sábado, 16 de novembro de 2019

Carolina Ramos (A Árvore de Natal)


Virou para trás os ponteiros do tempo. Os filhos, outra vez pequeninos… o marido, ainda cheio de vida. As festas, do fim do ano, pincelando um toque de Natal, em cada canto do casarão. Toque festivo, que atingia até mesmo as lixeiras, enfeitadas, não raro, com os cacos de aljôfar. Restos dos enfeites que os dedos afoitos deixavam escapar.

Meia noite… as meninas de camisola nova, pés descalços, lembravam anjos barrocos, a conduzir na concha das mãos, a imagem do Menino Deus, naquele sublime instante, introduzido na singeleza do presépio.

Revezavam-se os filhos. Cada ano, um era o escolhido para a honrosa missão de levar o Santo Menino até o seu leito de palhas. Com os demais, vinham os Reis Magos e os regalos.

Quatro filhos. Dois pares. Quase podia ouvir- lhes a voz afinada; coro angelical, que o tempo não conseguia apagar: "Noite Feliz!.. Noite de Paz!..."

As recordações lhe traziam de volta a imagem da árvore de Natal varrendo o chão com os galhos iluminados, enriquecidos de mimos! Uma lindeza! Lá no alto, a estrela esplendorosa, evocando aquela de Belém. Essa mesma estrela, tão usada, tinha agora em mãos e, surpreendentemente, guardava ainda resquícios do primitivo brilho. Material bom! Hoje, com pouco uso, tudo se desfazia irremediavelmente. Artimanhas do comércio, para favorecer o consumismo.

Tirou da caixa as relíquias de muitos Natais. Relíquias que o tempo se esforçava por destroçar e que ela defendia com máximo carinho. Uma verdadeira caixa de surpresas: — as guirlandas de papel laminado, as bolas de aljôfar, frágeis e multicoloridas; os castiçais minúsculos, com prendedores que os fixavam aos galhos, já em desuso, uma vez que as velinhas que os complementavam, eram agora substituídas, com vantagem, pelas lâmpadas pisca-pisca, mais práticas e mais alegres e que também ali estavam, em profusão. Os sinos, de todos os tamanhos, cobertos de purpurina prateada; sequer estava esquecido o indispensável pacote de algodão para lembrar os flocos de neve — costume tolo, ligado às origens. Tolo, sim, mas quem conseguiria imaginar um Natal sem esse toque sugestivo, ainda que tendenciosamente europeu? Ou sem a visão, também importada, do alegre e corado Papai Noel, barbas branquinhas, ainda que postiças, suando em bicas dentro da fantasia vermelha, anti-tropical? Aquele Pai Noel, sonho de todas as crianças, a sacudir as banhas no riso obrigatório, ao afagar as cabecinhas dos diabretes espremidos à sua volta, na disputa a confeitos e brinquedos. Sempre o espírito do Natal a escorregar do Presépio, para perder-se nesses descaminhos inevitáveis!

A caixa, uma vez vazia, deixava de alimentar lembranças. Na verdade, faltava o principal — a Árvore de Natal propriamente dita, que se esquecera de comprar. Tinha apenas os acessórios, que, sem os galhos do pinheiro, nada diziam.

Neste ano, a velha senhora não tivera estimulo nem entusiasmo algum que a levasse, como das vezes anteriores, à escolha de um arbusto apropriado. E para quê?! Os filhos, longe. Mais preocupados em sobreviver do que propriamente em viver. Não havia sapatos nem meias de crianças, à espera de presentes, ao pé do fogão ou da lareira artificial. Os regalos já haviam seguido, via postal, com zelosa antecedência e endereço certo. A recíproca também já lhe viera bater à porta, trazida pelo carteiro...

Tão bom, quando, coração em alvoroço, aguardava o toque de campainha de cada um. Cada filho tinha um jeito diferente de se anunciar. Era capaz de identificá-los todos. Tivera convites, sim, mas, aceitar um deles seria desprestigiar outros. Isto jamais faria!

Coração de mãe é coração de mãe, ama por igual, sem se dar o direito de escolhas. E, também, a coragem para as grandes viagens lhe fugia pelo fôlego curto, que coração materno também se desgasta de tanto amar. Resolvera ficar.

O primeiro Natal em que estaria só. Absolutamente só! Tão só quanto Deus deve sentir-Se, mercê da distância em que, na maioria das vezes, O colocam os desmandos dos filhos.

Devagarinho, como quem se deleita em criar alguma coisa, enrolou nos braços as guirlandas prateadas. Enganchou, aqui e ali, as mais belas bolas coloridas. Olhou-se no espelho, que duplicava as dimensões da sala. Sorriu, prendendo aos cabelos nevados a linda estrela, já de brilho baço como seus próprios olhos. Espiralou ao redor do corpo a fieira de lâmpadas coloridas. Deixou que os braços ornados pendessem ao longo da silhueta, levemente separados, imitando a curvatura dos galhos do pinheiro. Sentiu-se uma Árvore de Natal perfeita! Sorriu para a imagem que o espelho refletia. Se o Santo de Assis criara o primeiro presépio vivo, sem qualquer pretensão, ela animara, ou melhor, humanizara o primeiro pinheiro de Natal!

Deixou que o pranto lavasse mansamente os traços melancólicos que a solidão esboçara no cansaço do seu rosto.

Com extremo cuidado, ligou à tomada a fieira de lâmpadas adormecidas. Que as luzes completassem a sua arte improvisada.

Um estalo seco e as lampadazinhas multicoloridas esplenderam, por um segundo, com maior fulgor do que nunca! Apoteótico segundo, antes de se espatifarem, irremediavelmente, quando tombou ao chão, fulminada, aquela humana Árvore de Natal!

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.

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