segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Contos e Lendas do Mundo (Carajás: Um Mundo de Céus Infinitos)


Segundo a maioria dos mitos sul-americanos, os primeiros humanos eram imortais. Podiam viver para sempre. No entanto, este mito carajá conta a história de maneira diferente.

Há muito, muito tempo, os humanos não viviam à superfície da Terra, mas sim no seu interior. Quando a noite caía no lado de fora, no interior reinava o dia, e a explicação era simples: quando o Sol baixava e deixava de se ver no final de cada dia, desaparecia dentro da Terra e iluminava o seu reino subterrâneo. Depois, quando a manhã chegava, o Sol erguia-se no horizonte, saindo de dentro da Terra, e voltava para o céu.

Entre as pessoas que viviam neste mundo subterrâneo - e é preciso não esquecer que, no princípio, era aí que todas elas moravam - havia um homem chamado Kaboi, dotado de grande sabedoria.

Às vezes, quando Kaboi se deitava no seu leito à noite - no interior da Terra era noite, enquanto à superfície era dia -, ficava a escutar um canto estranho que lhe chegava de cima.

Embora os dois mundos estivessem divididos por uma espessa camada rochosa, aquele canto chegava-lhe com muita nitidez, deixando-o curioso quanto à sua origem. Nunca pensou que se tratava do canto de uma seriema, ave que vivia nas vastas planícies verdejantes da savana.

Não tinha possibilidade de saber que as próprias ervas cantavam quando o vento passava por entre elas. Verdade seja dita, ele também nada sabia acerca de ventos, pois, no interior da Terra, o ar estava parado e nunca nenhum humano vira o mundo que ficava por cima.

Certa noite, Kaboi não conseguiu aguentar mais. Resolveu seguir o som e tentar descobrir de onde vinha. Várias pessoas concordaram em acompanhá-lo; porém, os seus nomes já foram, há muito, esquecidos.

Kaboi e os seus companheiros subiram pelas paredes rochosas do mundo subterrâneo, até chegar ao lugar onde o som se ouvia com mais força.

Kaboi sentiu no rosto uma brisa suave, ele que nunca antes experimentara tal sensação. E pelas narinas entrou-lhe um odor estranho... o odor da erva da savana. Kaboi olhou para cima e avistou, mesmo por cima da sua cabeça, um buraco aberto na rocha. Deitava para um longo túnel que, por sua vez, ia dar à superfície.

Nesse preciso momento, a seriema cantou de novo e as pessoas que rodeavam Kaboi soltaram exclamações de entusiasmo.

- Tinhas razão - observou uma delas.

- Encontraste um caminho que vai dar a outro sítio! - exclamou outra.

Foi um momento de grande entusiasmo para Kaboi. Se, de fato, havia um mundo novo no lado de fora, ele ficaria para sempre conhecido como aquele que descobrira o caminho para lá chegar.

Kaboi achou que devia dizer algumas palavras para marcar aquele momento importante; porém, estava de tal maneira entusiasmado que se içou para a entrada do túnel. O pior é que não conseguiu passar, pois a abertura era demasiado pequena para a sua enorme barriga.

- Temos de abrir um túnel mais largo! - declarou alguém.

- Não vale a pena - respondeu Kaboi. - O que interessa, acima de tudo, é descobrir o que está no outro lado - salientou. - Só vos resta subir pelo túnel e partir à aventura.

Os companheiros de Kaboi percebiam bem do grande desgosto que este experimentava por não poder visitar a superfície; no entanto, achavam que as suas palavras faziam sentido e estavam todos ansiosos por partir à descoberta do que havia no exterior.

Antes de o último homem desaparecer pelo túnel acima, Kaboi pousou-lhe a mão no ombro.

– Não te esqueças de ver de onde vem o canto que costumo ouvir à noite – recomendou.

- Prometo não me esquecer - retorquiu o homem.

Os primeiros seres humanos a visitar a superfície da Terra, a que agora chamamos nossa, mal podiam crer no que os seus olhos viam. O céu azul que se estendia, a perder de vista, por cima das suas cabeças, era algo que jamais tinham imaginado. As árvores, as plantas, as aves... Tudo era novo e espantoso para eles.

- O Kaboi descobriu-nos um paraíso! - rejubilou-se um deles.

- Todos irão querer viver aqui - disse outro.

- Estou ansioso por lhe contar - acrescentou um outro.

Houve mais alguém que desejou falar; porém, a sua voz foi abafada pelo canto da seriema.

- Ah! Ah! - exclamou essa pessoa em tom triunfante, depois de a ave se afastar. - Ali está a criatura cujo canto fez com que chegássemos a este lugar maravilhoso. Temos de voltar para junto do Kaboi e contar-lhe o que vimos.

- Acho que também devemos levar conosco coisas para lhe mostrar – sugeriu o primeiro.

Todos concordaram com a ideia.

Colheram fruta, juntaram abelhas, mel e bocados de madeira seca que tiraram de uma árvore morta, subindo, em seguida, até ao lugar onde ficava o túnel que os conduziria de novo ao mundo subterrâneo.

- Kaboi, encontramos um lugar maravilhoso! - exclamou um deles.

- O teto do mundo lá de cima não é feito de pedra como o nosso, mas sim de ar azul que se estende a perder de vista - disse outro.

Não podia utilizar a palavra «céu», porque ela não existia. Nunca nenhum humano o vira, melhor dizendo, até então.

Todos desataram a falar ao mesmo tempo, ansiosos por transmitir as maravilhas com que tinham deparado.

- Calem-se - pediu Kaboi. - Temos tempo para falar de tudo isso.

- Olha o que trouxemos - disse um dos membros do grupo que partira em investigação, enquanto pousavam os frutos, abelhas, mel e madeira seca em frente do sábio Kaboi.

Kaboi pegou numa peça de fruta, cheirou-lhe a pele e deu-lhe uma dentada na polpa. O suco escorreu-lhe pelo queixo.

- Que delícia! - elogiou. - O mundo que gera delícias como esta deve ser maravilhoso.

A seguir, examinou as abelhas e o mel.

- Os insetos do mundo exterior são trabalhadores esforçados continuou, metendo depois um bocado de favos de mel na boca. - E não há dúvida de que o que produzem é doce. Não restam dúvidas de que este mundo novo é fantástico, é um mundo de abundância.

Por fim, pegou no bocado de madeira seca, que virou e revirou várias vezes entre as mãos.

- Onde é que acharam isto? - quis saber.

Um dos elementos do grupo abriu caminho até à frente.

- Encontrei isso numa árvore - explicou.

- Todas as árvores do mundo exterior são feitas de madeira como esta?

- Não - respondeu o homem. - As outras árvores estão de pé e direitas, cheias de folhagem verdejante. Essa estava deitada por terra e não tinha quaisquer folhas. Foi por isso que te trouxe um bocado da sua madeira.

Kaboi ficou com uma expressão solene.

- Não há dúvida de que o mundo lá de cima é muito belo e produz em abundância. Mas também é um mundo onde, a seu tempo, tudo morre.

Via-se, pela cara das pessoas, que estas não tinham percebido bem o significado das palavras do sábio Kaboi.

- No mundo lá de cima, tudo o que tem vida acabará por definhar e morrer - explicou ele.

- Mas aqui em baixo também morremos - contrapôs o homem que trouxera os bocados de madeira seca.

- É um tipo de morte completamente diferente - disse Kaboi. - Aqui, nós não mirramos e secamos como este bocado de madeira. Aqui, nós nascemos e vivemos durante centenas de anos, até deixarmos de existir retorquiu Kaboi. - Lá em cima as coisas nascem, vivem e vão ficando cada vez mais velhas e gastas, até morrerem. Se algum de vocês optar por viver no mundo exterior, também morrerá muito antes daqueles que, entre nós, forem suficientemente ponderados para ficar.

Gerou-se um silêncio de estupefação.

Como os nossos antepassados viviam no mundo subterrâneo não sabiam o que era a decadência, tinham muita dificuldade em compreender as palavras do sábio Kaboi. Mesmo aqueles que tinham uma vaga noção do que ele queria dizer, acharam que o preço a pagar era demasiado pequeno comparado com a possibilidade de viver naquele mundo novo tão belo.

Foi assim que muitas pessoas subiram pelo túnel e passaram a viver na superfície da Terra, onde hoje nos encontramos todos, tendo o céu límpido por cima das nossas cabeças e o chão firme debaixo dos nossos pés.

Descendemos todos desse primeiro povo que optou por essa vida nova à superfície onde, mais cedo ou mais tarde, a morte acaba por nos apanhar a todos.

Quanto a Kaboi, este continuou no subsolo, satisfeito por saber que viveria mais tempo do que os que estavam na superfície poderiam alguma vez imaginar.

Kaboi continuou a poder escutar o canto da seriema e a imaginar o aspecto que a ave teria, agora que lha tinham descrito. Mas também ouviu outros sons: o das pessoas a rir, chorar e morrer.

Fonte:
Mitos e Lendas Sul Americanas.

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