades.

Nosso reino por um bonde!

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

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